Curta no Facebook

Mostrando postagens classificadas por relevância para a consulta Toni Tornado. Ordenar por data Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens classificadas por relevância para a consulta Toni Tornado. Ordenar por data Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Toni Tornado - "Toni Tornado" (1971) *




"É o hino. 
É um marco. 
É a estrada da vida. 
A gente corre e a gente morre na BR-3"
Tony Tornado
 sobre a canção "BR-3"


Por incrível que possa parecer, não é todo mundo que sabe que Tony Tornado foi cantor e, por sinal, não um cantorzinho qualquer, mas um baita cantor. Quem só o conhece dos papéis na TV, em séries, novelas e filmes, não faz ideia de que logo no início de sua carreira, em 1970, aquele negro imponente, com seu vozeirão trovejante ganhava o concorridíssimo Festival Internacional da Canção, à época, o grande evento musical do país, com a soul tristonha "BR-3", derrubando adversários como Gonzaguinha, Ivan Lins, Martinho da Vila, Wanderléa, entre outros.

A vencedora "BR-3", de interpretação precisa e marcante de Tony, acompanhado do Trio Ternura, que alternava um tom melancólico com ênfases explosivas veio a integrar seu primeiro álbum de 1971, que levava simplesmente seu nome, com "i", na época, "Toni Tornado". O disco, altamente influenciado pela música negra norte-americana traz baladas amorosas, como a composição de Roberto e Erasmo, "Não Lhe Quero Mais", peças ao estilo gospel americano, bem caracterizadas por "Juízo Final" e "Eu Disse Amém", uma mistura das duas coisas, o romantismo e a religiosidade, na balada 'Uma Canção para Arla", ritmos bem embalados como em "Um Vida" e "Breve Loteria", e funkões poderosos ao melhor estilo James Brown, como é o caso de "Dei a Partida" e "O Jornaleiro".

Tony só viria a lançar mais um álbum, um ano depois, e depois dedicar-se-ia à exitosa, embora pouco protagonista, carreira de ator. Foram apenas dois discos mas ambos de alta qualidade sendo responsáveis, bem como os trabalhos de Tim Maia, por grande parte da assimilação dos ritmos negros americanos dentro da música brasileira.

Você que só conhecia o Tony Tornado do "Roque Santeiro", do "Agosto" ou da "Malhação", agora já sabe: Tony Tornado foi, sim, um cantor. E, por sinal, não um cantorzinho qualquer.

************************

FAIXAS:

1. Juízo final (Renato Corrêa/ Pedrinho)
2. Não lhe quero mais (Erasmo Carlos/ Roberto Carlos)
3. Dei a partida (Getúlio Côrtes)
4. Uma canção para Arla (Major/ Tony Tornado)
5. Breve loteria (Fafi)
6. Eu disse amém (Getúlio Côrtes)
7. BR-3 (Tibério Gaspar/ Antônio Adolfo)
8. Uma vida (Arnoldo Medeiros/ Dom Salvador)
9. Papai, não foi esse o mundo que você falou (Erasmo Carlos/ Roberto Carlos)
10. Me libertei (Tony/ Frankye)
11. O repórter informou (Hyldon)
12. O jornaleiro (Major/ Tony Tornado)


**********************
Ouça:
Toni Tornado - Toni Tornado (1971)

* Posteriormente, já como ator, o artista mudou a grafia do seu nome artístico para Tony, com a letra "y" no final.


 


por Cly Reis



sábado, 23 de novembro de 2024

Tony Tornado & Banda Funkessência - Encontro Black - Museu da Cultura Hip Hop RS - Porto Alegre/RS (20/11/2024)

Se Jesus Fosse Um Homem de Cor

Um gigante. Tony Tornado é um gigante. Mas não só por sua estatura de 1,90 metro, que se avoluma ainda mais no palco. Tony é gigante por sua importância para a cultura black, por sua figura emblemática para o povo preto, por sua música, por sua idade quase centenária, prova da força arrebatadora de um homem negro filho de escravo. Por sua existência divina.

Nada mais adequado que, então, celebrar o primeiro feriado do Dia da Consciência Negra em Porto Alegre, a cidade que viu nascer a ideia do 20 de novembro há mais de 50 anos com Oliveira Silveira e a ANdC em homenagem ao herói da resistência Zumbi dos Palmares, em pleno Museu do Hip-Hop, o primeiro do Brasil sobre este tema tão ligado à cultura negra moderna, recebendo este homem gigante, enorme física e simbolicamente chamado Antônio Viana Gomes. Ex-engraxate, ex-crooner, ex-cafetão, ex-traficante, ex-paraquedista do Exército, ex-combatente da Guerra de Suez, filho de um foragido da Guiana sobrevivente da seita Jim Jones, ex-exilado político, o ator de papéis memoráveis. Uma lenda. Ou seja: quando Tony Tornado pisa num palco, não é só um show que se vislumbra: é uma festa de santo, uma celebração, um toque, um ritual, um culto onde a divindade está ali, diante de nossos olhos. 

Foi nesse clima de epifania que Tony Tornado subiu ao palco montado no pátio do Museu para, como se diz atualmente, entregar uma apresentação não menos que memorável. Como um totem que expõe uma mensagem de resistência negra, vestia uma camiseta preta com uma escancarada estampa de Malcom X tão grande e auto-iluminada que se podia ver a quadras de distância. Acompanhado da excelente banda Funkessência e tendo ao lado o talentoso filho Lincoln Tornado, o mítico interprete de BR3, música com a qual venceu o Festival Internacional da Canção em 1971 impactando todo o Brasil com aquela performance histórica, já não dança mais como antigamente. Perfeitamente compreensível, afinal, os 94 anos que carrega naquele corpanzil lhe desculpam totalmente. Equilibrando performance sua com a do restante da banda, o show é uma aula de repertório e narrativa, com aqueles funkões cheios de groove intercalados por baladas para diminuir o ritmo, e formado por sucessos de Tony, homenagens e algumas surpresas.

