Walter Salles com o NOSSO inédito Oscar: que vitória!
Não poderia deixar de começar qualquer comentário sobre a edição de 2025 do Oscar falando não sobre o principal premiado, mas da premiação inédita conquistada pelo filme brasileiro "Ainda Estou Aqui". Sim: o Brasil pode dizer que tem um Oscar para chamar de seu! O longa de Walter Salles, que ainda concorria a Filme, ganhou a tão sonhada estatueta de Filme Internacional, alcançando aquilo que outros filmaços brasileiros anteriores, como "O Pagador de Promessas" e "Central do Brasil", não conseguiram. Um feito histórico e de gigantesca simbologia para o cinema nacional.
Em compensação, o Oscar de Fernanda Torres, aquele para o qual se criou uma enorme celeuma e expectativa Brasil inteiro, não veio. E não veio de uma forma um tanto frustrante, o que tem a ver, agora sim, com o destaque desta edição: a supremacia de "Anora". O drama/comédia de Sean Baker foi o principal vencedor da noite, conquistando 5 das 6 estatuetas as quais foi nomeado: Filme, Roteiro Original, Edição, Direção e aquele que, surpreendente, tirou o prêmio de Fernanda, o de Atriz para Mikey Madison.
O gosto amargo fica porque, se fosse para Fernanda perder, que fosse para Demi Moore por seu papel em "A Substância". Por tudo que representa o papel de Demi, toda a carga anti-etarismo e anti-sexismo que carrega e também por toda a falada retratação com a artista, nunca indicada a nada. Mas não foi o que houve. Teria sido mais justo com Demi, a favorita, e com Fernanda, que, tête-à-tête com Mikey, desempenha melhor num papel dramático. Não que seja um prêmio descabido, pois a protagonista de "Anora" está muito bem no filme. Mas papel por papel, Fernanda como Eunice Paiva é, sim, um nível acima em expressividade e consistência como atuação. Mas é premiação, e isso faz parte.
Tanto faz parte que o superindicado "Emilia Pérez", depois das polêmicas sobre sua realização e roteiro e de uma desastrosa campanha que o desidratou diante dos jurados, tinha 13 chances e amargou apenas 2: Atriz Coadjuvante (para Zoe Saldaña, ótima) e Canção Original. Até mesmo "O Brutalista", outro favorito (inclusive a Filme), das 10 nomeações teve de se contentar com somente 3: Ator (Adrian Brody), Fotografia e Melhor Trilha Original.
O fator político, que se imaginava talvez mais exacerbado, falou menos, mas bem. Corajosa, a atriz Daryl Hannah, que apresentou a categoria de melhor Edição, fez a saudação nacionalista ucraniana com os dedos e "V" e disse a frase: "Glória a Ucrânia", lema das forças armadas e nacionalistas do país invadido pela Rússia. Aplaudida. Outro momento anti-belicismo foi quando da vitória do documentário "No Other Land", dirigido por Basel Adra, Hamdan Ballal, Yuval Abraham e Rachel Szor, ou seja, cineastas palestinos e judeus juntos pela mesma causa: a paz e o olhar humanista para os povos. No discurso, críticas à forma como o governo dos Estados Unidos atua na Guerra em Gaza, colaborando com a manutenção do ódio entre os povos. A gafe, no entanto, ficou por conta da não menção a Cacá Diegues no momento In Memorian. Esses norte-americanos jecas...
Quem também recebeu justos aplausos foi Paul Tazewell, que fez história ao se tornar o primeiro homem negro a ganhar o Oscar de Melhor Figurino pelo seu trabalho no musical "Wicked", filme que ainda levou o prêmio de Design de Produção. Fora isso, "A Substância" pegou o merecido de Maquiagem e Cabelo, "Conclave" o plausível de Roteiro Adaptado e "Duna - parte 2" levou os dois técnicos: Som e Efeitos Visuais.
Para além da felicidade de ver "Ainda Estou Aqui" no mais alto posto da maior premiação do cinema mundial, é legal ver também um cult"pequeno" vencer. Em contraposição ao cinemão de "O Brutalista" e a alegoria musical de "Emilia Pérez", ambos estilos por muito tempo consagrados pela Academia, ficaram pra trás em detrimento de "Anora", um filme profundo sem precisar de grandiloquência e que deixa um recado: nunca duvidem de um Palma de Ouro de Cannes.
Uma das frases emblemáticas de "A Substância" é: "Não se esqueça que você é único". É o caso do filme da cineasta Coralie Fargeat. Só o fato de colocar o gênero terror entre os candidatos ao Oscar se Melhor Filme já o fazem uma realização histórica. Este body horror une-se a uma pequena lista de outros filmes, como "O Silencio dos Inocentes" e "Corra!", que, somados, não preencheriam duas mãos. Isso porque, historicamente, Hollywood - que vem tentando mudar seus (pré)conceitos - considera terror um gênero menor diante de dramas, filmes de guerra, romances e até ficções científicas. Isso explica porque clássicos como "O Exorcista" levaram o prêmio de Melhor Diretor para William Friedkin em 1973, mas não o de Filme, embora fosse favorito à época.
Mas "A Substância" é, com suas qualidades e defeitos, um filme inteligente, provocante e, sim, gore. A história se baseia na vida de Elisabeth Sparkle (Demi Moore), uma renomada apresentadora de um programa de aeróbica, que enfrenta um golpe devastador quando seu chefe a demite por considerá-la velha para os padrões da mídia. Desesperada, ela encontra um laboratório, que lhe oferece a juventude eterna por meio de uma substância, que a transforma em uma versão aprimorada e jovem (Margaret Qualley). Tudo lindo, maravilhoso - mas nem tanto. No capitalismo, há regras inarredáveis.
