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terça-feira, 15 de julho de 2025

Guinga e Lívia Nestrovski - show “Ramo de Delírios” - Bona Casa de Música - São Paulo/SP (18/06/2025)

 

“Um cara como esse só aparece a cada cem anos”.
Hermeto Pascoal, sobre Guinga

"Tranquilamente, uma das maiores vozes de sua geração”.
Arrigo Barnabé, sobre Lívia Nestrovski

A arte, como a vida, é ao mesmo tempo simples e complexa. Poderia enumerar diversas obras-de-arte ao longo da história que transitam entre estes dois polos, seja na literatura, nas artes visuais, no cinema, na dança ou na música. Fato é que, quando a gente se depara com esse aparente inconciliável e o presencia sendo realizado, sendo possível, sentimos que estamos diante de uma rara sublimação. De que estamos vivendo.

Numa aconchegante Bona Casa de Música, um improvável porão encravado numa zona residencial de São Paulo, não é exagero dizer que o show “Ramo de Delírios”, de Guinga e Lívia Nestrovski, aparentemente simples (violão e duas vozes, quando não apenas uma), palco com iluminação básica, sem aparatos de efeitos, foi, sim, um momento de encontro com a verdadeira arte. Assim como não é exagero nenhum dizer também que foi um dos melhores shows que já assisti, dessas belas surpresas que a arte (a vida) nos guarda.

Montado a partir de um repertório especialmente selecionado pela própria Lívia no cancioneiro de Guinga, a dupla não executou apenas: eles entregaram (como está na moda dizer) um espetáculo ao mesmo tempo vindo do coração de cada um, mas também do altíssimo nível profissional de ambos. Guinga dispensa apresentações: um dos gênios da MPB, violonista virtuoso, compositor raro, harmonista como poucos na música mundial. E ainda um excelente intérprete/cantor de suas músicas, assim como um letrista, que não deixa a dever em nada para seus clássicos parceiros Aldir Blanc e Paulo César Pinheiro que, claro, foram invocados durante o show.

Lívia e Guinga: simplicidade e grandiosidade no elegante palco do Bona

Já Lívia é daquelas cantoras completas. Sem medo de repetir o que Guinga falou durante o show: Lívia está na prateleira das grandes cantoras do Brasil, assim como Elis Regina. A comparação, que num primeiro momento pode parecer exagerada, vai se confirmando à medida que cada música é executada pelos dois: ele, ao violão e/ou voz de apoio; ela, em interpretações arrasadoras, de tirar o fôlego de qualquer um que a escute. Afinação exímia, timbre bonito, trânsito entre estilos, alcance de alturas pouco comuns e, o principal: ela é integrada à música assim como a música é integrada a ela. São, ambas, música e cantora, a mesma coisa. Como Elis.

Provas disso? O set-list inteiro. O começo não poderia ser mais emblemático com “Delírio Carioca”, parceria Guinga/Aldir que dá nome ao primeiro e temporão disco do compositor, dentista por mais de 30 anos e que somente no início dos anos 90 fez-nos o favor de voltar-se somente para a música. “No Rio: mar/ Ouço Newton assoviar/ Um Gershwin Clara Nunes/ Que faz vibrar feito flauta/ Os túneis”, dizem os versos iniciais da canção. O delírio é todo nosso no duo Guinga/Lívia, que transmitem ao público uma sintonia musical e espiritual, que só mesmo a arte maior pode proporcionar.

“Paulistana Sabiá”, que na versão original Guinga divide vocais com Mônica Salmaso, não perde em nada com Lívia. Ela, como diz Zé Miguel Wisnik, “que dá triplos saltos carpados na voz sem perder a naturalidade entoativa”. Mas o próprio Guinga impressiona com seu vocal marcadamente rouco numa melodia complexa, dessas difíceis de cantar. Aliás, essa característica, embora seja uma constante na obra de Guinga, não é problema nenhum para Lívia, como ficou claro noutras duas incríveis, misteriosas, dramáticas, delirantes: “Tangará”, em que os dois criam um verdadeiro encanto/canto em duo, e “Suçuarana”, parceria com PC Pinheiro (“Ela se enrodilha ao pé da cama/ Até parece a taturana/ Que quando se toca, queima e dana a arder/ Morde minha pele com a gana/ Que nem abelha africana”).

