Com uma base futurista, como se fosse o filme “2001: Uma Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick, o The Who projetou o “Who´s Next”. Alias, a capa do disco é influenciada justamente nesse clássico da ficção científica. Na foto, o monólito (estrutura geológica que aparece no filme) foi urinado pelos quatro membros da banda: uma atitude bem rock. Este disco está posicionado entre duas óperas rock do grupo: Tommy, de 1970, e Quadrophenia, de 1973.
Voltando à película cinematográfica, um dos personagens, o computador ultra inteligente HAL 9000 chega ao ponto de controlar a espaçonave, colocando os humanos tripulantes sob seus domínios. De certa forma, a comparação pode ser feita com o sintetizador ARP 2600, que comanda este álbum. A tecnologia foi capitaneada por Pete Townshend – o centro criativo da banda.
Neste registro, o The Who se mostra ainda mais maduro, flertando com o rock progressivo, que ganhava força na época e se perpetuaria até o final dos anos 70, momento de seu declínio. Nota-se também que as músicas, na maioria, são bem mais extensas. Outro gênero musical presente é o Synthpop, que ganharia notoriedade com o Kraftwerk, principalmente nos anos 80. Ou seja, o tradicional rock visceral deu espaço para mais experimentalismo, gerando descontentamento de alguns fãs quando lançado este disco.
Mesmo com a tecnologia, Pete Towshend usa bastante violão e piano, o que permite um contraste com os sintetizadores. As baladas também são marcantes no álbum.
Como não poderia ser diferente, no início desse registro quem se manifesta é o ARP, que dá o start em "Baba O'Riley". O equipamento emite sons que parecem de videogame, aqueles de Atari. A canção também conta com um solo de violino, que dá acabamento e finaliza a música. O resultado é uma bela fusão entre o eletrônico e o orgânico. Já em "Bargain", o começo tem aquele rolo de bateria nervoso e amalucado, característicos de Keith Moon. E em meio a palmas e a pinceladas de sintetizador, Roger Daltrey (gutural) e Pete Towshend (analasado) dividem os vocais.
Contradizendo com a proposta principal do disco, numa mescla de country com blues, surge "Love Ain't For Keeping”, fazendo um resgate ao passado. Os dois violões gravados por Pete e a dispensa do sintetizador contribuem para chegar a este destino. Um bem postado coral de vozes e a liberdade dada ao baixo para solar permitiram uma maior melodia à canção.
Num formato de power trio, duas faixas não contam a presença de Daltrey. Na "My Wife" é a vez da voz rouca do baixista John Entwistle entrar em ação. A canção tem um piano no estilo faroeste, além de instrumentos de sopros muito bem colocados do meio para o final da música, encerrando-a de forma mais épica. Já "Going Mobile", Towshend canta, com o seu violão, sobre o seu prazer em dirigir. E a letra é politicamente incorreta, com o trecho: “I don't care about pollution (Não me importo com a poluição)”.
Duas músicas têm como base o piano e que poderiam fazer parte da ópera rock Tommy. Em "The Song Is Over", Pete canta de forma depressiva, com um teclado de base. Mas, quando entra a voz Daltrey vem juntamente o peso da guitarra, do baixo e da bateria. Aí, as coisas se invertem, dando mais ânimo a música. Quase no mesmo tom tem "Getting In Tune", só que nesta é Daltrey que vocaliza de forma desanimada e depois energética. A construção musical é parecida com a canção anteriormente referida, uma espécie de continuação.
A clássica "Behind Blue Eyes" é uma balada tão contagiante, que foi dispensado o uso do ARP. É uma música à moda antiga, boa cantar numa roda de amigos. Do início até a metade é introspectiva, com violão e baixo, este último instrumento com arranjos mais elaborados. Na parte final, a levada é no estilo consagrado do The Who, ou seja, com aquele peso nos instrumentos que fizeram sucesso no início da carreira.
Futurística e espacial. Estes são dois adjetivos que podem ser aplicados a "Won't Get Fooled Again", faixa que encerra o álbum. Certamente, poderia estar na trilha sonora do “Odisseia no Espaço”. É a canção mais longa do disco, com 8 minutos e 33 segundos. Ela é tão boa, que o tempo passa como um foguete, quase na velocidade da luz. Mais uma vez, o HAL, digo, o ARP entra em ação e, praticamente, é tocado numa mesma base sonora, do início até o final, com pequenas variações no meio da música. É um contagiante encerramento para este grande enredo musical.
Após esse álbum, Moon teria pela frente mais três discos para gravar. Entwistle mais cinco. E a dupla Daltrey e Townshend estão vivos e na ativa, para quem sabe fazer ainda mais.
“Who´s next” é para ser escutado durante as próximas gerações. De avô para neto. Um legado deixado para os adoradores de rock.
“Nunca fui revolucionário. O
único revolucionário em nossa época foi Strauss! Arnold Schoenberg
“Há sempre seu quê de loucura no
amor; mas também há sempre seu quê de razão na loucura.”
trecho de “Assim Falou
Zaratustra”, de Friedrich Nietsche
É bem provável que, por insistência dos estúdios cinematográficos, o
diretor Stanley Kubrick encomendara uma trilha sonora original para um filme
que ele rodaria, a ser lançado em 1968, ao compositor Alex North (que
trabalhara com ele em “Spartacus”, de 1960). O filme em questão chamar-se-ia
nada mais nada menos que “2001: Uma Odisseia no Espaço”, obra-prima do cinema.
Porém, nada do que North compôs foi aproveitado no filme. Kubrick sabia muito
bem o que queria para a trilha. Além de obras de Grygöry Ligeti, Johann Strauss e Aram Khatchaturian, ele usou o
clássico pós-romântico “Assim Falou
Zaratustra”, de Richard Strauss.
O resultado foi tão certeiro que, até hoje, a peça é conhecida como “a música
do 2001”. Não à toa. “Zaratustra”, que inicia epicamente o longa, é uma música
de proporções sonoras e simbólicas gigantescas que resume, através de seus sons
intensos e saborosamente dissonantes, a força da
transformação da humanidade que o filme retrata.
Pois de força de transformação o alemão
Richard Strauss entendia. De alma rebelde, apaixonada e inquieta, Strauss foi
um punk de seu tempo. Ele aprendeu as formas clássicas, estudou Franz Liszt e
Richard Wagner (a quem idolatrava), e, embora o rivalizasse, era amigo e admirador
de Gustav Mahler. Mas Strauss subverteu tudo isso. Entre outras loucuras
saudáveis, meteu trítonos diabólicos e necrofilia na história bíblica da ópera
“Salomé”, de 1906, e, dois anos antes, anteviu o american way of life com quatro décadas de antecedência com sua
“Symphonia Domestica” ao descrever o dia a dia de uma família norte americana
comum. Porém antes, na sua série de “poemas sinfônicos” (na qual bancou musicar
autores pouco quistos como Richard Dehmel e Max Stirner), Strauss já havia
trazido ao mundo outra saudável transgressão, a talvez primeira ponte concreta
entre a tradição tonal e o atonalismo que desembocaria no trio de Viena, Berg, Webern e, principalmente, Schoenberg – a quem influenciou sobremaneira tanto em
estilo quanto em atitude. “Assim Falou Zaratustra”, de 1895, é, em seus cerca
de 35 minutos, uma obra revolucionária em forma e proposta que traz diversos
lances dessa ruptura. Isso fica evidente nas torrentes sonoras e nas
dissonâncias maravilhosamente bem arranjadas. Fortes e certeiras.