As referências a filmes e diretores admirados por Coralie são evidentes e muito bem dispostas na narrativa, como a Stanley Kubrick ("O Iluminado", "2001- Uma Odisseia no Espaço"), Brian de Palma ("Carrie: A Estranha", "Irmãs Diabólicas"), Dario Argento ("Phenomena") e Alfred Hitchcock ("Psicose", "Marnie"). Isso sem ser apenas uma emulação, visto que a diretora consegue imprimir uma estética muito original e bem elaborada. Ponto para "A Substância". Mas o que particularmente funciona muito bem no longa e tornar a sociedade do espetáculo e seus padrões tortos como argumento para um filme de terror. Neste sentido, "A Substância" faz parecido com o já citado "Corra!": a apropriação de um tema sociológico real, no caso do filme de Jordan Peele, o racismo e a sexualização do negro. Não é mais de monstros extraterrestres ou de experimentos científicos malévolos que se extrai o verdadeiro terror. É da vivência social.
Em atuação excepcional, Demi Moore, forte concorrente ao Oscar de Melhor Atriz (categoria na qual pode desbancar, infelizmente, a brasileira Fernanda Torres), equilibra a personalidade de uma mulher amedrontada pelo etarismo e pela perda de seu espaço simbólico no mercado com lances de humor ácido. Difícil equação a qual Demi, no entanto, num papel representativo de sua imagem no mundo do entretenimento, se sai muito bem. Outro aspecto positivo é a montagem, ágil mas também observacional, pontuada pelos letreiros gigantes que evidenciam as etapas do experimento, bem como a divisão em capítulos da narrativa. Igualmente, a atmosfera sonora (ruidosa, diria), é muito bem criada. Dinâmica, sensorial, acompanhando a estética de plasticidade "publicitária" usada por Axel Baille na fotografia.
Porém, o filme peca é naquilo que vários filmes de terror também se complicam, que é precisamente o desfecho. Desnecessária aquela sangueira toda no teatro a la "Carrie". Mais do que desnecessário: improvável. Não se está aqui defendendo realismo numa obra claramente fantástica, nem muito menos que um filme gore se abstenha, justamente, de mostrar sangue.
Porém, há em "A Substância", na maior parte do filme, uma condução narrativa que se constrói para justificar a dicotomia beleza X feiura, velho X novo, essência X artificial. Ou seja, a ideia crítica central do longa. Ocorre que essa construção é abandonada na sequência final em detrimento das consequências das decisões das personagens (previstas no roteiro) sem considerar a própria lógica que se vinha edificando. Fazer a versão "velha carcomida" de Elizabeth, depois de mal conseguir dar dois passos entre a poltrona e a cozinha, correr feito um zumbi enfezado e lutar com a habilidade de Chuck Norris é, além de ilógico, pobre. Ou pior: desconsiderar o deslocamento do "monstro" entre o apartamento e o estúdio de TV como se a distância entre os dois imóveis fosse de 5 metros (mesmo que fosse), bem como ninguém estranhar (ou abater) aquela coisa andando na rua. Isso é de uma inconsistência de roteiro considerável.
O filme faz o espectador acreditar no argumento fantasioso do experimento científico com argumentos plausíveis de tempo/espaço para, no final, desdizê-los em detrimento de uma nova lógica mais do que fantasiosa: irreal. É de se perguntar, por exemplo, se não havia nenhum segurança ou policial pra dar um tiro naquela criatura como os norte-americanos tanto gostam. Isso é o lógico,
Por isso, a referida sequência derradeira, com ela/s no palco banhando de sangue a plateia, não se sustenta, o que faz prejudicar um filme na sua maior parte muito bom. Acaba por soar como um arremedo, neste caso mal copiado, do mestre do gore horror David Cronenberg. É compreensível o anseio de se lançar aquele discurso feminista ao final, mas não havia necessidade, visto que o próprio filme já o exalta de outras formas críticas. Bastava que Coralie - que mesmo assim ganhou Palma de Ouro de Roteiro e Cannes por "A Substância" - desse como solução algo menos mirabolante: esmagar a criatura sobre a sua própria placa na calçada da fama, como ocorre na última cena, logo após que esta sai de casa e sem ter chegado ao teatro. Teria sido mais simples e, substancialmente (com o perdão do trocadilho), melhor.
Se "A Substância" vai levar algum Oscar não se sabe. Dos cinco pelo qual concorre, Maquiagem e até Roteiro Original lhe sejam bem prováveis. Entre Demi e Fernanda, não desmerecendo a primeira, por atuação em si a da brasileira é mais essencial para o seu filme, "Ainda Estou Aqui". De Direção, no entanto, Coralie merece. Já em Filme, não deve ser desta vez que o terror vai quebrar o tabu diante da indústria cinematografia estadunidense. Afinal, aproveitando outra sentença do próprio filme: "você não pode escapar de si mesmo", não é?