O gigante negro toma
o palco
A abertura não podia ser com outra: “Tornado”, o excepcional funk autorreferente a la James Brown que encerra o clássico primeiro disco de Toni (ainda escrito com “i”), de 1971. Na sequência, o velho emenda outra pérola: “Me Libertei”, com seu refrão cativante: “Todo meu canto/ Sai do meu coração”. Aí, uma preciosidade escondida: “Manifesto para Angola”, escrita quando do exílio político de Tony no país africano, mas justamente quando este finalmente se libertava do colonialismo de Portugal. Por isso, esse ska africanado espetacular diz assim: “Temos que fazer algo agora/ Sem desesperar como outrora/ Retomar o tempo perdido/ Sentido, ferido/ Todo nosso tempo perdido/ E covardemente agredido/ Nós estamos voltando agora/ Angola é hora”.

O filho Lincoln, que faz as vezes daqueles clássicos mestres de cerimônia dos shows de soul, é um verdadeiro crooner que "soluciona" a menor mobilidade do astro principal cantando, dançando e divertindo com a plateia. E como dança! Ele é quem assume os microfones, com autoridade e irreverente, deixando o pai no backing-vocal, quando este dá as devidas paradas para descanso. Entoa, logo em sua primeira incursão, um clássico da black music brasileira: “Mandamentos Black”, do seu “tio” Gerson King Combo. Mais tarde, noutra pausa de Tony, aumenta ainda mais o nível evocando o pai de todos do funk: James Brown. É “Get Up (I Feel Like Being a) Sex Machine”, para delírio geral. Lincoln canta, dança, chama o público, interage com a banda e com a plateia. Um showman, que segue muito bem, com o mesmo sangue negro, o legado de seu pai.

Mas não se enganem que Tony faz um show “meia-boca” e delega para os mais jovens da banda a condução. Não! Mesmo com as pausas estratégicas para sentar e tomar um fôlego, Tony canta, e canta muito bem, ainda mais para a sua idade (diante de cantores com 60 anos menos que ele, inclusive). O cara manda ver nos gritos tipo James Brown, entoa frases em inglês com o sotaque de um negrão do Harlem ("clap your hands!", "everybody!") e, principalmente, é afinado. Sim! Tony cantou os versos melancólicos da primeira parte da clássica "BR-3", a penúltima do show, com afinação e direito a vibratos! Muito cantor jovem desses que se vê nos festivais por aí não tem esse cuidado - e nem essa qualidade. Isso quando não manda um rap em inglês que não deixa a dever a nenhum Notorius Big ou Snoop Dogg.

Tony Tornado mandando ver no rap

Visivelmente emocionado com o carinho e a vibração do público, Tony volta para dar mais presentes. E este presente se chama Tim Maia. Homenageando o amigo a quem conheceu nas ruas do Harlem, quando ambos viveram de contrabando em Nova York, e que viu nos últimos momentos antes de morrer, Tony faz um medley com “Primavera”, “Azul da Cor do Mar” e "Sossego", apoiado pela estupenda voz da cantora Francine Moh. Ela, aliás, com capacidade para isso, chamou outro hino de Mr. Dynamite, “I Got You (I Feel Good)” e, a pedido de Tony, “Respect”, de Aretha Franklin, em que Francine atingiu boas oitavas como pouco se vê. Muito respeito aos dois.

Tony retorna ao microfone principal trazendo outras maravilhas de seu repertório: “Podes Crer, Amizade”, com a qual é impossível ficar parado, e “Sou Negro”, com seu refrão tomado de resistência e negritude: “Sou negro, sim/ Mas ninguém vai rir de mim”. Para encerrar, “BR-3”. Quando inicia a segunda parte da música, naquela explosão funk da virada, é fechar os olhos e ver a imagem daquele negrão gigantesco com um sol desenhando no peito e dançando frenética e sensualmente para todo o Brasil no Festival da Canção. Já saindo do palco, forte o suficiente para sustentar o seu peso e importância, a Funkessência toca “Descobridor dos Sete Mares”, outra do Síndico. Lincoln se esbalda dançando. Francine explora as oitavas. A banda carrega no groove. Tony se despede com o punho cerrado dos Black Panthers.

Esta tarde histórica para a cidade e para a vida do público presente começou com muita alegria e emoção. Música preta - funk, soul, rap, charme, reggae, samba - emanava e se conectava aos fios dos cabelos black que desfilavam pelo lugar, mas também às mentes e corações. Um senso de pertencimento era sentido por todos: pretos, brancos, jovens, idosos, crianças, adolescentes. E Tony, neste sagrado dia de consciência secular, foi o ápice. Todos dançaram, se divertiram, conversaram, cantaram. Sacralizaram em torno de um Deus negro. E se Jesus fosse um homem de cor?...

Palmares se (re)instaurou. Porto Alegre aquilombou-se. Zumbi estava lá.