Depois das inconfundíveis quatro notas da Quinta de Beethoven (o “Tchan-tchan-tchan-tchaaaaan!”), o início
de “Zaratustra” é talvez o mais marcante da história de toda a música. Como bem
captou Kubrick para a cena inicial de um filme que versa sobre os limites do
homem, esta passagem deve sua força cósmica às leis naturais do próprio som e
como ele se distingue em nosso cérebro. Quando se fere uma corda afinada num dó
inferior e, em seguida, dedilha-a de novo prendendo pela metade, o tom sobe
para o próximo dó. Esse é o intervalo da oitava. Fazendo-se o mesmo nas
divisões subsequentes, dá-se origem a outros intervalos, o que é considerado os
primeiros passos da série harmônica natural, que reverbera como um arco-íris
sempre que a corda é colocada em vibração.
Em “Zaratustra”, essa explicação teórica fica fácil de perceber: dós
profundos para começar, trompas tocando um dó mais agudo, um sol, um dó mais
agudo ainda, e um mi natural, que rapidamente desliza para mi bemol, formando
um dó menor em tom sombrio. Na repetição, mi bemol sobe para mi natural,
originando um reluzente acorde de dó maior. São aproximadamente 1 minuto e 20 e
poucos segundos que causam, invariavelmente, uma sensação instintiva de prazer
e agitação. O último acorde ainda demora em terminar, sustentando-se por
segundos sem cair, exemplo que influenciou outros músicos a usarem do mesmo
expediente, como Arvo Pärt, no final da parte “Ludus”, de “Tabula Rasa”, ou os Beatles, ao concluírem de forma esplendorosa "A Day in the Life".
Anos atrás, quando escutei pela primeira vez a obra inteira, de tão
impressionante que é o “tema
do amanhecer”, confesso que me pareceu todo o restante muito inferior.
Mera imaturidade de meu ouvido, pois, sem dúvida, não quer dizer que a abertura tire o brilho do
restante. Baseada no livro homônimo do conterrâneo Friedrich Nietsche (ainda
vivo e em voga na época), a música de Strauss traduz de maneira intensa e
carregada a magnitude poética do texto filosófico, que passeia pelas contradições
e embates entre homem e natureza. Para isso, Strauss se vale de volumosos
contingentes orquestrais, que geram ondas de impressionante impacto sonoro,
graduando a expressividade e aliando força e requinte nas partes mais
grandiosas. Desenvolve cellos e violinos, sem sair do leitmotiv, que é reavivado de tempo em tempo ao longo da peça, seja
em forma de frases, em suposições de seus acordes ou em novas citações.
Na segunda metade, Strauss adensa a orquestração. É a vida em estado de
tensão/renovação. Torrentes de cordas anunciam a entrada marcante dos sopros:
trompas e trompetes tomam o espaço. “Ó!
miséria de todos os que dão! Ó! eclipse do meu sol! Ó! desejo de desejar! Ó!
fome devoradora da fortuna”, diz Nietsche sobre o “Canto da Noite”.
Porém, “antes do nascer do sol”,
o prado, então “verde e colorido”,
torna-se “triste e cinzento”. Flautas
emitem sons de pássaros assustados, que veem a aurora sobre ataques de trombas
ameaçadores. “As pernas do conhecimento
fatigaram-se-lhes e agora caluniam até os seus brios da manhã.” O que
restará de nós, natureza? Após desenvolver notas sonolentas e cambaleantes, a
melodia vai se esvanecendo até se... suspender. Justo no renasce do dia, Strauss
o mata, poeticamente. Assim falou (o seu) Zaratustra.
Intenso em personalidade, Strauss morreria em 1943 e, mesmo com um
breve e mal explicado envolvimento com o Reich de Hitler, sua obra venceu o
tempo. Durante sua vida, não procurou as facilidades: sempre mirou os desafios
como quem tem sede de mudança. Se hoje é normal as guitarras do rock rasgarem
os alto-falantes ou a atonalidade da vanguarda ser aceita e até deglutível,
muito se deve a ele. Strauss é um artista que rendeu sua vida à arte dos sons, e
este trecho do Zaratustra de Nietsche parece ter sido escrito para ele: “Acaso aspiro à felicidade? Eu aspiro à minha obra”.
Abertura de"2001 - Uma Odisséia no Espaço"
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FAIXAS:
1 - Einleitung (Introdução), ou nascer do sol
2- Von den Hinterweltlern (Dos Antigos Homens)
3 - Von der großen Sehnsucht (Da Grande Saudade)
4 - Von den Freuden und Leidenschaften (Das Alegrias e Paixões)
Não sei quanto a quem não é cinéfilo de carteirinha, mas mais de uma vez me surpreendi tanto com a abertura de um filme, que a sensação imediata era a de quem nem precisava mais continuar assistindo. Foi assim quando, em 1995, na companhia de vários amigos – em sua maioria absoluta amantes de cinema mas não necessariamente cinéfilos – reunimo-nos para ver o VHS locado de “Pulp Fiction: Tempo de Violência”, do Quentin Tarantino. Eu não havia visto “Cães de Aluguel” ainda, seu primeiro e anterior longa, embora já ouvisse todo o debate em torno do nome do cineasta que dizia-se estar revolucionando o cinema. Mas o que me despertava maior interesse era, principalmente, porque o filme em questão havia ganhado a Palma de Ouro em Cannes. Isso, mais do que toda a celeuma sobre Tarantino significar ou não um novo capítulo na história da 7ª Arte (o que poderia ser, escaldado que sou, um exagero proposital, comum na mídia), de fato me surpreendia. Cannes desde cedo em minha vida cinéfila fez muito sentido, pois cresci assistindo seus premiados e indicados, que não raro eram (ainda são) alguns dos melhores filmes que já assisti, como “A Balada de Narayama”, “Coração Selvagem” e “Mephisto”. No caso de “Pulp Fiction”, ainda mais por saber tratar-se de um filme “comercial” norte-americano e não algum cult europeu ou asiático, isso, sim, chamava-me mais a atenção e despertava a curiosidade de vê-lo.