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trailer original de "A Substância"
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Um chute nos padrões. (de beleza e do Oscar) por Cly Reis
Um manifesto cinematográfico sobre a ditadura da beleza, a escravidão da imagem, da crueldade dos padrões, da perfeição e sobretudo, do peso da idade. Pode se aplicar a qualquer um, uma vez que muita gente se sente desvalorizada por uma barriguinha, preocupada com o início das rugas e pressionada com a chegada de determinada faixa de idade, mas é inegável que essa pressão ocorre de um modo mais constante e cruel com as mulheres, desde sempre consagradas como modelos de apreciação estética. O filme da francesa Coralie Fargeat, dentro desse arco temático, aborda especificamente figuras públicas que por sinal, acabam sendo sistematicamente julgadas e rotuladas por nós, o público. "Está velha", "Tá ficando feia", "Olha só as rugas", "A bunda dela tá caindo". O que faz quem quer satisfazer o público? Coloca alguém mais jovem, mais vibrante, mais gostosa. É o que acontece em "A Substância". Elisabeth Sparkle, uma atriz outrora consagrada se vê nessa encruzilhada de aproveitamento público. Aos 50 está 'velha' até para um programa matinal de ginástica ao qual fora relegada, já como sinal claro de decadência profissional. Ciente da intenção dos donos da emissora em se desfazer dela, de sua queda de prestígio, do desgaste de sua imagem atual, ela é tentada a usar uma novidade experimental que chega a seu conhecimento chamada A Substância que promete uma nova versão dela mesmo melhorada em vários aspectos. Com algumas 'regrinhas' a seguir, a droga cumpre o que promete e faz surgir da própria Elizabeth, a deslumbrante Sue, jovem, vívida, voluptuosa, e a nova versão, irresistível como é, não tarda a ocupar o lugar da antiga estrela na emissora, no programa, no gosto do público, em tudo. O problema é que a duplicata tem fome de vida, quer mais, se , e não lhe bastam os sete dias que as regras de uso lhe impõe antes de trocar novamente com sua matriz. As orientações da substância deixam claro que AS DUAS são UMA SÓ, mas mesmo assim Sue, egoísta e fascinada com o estrelato, com os holofotes, passa a burlar as regras e que quem acaba sofrendo as consequências dessa indisciplina é a matriz, Elisabeth.
A diretora com toda sua riqueza de linguagem e recursos é muito sagaz em propor esse conflito. Uma espécie de guerra interna entre ser o que é, o que tiver que ser, encarar a idade, os julgamentos, ou agradar aos outros, se transformar, mudar para manter ou atingir seus objetivos. Para tal, Coralie Fargeat é corajosa, ousada e se utiliza do grotesco, do chocante, do assustador, uma vez que possivelmente, seu recado não teria a mesma intensidade e a mesma capacidade de ser transmitida de forma tão impactante por outra linguagem senão pelo terror. E nesse universo ela desfila referências que cinéfilos reconhecem e se deliciam: Kubrick, De Palma, Lynch e claro, todo o horror corporal característico de David Cronenberg.
Associado a um excelente roteiro, soluções narrativas inteligentes, , uma edição ágil, uma maquiagem impressionante, e atuações incríveis das duas partes da mesma pessoa, Margareth Qualey, a jovem Sue, e, especialmente Demi Moore, indicada ao Oscar de melhor atriz, cuja similaridade com a situação da personagem Elizabeth, afastada dos holofotes depois de deixar de ser a 'gatinha' de Hollywood, é inegável.
Bem como sua protagonista parte de um original para criar uma versão renovada, "A Substância" se vale de núcleos como "O Iluminado", "A Mosca", "Carrie, A Estranha", para trazer um terror revitalizado, fresco, abusado, replicando desses clássicos algumas de suas melhores virtudes para criar em si um novo elemento que, se não faz uma versão melhor que suas matrizes (e não chega a tanto), irrefutavelmente cria algo singular. Único!
"A Substância" é um terror de primeira e que, desde já, inscreve seu nome no panteão das grandes obras do gênero. E para os que torcem o nariz para esse tipo de filme, resta aceitar que um horror gore, sangrento, chocante, feito sem a pretensão de agradar ninguém, tenha sido indicado a um Oscar de melhor filme. Pode não ganhar, é acho que não vai, mas seu reconhecimento é uma vitória do cinema de horror.
Podemos dizer que 23 de janeiro de 2025 foi um dia de glória
para o cinema brasileiro. Afinal, nunca antes na história deste país um filme
nacional havia recebido a indicação ao Oscar de Melhor Filme. “Ainda
Estou Aqui”, o excelente filme de Walter Salles sobre a família Paiva durante o
período da Ditadura Militar no Brasil, foi anunciado hoje ao Oscar 2025 junto com mais uma centena
de outros títulos a esta e outras várias categorias do maior prêmio do cinema
mundial.
Mas não só isso: além da inédita indicação, o filme de Waltinho
concorre também a Melhor Filme Internacional – no qual tem boas chances de
ganhar – e na de Melhor Atriz para Fernanda Torres, que interpreta Eunice Paiva
no filme. A vencedora do Globo de Ouro de Melhor Atriz em Drama e que desbancou daquela premiação para esta ninguém menos que Kate Winslet, Angelina Jolie,
Tilda Swinton e Nicole Kidman, tem agora à frente, no Oscar, outras quatro candidatas.
Porém, também passa a encarar de frente Demi Moore, destacada em seu papel em “A
Substância” e que carrega em si e em sua personagem um discurso de feminismo e
etarismo que pode convencer Hollywood a reconhecê-la depois de tantos anos.
Porém, Fernanda está melhor. Que se faça justiça.
Nas outras categorias, sem grandes surpresas: várias
indicações ao franco-mexicano “Emilia Perez” (13, o de mais nominações), “Wicked”
e “O Brutalista” (10 cada), além de “Um Completo Desconhecido”, “Conclave” (8
cada), “Anora” (6), “Duna: Parte 2” e “A Substância” (5 cada). Destes, parece
sair na frente em Filme “O Brutalista”, mas “Anora”, Palma de Ouro em Cannes,
pode surpreender nesta categoria na qual “Ainda...” tem certamente menos chances.
Mas em Filme Internacional, o brasileiro tem outro rival: “Emilia Perez”. O
confuso filme de Jacques Audiard, embora campeão em indicações, tem recebido
críticas das comunidades mexicana e latina e LGBTQIAPN+ por sua narrativa
superficial e sem “lugar de fala”, o que pode influenciar os jurados em favor
de “Ainda...”. Tomara.