*********

Tony com a ótima banda Funkessência, Lincoln Tornado e Francine Moh


Começando o show com clássicos do seu  repertório


Trecho de "Me Libertei"



Crooner, Lincoln agita a galera


Duas gerações talentosas no palco


Francine e Lincoln mandam ver 
com James Brown



Sou negro, sim! Como um Black Panther


Dos momentos altos do show: "Sou Negro"


O Deus negro se despede



texto, fotos e vídeos: Daniel Rodrigues


quarta-feira, 22 de maio de 2024

Exposição "“FUNK: Um grito de ousadia e liberdade” - Museu de Arte do Rio (MAR) - Rio de Janeiro/RJ (25/04/2024)

 

Ir ao Museu de Arte do Rio, o MAR, é sempre uma experiência rica e penosa. Rica pelo óbvio: a qualidade das exposições que lá circulam, não raro as mais bem curadas e capitalizadas que passam pelo Rio de Janeiro (esta, por sinal, a cidade de maior concentração de grandes exposições do Brasil junto ou até mais do que São Paulo). Mas também penosa porque, além de extensas (o que, por mais gratificante que seja, é também cansativo), dificilmente se consegue aproveitar tudo que o MAR oferece simultaneamente. No caso, foram seis mostras, das quais pude, na companhia de Leocádia e do amigo Eduardo Almeida, ver com um pouco mais de atenção três delas.

Uma destas, contudo, posso dizer que foi a melhor que presenciei no Rio desta feita: “FUNK: Um grito de ousadia e liberdade”. Um espetáculo. Com curadoria da Equipe MAR junto a Taísa Machado e ninguém menos que o lendário Dom Filó – um dos principais ativistas da causa negra e agitadores culturais do funk dos anos 70, responsável pela descoberta de que ninguém menos que gente como a Banda Black Rio e Carlos Dafé –, a principal mostra do ano do MAR perpassa os contextos do funk carioca através da história. A temática da exposição apresenta e articula a história do funk, para além da sua sonoridade, também evidenciando a matriz cultural urbana, periférica, a sua dimensão coreográfica, as suas comunidades.

Para chegar aos morros e favelas onde o funk carioca se tornou obra e sinônimo e estilo, a mostra traz com muita propriedade toda a construção desdobramentos estéticos, políticos e econômicos ao imaginário que em torno dele foi constituído, recuperando as audições públicas do início do século XX, os clubes para negros dos anos 40/50, os bailes hi-fi dos anos 60, até chegar, aí sim, no fenômeno das festas black dos anos 70. Influenciados pelo movimento Black Power, Panteras Negras, a Blackexplotation e, claro, a música soul norte-americana e outros, a galera tomou conta de ginásios e galpões da Zona Norte e mandou ver no movimento mais libertário e dançante que o Brasil moderno já viu. E tudo isso estava representado na exposição através de fotos, posters, pinturas, capas de disco, e também em som, seja dos hinos funk até o poderoso off do próprio Dom Filó. Ninguém melhor que ele para a tarefa de contar a história daquele momento crucial para a cultura pop no Brasil, o que viria a dar no funk carioca tal qual conhecemos.

Toda a parte que mostra a evolução do funk em terras cariocas é bem interessante, evidenciando as etapas vividas nos anos 90, a entrada no século XXI e o advento/chegada das novas tecnologias no morro. O contraste – inevitável, proposital, ressignificado – entre pobreza e riqueza, periferia e centralidade, comunidade e cosmopolitismo, é de uma riqueza incalculável, muito a se assimilar. Porém, mesmo com bastante material, esta segunda metade da exposição, mesmo sendo o crucial do projeto, não é tão interessante quanto a sua primeira, a que traz a pré-história do funk do Rio. Talvez pelo fascínio que a mim tem a era Black Rio, suas inspirações políticas, comportamentais e culturais que bebem nos Estados Unidos, isso tenha me prendido mais a atenção – embora tenha a sensação de que, documentalmente falando, seja pelos áudios, obras, objetos, músicas, etc., esta parte introdutória pareça mais completa.

Contudo, a principal sensação que se sai é a de que, enfim, chegamos aos espaços de arte. Embora eu não tenha relação e nem pertença ao universo do funk carioca (embora o seja contemporâneo, mesmo que de longe), a exposição fez-me aludir aos versos de Cartola em sua música "Tempos Idos", quando ele via seu samba assumindo a nobreza que lhe é merecida: "O nosso samba, humilde samba/ Foi de conquistas em conquistas/ Conseguiu penetrar no Municipal". Aqui, é a cultura pop na melhor acepção da palavra que adentrou os salões nobres das Belas Artes, o que suscita um sentimento de pertencimento. Ver meus ídolos da música pop negra brasileira - Black Rio, Dafé, Gerson King ComboTim Maia, Cassiano, Toni Tornado, Sandra Sá, Dom Salvador - e internacional - James Brown, Isaac Hayes, Parliament/Funladelic, Chic, Curtis Mayfield, Marvin Gaye -  estampados, um mais bonito que outro, redimensionando suas belezas estéticas e simbólicas, é algo que realmente preenche o coração.

Todos os desdobramentos artísticos explícitos e implícitos são, no mínimo, admiráveis, se não objeto de muita apreciação e análise, como a hipnotizante dança do passinho, as pichações, a estética das armas, a sensualidade, a pele preta à mostra, a luz tropical, os cortes de cabelo. Na música, a constatação de que o funk carioca, original, é muito mais advindo dos ritmos africanos (inclusive do Nordeste da África, na Península Arábica) do que somente do funk importado dos states. Tem mais macumba do que enlatado.

Independentemente, vale a pena demais a visita ao MAR, nem que seja para ver apenas esta exposição. Mas se for, aviso: vá com tempo. 