Trechinho da incrível "Tangará", 
letra e música de Guinga

“Neblinas e Flâmulas”, de Guinga e Aldir e originalmente feita para Leila Pinheiro, em 1996, ganha ainda mais intensidade na voz de Lívia. Que lindos versos! “Vivemos de olhares em todos os lugares/ e a gentileza em nós nos faz heróis covardes”. Deles também, outro destaque do repertório e da performance de Lívia, que usa toda a sensualidade/sexualidade feminina para interpretar a saborosamente abusada “O Coco do Coco”, rara canção sobre o prazer (e o direito ao prazer) sexual da mulher: “Moça donzela não arrenega um bom coco/ Nem a mãe dela, nem as tia, nem a madrinha/ Num coco tô com quem faz muito e acha pouco/ Em rala-rala é que se educa a molhadinha”. Ainda dos dois parceiros de composição, mais uma preciosidade: “Nem Cais Nem Barco” (“O meu amor não é o cais/ Não é o barco/ É o arco da espuma/ Que, desfeito, eu sou”), que Leny Andrade canta para Guinga em 1991. Lívia, no entanto, não deixa nada a desejar nessa melodia de estrutura inventiva e densa, que exige da intérprete.

Mas o que é o desafio de cantar Leny ou Leila para quem não teme encarar Elis? É o que Lívia faz ao trazer “Bolero de Satã” com o acompanhamento do próprio autor, canção que a Pimentinha gravou em 1979, no disco “Elis, Essa Mulher”, em duo com Cauby Peixoto. Lívia, com segurança, pega sozinha e sem precisar do apoio vocal do parceiro de palco. Única nova canção no repertório, a tocante “Rua do Pecado” – que Guinga escreveu para a mãe já falecida, uma mulher sofrida que teve que frustrar o desejo de ser cantora por causa da família e da sociedade machista – emocionou o público, principalmente após o próprio Guinga, conversador e descomplicado, revelar os sentimentos muito pessoais que motivaram a canção.

A emocionante "Rua do Pecado", 
confissão de Guinga sobre sua mãe

No encerramento, duas parcerias de Guinga com o jovem compositor carioca Thiago Amud, em especial a estonteante “Contenda”, uma “capoeira”, como definiu Guinga, que faz os sons dançaram ao gingado místico e bravio dos escravos. “Sou a dobra de mim sobre mim mesmo/ Nesse afã de ganhar de quem me ganha/ Tento andar no meu passo e vou a esmo/ Tento pegar meu pulso e ele me apanha”. Muita, mas muita poesia em forma de melodia e canto! 

A sensação de sublimação, quando há esse misterioso encontro da simplicidade com a grandiosidade, ainda perdura nos ouvidos. Ouvir Guinga pela primeira vez, e justamente ao lado desta jovem cantora tão talentosa que é Lívia, foi um dos acontecimentos mais especiais que poderiam acontecer na nossa curta temporada paulistana. Vê-los no palco nos faz acreditar que existe arte, que existe beleza, que é possível viver, mas viver MESMO, sendo artista. Ouvir Lívia cantando faz com que, facilmente, se relativize cantoras celebradas da MPB atual como Céu, Roberta da Matta ou Marina Sena, muito mais midiáticas e MUITO menos íntegras como artistas. E Guinga... bom: Guinga, como falei de início, dispensa superlativos. Ele já o é. Como diz o título de outra música dele próprio com Aldir (aliás, mais uma especial do show), a arte, como a vida, é feita de “Simples e Absurdo”. Foi, sim, absurdo o que vimos. Simples – e complexo – assim.


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A dupla começando o show


Lívia e Guinga em total sintonia musical e espiritual

"Simples e Absurdo". Guinga e Aldir. Guinga e Lívia


Guinga ao violão. Parem tudo


Lívia solta a voz


Encerrando o show. Estado de graça


Lívia e Guinga se despedem da plateia


E nós curtindo essa noite especial em Sampa




texto: Daniel Rodrigues
vídeos e fotos: Daniel Rodrigues e Leocádia Costa

quinta-feira, 5 de junho de 2025

Filó Machado - Grezz - Porto Alegre/RS (27/05/2025)


Filó Machado foi uma descoberta tardia, que o POA Jazz Festival de 2014 me trouxe. Naquela edição, o show dele foi surpreendentemente o melhor da noite em que se esperava que o "bruxo" Hermeto Pascoal ocupasse esse espaço. A partir dali, passei a ter contato direto com o som e a impressionante musicalidade desse paulista genial cujo obscurantismo (ou segmentação) dentro da indústria cultural no Brasil só pode ser explicado pela incapacidade do brasileiro de assimilar suas próprias coisas boas. Afinal, surgido à mesma época que Djavan, que guarda MUITAS semelhanças com a musicalidade de Filó, a mesma indústria acabou por separá-los em caixinhas: um na popular, para rodar na mídia, e o outro no segmentação, destinado a ouvidos mais "exigentes".