De resto, aquelas coisas de sempre do Oscar: falta de algo
aqui, excesso de algo ali, ausência de um outro acolá. Críticos dizem que “Sing
Sing”, que retrata uma história verídica do sistema prisional norte-americano,
merecia mais reconhecimento além das apenas duas indicações que teve (Melhor
Roteiro Adaptado e Melhor Canção Original). Sobrando, o bruxesco “Wicked”, que
aparece em vários dos prêmios técnicos, mas desnecessariamente em Filme, Atriz
e Edição. E Clint Eastwood, com seu genial “Jurado nº 2”, quem viu? A Academia
não dá nem as horas pro velho cowboy, e justo em sua obra de despedida... Fazer
o quê? Só torcer por “Ainda...“ e conferir a lista completa dos indicados, que
a gente traz aqui abaixo e segue acompanhando os filmes até a premiação em 2
de março. E viva o cinema brasileiro!
E deu Fernanda Torres no Globo de Ouro! Fernanda levou o prêmio de Melhor Atriz em Filme de Drama por sua atuação no lindo "Ainda Estou Aqui", de Walter Salles Jr., esse fenômeno de bilheteria no Brasil que vem emocionando plateias ao redor do mundo. Confirmando as expectativas de alguns (e contrariando as dos pessimistas), a atriz brasileira, que interpreta Elaine Paiva no filme, atinge esse feito histórico e cheio de significado para o Brasil com totais méritos mas não sem dificuldades. Afinal, ela concorria com, pelo menos, quatro grandes e premiadas atrizes muito mais "internacionais" que uma sul-americana como ela: as britânicas Tilda Swinton e Kate Winslet, a norte-americana Angelina Jolie e a australiana Nicole Kidman - além da "porn celebrity" Pamela Anderson, que passa longe de ser "grande atriz".
Repetindo o feito histórico de sua mãe, a grandiosa Fernanda Montenegro, indicada ao mesmo prêmio em 1999 e que levou com Waltinho o de Melhor Filme em Língua Não-Inglesa por "Central do Brasil" naquele ano, a vitória de Fernanda, para além do eficiente marketing que Sony Pictures vem investindo em "Ainda Estou Aqui" no mercado norte-americano, reforça aquilo que, a partir de agora, tornou-se o próximo objetivo a ser alcançado: o Oscar.
Neste caso, o buraco é mais embaixo, mas não impossível. Enquanto os indicados ao Oscar não saem, o que deve ocorrer em 17 deste mês, há duas hipóteses visíveis. Uma delas, é Fernanda, sendo realmente indicada, disputar diretamente com Demi Moore, forte concorrente pelo ótimo "A Substância". No Globo de Ouro, esse embate não ocorreu, pois ambas estavam em categorias diferentes, sendo que Demi, na de Melhor Atriz em Filme de Comédia ou Musical, também foi premiada. Ou seja: em relação a Nicole, Tilda, Angelina e Kate, outras possíveis indicadas, Fernanda já largou uma cabeça à frente. Falta ver agora se terá fôlego pra ultrapassar Demi no páreo.
Há um fator que, curiosamente, pode contribuir positiva ou negativamente: a conquista de sua mãe anos atrás. Naquele feita, a Academia do Oscar valeu-se da indicação de Fernandona por seu papel de Dora em "Central..." e a premiação do mesmo (também de Walter Salles, informações essencial) como salvo-conduto para não premiar uma "não-americana". Embora merecesse - a própria Gwyneth Paltrow, vencedora daquele Oscar, concordava com isso -, a brasileira teve de se contentar com o Globo de Ouro., jamais previsto a uma senhora de um país exótico diante das figuras estelares de Hollywood àquela época. No caso de Fernanda Torres, essa correlação com a mãe é também favorável, pois os norte-americanos gostam de valorizar a ancestralidade - como produto, claro.
Por outro lado, por mais que se precise fazer algum esforço para acreditar que o pessoal do Oscar evoluiu de lá para cá - haja vista os reconhecimentos a atrizes estrangeiras como a nipônica Michelle Yeoh, em 2023, para se centrar nessa categoria -, é possível que uma visão mais moderna (e equânime) dos tempos atuais favoreça Fernanda. Afinal, a conquista do Globo de Ouro sempre foi um indicativo a qualquer vencedor de que este é um forte candidato ao Oscar. Isso, mais o lobby da Sony, o prestígio e a carreira internacionais de Waltinho, o espelhamento com o que já acontecera com "Central...", a pré-indicação de "Ainda..." ao Oscar de Melhor Filme Internacional e, principalmente, a força da atuação de uma atriz já reconhecida internacionalmente (vale lembrar que Fernanda Torres é Palma de Ouro em Cannes por "Eu Sei que Vou te Amar", de 1986) dão a ela totais condições de superar Demi. Talvez o filme em si seja o favorito para que o Brasil vença o Oscar, mas, na prática, é bastante cabível pensar que Fernanda também posso levar.
Resta agora saber se a Academia permitirá que se faça justiça nessa corrida "cabeça a cabeça" entre Fernanda e Demi.