Pusemos a fita no videocassete. A grande maioria sabe o que acontece nos primeiros minutos de “Pulp Fiction”, né? A sequência do diálogo entre Pumpkin (Tim Roth) e Honey Bunny (Amanda Plummer) antes de assaltarem o restaurante e a entrada triunfal dos letreiros iniciais com “Miserlou” de Dick Dale arrasando com um surf-rock na trilha e, ainda pelo meio dos créditos, a mudança de música, como se alguém tivesse mudado uma estação de rádio para o funkão “Julgle Boogie”, da Kool & The Gang. Tudo aquilo, o estilo; a atmosfera pop; a inteligência da montagem; o bom gosto musical; o tom de tele-seriado B; a referência a Godard no nome da produtora A Band Apart: toda essa sequência minimamente bem pensada de como iniciar um filme me fez ficar absolutamente estarrecido. Somava-se a isso a engenhosidade da montagem no momento em que Pumpkin e Honey Bunny levantam-se sobre o banco do restaurante (e Roth diz: “I love, Honey Bunny”, e eles se beijam em close antes de apontarem as armas) e anunciam o roubo, a imagem congela e mantém-se o áudio das falas – estas, aliás, extremamente musicais, tanto que se tornam inseparáveis da música de Dale que vem na sequência no próprio disco da trilha sonora. Apaixonei-me pelo filme que mal havia começado.
"Pulp Fiction", Quentin Tarantino (1994)
Excitado, eu olhava para meus amigos na sala enquanto aquela série de genialidades iam surgindo da tela para observar suas reações, mas todos, embora estivessem, sim, gostando, nem de perto se exaltavam como eu. Aquele sentimento de arrebatamento era única e exclusivamente meu. Cheguei a perguntar, incrédulo: “Gente, vocês estão vendo a MESMA coisa que eu?!”. A resposta? Com desdém adolescente: “Sim, Dani, o que é que tem? O filme tá recém começando”. Sim, o filme estava recém começando, mas não de um jeito normal. Para mim (e para muito cinéfilo e estudiosos do cinema) confirmava-se ali a tal revolução cinematográfica atribuída a Tarantino. Não precisava nem ver o filme por completo: era certo que o cinema, então a 4 anos de completar seu primeiro século de existência, mudava a partir dali, e isso era o máximo de eu estar presenciando. Aprendi, naquela situação, que não era uma pena meus amigos não estarem vendo o mesmo que eu: era, sim, o que me diferenciava do senso comum na forma de ver e sentir cinema.
Não foi a primeira abertura de filme que me surpreendeu a de “Pulp Fiction”, claro, mas é certo que esta sensação de entusiasmo se me repetiu várias vezes. Seja em casa ou numa sala de cinema, de vez em quando sou pego de surpresa com algum começo de filme que, como um bom disco de música, sabe dar o start certo e cativar de cara quem o está apreciando, mesmo que a obra em si não corresponda tanto a seu bom início – embora seja geralmente um bom indicativo. Pois essa lista se propõe a elencar justamente isso: não os filmes inteiros, mas seus primeiros minutos. A rigor, por “openning scene” entendemos não somente o design de créditos, mas o suficiente para apresentar o filme, embora não seja necessariamente uma regra.
A junção de fatores, a inventividade na disposição dos letterings, a edição, o prólogo, o design, o impacto da cena, o significado simbólico para com a história que será contada: tudo conta para impressionar e construir uma introdução digna de memória. As maneiras de fazer, assim como de se contar uma história em imagens, são infinitas, e não há um jeito melhor que outro. O critério para a escolha destes 30 exemplos sem ordem de preferência – e que pode tranquilamente ser ampliada por novos filmes ou por títulos aos quais não me ocorreram – é apenas o da sentir-se conquistado já na largada por uma obra cinematográfica. Aqueles filmes que, contrariando a lógica, recomendo que não sejam necessariamente vistos até o final. Os primeiros minutos já bastam.
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“Era uma Vez no Oeste”,Sergio Leone(1968)
São pouco mais de 7 min de puro deleite daquela que é
provavelmente a melhor abertura de um filme de todos os tempos. O filme de
Leone, aliás, por si merece essa alcunha, mas se se destacar apenas o seu começo
já está mais do que bem representado. O design, o cenário, os enquadramentos, a
disposição criativa dos letterings, o tempo da montagem, a arte e o figurino, a
fotografia. Tudo em perfeita sintonia e, mais que isso, conceitual, visto que
apresenta, sem precisar valer-se da poderosa música de Ennio Morricone e quase
sem nenhuma palavra dita, tal westerns do cinema mudo, as ideias centrais do filme:
o embate ideológico entre passado e futuro, entre vida e morte, entre instinto e consciência..
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“Cassino”,Martin Scorsese(1996)
Lembro também de, no cinema, sentir a reação da sala ao
surpreender-se com a explosão do carro do personagem Sam Rothstein, vivido por
Robert DeNiro, em “Cassino”, nos idos de 1996. Uma reação espontânea do
público, que, assim como eu, era abduzido para dentro da história em poucos
minutos de fita transcorridos. Scorsese, justificadamente fã de Saul Bass,
conseguira em vida trabalhar com o mestre do design de créditos
cinematográficos ainda em dois filmes: “Cabo do Medo”, de 1991, e neste, do ano
em que ele morreu.
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“Fahrenheit 451”,François Truffaut (1966)
A nouvelle vague foi o movimento que melhor soube subverter os padrões da linguagem cinematográfica. Esta ficção científica de forte crítica filosófica baseada na novela e Ray Bradbury, além de ser um dos melhores filmes de Truffaut e do cinema, inova desde o seu primeiro minuto. E de forma simples. Aliás: simples em formato, haja vista que se engendra apenas por uma sequência de imagens estáticas e monocromáticas em zoom in e uma locução que descreve aquilo que geralmente apareceria escrito. Porém, a simplicidade da sequência de "Fahrenheit 451" é de uma criatividade tamanha, visto que traduz conceitualmente o principal elemento da história, que é a proibição de qualquer material escrito num futuro distópico. Genial e simples.
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“Cidade de Deus”,Fernando Meirelles e Katia Lund(2002)
A experiência com "Cidade de Deus" também foi inesquecível. Fui assisti-lo pouco depois de seu lançamento já tomado pela fama em torno do filme. Na sala de cinema, pude comprovar estar diante da obra que demarca o antes e depois do cinema brasileiro, o filme que deu fim à dolorosa era da Retomada. E sua sequência introdutória (“Pega a galinha, pega a galinha!”), com a faca cintilante simbolizando o perigo, os fragmentos de imagens intercaladas por legendas, a foto em cores pulsantes, o som da lâmina sendo afiada misturado ao do samba para devorar a ave fujona. Uma cena de tensão que se cria em poucos minutos e que já diz a que o filme viera: para revolucionar o cinema nacional e mundial.