Ocorre que Filó, 74 anos e carreira tão consolidada quanto robusta, vai muito além da sonoridade “djavanesca” e não é nada difícil apreciar sua música, Excelente guitarrista, é um cantor, compositor e arranjador daqueles que o Brasil deveria diariamente se orgulhar. E se os brasileiros não lhe dão o devido reconhecimento, os estrangeiros, estes sim, dão. Admirado por artistas do calibre de Michel Legrand, Jon Hendricks, John Patitucci e Warvey Waynape - além de brasileiros de alcance internacional, como Gal Costa, João Donato, Joyce e outros - Filó é ovacionado no Japão, Estados Unidos, França, Rússia, Holanda, Bélgica, Lituânia, Canadá, Equador, Croácia e mais dezenas de países. Tivemos a oportunidade Leocádia e eu de fazermos o mesmo novamente após 11 anos.

Desta vez, no entanto, foi mais especial ainda. Na nossa primeira vez no Bar Grezz, localizado na região do 4º Distrito de Porto Alegre e que fora fortemente afetada pelas enchentes de um ano atrás, pudemos ver de perto um show muito mais intimista de Filó. Ele cantou, contou histórias e emanou toda sua infinita musicalidade, que entremeia bossa nova, jazz, samba e soul com a naturalidade dos deuses negros da música. Acompanhado dos músicos locais Ras Vicente (piano), James Liberato (baixo) e Renato Popó (bateria), Filó iniciou cantando nada mais, nada menos que o samba perfeito “Acontece”, de Cartola. Só ele e o violão elétrica. Uma música que, na sua versão original, econômica e limpa, dura pouco mais de 1 min, com Filó ganhou a dimensão dramática que a própria melodia sugere. Um começo de arrepiar.

Simpático e conversador, Filó falou sobre “Jogral” antes de cantá-la. Gravada em 1981 por Djavan, então um assíduo frequentador da casa noturna onde Filó tocava em São Paulo, a história elucida de onde veio a ideia do suingue, das divisões rítmicas e das construções harmônicas que tanto caracterizaram a sonoridade do autor de “Oceano”. “Meu pensamento rodou/ Cortando o torrão nesse trem, andando bem/ Acho que a mais de cem/ De Maceió aqui parece ali”. Parece letra escrita por alguém nascido na capital do Alagoas como Djavan, né? Mas, não: é de Filó.

As lindas melodias prosseguiram: a emocionante “Por Onde Andávamos”, parceria com o célebre Sérgio Ricardo (“Por onde andávamos quando éramos estranhos/ Quem sabe estivéramos perto a ponto de nos tocar”), que fala sobre a sincronicidade da vida e do amor; a hispânica “Carmens e Consuelos”, esta com outro genial, Aldir Blanc, presente no disco mais recente de Filó, “Cisne Negro”, lançado em 2024, somente com parcerias inéditas dele com o saudoso letrista de outros clássicos da MPB como “O Bêbado e a Equilibrista” e “Delírio Carioca”; o suingado samba “Amar a Maria”, que faz um admirável jogo sonoro com as palavras (“Mas a Maria não estava nem aí/ A Maria é uma Maria se ela estivesse fora de si”); e uma das minhas preferidas dele, “Perfume de Cebola”, esta, com o poeta mineiro Casaco, que se ele não tocasse, eu ia pedir, juro.

A admirável musicalidade de Filó, seja no violão vívido e jazzístico, seja nas melodias cheias de pulsação e criatividade harmônica, também se expressava nos deliciosos melismas ao estilo George Benson em que não apenas fazia duos da voz com ao próprio violão, como, percussionista que também é, inventava solos de percussão com a boca. E que solos! Isso quando não chamava a nós da plateia para acompanhar em seus acordes, às vezes difíceis de arremedar. Rolou este expediente vocal no pot-pourri de “Je Viens te Dire la Verite”, parceria com o músico francês Michael Legrand e cantada por Filó, claro, num invejável francês, emendada com uma das composições dele e da musicista carioca Fátima Guedes, no caso, a belíssima “Blue Note”, gravada por ela em 1983.

Teve também participação do músico gaúcho de vasta experiência internacional Adriano Trindade, que tocou com o mestre e professor duas belas canções: “Canto da Senzala” (parceria com Gelson Oliveira) e uma ótima “milonga jazz”, a qual contou também com a participação de Dida Larruscaim e Pietra Keiber, chamados ao palco para uma jam.

O gaúcho Adriano Trindade tocando com uma milonga com o mestre Filó Machado

Filó reservou sabiamente para encerrar o show sua abismal versão de “Take Five”, clássico jazz modal de Dave Bruback, que ele transforma num samba-jazz visceral e muito, mas muito brasileiro! Shows de improviso, melismas e desempenho da banda. No bis, amável, Filó acatou pedidos da plateia. E que bom, pois uma das solicitadas foi a belíssima “Venha até a Minha Casa”, dele e de Judith de Souza, das joias do seu brilhante álbum “Canto Fatal”, de 1984. Surpreendendo gregos e troianos (aliás, gaúchos), ele ainda manda ver numa versão do samba do nome negro da MPG, Gelson Oliveira – que, infelizmente, me escapa o título da canção.