Confira a lista completa dos vencedores do Globo de Ouro 2025:
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Melhor Filme (Drama)
O Brutalista
Melhor Filme (Musical ou Comédia)
Emilia Pérez
Melhor Diretor
Brady Corbet, O Brutalista
Melhor Ator (Drama)
Adrien Brody, O Brutalista
Melhor Atriz (Drama)
Fernanda Torres, Ainda Estou Aqui
Melhor Ator (Musical ou Comédia)
Sebastian Stan, Um Homem Diferente
Melhor Atriz (Musical ou Comédia)
Demi Moore, A Substância
Melhor Ator Coadjuvante (Musical, Comédia ou Drama)
Kieran Culkin, A Verdadeira Dor
Melhor Atriz Coadjuvante (Musical, Comédia ou Drama)
Zoe Saldaña, Emilia Pérez
Melhor Roteiro
Conclave
Melhor Filme em Língua Não Inglesa
Emilia Pérez
Melhor Filme de Animação
Flow
Melhor Canção Original
El Mal, Emilia Pérez, música e letras de Clément Ducol, Camille e Jacques Audiard
Melhor Trilha Sonora Original
Rivais
Maior realização cinematográfica e em bilheteria
Wicked
Melhor Série Dramática
Xógum: A Gloriosa Saga do Japão
Melhor Série de Comédia ou Musical
Hacks
Melhor Série Limitada, Antologia ou Filme para TV
Bebê Rena
Melhor Ator Em Série Dramática
Hiroyuki Sanada, Xógum: A Gloriosa Saga do Japão
Melhor Atriz Em Série Dramática
Anna Sawai, Xógum: A Gloriosa Saga do Japão
Melhor Ator em Série Musical ou Comédia
Jeremy Allen White, O Urso
Melhor Atriz em Série Musical ou Comédia
Jean Smart, Hacks
Melhor Atriz Coadjuvante (Musical, Comédia ou Drama)
Jessica Gunning, Bebê Rena
Melhor Ator Coadjuvante (Musical, Comédia ou Drama)
Tadanobu Asano, Xógum: A Gloriosa Saga do Japão
Melhor Ator (Série Limitada, Antologia ou Filme para TV)
Colin Farrell, Pinguim
Melhor Atriz (Série Limitada, Antologia ou Filme para TV)
As coisas demoraram a tomar forma, as formas a ganhar contorno. Via um lustre de cobre, um teto vermelho descascado, um candelabro a óleo... Tentou mover-se mas percebeu que estava atada pelas mãos e pés, provavelmente a uma mesa ou algo assim. Ergueu o pescoço e pode ver uma mulher de meia idade, de costas para ela, escrevendo, com uma espécie de giz vermelho, caracteres estranhos em uma espécie de janela de vidro. Ainda estava um tanto zonza mas tinha certeza que o que via do outro lado da janela era o refeitório da tecelagem onde trabalhava. Um movimento chamou sua atenção mais à direita e ainda esforçando-se para manter o pescoço erguido, viu um homem de torso nu sentado à uma mesa. O conhecia... Era o rapaz com quem descera a área proibida na noite anterior. Agora começava a lembrar. Era Johan, trabalhava com ela. Ana lhe contara sobre o sumiço de suas economias e ele se propunha a ajudá-la. Sabia como recuperar suas moedas, teriam, no entanto, que passar pela área proibida. Ela deveria encontrá-lo no topo da escadaria, mais tarde. Ela assim o fez. Lá o encontrou, o seguiu pela escada e desceram. À medida que iam em direção ao subsolo, se aprofundava a escuridão. Escuro, escuro... Até que não via mais nada. Acordara amarrada aquela mesa. - Ah, acordou. - percebeu o jovem exclamando num tom de falsa surpresa. Sua tentativa de perguntar o que fazia ali, amarrada, foi inútil. Sua língua parecia travada, como que colada ao céu da boca. Notando o esforço da jovem em falar, o rapaz logo a esclareceu. - Esqueci de dizer: você não vai conseguir falar. O bolo, lembra? Tive que lhe dar alguma coisa. Sim, lembrava que, quando o encontrara na escada, Johan lhe dera um pedaço de bolo. Estranhou mas, ao mesmo tempo, apreciou a gentileza. Ainda mais num lugar como aquele que mal se satisfaziam com a ração dada na tecelagem. - Precisávamos de outra jovem. Tenho certeza que me entende, Ana. Desde que chegara àquele lugar, ouvia falar das garotas desaparecidas. Operárias da tecelagem, novatas como ela. Ao chegar ao lugarejo, não questionou nada. Fora aceita na aldeia, admitida na fábrica. Precisava do trabalho. Mas depois de algum tempo, as atitudes sorrateiras das outras meninas, o burburinho, os roubos, fizeram com que ligasse os supostos desaparecimentos aos procedimentos estranhos dos locais. Ao perguntar, argumentavam-lhe que a última menina, Frida, sumida há pouco mais de um ano, havia simplesmente ido embora, voltado para a casa dos pais. A explicação bastou-lhe inicialmente, porém a postura suspeita dos outros funcionários, os restos de animais mortos perto do rio, os símbolos esquisitos pintados em algumas portas, fizeram com que sua desconfiança retornasse. Advertida veementemente por Glenda, uma das únicas colegas com quem simpatizava, resolveu esquecer o assunto. Simplesmente trabalharia, ganharia seu saldo e guardaria o suficiente para sair daquele lugar. Os ferimentos com que Glenda aparecera a deixaram novamente atenta, no entanto, o roubo de suas economias foi o que a obrigou a tomar alguma atitude. Revelou o furto a Johan, um rapaz do transporte que se mostrara atencioso desde que Ana começara na tecelagem. O jovem disse-lhe que tinha suas desconfianças e que achava que sabia como podia recuperar o dinheiro. Ana deveria encontrá-lo, à noite, quando todas as outras já estivessem no dormitório. Depois disso, foi o bolo, a escada espiral, a escuridão e agora, aquela maca. Esticava o pescoço num esforço e via que a mulher continuava traçando aqueles escritos ilegíveis no vidro. A zonzeira passava e cada vez as coisas clareavam mais. Claro! Aquela vitrine, aquele vidro, a vista para o refeitório era um espelho. Quantas vezes não parara diante do espelho do comedor para se apreciar mesmo desgrenhada e molambenta depois do turno no fabrico dos tecidos. A mulher finalmente virou-se na direção de Ana. Parecia ter concluído as escrivinhações. Apanhou uma adaga em uma espécie de pedestal horizontal. Mesmo não recuperada totalmente do efeito da substância que Johan colocara no bolo, notou que a peça era bonita, tinha um aço levemente curvo e brilhante, e um belo cabo trabalhado em relevos. Quando a mulher aproximou-se mais, posicionando-se lateralmente à bancada à qual Ana estava amarrada, a jovem pode notar, enquanto a senhora manuseava o objeto, que as inscrições do cabo eram muito parecidos com as que encontrara pintadas em sua porta, certa manhã.