*******

Já na entrada, o maravilhoso corredor com as pichações iluminadas


Recepção ao som de pukadão


King Combo: mandamentos black, brother


Edu "tatuado" pela projeção de uma das obras de Gê Viana
da série "Atualizações Traumáticas de Debret"


A pré-história do funk: Pixinguinha puxa Ângela Maria (esq.) pra dança e Jackson do Pandeiro
punha be-bop no samba, tropicalizando a globalização - e não o contrário


As desbotadas cores dos antigos bailes hi-fi revistas por Gê Viana


O artista Blecaute também reconta os apagados eventos sociais negros do passado em novas cores


Mais de Gê Viana em sua série em que recria Debret: genial quebra do tempo
simbólico e cronológico 



Outra arte imponente, esta de Maria de Lurdes Santiago


Anos 60/70: as referências de fora chegaram. Nunca mais o mundo foi o mesmo


Reprodução de cartazes dos Black Panthers:
a coisa ficou séria agora


Eis que chega a Black Rio, potente como uma Maria Fumaça


Dom Filó e sua turma da Soul Grand Prix, promotores das festas black da Zona Norte


Os pisantes, indispensáveis nos clubes soul
em arte de André Vargas



Tão indispensáveis quanto, as potentes 
aparelhagens de som


James Brown, uma das referências máximas da galera, em fotos no Brasil


Os "times" liderados pelos grandes nomes da soul brasileira 



Lindas fotos, maioria P&B, dos tempos dos bailes funk nas noites da Zona Norte carioca e seus sagrados palcos


Encerrando a primeira parte da exposição, obras da genial gaúcha (e preta) Maria Lídia Magliani


Mais Magliani


Os corpos femininos sempre tão explorados... prenúncios de dança da bundinha


Já nos anos 90, a beleza dos passinhos se mistura
à fúria violenta dos excluídos

Esta cocota que vos escreve rebolando até o chão


Corpos negros femininos quebrando padrões de beleza e gênero


Presença LGBTQIAP+ nas comunidades, outra força simbólica na cosmologia do funk


Pop art gay no morro: "Só tem no Brasil"



Sem concessões, a exposição mostra também mazelas como as drogas


E esta incrível pintura, que mais parece serigrafia? 


Funk também é afrofuturismo


Pra finalizar a exposição, uma frase cheia de sarcasmo
que contraria os detratores




texto: Daniel Rodrigues
fotos e vídeos: Daniel Rodrigues, Leocádia Costa e Eduardo Almeida



quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Música da Cabeça - Programa #298

 

Fica até difícil achar o MDC nessa multidão toda de argentinos. Mas a gente facilita a coisa pra vocês, até porque hoje tá bem fácil escutar com tanta coisa boa que tem: Al Di Meola, Tom Zé, O Rappa, Neneh Cherry, Toni Tornado, New Order e mais. Ainda, no quadro especial, uma lista sobre mulheres inspiradoras. Invadindo o obelisco, o programa levanta a taça hoje às 21h na tricampeã Rádio Elétrica. Produção, apresentação e reverências a Messi: Daniel Rodrigues.


www.radioeletrica.com

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Música da Cabeça - Programa #157


Achatadores de curva de plantão, vamos dar uma folga pro coronavírus e prestar atenção noutras curvas: as das ondas sonoras do Música da Cabeça! Gente como Fela Kuti, Toni Tornado, Vince Guaraldi, Bob Marley e Bauhaus são alguns dos que nos ajudam nessa empreitada. Também nossos quadros fixos de notícia e poesia, além do móvel "Cabeça dos Outros". Tudo às 21h, na Rádio Elétrica. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues. #ficaemcasa


Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

terça-feira, 26 de setembro de 2017

Carlos Dafé - “Pra que Vou Recordar” (1977)



“A refavela/ Revela o passo/ 
Com que caminha a geração/ 
Do black jovem/ Do Black Rio/ 
Da nova dança no salão”. 
Gilberto Gil, da letra de "Refavela", de 1977

O ano de 1977 foi cheio para a Banda Black Rio. Formada a não muito da fusão de músicos de diferentes origens – os conjuntos Impacto 8, Grupo Senzala e Don Salvador & Grupo Abolição –, eles eram os reis dos bailes black da Zona Norte carioca, que eclodiram nos anos 70. Além das festas,  começaram a ser bastante requisitados para outros projetos. Só entre janeiro e março, gravaram todo o primeiro disco e foram até tema de novela da Globo, Locomotivas. Era o momento deles. Junto com nomes como Tim Maia, Cassiano, Gerson King Combo, Hyldon, Toni Tornado, Dom Mita e outros, a Black Rio não só representava como levava o nome da onda sociocultural que mobilizava milhares de negros excluídos pela sociedade. Eram jovens oriundos das "refavelas" em recente processo de ascensão social num Brasil de Ditadura Militar, que passavam agora a demonstrar seu orgulho pela raça, pelo cabelo crespo, pela dança, pela cor da pele, pelo sotaque, pela linguagem. E pelo seu som: brasileiro, mas universal.

Todos da Black Rio eram músicos excepcionais, mas nenhum sabia (pelo menos, ainda) cantar. E para incendiar a galera dos passinhos durante os bailes tinha que ter alguém chamando nos microfones e com presença de palco. Mais do que um crooner. A voz feminina a banda de Oberdan Magalhães achara: uma jovem cantora de voz rouca e potente digna das melhores da black music norte-americana chamada Sandra Sá. Porém, precisava de um gogó masculino também, o que coube perfeitamente a Carlos Dafé.