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“Um Corpo que Cai”,Alfred Hitchcock (1956)
Saul Bass foi, inegavelmente, o gênio do design de créditos em cinema. E quando a genialidade dele se encontrava com a de outros, como, no caso, Alfred Hitchcock, com quem colaborou mais de uma vez, aí era gol certo. Altamente conceitual, como os videoclipes musicais que passariam a existir apenas décadas depois, a entrada de "Vertigo", com o casamento perfeito com a trilha de Bernard Hermann e os efeitos especiais bastante ousados e criativos para sua época, ainda surpreendem. Se hoje fosse feito por computadores já seria louvável, imagina em 1956.
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“Psicose”,Alfred Hitchcock(1960)
Outro da colaboração Bass/Hitchcock, "Psicose" vale-se dos tradicionais grafismos que eram comuns ao trabalho de Bass, dono de um traço magnifico. A assustadora trilha de Hermann, sinônimo de thriller de suspense, é traduzida por linhas retas paralelas em p&b que se deslocam horizontal e verticalmente em conjunção com as letras, geram uma sensação de instabilidade e não-linearidade, ideia a qual, por sua vez, simboliza a perturbadora história do assassino psicótico Norman Bates. Junto com "Vertigo", aquele que é considerado o grande filme de Hitch. Não à toa.
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“O Segundo Rosto”,John Frankenheimer (1966)
Mais uma de Bass, esta perturbadora abertura de "O Segundo Rosto" é um verdadeiro exercício artístico. Valendo-se de potente trilha de Jerry Goldsmith e da trama de suspense psicológico do filme de Frankenheimer, Bass explora distorções como as do expressionismo alemão e carrega nas sombras e imagens projetadas em espelhos para, já de início, entrar na mente do espectador, que, a se confirmar pelo excelente longa, será conduzido a um mundo de medos e aflições internas. Poucas vezes uma introdução casou tão bem com a ideia central de uma obra.
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“O Jogador”,Robert Altman(1992)
Esta cena já esteve destacada aqui no Clyblog por outro
motivo: o plano-sequência. Pois Altman consegue com este engenhoso desenho de
cena não apenas criar uma das melhoras sequências sem corte da história do
cinema (afinal, o próprio filme trata sobre os bastidores da sua indústria) como, por conta
exatamente disso, causar um incrível impacto já no início do filme, visto que o
plano-sequência é justamente o que o abre. Altman, dos melhores do cinema autoral dos Estados Unidos, sabia como ninguém abrir suas obras, haja vista "Nashville", "M*A*S*H*" ou "Três Irmãs", mas nada bate a de "O Jogador".
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“Magnólia”,Paul Thomas Anderson(1999)
Outro dos que fui assistir no cinema é fui totalmente
arrebatado. Também pudera: que forma criativa de se começar um filme! P.T.Anderson põe pra baixo o queixo do espectador num prólogo ao mesmo tempo
divertido e instigante, que relaciona fortuitos momentos da história, para, ao final, triunfantemente, soltar a imagem da flor "Magnólia" abrindo-se em velocidade acelerada sobre a projeção de diversos vídeos. Além disso, tem a
apaixonante música de Aimee Mann, a quem nem conhecia e passei a adorar por
causa da trilha do filme. Inteligentemente, a aparente dissociação dos
acontecimentos do prólogo antecipa a trama coral proposta pelo roteiro e a nada
casual relação entre aquelas histórias paralelas. “Isto não foi uma
coincidência”.
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“O Homem do Braço de Ouro”,Otto Preminger(1955)
Bass de novo, aqui na sua forma mais naturalmente criativa e
genial: grafismos e desenhos com seu traço característico sobre um fundo preto
e legendas sendo dispostas em conjunto com a música de Elmer Bernstein. A
primeira parceria do designer com Otto Preminger, com quem trabalharia em vários
outros projetos, também explora os meandros obscuros da mente humana, no caso,
de um baterista de jazz viciado em heroína vivido incrivelmente pelo jovem (mas
já ídolo) Frank Sinatra. Só o desenho do braço distorcido já é uma das mais
felizes contribuições de Bass para a história do cinema e do design.
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“A Marca da Maldade”,Orson Welles (1958)
Outro que, assim como "O Jogador", também tem um dos grandes
plano-sequências da história cinematográfica para começar o filme. Porém,
havemos de dar ainda mais mérito para o sempre inquieto e criativo Orson Welles
em ousar abrir um filme deste jeito nos anos 50, quando o cinema e os
espectadores tinham como padrão o formato convencional de créditos iniciais. Nunca se
havia visto uma cena de abertura tão complexa, com vários atores e figurantes em cena,
câmara em travelling, mudança de enquadramento de primeiríssimo plano para
planos médios e grande, num espaço físico extenso e com direito até à explosão.
E tudo isso SEM corte. Caramba! Como se não bastasse, o longa confirma todas as
expectativas de seus de minutos iniciais naquele que é, talvez, o grande de
Welles.
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“Uma Mulher É uma Mulher”,Jean-Luc Godard(1961)
Godard, assim como Truffaut e seus companheiros de nouvelle
vague, nunca deixaram de inovar a maneira de começar a contar suas histórias. O
suíço, aliás, comumente radical, já fez muito filme que, a rigor, não começa
nunca – e nem “termina”, consequentemente, como “Je Vous Salue, Marie” ou “FilmSocialisme”. Mas uma das marcas que Godard nunca abandonou é o trato formal da
tipografia dos letterings, os quais se utiliza geralmente com fontes
não serifadas tipo Futura ou Arial (e nas cores da bandeira da França) sobre
fundo escuro, encurtando os limites entre poesia concreta, cinema, vídeoarte e
literatura. Caso de “Uma Mulher é Uma Mulher”, que ele faz a proeza de apresentar genialmente
em menos de 2 min.
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“Fellini 8 1/2”,Federico Fellini(1963)
Fellini não cria suspense nenhum em relação ao nome do filme, o
qual aparece já no segundo frame sobre fundo escuro na forma da conhecida logo.
Mas a partir dali o que se vê até os 3 min que se transcorrem é a mais absoluta
genialidade felliniana. A história do cineasta pressionado pela crise de
criatividade é expressa numa espécie de prólogo onírico minuciosamente bem
construído. O claustrofóbico engarrafamento, cuja mudez é ensurdecedora, e os
olhares condenatórios à sua volta, sufocam aquele homem sem rosto dentro de seu
carro a ponto de fazê-lo... sair voando! A lindeza do sonho se encerra numa
praia, sobrevoando o mar e sendo puxado por uma corda da areia por ele próprio,
que tem a companhia de um homem de capa sobre um cavalo negro. E o melhor: o oitavo filme (mais um média) de Fellini mantém esse nível até o fim.