Um desbunde. É a melhor definição que se pode dar. Há centenas de talentos no Brasil, mas certamente poucos guardam tantas qualidades reunidas como Filó Machado. E com todo respeito e admiração a Djavan, há de se convir, depois de ouvir e ver Filó assim, tão de perto, que a sina de cada um merece, digamos, os seus devidos lugares. Como querer filonear o que há de bom – e de muito bom.

***************

Começa o show!

Somente Filó e seu violão tocando Cartola. Nem precisava mais

Surpresas, participações e muito jazz

Visão geral da banda no palco do Grezz

Improvisação no violão


Filó Machado esbanjando musicalidade 
com seus melismas


Filó com a afiada banda de músicos gaúchos

O gigante Filó. Canto ancestral

Rolou jam com Adriano Trindade e convidadas 

Mais um pouco da participação de Adriano Trindade
aqui tocando a bela "Canto da Senzala"


Talento puro

Filó e banda se despedem do palco do Grezz



texto: Daniel Rodrigues
fotos e vídeos: Daniel Rodrigues, Leocádia Costa e Canal Youtube Adriano Trindade 

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Ivan Lins - "Modo Livre" (1974)

 

"Mas elas [as músicas] começaram a ficar mais políticas a partir de 1973, por aí, quando a gente sentiu mesmo a barra pesar com o Médici, e aí elas realmente assumiram o aspecto político. Até por uma questão pessoal mesmo, eu tive problemas, tive que fazer terapia, me revoltei contra a família, contra o governo, contra TV Globo e editoras, gravadoras." 
Ivan Lins

Há motivos para que a grandeza de Ivan Lins não seja ainda totalmente reconhecida ainda hoje. Isso remonta aos tempos da Ditadura Militar no Brasil, período não só crucial para o artista como aquele em que este melhor desenvolveu a sua música. O pivô desse dissabor? A esquerda. Assim como calhou recair sobre as cabeças de gente como Elis Regina e Wilson Simonal julgamentos pesados de que estariam favorecendo os milicos em razão de episódios até hoje mal explicados, com Ivan Lins a patrulha política também não perdoou. Nem a convivência constante com "malditos" como Gonzaguinha e Aldir Blanc, jovens universitários dos tempos da faculdade de Engenharia Química na Federal do Rio de Janeiro, aliviaram-lhe a pecha de alienado ou entreguista quando sua ufanista "Meu Amor É Meu País" conquistara o segundo lugar no Festival Internacional da Canção, em 1970 - música que integraria seu disco de estreia, "Agora", de um ano depois. 

Para piorar: a mesma música foi adotada pela Varig, àquela época um orgulho nacional do mesmo patamar que Petrobras, como tema oficial dos voos internacionais da companhia. Mas tudo que é ruim pode piorar. A coisa azedava de vez quando se olhava para a genealogia de Ivan, que era filho de Geraldo Lins. Almirante Geraldo Lins. Se havia ranço, isso fazia com que os pelos dos detratores se ouriçassem.

Acontece que, assim como vaiaram a velada canção de exílio "Sabiá" no FIC de 1968 por esperarem de Chico Buarque, um de seus autores junto com Tom Jobim, uma canção tirada direto do Livro Vermelho de Mao, "Meu Amor É Meu País" também passou longe de ser compreendida. Nacionalista? Sim, mas com certa melancolia, como que captando a maravilha de pertencer àquela nação recentemente tricampeã mundial, mas de uma sociedade profundamente dividida e infeliz. Metáforas como: "Não importa qual seja a dor/ Nem as pedras que eu vou pisar" soaram deveras fracas para demonstrar que aquilo não se tratava de propaganda para o governo linha-dura de Médici e, sim, um ensaio para os inúmeros versos contundentes contra a Ditadura que Ivan musicaria pouco tempo dali. 

O “cancelamento” por parte da esquerda, compreensível dado o contexto sufocante da Ditadura, funcionou. Mesmo com o sucesso de sua de "Madalena" na voz de Elis, parceria com Ronaldo Monteiro de Souza, em 1971, Ivan precisou, naquele momento, recolher-se para se reinventar. "Quem Sou Eu?" perguntava a si mesmo no disco de 1972. O questionamento veio com ação: rompeu o contrato com a gravadora Phillips e assinou com a RCA Victor, brigou com a Globo, onde apresentou por um tempo com Elis o programa Som Livre Exportação, e se desentendeu até em casa. Chutou o (necessário) balde. A auto-resposta veio dois anos depois e, parafraseando outro título de álbum seu, acionando o "Modo Livre". Como uma autoproclamação. Liberto tanto da esquerda quanto da direita, Ivan encontra na rebuscada musicalidade, no elaborado arranjo de Arthur Verocai e nas letras políticas o caminho que era seu. 