Cantor de elegância e gingado, Dafé é compositor e multi-instrumentista, capaz de mandar ver no violão, guitarra, baixo, piano, acordeão e vibrafone. Nascido no subúrbio de Vila Isabel, no Rio de Janeiro, teve no pai (José de Sousa, um funcionário público tocador de chorinho) e na mãe (Conceição Gonçalves, poetisa) o incentivo à musicalidade. Tanto que, aos 11 anos, já estudava no Conservatório de Música e, na fase do serviço militar, fez turnê com o grupo Fuzi 9, do Corpo de Fuzileiros Naval. Toda essa bagagem deixava evidente que Dafé era a figura perfeita para acompanhar a Black Rio. Tanto que não ficou apenas restrito aos bailes. Assim como ocorrera com a própria banda naquele início de 1977, eles correram para o estúdio, quando se concebeu o brilhante “Pra que Vou Recordar”. Igualmente a “Maria Fumaça”, a também estreia da Black Rio, o disco de Dafé completa 40 anos de lançamento em 2017, formando o mais célebre duo de discos da soul music brasileira de todos os tempos.

A lendária Banda Black Rio: grupo de apoio de Dafé em sua estreia
Dançante mas altamente sofisticado, o álbum abre com uma das maiores canções pop já escritas no Brasil: a irrepreensível “De Alegria Raiou o Dia”. Parceria dele com outro craque da soul, Dom Mita, é um arraso em execução, timbres, sonoridade, ritmo. Que tabelinha de Luis Carlos na bateria e Jamil Joanes no baixo! Adicionado a isso, o Fender Rhodes de Cristóvão Bastos, a levada de guitarra de Claudio Stevenson, os sopros: tudo perfeito, encaixado, sonoro, musical. Mesmo sendo seu primeiro registro fonográfico, o já experiente Dafé mostra de largada toda a habilidade como compositor e cantor. A voz rasgada e de pronúncia aberta é, sobretudo, símbolo da afirmação daquela negritude adormecida e, agora, autovalorizada. O fraseado malandro, que opera propositais supressões de fonemas e adiciona ginga noutros, é de visível inspiração a nomes consagrados da música brasileira, como Seu Jorge e Criolo. Como se não bastasse o funk irresistível, na segunda parte, a “cozinha” entra com um samba-rock que, convenhamos, não tem ninguém que saiba, faça ou entenda como um músico brasileiro – quanto mais se tratando de Black Rio. Também nisso o disco de Dafé guarda semelhança com o debut do conjunto carioca, haja vista que as duas faixas de abertura trazem essa fusão dos ritmos típicos norte-americano e brasileiro como proposta conceitual.

“Tudo Era Lindo” (“Era lindo vagar, me perder de amor/ Correndo a enfrentar um mundo de loucos”) e “A Cruz” (“Se existe uma barreira/ Entre os nossos corações/ Não ligue pra essas coisas/ O importante somos nós”) dão a devida diminuída no ritmo em duas balada cheia de suingue e romantismo. Afinal, todo baile funk pede também aquela hora de dançar de rosto colado! A empolgação volta para homenagear o genial autor de “Superstition” com “Hello Mr. Wonder”, mas a um modo bem brasileiro: soul com muita carga de samba, assim como já haviam apresentado em “De Alegria...”.

Voltando para a pista, “Bem Querer” une a elegância do jazz soul com pitadas de samba, ou seja, tudo o que a turma domina. O coro feminino faz uma tabela perfeita com a voz de Dafé, enquanto Oberdan “apavora” num solo de sax. Merece ainda realce o baixo sempre incrível de Jamil, que não se restringe a simplesmente manter uma base, e, sim, desenhar linhas harmônicas sobre a escala.

A faixa-título (adicionada do complemento “o que chorei”), outro clássico do disco e da black music brasileira, faz jus ao mito. Além de trazer aquele clima das baladas dos mestres “gringos”, como Marvin Gaye e Bobby Womack, ainda adiciona-lhe a “cadência bonita do samba”. E mais uma interpretação impecável de Dafé, cheia de sentimento. Destaque para a levada de Luis Carlos e a guitarra solada de Claudio Stevenson.

“Zé Marmita” começa somente com Cristóvão ao piano elétrico e Dafé introduzindo os primeiros versos para, logo em seguida, cair num novo samba, agora bem suingado. A letra fala de um brasileiro pobre e trabalhador que se deixa levar pela alegria do Carnaval sem pensar que tem que pegar no batente no dia seguinte: “Cantando na avenida, você nem vê que amanheceu/ Esquece até da vida/ Pensa que o mundo agora é seu/ Quero só ver quando a festa acabar/ Coragem pra trabalhar”.

Ainda mais especial é “Bichos e Crianças”, que intercala uma doce melodia (“Dia de domingo/ Quem vai passear?/ Bichos e crianças vão”) com uma disco animada e lúdica cujo ritmo a Black Rio repetiria a dose na trilha do filme “Sábado Alucinante”, de 1979. Já “O Metrô”, última faixa, é o característico funk temperado com pitadas de brasilidade. A timbrística da Black Rio é algo realmente impressionante e improvável: une a sonoridade da Motown, com o padrão Steely Dan, recupera o samba telecoteco de Miltinho e o samba-rock da turma da Tijuca para chegar àquilo que eles mesmos se autodenominam: Black Rio. Ainda, é claro, a qualidade do band leader nos microfones. Um final com o que havia de melhor na cena. Em "Pra que...", Dafé e o time de Oberdan atingem um nível de musicalidade poucas vezes visto no mundo, haja vista que passa pelo funk, pela soul e pelos ritmos brasileiros em constante namoro com o jazz fusion, mas sem ser pedante nem difícil. Pelo contrário: é pop e sofisticado ao mesmo tempo.