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“2001: Uma Odisseia no Espaço”,Stanley Kubrick(1969)
A ficção científica
que estabeleceu o padrão do gênero para sempre é uma aula de narrativa para
realizadores até hoje, o que inclui sua marcante abertura. Copiado e
referenciado centenas de vezes, o início de "2001", de apenas 1 min30’, é,
contudo, dos mais originais da história da 7ª Arte. Traduzindo em imagens
siderais grandiosas a impactante abertura da sinfonia "Also Sprach Zarathustra",
de Richard Strauss, Kubrick mostra o raro alinhamento do planeta com Sol com a
Lua valendo-se, para isso, de poucos mas precisos elementos: tela escura que
vai aos poucos revelando a imagem e apenas três letreiros em tipografia Futura: “Metro-Goldwyn-Mayer Presents”, “A Stanley Kubrick Production” e o nome do
filme em tamanho maior (com o detalhe do Copyright abaixo bem pequeno). Separadamente
do filme, só esse trecho já pode ser considerado uma obra-prima.
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“O Poderoso Chefão”,Francis Ford Coppola(1972)
Este é um caso de uma forma própria de apresentar a
história. O nome, através da bela logo com a mão divina comandando a marionete com
o letreiro “Mario Puzo’s The Godfather” e os acordes da clássica música tema de Nino Rota, já
está garantido no segundo frame. Porém, os 6 minutos seguintes apenas de
diálogos traduzem diversos níveis narrativos e simbólicos que serão trazidos
nas quase 3 horas de fita subsequentes. As relações de poder, a inteligência
manipuladora do Padrinho, os valores familiares, os papeis sociais, os meandros
dos poderosos... muita coisa é dita ou subentendida até o momento em que Vito
Corleone (Marlon Brando, espetacular) cheira a rosa de sua lapela e dá-se continuidade
à “festa”.
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“A Terceira Geração”,Reiner Werner Fassbinder(1979)
Um dos maiores estetas do cinema, o alemão Fassbinder deve muito de suas criativas aberturas de filmes a um contemporâneo e conterrâneo seu ligado à arte moderna a quem muito se inspirava para isso: Joseph Beuys. Não raro, as introduções de seus filmes referenciam o estilo de Beuys, com tipografias monocromáticas dispostas sobre imagens em movimento ou estáticas, criando peças dignas de galerias expositivas. O começo de “A Terceira Geração” é um deles, com os créditos pulsando no ritmo de uma batida cardíaca enquanto vão sendo apresentados sobre um zoom out que vai descortinando um apartamento com telas, móveis e pessoas.
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“Assassinos por Natureza”,Oliver Stone(1994)
Cineasta pautado pelo experimentalismo, Oliver Stone desde
seu primeiro longa, “Platoon”, de 1986, sempre soube começar bem um filme.
Porém, 8 anos depois, ao invés de tornar-se mais conservador, Stone mostra-se
saudável e surpreendentemente ainda mais ousado com o altamente pop e
sarcástico “Assassinos por Natureza”. O começo do filme é visivelmente influenciado pela
linguagem dos videoclipes da MTV, emissora à época em alta, seja pelos enquadramentos
distorcidos, pelo movimento de câmera frenético, pela alteração brusca de ISO
ou pela montagem de ritmo musical. Tão musical, que, na cena, o violento casal
espanca e mata pessoas em um restaurante com absoluto prazer ao som do
punk-rock da L7.
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“Persona”,Ingmar Bergman (1960)
Um dos maiores cineastas de todos os tempos, Bergman tinha
total domínio da narrativa. Porém, a introdução de seus filmes invariavelmente
traziam a fonte Times sem serifa sobre fundo escuro. Mas Bergman sabia
quando contrariar o próprio estilo, e o profundo “Persona” incitou-lhe a isso.
Num conceito de vídeoarte – já existente nas galerias contemporâneas
mas pouco exploradas no cinema de arte –, o cineasta funde imagens em alta
profusão, usa fotos reais e ousa em enquadramentos e fotografia p&b. Tudo
de forma a criar uma atmosfera de sonho e fluidez do tempo/espaço o qual
Bergman tão bem constrói naquele que é considerado“o filme mais difícil de
todos os tempos”.
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“Cidadão Kane”,Orson Welles(1940)
Em seu primeiro longa, o então jovem Welles, com apenas 25
anos, inovava consideravelmente o modo de abrir uma história filmada. Aliás,
não somente essa parte, mas em diversos aspectos da linguagem cinematográfica
daquele que é ainda hoje para muitos o melhor filme de todos os tempos. Quanto
à introdução, mesmo com o título revelado imediatamente ao começo (seria muita
transgressão não informar pelo menos isso ao público da época), nunca havia se
visto um prólogo in média rés (com o qual se começa uma narrativa no auge da
ação antes de começar de novo para explicar como se chegou lá), tão comum hoje.
Enigmática (o que será aquele "Rosebud" dito antes do cara morrer?!), a primeira imagem que aparece traz uma placa com a mensagem “No
Trapessing” (“Não Ultrapasse”). Era Welles, o mesmo que anos antes havia
apavorado multidões com a transmissão em rádio d'"A Guerra dos Mundos", manipulando
o subconsciente do espectador.
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“Manhattan”,Woody Allen(1979)
Assim como Bergman, Allen tem um estilo geralmente muito próprio de iniciar seus filmes, quase que invariavelmente com legendas em fonte tipo Windsor Light Condensed e uma música inteligentemente bem selecionada para sonorizar. Porém, como o mestre sueco em "Persona", Allen também sabe transgredir a si próprio. Em "Manhattan", ao invés do fundo preto com letterings, ele monta uma pequena sinfonia urbana com uma sequência de imagens documentais e poéticas de sua Nova York num cristalino p&b. A sutileza da forma como anuncia o título (e nada mais que isso), num letreiro luminoso de uma rua qualquer do bairro, prevê a abordagem que será dada aos personagens do filme: todos meras continuações do próprio corpo da cidade. Poesia.
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“Laranja Mecânica”, Stanley Kubrick (1971)
Com total domínio do fluxo narrativo, Kubrick é um craque
das aberturas. "O Grande Golpe", "O Iluminado" e o já citado "2001: Uma Odisseia no
Espaço" são exemplos, mas outro diferenciado neste sentido é "Laranja Mecânica".
Uma música feita em sintetizador começa sobre uma tela vermelha até quase 30
segundos, quando finalmente surgem os primeiros letterings numa tipografia Arial
negritada. Percebe-se, então, que a tal música é uma versão eletrônica da peça “Music
for the Funeral of Queen Mary”, de Henry Purcell, do século XVII. O fundo
vermelho se transforma em azul e, de novo, em vermelho para anunciar o nome do
filme. Até que, num corte brusco, muda para o close da figura andrógena de Alex
(Malcom McDowell), personagem principal da história de Anthony Burgess. Dessa
imagem, Kubrick não corta novamente e, sim, a faz prosseguir num travelling frontal-out
sob o off do brilhante texto que reproduz o fluxo de pensamento de Alex, o qual
situa o espectador do universo de distopia que se verá a partir dali.