Ivan achou, depois do autoexílio existencial, o discurso e a forma de dizê-lo em letra e música, formando aquele que é certamente o mais corajoso e desafiador cancioneiro de toda a MPB a favor da liberdade de seu país, liberdade que havia sido sequestrada há exatamente 10 anos desde o Golpe Militar de 1964. Ninguém na música popular brasileira ousou dizer tantas verdades ao regime e de forma tão incisiva, seja em palavras tristes e desesperadas, seja em figuras de linguagem repletas de duplos sentidos que, às vezes, de tão inteligentemente invocadas, pareciam literais. Talvez por isso passavam ilesas do carimbo da censura. "Nunca tive problemas com a censura, sou um privilegiado. Só lamento que ela ainda exista", disse em entrevista à revista da USP em 1978. Enquanto Chico, o amigo Gonzaguinha, Milton Nascimento e até Odair José enfrentavam dificuldades com o SCDP, Ivan aproveitava a descendência familiar para lançar mais do que um disco, mas um projeto modulado pela liberdade de expressão que duraria anos. 

Parceiro de outras canções e autor de outros gritos contra a Ditadura (como “Pesadelo”, “Minha Missão” e “Aviso aos Navegantes”), Paulo César Pinheiro assina com Ivan o samba de abertura: "Rei do Carnaval". Óbvio que o “rei” a que se referiam não era o momo e que o “carnaval” se revestia de cinismo para denunciar o cenário nada festivo de então. “O rei chegou/ Mas pra nosso desespero/ O rei mandou/ E era a voz do rei guerreiro”. Que começo! Um marco da “virada de chave” na vida e na obra de Ivan. Até mesmo o jeito de cantar é influenciado pelo “projeto Modo Livre”, uma vez que havia ficado pra trás a impostação da voz dos primeiros trabalhos para um canto mais natural e, sendo redundante, livre. Ivan percebera que sua voz afinada e de timbre doce estava menos para Toni Tornado e mais para Caetano Veloso.

Estava dada a mensagem inicial: Ivan não ia se calar. Havia decidido que diria o que precisava. Tanto é que, na sequência, emenda com um clássico do seu repertório, sucesso um ano antes na voz da cantora e compositora Claudya: “Deixa eu Dizer”. Bastante conhecida do público de hoje por conta do sample de Marcelo D2 para a sua “Desabafo”, de 2008, é outra parceria com Ronaldo Monteiro das seis que têm no disco. Quem não conhece os versos: “Deixa, deixa, deixa/ Eu dizer o que penso dessa vida/ Preciso demais desabafar”? Porém, na voz do seu autor, este samba-canção ganha outra potência, pois carregada de teor político. “E você não tem direito/ De calar a minha boca/ Afinal me dói no peito/ Uma dor que não é pouca”. Que coragem de dizer isso em plenos Anos de Chumbo!

Não somente nas letras, mas a própria sonoridade de Ivan se encorpa a partir de “Modo Livre”. Filho musical da bossa-nova, pianista harmônico como seu ídolo Tom, Ivan, experenciado na música desde a adolescência, une com talento único o samba, o jazz e a soul music, sempre com um refinamento próprio dos grandes. Tanto que sua música encontra semelhanças com a da turma do Clube da Esquina, em especial a de Toninho Horta e de seu outro ídolo, Milton. Com essa amplitude de referências Ivan musica a brejeira “Avarandado”, de Caetano, dando cores mais cintilantes à bossa-nova quase silenciosa que João Gilberto fizera no seu disco de um ano antes. 

“Tens no meu sorriso tua agonia.” Com uma sentença forte como esta, Ivan inicia "Tens (Calmaria)", aviso aos militares que eles podem ter “no quarto um cão vigia” e a “valentia”, mas que, resistente, “só na minha morte então terás tua calmaria”. Com o apoio luxuoso da MPB-4 a partir da segunda metade, esta fantasia se torna um samba-canção, cadenciado no ritmo de um bumbo triste. E isso, como diz a música seguinte, “Não tem Perdão”. Clara referência às torturas promovidas pela Ditadura, esta bossa-nova espelha a arte da capa do disco, em que o músico está com o corpo inteiramente submerso na água e só com a cabeça para fora e um olhar de soslaio que parece humilhado. “Não vou deixar/ Nem você nem ninguém/ Me envolver/ Me arrastar e me rasgar/ E espalhar/ Meus retalhos pelo mundo afora”. Quanto esforço de Ronaldo Monteiro para dar duplo sentido e fazer com que esses versos passem a ideia de se tratar apenas de um amor dissolvido.