Se 1977 ainda era tempo de Ditadura, é de se imaginar que, se a repressão recaía fortemente sobre adolescentes universitários de classe média, imagina se não iria exercer a mesma força a jovens negros da periferia? Bastou os bailes começarem a mobilizar muito mais gente que o esperado e, ainda por cima, ganhar espaço também na “branca” Zona Sul do Rio, que se resolveu dar um basta. Essa coisa de “movimento Black Rio” ou “Black o que fosse” estava começando a ficar perigosa para o governo. Então, para que os donos de equipes de som e artistas começassem a ir para o DOPS foi um passo.“Quando viram aqueles caras dançando junto, com aquelas roupas e cabelos, os militares perceberam que se nasce um líder ali no meio ia dar uma grande merda para o governo”, conta DJ Marlboro, que presenciou a cena. O movimento se tornava, da noite para o dia, subversivo.

A onda Black, pelo menos naquele momento, se esvaziara. Seguiram-se, nos anos seguintes, a última década de Governo Militar, a redemocratização, a era Collor, a ascensão do PT. Paralelamente, entretanto, o grito da periferia não se calara. Vieram o hip-hop, o break, o melô, o funk carioca, o charme, o punkadão. Se a qualidade das manifestações culturais da negritude não acompanhou aquele embrião animador e altamente musical, paciência. A bandeira pela liberdade dos negros havia sido hasteada. Dafé, Black Rio e Cia. cumpriram o papel daquilo que Gilberto Gil captara naquele sociologicamente fatídico 1977 para o Brasil negro: conceber um “samba paradoxal. Algo que só nossa “escola” é capaz. Ou seja: “Brasileirinho pelo sotaque, mas de língua internacional”.

**********************************
FAIXAS:
1. “De Alegria Raiou o Dia” (Carlos Dafé/Dom Mita) - 3:40
2. “Tudo Era Lindo” (Dafé/Jomari) - 3:34
3. “A Cruz” (Dafé/Tânia Maria Reis) - 5:52
4. “Hello Mr. Wonder” (Dafé/Claudio Stevenson/Luiz Carlos dos Santos) - 3:44
5. “Bem Querer” (Dafé/Lucio Flavio/Tião da Vila) - 3:11
6. “Pra Que Vou Recordar o que Chorei” (Dafé) - 3:46
7. “Zé Marmita” (Dafé/Vandenberg) - 3:34
8. “Bichos e Crianças” – (Dafé/Marilda Barcelos) - 2:45
9. “O Metrô” (Dafé/Lucio Flavio/Oberdan) - 2:58

**********************************

OUÇA

por Daniel Rodrigues

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Ivan Lins - "Modo Livre" (1974)

 

"Mas elas [as músicas] começaram a ficar mais políticas a partir de 1973, por aí, quando a gente sentiu mesmo a barra pesar com o Médici, e aí elas realmente assumiram o aspecto político. Até por uma questão pessoal mesmo, eu tive problemas, tive que fazer terapia, me revoltei contra a família, contra o governo, contra TV Globo e editoras, gravadoras." 
Ivan Lins

Há motivos para que a grandeza de Ivan Lins não seja ainda totalmente reconhecida ainda hoje. Isso remonta aos tempos da Ditadura Militar no Brasil, período não só crucial para o artista como aquele em que este melhor desenvolveu a sua música. O pivô desse dissabor? A esquerda. Assim como calhou recair sobre as cabeças de gente como Elis Regina e Wilson Simonal julgamentos pesados de que estariam favorecendo os milicos em razão de episódios até hoje mal explicados, com Ivan Lins a patrulha política também não perdoou. Nem a convivência constante com "malditos" como Gonzaguinha e Aldir Blanc, jovens universitários dos tempos da faculdade de Engenharia Química na Federal do Rio de Janeiro, aliviaram-lhe a pecha de alienado ou entreguista quando sua ufanista "Meu Amor É Meu País" conquistara o segundo lugar no Festival Internacional da Canção, em 1970 - música que integraria seu disco de estreia, "Agora", de um ano depois. 

Para piorar: a mesma música foi adotada pela Varig, àquela época um orgulho nacional do mesmo patamar que Petrobras, como tema oficial dos voos internacionais da companhia. Mas tudo que é ruim pode piorar. A coisa azedava de vez quando se olhava para a genealogia de Ivan, que era filho de Geraldo Lins. Almirante Geraldo Lins. Se havia ranço, isso fazia com que os pelos dos detratores se ouriçassem.

Acontece que, assim como vaiaram a velada canção de exílio "Sabiá" no FIC de 1968 por esperarem de Chico Buarque, um de seus autores junto com Tom Jobim, uma canção tirada direto do Livro Vermelho de Mao, "Meu Amor É Meu País" também passou longe de ser compreendida. Nacionalista? Sim, mas com certa melancolia, como que captando a maravilha de pertencer àquela nação recentemente tricampeã mundial, mas de uma sociedade profundamente dividida e infeliz. Metáforas como: "Não importa qual seja a dor/ Nem as pedras que eu vou pisar" soaram deveras fracas para demonstrar que aquilo não se tratava de propaganda para o governo linha-dura de Médici e, sim, um ensaio para os inúmeros versos contundentes contra a Ditadura que Ivan musicaria pouco tempo dali. 