***
A lâmina mal conseguia cortar a carne. Cega, por mais que insistisse em friccionar contra o pedaço que tinha em seu prato, a faca quase não produzia efeito algum. Além da qualidade do material, provavelmente, aos funcionários tocavam os piores cortes. Mas o que importava? O importante era que tinha alguma comida. Falava-se nos arredores sobre casos de bruxaria naquela aldeia, sobre operárias que teriam sumido... Não dava ouvidos. Era grata por terem lhe aceitado na produção. Poderia ganhar algum dinheiro e enviar para a mãe, no norte. Inga desistiu do naco de carne. Não tinha muita fome, mesmo, naquele instante. Levantou-se, deixou a bandeja no balcão e encaminhou-se para a saída a fim de deixar o refeitório. A maioria das moças já havia deixado o salão. Antes de sair, no entanto, parou em frente ao grande espelho que ficava perto da porta. Contemplou-se e, mesmo amarrotada e encardida da labuta do dia, a nova empregada da tecelagem ensaiou uma tímida pose de vaidade. Como será que a viam? Inga achava-se bonita. E era. Era bela e cheia de vida.
Filme de morto-vivo sem ser de zumbi, "D.O.A." (Dead on Arrival), nome original das duas versões, trata basicamente de um homem que fora envenenado, sua situação é irreversível, ele sabe, a rigor, que está morto, mas antes de dar seu último suspiro, pretende, a qualquer custo, descobrir quem o matou. Premissa interessantíssima que me conquistou desde a primeira vez que topei com "Morto ao Chegar", de 1988. Um morto-detetive, um cara que investiga a própria morte. Bárbaro!!! Só depois de muito tempo foi que vim a saber da existência de uma versão anterior, de um original do início dos anos 50 chamado por aqui de "Com as horas contadas". Tipo do caso em que o original é bom mas o remake é melhor ainda. O próprio estado físico que o protagonista chega à delegacia pra reportar o crime do qual fora vítima, logo no início de ambos, é muito mais legal na versão mais recente. O professor Dexter Cornell chega estropiado, um bagaço, num fiozinho de vida, ao passo que, no antigo, um contador, Frank Bigelow chega ainda hirto, altivo, meio abatido, é verdade, mas num estado bem menos verossímil que o da refilmagem se considerarmos a situação que se encontra e tudo que vivera nas últimas horas. A própria diferença de atividades dos dois, me parece, seja um ganho do remake, uma vez que a condição de professor universitário, escritor decadente, suscite bem menos interesse de que alguém quisesse matá-lo, numa improbabilidade de suspeitos e motivos que torna a trama ainda mais intrincada. Como ele mesmo diz, no filme, "Ninguém faz planos de matar um professor de Inglês. Não inspiramos esse tipo de violência". No outro lado, negócios, dinheiro, clientes, dívidas..., tudo isso já direciona as suspeitas do espectador para alguém relacionado a esse universo ou algo próximo.
"Com as Horas contadas" (1950) - trailer
"Morto ao Chegar" (1988) - trailer
Frank Bigelow, um pequeno empresário de uma cidade do interior, repassa algumas transações, atualiza a agenda de clientes, fecha o caixa e parte para um pequeno período de férias na cidade grande, em São Francisco. Lá, participa de uma festinha no hotel, toma uns drinques no lobby, se engraça com uma dona, e depois da noitada, sentindo-se estranho, com um certo mal estar, vai a um hospital, onde descobre que ingerira uma substância venenosa, naquela noite, possivelmente, misturada com álcool, e que não viverá mais que 48 horas. Passa a buscar razões para que alguém quisesse envenená-lo e resolve levantar seus clientes em São Francisco. Na caça, descobre que um deles, um que lhe ligara poucos dias antes de suas férias, acaba de morrer. Teria se suicidado. Se jogando de uma varanda... Em suas últimas horas de vida, decide que é no rastro desse cliente que deve seguir. Topa então com o sócio do cliente, a viúva, a amante do morto, um figurão de contrabando, e aí a coisa engrena. "Com as horas contadas" até demora para esquentar mas, depois que pega o ritmo, com uma série de surpresas, quebras de expectativa, torna-se mais atraente, instigante e empolgante.
Dexter Cornell, por sua vez, é um professor de Língua Inglesa que já teve seus dias de glória na literatura mas que, em crise criativa, conjugal e pessoal, não consegue escrever mais nada e vê seu casamento desmoronar. Enquanto a vida de Cornell gira nesse turbilhão, na faculdade, um aluno aparentemente talentoso para as letras, mas que Cornell insistia em ignorar os trabalhos, se joga do terraço do prédio e, para piorar, ele descobre que o garoto era o novo namorado de sua (quase ex) esposa.
O professor vai afogar as mágoas, encontra uma aluna na night, eles bebem juntos e no outro dia, sentindo-se muito mal e desconfiando que aquilo não é só uma ressaca, consulta uma médica no ambulatório da faculdade. Ela ele ingerira, nas últimas horas, provavelmente misturado com álcool, uma toxina de ação lenta mas de efeito irreversível. Ou seja: inevitavelmente, ele vai morrer. Tempo de vida? No máximo 24 horas.
Dex, desesperado vai atrás da aluna (Meg Ryan), supondo que ela possa ter colocado algo em sua bebida, a envolve nas investigações, sem querer a põe em perigo, e, por onde passa, a cada pista que segue, vai deixando um misterioso rastro de corpos conforme sua investigação avança.