“Modo Livre” representa ainda outro marco na carreira de Ivan e na história da música popular brasileira moderna, que é o seu encontro com Vitor Martins. Letrista da maioria de suas composições e com quem escreveria diversos clássicos da MPB a partir de então, como “Aos Nossos Filhos” (1978), “Começar de Novo” (1979) e “Novo Tempo” (1980), é deles, no disco, "Abre Alas". E nada melhor que começar uma parceria com um sucesso. Regravada por diversos artistas nacionais e internacionais, entre eles Sarah Vaughan, George Robert, Quarteto em Cy e Tânia Maria, este samba tem na força do refrão (“Abre alas pra minha folia/ Já está chegando a hora”) sua marca. Porém, nem por isso deixa de, assim como o repertório todo, cutucar os repressores: “A vida não era assim, não era assim/ Não corra o risco de ficar alegre/ Pra nunca chorar”.

O ritmo é de bossa-nova, mas a melodia vocal alta contrasta com a harmonia refinada, provocando uma verdadeira dissonância. Também pudera para uma música que se chama “Chega”. Novamente recorrendo a um suposto caso de amor para denunciar os crimes de tortura, Ivan canta versos como: “Chega/ Você não vê que eu estou sofrendo?/ Você não vê que eu já estou sabendo?/ Até onde vai esse seu desejo”. E continua de forma autoavaliativa, que responde tanto aos militares quanto ao Partidão: “Chega, preciso estar com pessoas/ Falar coisas ruins e coisas boas/ Botar meu coração na mesa/ As pessoas tem que gostar de mim/ Como eu sou e não como você quer que eu seja”.

Com lindo arranjo de Verocai, “Espero”, a qual contém na letra o termo que dá título ao disco (“E mergulhando em meu peito/ Um modo livre que foi desfeito/ Com o tempo”) não dá respiro no grito libertário e denunciativo a que o artista se propôs. Canta um tempo que aguarda ansiosamente que chegue, ou seja: que o pesadelo da Ditadura acabe. O fantástico samba-jazz “Essa Maré” (“Eu que queria e só queria/ Ser feliz, feliz um pouco/ E já não posso mais”) tem na flauta do trio Celso, Copinha e Jorginho um alívio para tanto padecer. O que não alivia é a jobiniana “Desejo”, de pura melancolia: ”Quando você/ Por ai me encontrar/ Esqueça do fim, venha/ E faça de mim desejo/ Seus risos, seus ais/ Nas noites, no cais”.

Ivan encerra o álbum como começou: com metáforas. Desta vez, ele pega sambas antigos e os ressignifica, trazendo-os para a realidade dura de então. Caso de “General da Banda”, clássico na voz de Blecaute, em 1949, “A Fonte Secou”, sucesso com Monsueto em 1954, e “Recordar”, esta, gravada por Gilberto Mendes em 1955. Versos como “Eu não sou água/ Pra me tratares assim”, ou “Chegou o general da banda”, aparamentes inocentes, ganham novos sentidos na sua voz. Ivan não precisa nem recorrer às próprias palavras para dizer o que estava implícito. 

Seja por desatenção ou ignorância dos censores, a música fortemente denunciadora de Ivan não se limitou apenas a este disco, mas a uma série irrepreensível produzida ao longo de 6 anos. Não se estranhe que "Chama Acesa", de 1976, "Somos Todos Iguais Nesta Noite", 1977, "Nos Dias De Hoje", 1978, e "A Noite", 1979, apareçam aqui como álbuns fundamentais à medida que, como “Modo Livre” em 2024, completem 50 anos de lançamento. Afinal, são obras marcantes em proposta e qualidade de um dos maiores nomes da música brasileira, reconhecido internacionalmente pela crítica e por gente do calibre de Ella Fitzgerald, George Benson, Ed Motta, Quincy Jones e Barbra Streisend, mesmo alguns que (ainda) lhe torçam o nariz em terras tupiniquins. 

O tempo se passou e Ivan, como não poderia deixar de acontecer, distendeu a corda a partir dos anos 80 de Diretas Já!. A tal "chama", que intitula o disco sucessor de "Modo Livre", havia, se não apagado, naturalmente diminuído. Porém, o que ele fez naquela segunda metade de anos 70, um dos períodos mais sombrios para o Brasil enquanto nação, está gravado na história da música brasileira como um ato guerrilheiro. Foi como se o artista, "entre espadas e rodas de fogo”, pegasse em armas e tomasse para si aquela batalha em nome do povo, de seus irmãos, a qual tivera em "Modo Livre" o primeiro tiro disparado. 