O “cancelamento” por parte da esquerda, compreensível dado o contexto sufocante da Ditadura, funcionou. Mesmo com o sucesso de sua de "Madalena" na voz de Elis, parceria com Ronaldo Monteiro de Souza, em 1971, Ivan precisou, naquele momento, recolher-se para se reinventar. "Quem Sou Eu?" perguntava a si mesmo no disco de 1972. O questionamento veio com ação: rompeu o contrato com a gravadora Phillips e assinou com a RCA Victor, brigou com a Globo, onde apresentou por um tempo com Elis o programa Som Livre Exportação, e se desentendeu até em casa. Chutou o (necessário) balde. A auto-resposta veio dois anos depois e, parafraseando outro título de álbum seu, acionando o "Modo Livre". Como uma autoproclamação. Liberto tanto da esquerda quanto da direita, Ivan encontra na rebuscada musicalidade, no elaborado arranjo de Arthur Verocai e nas letras políticas o caminho que era seu. 

Ivan achou, depois do autoexílio existencial, o discurso e a forma de dizê-lo em letra e música, formando aquele que é certamente o mais corajoso e desafiador cancioneiro de toda a MPB a favor da liberdade de seu país, liberdade que havia sido sequestrada há exatamente 10 anos desde o Golpe Militar de 1964. Ninguém na música popular brasileira ousou dizer tantas verdades ao regime e de forma tão incisiva, seja em palavras tristes e desesperadas, seja em figuras de linguagem repletas de duplos sentidos que, às vezes, de tão inteligentemente invocadas, pareciam literais. Talvez por isso passavam ilesas do carimbo da censura. "Nunca tive problemas com a censura, sou um privilegiado. Só lamento que ela ainda exista", disse em entrevista à revista da USP em 1978. Enquanto Chico, o amigo Gonzaguinha, Milton Nascimento e até Odair José enfrentavam dificuldades com o SCDP, Ivan aproveitava a descendência familiar para lançar mais do que um disco, mas um projeto modulado pela liberdade de expressão que duraria anos. 

Parceiro de outras canções e autor de outros gritos contra a Ditadura (como “Pesadelo”, “Minha Missão” e “Aviso aos Navegantes”), Paulo César Pinheiro assina com Ivan o samba de abertura: "Rei do Carnaval". Óbvio que o “rei” a que se referiam não era o momo e que o “carnaval” se revestia de cinismo para denunciar o cenário nada festivo de então. “O rei chegou/ Mas pra nosso desespero/ O rei mandou/ E era a voz do rei guerreiro”. Que começo! Um marco da “virada de chave” na vida e na obra de Ivan. Até mesmo o jeito de cantar é influenciado pelo “projeto Modo Livre”, uma vez que havia ficado pra trás a impostação da voz dos primeiros trabalhos para um canto mais natural e, sendo redundante, livre. Ivan percebera que sua voz afinada e de timbre doce estava menos para Toni Tornado e mais para Caetano Veloso.

Estava dada a mensagem inicial: Ivan não ia se calar. Havia decidido que diria o que precisava. Tanto é que, na sequência, emenda com um clássico do seu repertório, sucesso um ano antes na voz da cantora e compositora Claudya: “Deixa eu Dizer”. Bastante conhecida do público de hoje por conta do sample de Marcelo D2 para a sua “Desabafo”, de 2008, é outra parceria com Ronaldo Monteiro das seis que têm no disco. Quem não conhece os versos: “Deixa, deixa, deixa/ Eu dizer o que penso dessa vida/ Preciso demais desabafar”? Porém, na voz do seu autor, este samba-canção ganha outra potência, pois carregada de teor político. “E você não tem direito/ De calar a minha boca/ Afinal me dói no peito/ Uma dor que não é pouca”. Que coragem de dizer isso em plenos Anos de Chumbo!

Não somente nas letras, mas a própria sonoridade de Ivan se encorpa a partir de “Modo Livre”. Filho musical da bossa-nova, pianista harmônico como seu ídolo Tom, Ivan, experenciado na música desde a adolescência, une com talento único o samba, o jazz e a soul music, sempre com um refinamento próprio dos grandes. Tanto que sua música encontra semelhanças com a da turma do Clube da Esquina, em especial a de Toninho Horta e de seu outro ídolo, Milton. Com essa amplitude de referências Ivan musica a brejeira “Avarandado”, de Caetano, dando cores mais cintilantes à bossa-nova quase silenciosa que João Gilberto fizera no seu disco de um ano antes. 

“Tens no meu sorriso tua agonia.” Com uma sentença forte como esta, Ivan inicia "Tens (Calmaria)", aviso aos militares que eles podem ter “no quarto um cão vigia” e a “valentia”, mas que, resistente, “só na minha morte então terás tua calmaria”. Com o apoio luxuoso da MPB-4 a partir da segunda metade, esta fantasia se torna um samba-canção, cadenciado no ritmo de um bumbo triste. E isso, como diz a música seguinte, “Não tem Perdão”. Clara referência às torturas promovidas pela Ditadura, esta bossa-nova espelha a arte da capa do disco, em que o músico está com o corpo inteiramente submerso na água e só com a cabeça para fora e um olhar de soslaio que parece humilhado. “Não vou deixar/ Nem você nem ninguém/ Me envolver/ Me arrastar e me rasgar/ E espalhar/ Meus retalhos pelo mundo afora”. Quanto esforço de Ronaldo Monteiro para dar duplo sentido e fazer com que esses versos passem a ideia de se tratar apenas de um amor dissolvido.