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“Arizona Nunca Mais”, Joel e Ethan Coen (1987)
A abertura do segundo e cativante filme dos irmãos Coen,
quando eles ainda eram uma revelação, no final dos anos 80, é tão criativa, engraçada,
pop e publicitária (no bom sentido), que serve como trailer. A história do assaltante
pé-rapado H.I. McDonnough (Nicholas Cage) contada em off por ele mesmo enquanto
as imagens vão sendo exibidas com a trilha magistral de Carter Burwell – suas idas
e vindas pra cadeia, os personagens bizarros que conhece no caminho – denotam, pelo
brilhante texto, principalmente, seu coração bom. O mesmo que o faz conhecer o
amor de sua vida, a policial Ed (Holly Hunter). Depois, eles resolvem
sequestrar um dos sete bebês da ricaça família Arizona, mas aí é que a história
mesmo começa...
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“Alien: O 8º Passageiro”, Ridley Scott (1979)
Lembrando a abertura de "2001", filme ao qual Scott bastante
homenageia neste revolucionário terror espacial, tem, assim como na obra de
Kubrick, um desenho de cena simples mas muito eficiente. Uma câmera se desloca
no espaço da esquerda para a direita em uma panorâmica enquanto veem-se
manchas brancas surgirem, as quais vão formando numa uniformidade não-sequencial o nome
“Alien” em uma fonte pesada e sem serifa. Não há nos créditos, mas diz que
também é obra de Saul Bass.
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“Monty Python em Busca do Cálice Sagrado”, Terry Gilliam e Terry Jones (1975)
Como avacalhar os créditos iniciais de um filme? O grupo Monty Python tem a resposta. Em “Monty Python em Busca do Cálice Sagrado”, usando praticamente só tipografia e tela preta, eles conseguem subverter tudo que se imagina de uma opening scene. Sob uma trilha austera, os subtítulos são exibidos, até que, bem abaixo, algumas palavras com caracteres escandinavos começam a aparecer. Frases totalmente desconexas como “Não vai ter feriado na Suécia este ano?” ou uma história esquisita de um alce que mordeu a irmã de alguém. Eis, então, que surge um crédito para explicar o erro nos créditos: “Nos desculpamos pela falta de subtítulos. Os responsáveis foram despedidos”. Muda a música, mas as intromissões continuam, e um novo aviso, agora de que os responsáveis por demitir os demitidos também foram demitidos. Já com uma absurda trilha mexicana, a confusão segue até o fim e, com muito “esforço”, conseguem dar o nome dos diretores: Terry Gilliam e Terry Jones, principais responsáveis por essa bagunça toda.
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“007: O Espião que me Amava”, Lewis Gilbert (1977)
Poderia citar vários tanto anteriores ou posteriores a este filme, mas esta de "O Espião que me Amava" se tornou uma referência dentro da própria franquia. A começar que a abertura com créditos nunca está dissociada do prólogo, que sempre começa com a famosa “gun barrel sequence”, em que um vilão qualquer está olhando por uma mira e vê 007 entrar em cena e atirar contra ele. Depois, os minutos de ação, neste caso, mostrando o agente em duas de suas situações comuns: namorando e se aventurando. Já a abertura em si, assinada pelo mestre Maurice Binder, designer gráfico que estabeleceu o estilo das clássicas aberturas dos filmes de James Bond, consolidaria os elementos que caracterizariam para sempre as chamadas iniciais da série: arte figurativa com efeitos de elementos da história, uso da figura/silhueta de figuras e pessoas - como a do próprio ator que faz JB (Roger Moore à época) -, a fonte Arial fina e branca, o disparo de pistola e, claro, uma trilha especial feita para aquele filme, no caso "Nobody Does it Are Bether", com a Carly Simon – das melhores.
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“Crepúsculo dos Deuses”,Billy Wilder (1945)
O sucesso de consagradas comédias como “Se Meu Apartamento Falasse” e “Quanto Mais Quente Melhor” fez com que Wilder ficasse pouco lembrado por outros gêneros como o suspense e o drama aos quais, contudo, ajudou a solidificar um novo padrão de qualidade na Hollywood dos anos 40 e 50. Este clássico do cinema é uma prova de sua versatilidade, o que deve bastante de seu impacto pela forma como inicia. O modo aparentemente fortuito como o título aparece, numa placa indicando o mítico endereço “Sunset Boulevard”, é precedido por uma câmera em travelling filmando o asfalto cinza na direção de algum lugar específico. É onde está o corpo desfalecido do narrador. Sim! Como em "Memórias Póstumas de Brás Cubas", em "Crepúsculo dos Deuses" é o morto, afogado numa piscina, quem está narrando pleno de consciência de seu estado moribundo. Impossível não ter curiosidade de assistir até o fim.
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“Apocalypse Now”, Francis Ford Coppola (1979)
Não há nenhuma palavra escrita dizendo que filme é. Mas nem precisa. O grande plano de uma floresta é aos poucos invadido por helicópteros que cruzam a tela e uma fumaça começa a levantar. Percebe-se, porém, que a fumaça não é de areia, mas, sim, o venenoso napalm. Até que várias bombas caem sobre a mata, provocando gigantescas explosões. A música que toca não podia ser outra: “The End”, da The Doors. É um presságio. É a guerra. É o Vietnã. É “o horror”. Diversas imagens apocalípticas se fundem ao rosto de um homem em close, o personagem principal do filme, o perturbado Capitão Benjamin Willard (Martin Sheen). A sensação de quebra no tempo perfaz todo o longo filme, que perscruta os mais terríveis meandros psicológicos da guerra.
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“Cléo das 5 às 7”, Agnés Varda (1962)
Outra grande esteta do cinema moderno, Varda pautou toda sua filmografia pela inventividade narrativa e estética, a qual passava por um filtro muito pessoal. Em "Cléo das 5 às 7", seu primeiro longa, fica clara esta criatividade seja na forma como no conteúdo. A mesa de uma cartomante é filmada em plongê mostrando somente o baralho e as mãos dela e da cliente. Os subtítulos em branco são gerados conforme a disposição das cartas sob um silêncio que provoca tensão. Que mensagem as cartas vão dizer? E dizem: a jovem Cléo tem apenas 2 horas de vida, o tempo que o filme transcorrerá: das 5 da tarde às 7 da noite. Varda dá um show em montagem e no jogo simbólico entre cor, que aparece somente quando as cartas são lidas (supostamente, enquanto ainda há vida), e p&b, que domina o filme, marcado pela agourenta previsão que atormentará a personagem.