*********
FAIXAS:
1. "Rei do Carnaval" (Ivan Lins, Paulo César Pinheiro) - 2:31
2. "Deixa Eu Dizer" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 3:12
3. "Avarandado" (Caetano Veloso) - 3:15
4. "Tens (Calmaria)" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 3:03
5. "Não Tem Perdão" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 3:45
6. "Abre Alas" (Ivan Lins, Vitor Martins) - 3:12
7. "Chega" (Ivan Lins) - 3:27
8. "Espero" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 2:23
9. "Essa Maré" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 2:14
10. "Desejo" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 2:19
11. Potpourri - 2:32
11a. "General Da Banda" (José Alcides, Sátiro de Melo, Tancredo Silva)
11b. "A Fonte Secou” (Marcléo, Monsueto Menezes, Tufic Lauar)
11c. "Recordar" (Adolfo Macedo, Aldacir Louro, Aluisio Marins)

*********
OUÇA O DISCO:
Ivan Lins - "Modo Livre"


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 27 de abril de 2023

Elis Regina - "Falso Brilhante" (1976)

 




Ábuns Fundamentais ClyBlog - Elis Regina - Falso Brilhante
"Você não sente, não vê mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo
Que uma nova mudança em breve vai acontecer
O que há algum tempo era novo, jovem
Hoje é antigo
E precisamos todos rejuvenescer"
da letra de "Velha Roupa Colorida"



Acho que ninguém em perfeito juízo discorda de que Elis Regina foi uma das melhores, senão a maior cantora brasileira de todos os tempos. Logicamente, em pleno gozo de minha sanidade, me junto a esse coro quase unânime entre os apreciadores de música neste país. Embora admire seu repertório, é uma artista da qual não domino informações sobre sua obra. Talvez pelo fato de que alguns de seus clássicos  apareçam em maus de um formato, em mais de um álbum, com parceiros diferentes, etc. Tem "Águas de Março", com Tom, sem Tom, ao vivo, no estúdio, alegre, emburrada..; tem "Tiro ao Álvaro", com Adoniram, sem Adoniram, no disco solo, dando risada no do programa de TV; tem "Bêbado e a Equilibrista", bêbada, sóbria, equilibrada, caindo... e nisso, ainda que idolatrando a cada uma dessas versões, cada interpretação, eu sempre tão interessado em datas, set-lists, álbuns,  etc., nunca me esforcei em saber onde se localizavam essas músicas na discografia de Elis Regina.

Só que de uns tempos pra cá, vinha observando a constante referência a um álbum específico e ele, então,  passou a me chamar atenção. "Falso Brilhante" era destacado em sites como um dos melhores discos de Elis, aparecia em listas de melhores discos brasileiros, era mencionado como influência por algum músico da minha preferência, era amplamente reverenciado aqui e acolá, e aí que fui atrás de mais informações sobre o tal disco.

Era o disco de "Fascinação", um dos maiores clássicos do repertório da cantora, numa interpretação inesquecível de uma delicadeza precisa e emocionante. Mas também era o disco de "Como Nossos Pais", o rock de Belchior que tentava dar uma sacudida numa juventude estagnada, e que Elis interpretava com uma força e uma intensidade absurdas. Inigualáveis! Sim era Elis cantando rock! E não era o único: "Velha Roupa Colorida", também  de Belchior, e também sobre atitude, era outra canção carregada de rock'roll e que, igualmente Elis depositava garra, potência, vibração, chegando a rasgar a voz, dando tudo de si, num dos melhores momentos do álbum. Mas há  outros pontos altos: "Gracias a la Vida", de Violeta Parra parece carregar a força da resistência da mulher latina contra os regimes autoritários que prevaleciam aqui e no Chile, terra da autora. Bem como "Los Hermanos", do argentino Atahualpa Yupanqui, uma espécie de convocação à união em nome da mais bela "irmã", a liberdade.

E tem ainda três de João Bosco com Aldir Blanc, "Um por todos", "Jardins de Infância" e "O Cavaleiro e os Moinhos", sempre com a sonoridade rica e aquele tom ácido característico da dupla; e pra fechar ainda, uma versão de arrepiar de "Tatuagem" de Chico Buarque, numa releitura ímpar, na interpretação de Elis.

Alguns afirmam que "Falso Brilhante" seria o disco em Elis que cantava rock, e se formos parar para analisar, não está muito longe da verdade: as duas de Belchior, logo de saída; "Quero", muito Beatles; a releituras de Bosco e Blanc, pungentes e carregadas nas guitarras; e mesmo as duas versões dos hermanos, andinos e platenses, que exploram, combinam e incorporam as alternativas e possibilidades de outros ritmos e nacionalidades, como tão bem costuma fazer o rock'n roll.

Se "Falso Brilhante" é o disco rock de Elis, acho que, possivelmente, deva ser por isso que gosto tanto dele. O brilho verdadeiro de uma estrela. Um diamante cuidadosamente lapidado. Uma verdadeira joia musical.