A abertura em preto e branco, a chegada aos frangalhos na delegacia e a passagem para o colorido com a palavra "COR", escrita na lousa, na aula da universidade, numa passagem de tempo bem sacada, é um golaço, já no início da partida, para o time de 1988. A agilidade do roteiro, a dinâmica, com um filme que não para a partir do envenenamento, que muda constantemente, como aquele time que muda de posição o tempo inteiro, imprevisível, a inspiração nos giallos italianos, garante outro para o remake. Dennis Quaid, que juntamente com Meg Ryan, foi contratado para sere a estrelas do time, faz a diferença e guarda o seu, com uma atuação muito consistente, ao contrario da parceira que, num papel pouco relevante, não dá grande contribuição. Do outro lado, o filme de 1950 apronta uma certa correria ali pela metade, ganha agilidade, faz substituições, apresenta novos jogadores (ou melhor, novos suspeitos à trama), e acaba chegando ao gol. Faz mais um pelo conjunto, uma vez que, de um modo geral, é um bom filme com uma boa trama e um interesse crescente. Mas a sequência final da refilmagem, da descoberta do assassino e de sua surpreendente motivação, com a cena desbotando gradualmente até perder totalmente a cor, para voltar ao ambiente inicial da delegacia, mata definitivamente o original. Baita jogada! 4x2 para "Morto ao Chegar".
À esquerda, Frank Bigelow e, à direita, Dexter Cornell, no alto, chegando à delegacia para comunicar o próprio assassinato; no meio, ambos relatando a incrível história ao delegado e, abaixo, o momento em que descobrem que foram envenenados.
"Com as horas contadas" percebeu cedo que era inferior,
continuou lutando mas sabia que estava morto no jogo.
Muita gente defende que o jogo de futebol fica melhor e deveria ser jogado com dez jogadores de cada lado. Pois, aqui, no nosso jogo, os dois times já começam com dez. No romance "O Caso dos Dez Negrinhos", da mestra do mistério, Agatha Christie, nos apresenta uma trama em que oito desconhecidos são convidados, por um misterioso anfitrião, para um jantar num local isolado e de difícil acesso, no qual, por meio de uma gravação, são revelados crimes que cada um dos convidados e seus dois mordomos teriam cometido. A partir daí, um a um, eles vão sendo assassinados de maneira muito semelhante à subtração de um conhecido versinho infantil sobre dez negrinhos e para cada um que morre, uma estatueta de um conjunto de dez que enfeita a mesa de jantar, é removida. Haverá um décimo primeiro "jogador" ou um dos próprios convidados é o matador?
Nossos dois adversários contam a mesma história, mas com propostas de jogo um pouco diferentes: "O Último dos Dez", também conhecido como "e Não Sobrou Nenhum", de 1974, de Peter Collinson, ousa e faz algumas alterações na história original: ao invés de situar a trama em uma ilha, como no romance original, transfere a ação para o deserto do Irã, em um luxuoso hotel no meio do nada, ao qual os convidados chegam, deixados de helicóptero. Em nome desse atrevimento, ele é obrigado a fazer outras modificações e a maior parte das mortes acaba sendo diferente das idealizadas pela escritora, sendo adaptadas para situações determinadas pela localização, ambiente, hábitos culturais, comprometendo bastante a ligação dos assassinatos com o poema infantil que os ordena e determina.
As ousadias até funcionam, como adaptação cinematográfica, se formos analisar isoladamente, enquanto proposta, filme de mistério e tal, tá ok: deserto, serpentes, hábitos locais de execução, ruínas, etc. Mas, o problema é que, além de mexer numa obra impecável da maior escritora do gênero, no comparativo com o adversário desse jogão do Clássico é Clássico, a opção pelas alterações acaba pesando.
"O Caso dos Dez Negrinhos", de Stanislav Govorukhin, de 1987, é muitíssimo mais fiel ao original de Agatha Christie. A ação se passa numa casa, em uma ilha, no topo de um rochedo, cujo acesso se dá apenas por barco e apenas quando a maré permite; a produção, embora russa, tem todo o aspecto dos filmes noir norte-americanos, com chapéus, sobretudos, véus, persianas, sem perder, contudo, sua identidade; os crimes seguem à risca os versos do poema dos negrinhos que, por sinal, está exposto, emoldurado, em cada um dos quartos dos convidados, recebendo sua devida importância dentro da trama como acontece no livro; e a atmosfera, a casa, a ilha, o mar, os rochedos, tudo é muito mais angustiante e claustrofóbico do que no filme inglês.
"O Último dos Dez" (1974) - trailer original
"O Caso dos Dez Negrinhos" (1987) - trailer original
*não conseguimos os trailers dublados ou legendados de nenhum dos dois, no entanto a amostragem
destes originais serve para dar uma boa noção de escolhas e elementos visuais que mencionamos na análise das obras.
Enquanto a versão inglesa tem um aspecto árido, quase luminoso, uma decoração rica em ouro e pesada em tapetes persas, a produção russa é cinzenta, sombria, rústica, amadeirada, trabalha em planos fechados, sombras, reflexos, janelas, enquanto o filme de 1974 opta por planos mais abertos, travelings longos, e tomadas, na maioria das vezes, pegando todos os personagens no mesmo plano.
O filme de Govorukhin traz uma atmosfera mais misteriosa, furtiva, obscura, os convidados se esgueiram, são evasivos e parecem mais suspeitos por mais tempo, até que fique claro, por fim, que são tão vítimas e vulneráveis quanto qualquer outro ali.