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“A Pantera Cor-de-Rosa”, Blake Edwards (1963)
Um modo interessante de se abrir filmes – e que fecha muito bem para comédias – é a animação. No entanto, como as da série Pink Panther, não tem igual, principalmente a do primeiro da franquia. A atrapalhada mas elegante pantera de cor exótica criada pelo próprio Blake Edwards virou desenho animado para a TV depois do filme tamanho o sucesso que fez exatamente na abertura do filme, assinada pelos designers e animadores David H. DePatie e Fritz Freleng. Aliás, este é o único momento em que ela, fugindo do ainda mais atrapalhado inspetor Jacques Clouseau, aparece, visto que o nome Pantera Cor-de-Rosa é o de uma pedra preciosa na trama. Além da simpatia da Pantera, ainda tem a infalível trilha do genial Henri Mancini, uma música altamente charmosa e de fácil assimilação, tanto que virou o tema de jazz mais conhecido de todos os tempos.
O cinema é capaz de mexer
com as nossas emoções como pouca coisa consegue, mesmo a gente sabendo que, na
grande maioria das vezes, aquilo que estamos vendo seja apenas uma encenação.
Somos, com total aceitação, levados a acreditar na “mentira” e com ela se comover.
Jean-Claude Carrière, fascinado por essa magia que talvez apenas o cinema tenha
no universo das artes, comenta em seu “A Linguagem Secreta do Cinema” que os
instrumentos de persuasão do cinema podem parecer simples: emoção, sensação de
medo, repulsa, irritação, raiva, angústia. Mas, pontua ele, “na realidade, o processo é muito mais
complexo”, provavelmente até indefinível.
“Envolve os mais secretos mecanismos do nosso cérebro, incluindo, talvez a preguiça,
a natural indolência, a disposição para renunciar às suas virtudes por qualquer
adulação.”
Isso explica em parte porque
sentimos tanto medo de alguns personagens. E não estou falando apenas dos
assassinos dos filmes de terror: há pessoas (afinal, acreditamos que elas,
mesmo lá dentro da tela, existam de verdade) que, mesmo num drama ou outro
gênero menos horripilante nos provocam igual sensação de temor. Quando essa
magia intrínseca do cinema observada por Carrière se junta ao talento de
cineastas e atores, a química é bem dizer infalível. Aí, soma-se a isso ainda nossa
aceitação quase pueril ao que vemos e dá pra imaginar o que acontece: frio na espinha.
Ainda por cima, o universo
dos vilões aterrorizantes é inegavelmente fascinante. Quem, mesmo tremendo as
pernas a cada gesto que o dito cujo venha a dar, não aprecia (ou pelo menos
reconhece que é sui genneris) a
figura de um Freddy Krueger ou Michael Myers? Mas, como disse, não tratamos
aqui somente dos carniceiros, afinal, destes é até previsível que imputem medo.
Elencamos aqueles personagens e seus respectivos atores cujos papeis são tão
críveis que não faríamos nenhuma questão de cruzar com eles algum dia na vida –
e não precisa nem ser uma pessoa, inclusive.
O penetrante olhar do canibal Lecter.
1 – Hannibal Lecter (Anthony Hopkins)
O absolutamente frio
psiquiatra, que atravessou a fronteira da sanidade para passar a matar por
prazer – às vezes, até se alimentando de suas vítimas, dando-lhe o simpático
apelido de Hannibal “Canibal” –, é provavelmente o mais célebre psicopata da história
do cinema. Hopkins, com talento e muita sensibilidade, dá vida ao personagem do
escritor Thomas Harris, o qual aparece pela primeira vez na tela no clássico “O Silêncio dos Inocentes” (Demme,
1991). Continuou assustador em outros longas, “Hannibal” (2001), “Dragão
Vermelho” (2002) e “Hannibal - A Origem do Mal” (2007), mas vê-lo no primeiro e
disparado melhor da série é até hoje imbatível em termos de qualidade cênica –
e de medo também.
2 – Norman Bates (Anthony Perkins)
É inegável que as patologias
psíquicas dão muito substrato para a criação deste tipo de personagem, seja na
literatura ou no cinema. E claro que os diversos transtornos mentais existentes
são um prato cheio para roteiristas. Norman Bates, psicótico atormentando pelo
Complexo de Édipo encarnado como jamais o próprio Perkins conseguiu igualar, é
até hoje um enigma que desafia os psiquiatras. Mas numa coisa todo mundo
concorda: o cara dá medo pacas! Com a mão habilidosa de Alfred Hitchcock, "Psicose", de 1960,tem talvez o melhor personagem de um thriller no melhor filme do mestre do suspense.
Monólogo final de Norman Bates - "Psicose"
Pacino, mais assustador que
muito serial-killer.
3 – Michael Corleone (Al Pacino)
Os filmes de máfia são
recheados de personagens marcantes e não raro assustadores, pois altamente
violentos. Porém, talvez pelo tratamento literário de drama dado por Mario Puzo,
pela escolha acertada de Coppola do jovem Pacino para o papel e, obviamente, pelo
talento do ator, nenhum se compare ao filho mais novo de Don Corleone. Empurrado
pelo destino para o crime organizado, o ex-oficial do Exército tornou-se, mais
do que qualquer outro de seus irmãos, o chefão mais impiedoso e frio da cosa nostra. Se no primeiro longa vê-se
sua conversão à máfia até a natural sucessão ao pai, em "O Poderoso Chefão - parte 2", de 1974, ele está mais apavorante do
que muito serial killer. Com um
olhar, ele faz qualquer um congelar. Poderoso, dá-se direito a qualquer coisa,
e nunca se sabe o que está maquinando naquela mente obsessiva. Coisa boa, não
é. Seja nos acessos de raiva, seja no mais contido e calculista silêncio,
Michael é apavorante.
Close com um sorriso nada covidativo.
4 - Alex Forrest (Glenn Close)
Não são apenas homens que
fazem o espectador arrepiar. A maníaca de Alex Forrest, de “Atração Fatal” (Lyne, 1988), vivida por Glenn Close, é o melhor
exemplo. Inconformada com um “pé na bunda” que levara de um homem casado, Dan
Gallagher (Michael Douglas), com quem tivera um caso, ela passa a persegui-lo e
a assombrar não apenas a ele, mas toda a sua família. Memoráveis cenas, como a
do coelhinho de estimação da filha de Dan cozinhando na panela ou quando,
depois de uma briga em que ele quase a estrangula, ela solta um sorriso
horripilante, não deixam dúvida da força dessa personagem. Aliás, através da
psicopatia, um símbolo à época do novo comportamento feminino, que não aceita
mais a imposição machista nas relações. Não tem mais perdão: traiu, é
penalizado.