“Modo Livre” representa ainda outro marco na carreira de Ivan e na história da música popular brasileira moderna, que é o seu encontro com Vitor Martins. Letrista da maioria de suas composições e com quem escreveria diversos clássicos da MPB a partir de então, como “Aos Nossos Filhos” (1978), “Começar de Novo” (1979) e “Novo Tempo” (1980), é deles, no disco, "Abre Alas". E nada melhor que começar uma parceria com um sucesso. Regravada por diversos artistas nacionais e internacionais, entre eles Sarah Vaughan, George Robert, Quarteto em Cy e Tânia Maria, este samba tem na força do refrão (“Abre alas pra minha folia/ Já está chegando a hora”) sua marca. Porém, nem por isso deixa de, assim como o repertório todo, cutucar os repressores: “A vida não era assim, não era assim/ Não corra o risco de ficar alegre/ Pra nunca chorar”.

O ritmo é de bossa-nova, mas a melodia vocal alta contrasta com a harmonia refinada, provocando uma verdadeira dissonância. Também pudera para uma música que se chama “Chega”. Novamente recorrendo a um suposto caso de amor para denunciar os crimes de tortura, Ivan canta versos como: “Chega/ Você não vê que eu estou sofrendo?/ Você não vê que eu já estou sabendo?/ Até onde vai esse seu desejo”. E continua de forma autoavaliativa, que responde tanto aos militares quanto ao Partidão: “Chega, preciso estar com pessoas/ Falar coisas ruins e coisas boas/ Botar meu coração na mesa/ As pessoas tem que gostar de mim/ Como eu sou e não como você quer que eu seja”.

Com lindo arranjo de Verocai, “Espero”, a qual contém na letra o termo que dá título ao disco (“E mergulhando em meu peito/ Um modo livre que foi desfeito/ Com o tempo”) não dá respiro no grito libertário e denunciativo a que o artista se propôs. Canta um tempo que aguarda ansiosamente que chegue, ou seja: que o pesadelo da Ditadura acabe. O fantástico samba-jazz “Essa Maré” (“Eu que queria e só queria/ Ser feliz, feliz um pouco/ E já não posso mais”) tem na flauta do trio Celso, Copinha e Jorginho um alívio para tanto padecer. O que não alivia é a jobiniana “Desejo”, de pura melancolia: ”Quando você/ Por ai me encontrar/ Esqueça do fim, venha/ E faça de mim desejo/ Seus risos, seus ais/ Nas noites, no cais”.

Ivan encerra o álbum como começou: com metáforas. Desta vez, ele pega sambas antigos e os ressignifica, trazendo-os para a realidade dura de então. Caso de “General da Banda”, clássico na voz de Blecaute, em 1949, “A Fonte Secou”, sucesso com Monsueto em 1954, e “Recordar”, esta, gravada por Gilberto Mendes em 1955. Versos como “Eu não sou água/ Pra me tratares assim”, ou “Chegou o general da banda”, aparamentes inocentes, ganham novos sentidos na sua voz. Ivan não precisa nem recorrer às próprias palavras para dizer o que estava implícito. 

Seja por desatenção ou ignorância dos censores, a música fortemente denunciadora de Ivan não se limitou apenas a este disco, mas a uma série irrepreensível produzida ao longo de 6 anos. Não se estranhe que "Chama Acesa", de 1976, "Somos Todos Iguais Nesta Noite", 1977, "Nos Dias De Hoje", 1978, e "A Noite", 1979, apareçam aqui como álbuns fundamentais à medida que, como “Modo Livre” em 2024, completem 50 anos de lançamento. Afinal, são obras marcantes em proposta e qualidade de um dos maiores nomes da música brasileira, reconhecido internacionalmente pela crítica e por gente do calibre de Ella Fitzgerald, George Benson, Ed Motta, Quincy Jones e Barbra Streisend, mesmo alguns que (ainda) lhe torçam o nariz em terras tupiniquins. 

O tempo se passou e Ivan, como não poderia deixar de acontecer, distendeu a corda a partir dos anos 80 de Diretas Já!. A tal "chama", que intitula o disco sucessor de "Modo Livre", havia, se não apagado, naturalmente diminuído. Porém, o que ele fez naquela segunda metade de anos 70, um dos períodos mais sombrios para o Brasil enquanto nação, está gravado na história da música brasileira como um ato guerrilheiro. Foi como se o artista, "entre espadas e rodas de fogo”, pegasse em armas e tomasse para si aquela batalha em nome do povo, de seus irmãos, a qual tivera em "Modo Livre" o primeiro tiro disparado. 

*********
FAIXAS:
1. "Rei do Carnaval" (Ivan Lins, Paulo César Pinheiro) - 2:31
2. "Deixa Eu Dizer" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 3:12
3. "Avarandado" (Caetano Veloso) - 3:15
4. "Tens (Calmaria)" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 3:03
5. "Não Tem Perdão" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 3:45
6. "Abre Alas" (Ivan Lins, Vitor Martins) - 3:12
7. "Chega" (Ivan Lins) - 3:27
8. "Espero" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 2:23
9. "Essa Maré" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 2:14
10. "Desejo" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 2:19
11. Potpourri - 2:32
11a. "General Da Banda" (José Alcides, Sátiro de Melo, Tancredo Silva)
11b. "A Fonte Secou” (Marcléo, Monsueto Menezes, Tufic Lauar)
11c. "Recordar" (Adolfo Macedo, Aldacir Louro, Aluisio Marins)

*********
OUÇA O DISCO:
Ivan Lins - "Modo Livre"


Daniel Rodrigues