O filme de 1974 até tem um elenco mais estelar, com Gert Fröbe, o Goldfinger de 007, Herbert Lohm, o comissário Dreyfuss da Pantera Cor-de-Rosa, Oliver Reed, de "Golpe de Mestre", "O Gladiador", o versátil Richard Attenborough, diretor do clássico "Gandhi, uma ponta do cantor francês Charles Aznavour, o primeiro a morrer, e a voz de Orson Welles, revelando os crimes de cada um dos convidados, mas no fim das contas, com exceção de Attenborough, que faz um bom juiz Cannon e Reed, como Detetive Lombard, tantos medalhões acabam não fazendo tanta diferença assim. O filme russo, ainda que não tenha nomes tão conhecidos no ocidente, traz o aclamado Vladimir Zeldin, a bela Tatyana Drubich, e Alexander Kaydanovski, o "Stalker" do filme de Tarkowski, no papel do investigador Lombard. Os demais, embora nada badalados, têm um um ótimo trabalho coletivo e garantem o bom desenvolvimento e a coesão do filme.
Dentro de campo, onze contra onze..., ou melhor, dez contra dez, o filme de 1987 leva vantagem. A fidelidade à novela original faz diferença e garante um gol para o time de Govorukhin, o clima noir, o visual soturno, o jogo de sombras, reflexos, espelhos, vidros, aumenta a vantagem.
No entanto, a audácia da proposta, da mudança da ambientação, ainda que não totalmente bem-sucedida, merece reconhecimento e a recompensa com um gol. Mas a alegria do time de 1974 não dura muito e a constante referência e a vinculação dos crimes aos versos nas paredes dos quartos, dá mais um gol para o time russo.
No tocante à escalação, Peter Collinson dá a camisa 10 para Oliver Reed, que até dá boa contribuição mas não consegue desequilibrar, até porque, do outro lado, o 10 é o 'Stalker' Alexander Kaydanovski que articula muito bem o jogo o tempo inteiro; Tatyana Drubich, no time de 1987, se sai muito melhor do que Elke Sommer como a secretária contratada pelo incógnito anfitrião, encarnando melhor o espírito da personagem, Vera Clyde, na versão inglesa e Vera Claythorne, na russa; e, de um modo geral, mesmo com mais jogadores destacados, rodados, com passagens por times grandes, o time inglês não consegue impor seu jogo, com exceção de Richard Attenborough, como juiz Cannon, que tem um desempenho excelente, sobretudo na sequência final, que é muito boa também no outro filme, com um flashback crucial e aquela recapitulação característica de Agatha Christie, mas que não supera a performance de Attenborough e a surpresa do filme inglês. No entanto, a cena em questão é resultante de uma mudança decisiva no final do romance original e isso é imperdoável!
(Para quem não leu o livro ou não viu nenhuma das adaptações, aqui vão spoilers - desculpem, mas absolutamente necessários).
Em nome de um final feliz, de ficar bem com o público, de não matar o 'mocinho' e a 'mocinha' do filme, Peter Collinson faz com que Lombard (Reed) depois de uma farsa com Vera Clyde, reapareça vivo, ao final, no salão, em frente ao juiz Cannon que, supondo êxito em seu plano, já dera um gole numa taça de veneno a fim de concluir seu plano, incriminando a garota pelos nove crimes, deixando-a sem opção, induzindo-a a fazer uso da forca já pendurada previamente pelo juiz na sala. Já sob efeito da substância, o velho morre (maravilhosamente bem) e o casal é resgatado do local pelo mesmo helicóptero que os deixara lá.
No outro, não! Depois de atirar, DE VERDADE, em Lombard, desconfiada e com medo dele, Vera volta para casa e encontra em seu quarto apenas a forca dependurada à sua espera. Com a culpa pelo crime que lhe é imputado na gravação e percebendo-se sem saída diante de nove cadáveres que, naturalmente, seriam atribuídos a ela, a garota sobe numa cadeira e coloca seu lindo pescocinho na corda e dá fim à sua vida, para regozijo do juiz que se fingira de morto a fim de fazer a justiça que os tribunais não fizeram. Realizado, ele, mais criminoso que todos ali, mete uma bala na própria cabeça, concretizando seu último ato de justiça, em uma cena, igualmente, de se aplaudir de pé. Pela fidelidade ao original no ápice do filme, na resolução do caso, vai mais um gol para o time russo.
O time britânico ainda marca um nos acréscimos pois, depois da morte do juiz e da retirada dos dois sobreviventes, de helicóptero, a gravação, com a narração de Orson Welles volta a ser rodada enquanto passam os créditos finais. Mas não há tempo para mais nada e o jogo termina assim.
Podia ter proposto, aqui o enfrentamento de um dos dois, "O último dos Dez" ou "O Caso dos Dez Negrinhos" contra a primeira adaptação para cinema, de 1939, de René Clair, "E Não Sobrou Nenhum", mas preferi tirar um pouco o foco das produções norte-americanas e, embora a Rússia não esteja na Copa do Catar, e venha criando problemas para o mundo inteiro com essa treta com a Ucrânia, achei que seria um confronto internacional mais interessante e original esse embate de russos contra britânicos.
Mas, olha, hein... o time de René Clair também teria sérias dificuldades contra esse ótimo time de Govorukhin.
No alto, à esquerda, o hotel que receberá os convidados, no meio do deserto iraniano, e, à direita, a mansão de aspecto sinistro no alto de um rochedo cercado pela água; na segunda linha, as estatuetas dos dois filmes, que vão sendo subtraídas conforme uma pessoa morre; na sequência, os jantares das duas versões, ainda com todos os acusados vivos na quarta linha, o plano aberto, alto, do filme inglês, e uma visão mais próxima, mais cúmplice, do filme russo. Na penúltima linha, o visual típico dos anos 70, com golas rolês, golas cubanas, branco, tweed, do primeiro filme, e o aspecto muito Hollywood anos 40, da outra versão; e, por fim, na última, as duas Veras (Clyde, no filme de 1974 (esq.), e Claythorne (dir.), no de 1987) no momento decisivo da trama.