5 - Alien (Bolaji Badejo)
Na magia do cinema, o medo
pode vir da maneira que se bem entender. Pois não é a forma humana do ator
nigeriano Bolaji Badejo que configura o seu personagem mais marcante. É a
fantasia que ele veste, a do extraterrestre mais apavorante do cinema: Alien. Vários da mesma espécie dão as
caras no bom “Aliens - O Resgate” (Cameron, 1986) e nas desnecessárias
sequências. Mas nada se compara à excelente ficção-terror de 1979, de Ridley
Scott, em que apenas um exemplar da espécie vai parar dentro da nave espacial
em uma missão cheia de problemas. Um, aliás, é mais que suficiente para botar
terror em todo mundo. O mais interessante é que o bicho não é muito visto, pois
há o recurso fotográfico e cênico de dificultação do olhar, como pede um bom thiller. O vemos de fato, por inteiro e
em luz suficiente, apenas mais para o fim da fita, quando o clímax já está lá
em cima. Aí, só resta se segurar na poltrona.
Cena do gato de Ripley - "Alien, o oitavo passageiro"
O Cady da primeira e o da segunda vaersão.
6 - Max Cady (Robert De Niro)
Um dos maiores atores da
história, De Niro de tempo em tempo encarna figuras assustadoras, desde o
taxista louco de “Taxi Driver’ até o comerciante de escravos Rodrigo Mendoza de
“A Missão”. Mas nada se compara a Cady, em que revive o já ótimo personagem de Robert
Mitchum na versão que inspirou Martin Scorsese a rodar "Cabo do Medo", de 1991 (“Círculo
do Medo”, 1962). União de QI elevado e músculos, o algoz da família
Bowden é capaz de, aliado à abordagem do roteiro, confundir os papeis de vilão
e herói. Quem é mais filha da puta ali: o ex-presidiário que se vale da
liberdade para perseguir os outros, o advogado que o prendeu deliberadamente, a
esposa conivente ou as leis da sociedade, interpretáveis e permissivas?
7 - HAL-9000 (Douglas Rain – voz)
Quem disse que só a
violência do homem ou a selvageria do bicho podem assustar? A inteligência,
quando direcionada para o lado ruim, é devastadora. Ainda mais quando essa
inteligência for artificial, como a do computador HAL-9000, o cérebro-mãe da
nave especial de "2001: Uma Odisseia no Espaço"(1968). Kubrick e Clarke criam o personagem mais estático e, talvez
até por isso, amedrontador do cinema moderno. Mirar aquele seu “olho” de plástico
é deparar-se com a frieza inumana capaz das piores coisas. Através de
meticulosos comandos, a máquina, rebelde e neurótica, põe à sua mercê toda a
tripulação, afetando, mesmo depois de “morto”, toda a expedição. Detalhe: a voz
original de Douglas Rain já é suficientemente aterradora, mas a da dublagem
para o português, feita pelo célebre Marcio Seixas na clássica versão da
Herbert Richards, consegue superar.
Dublagem clássica de HAL-9000 - "2001: Uma Odisseia no Espaço"
8 - Zé Pequeno/Dadinho (Leandro Firmino da Hora/ Douglas Silva)
Tem que ser muito sem noção
para dizer para um mal-encarado “como é
que tu chega assim na minha boca?!” Não precisa ser cinéfilo pra conhecer a
resposta que é dada, pois é naquela cena que um dos personagens mais incríveis
do cinema dos últimos 30 anos surgia ainda mais temível. Se o pequeno Dadinho
já apavorava por se ver uma criança com sede de matar nos olhos, o jovem
traficante vivido magistralmente por Firmino em “Cidade de Deus” (2002),
então, “lavou a égua” neste quesito. Violento, entorpecido, marginal, cruel.
Como não esbugalhar os olhos quando esse cara manda matar uma criança pequena a
sangue frio? Ninguém se meta com Dadinho! Ops! Agora é Zé Pequeno, foi mal aí.
O brilhante personagem de Barden.
9 - Anton Chigurh (Javier Barden)
Os irmãos Cohen são mestres
do anticlímax, uma vez que seus filmes se valem largamente desse expediente,
usado por eles com muita habilidade de forma a gerar impactos surpreendentes no
espectador pelo jogo oportuno de quebra ou confirmação da expectativa. O
personagem Anton Chigurh, encarnado por Javier Barden no faroeste moderno"Onde Os Fracos Não Tem Vez"(2007), é
montado todo em cima dessa premissa. Absolutamente inexpressivo e
unidirecional, o psicótico Anton não sente nada, apenas mata. A naturalidade
com que ele elimina suas vítimas não tem glamour nenhum. Ele simplesmente pega
e mata, e nada é capaz de freá-lo. Fora isso, dá um pavor danado sempre que ele
aparece com aquela arma de ar comprimido.
10 - Harry Powell (Robert Mitchum)
“Lobo em pele de cordeiro” é
a melhor definição para Harry Powell. Afinal, quem desconfiaria que um pastor
aparentemente cheio de boas intenções se revelaria um tirano doméstico da pior
espécie? Se a interpretação de Mitchum fora superada pela de De Niro como Max
Cady, esta de "O Mensageiro do Diabo"(Laughton,
1955) fica para a história do cinema como uma das mais fortes e impressionantes
já vistas nas telas. Filme impecável, também mas não apenas pelas atuações. Mas
Mitchum, inegavelmente é o destaque.
"Amor-Ódio" - "O Mensageiro do Diabo"
Mais insano que qualquer outro Coringa.
11 – Coringa (Heath Ledger)
O alucinado e diabólico
vilão das histórias do Batman é um dos personagens mais originais da cultura
pop mundial. Interpretá-lo é, obviamente, um privilégio. George Romero o fez
muito bem na série e até o craque Jack Nicholson mandou muito bem no papel, mas
nada se compara ao que Heath Ledger fez em "O Cavaleiro das Trevas" (Nolan, 2008). Ele encarna Coringa, a ponto de,
dizem, amaldiçoar-se, haja vista que morreu logo depois das filmagens. Ledger
achou como poucos atores para o limiar entre a loucura e a lucidez, entre o
burlesco e o austero. Menção que não podia deixar de faltar na lista.
12 - Jack Torrance
(Jack Nicholson)
Se Stanley Kubrick já conseguira assustar com um computador,
imagina quando ele volta toda a história para isso. É o caso do perfeito "O Iluminado"(1979), outra das
obras-primas do cineasta costumeiramente reconhecido como o grande filme de
terror de todos os tempos e a melhor adaptação de Stephen King para as telas.
Mas seu impacto certamente não seria o mesmo se não tivesse a força de
Nicholson no papel de Jack Torrance. Ele vale-se de toda sua técnica e
sensibilidade cênicas a serviço da construção do personagem que vai perdendo o
controle de sua sanidade, pois, mediunicamente vulnerável, sucumbe aos
espíritos “sanguessugas” ligados àquele que Jack foi na vida passada: um serial killer que matou toda sua
família.