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FAIXAS:

1. Como Nossos Pais (Belchior)
2. Velha Roupa Colorida (Belchior)
3. Los Hermanos (Atahualpa Yupanqui)
4. Um Por Todos (João Bosco/Aldir Blanc)
5. Fascinação (Fermo Dante Marchetti, Maurice de Féraudy. Versão: Armando Louzada)
6. Jardins De Infância (João Bosco/Aldir Blanc)
7. Quero (Thomas Roth)
8. Gracias A La Vida (Violeta Parra)
9. O Cavaleiro E Os Moinhos (João Bosco/Aldir Blanc)
10. Tatuagem (Chico Buarque)

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Ouça:

Eis Regina - Falso Brilhante (1976)


por Cly Reis

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Seleção Brasileira - 11 discos nacionais que têm a cara do nosso futebol


A relação do futebol com a música, no Brasil, é algo muito especial e particular. A ginga, o ritmo, a malandragem, a criatividade, a poesia, são compartilhadas por ambos e é como se um se utilizasse das virtudes do outro. Seja pela constituição do povo, pela formação cultural, pela configuração social, por questões comportamentais, por tudo isso, o jogo de bola, popular, democrático, que se pode praticar na rua, num pátio, num terreno qualquer, com qualquer coisa que seja ligeiramente arredondado, é ligado intimamente à musicalidade do brasileiro que pode ser colocada em prática em qualquer lugar ou esfera social, numa mesa, numa lata, numa caixinha de fósforo, no morro numa roda de amigos, ou numa garagem com três caras, duas guitarras e uma bateria.

Nessa época de Copa, pensando nessa íntima ligação, selecionamos alguns discos que tem tudo a ver com esse laço. Quando artistas de música colocaram o futebol de forma significativa dentro de suas obras.

É lógico que teríamos muitos, inúmeros exemplos e possibilidades, aqui, mas ilustramos esse caso de amor futebol & música com 11 discos que têm a cara do futebol. Onze!!! Um para cada posição.

Uma verdadeira Seleção Brasileira.

Dá uma olhada aí:

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"A perfeição é uma meta
defendida pelo goleiro"
da música "Meio de Campo"

Gilberto Gil - "Cidade de Salvador" (1973): Embora tenha feito o tema brasileiro para a Copa do Mundo de 1998, Gilberto Gil não é exatamente um cara de referências tão constantes ao futebol em sua discografia. Tem, lá, o Hino do Bahia, em 1969, no disco ao vivo com Caetano, tem "Abra o Olho", do disco Ao Vivo de 1974, que faz menções a Pelé e Zagallo, mas, em sua obra, o álbum mais relevante nesse sentido e que mais traz referências ao esporte das massas do Brasil, é "Cidade de Salvador", de 1984. Nele temos a faixa "Meio de Campo", que reverenciava o, então jogador, Afonsinho, do Botafogo, jogador atuante, engajado, um dos pioneiros na luta pelo direito ao passe-livre, além da luta própria liberdade pessoal, uma vez que seu clube, na época, o Botafogo, exigia que ele tirasse a barba e cortasse o cabelo comprido, ao que o mesmo resistiu, exigindo a rescisão de contrato.

Como se não bastasse uma música tão relevante sobre um personagem tão simbólico do futebol brasileiro, o álbum ainda trazia a faixa "Tradição", belíssima crônica cotidiana, que, embora não fosse uma música sobre futebol, também citava o jogo, mencionando Lessa, um lendário goleiro do Bahia nos anos 50, segundo a letra, "um goleiro, uma garantia".






João Bosco - "Galos de Briga" (1976): A dupla João Bosco e Aldir Blanc, quando se trata de música com futebol, é que nem Pelé e Garrincha, Romário e Bebeto, Careca e Maradona. Eram craques! Sintonia perfeita. Embora muitas vezes na discografia de Bosco possamos encontrar referências ao futebol, como nas clássicas "Linha de Passse" e "De Frente pro Crime", em "Galos de Briga"; disco combativo, lançado em 1976, meio à ditadura militar, podemos encontrar dois exemplares dessa tabelinha entrosada: "Incompatibilidade de Gênios" e "Gol Anulado", duas brigas de casal repletas de elementos futebolísticos (e duplas interpretações a respeito da ditadura). Na primeira, o homem reclama que a mulher, zangada, ranzinza, sequer quer permitir que ele escute no rádio o jogo do Flamengo ("Dotô/ Jogava o Flamengo, eu queria escutar / Chegou / Mudou de estação, começou a cantar ..."); na outra, um marido descobre por um grito de gol que a esposa, que julgava tão perfeita e exemplar em tudo, não torcia, na verdade, pelo seu mesmo time, o Vasco da Gama ("Quando você gritou mengo /No segundo gol do Zico / Tirei sem pensar o cinto / E bati até cansar / Três anos vivendo juntos / E eu sempre disse contente / Minha preta é uma rainha / Porque não teme o batente / Se garante na cozinha / E ainda é Vasco doente (...)", e compara a sensação da frustração à de um gol anulado ("Eu aprendi que a alegria /De quem está apaixonado / É como a falsa euforia / De um gol anulado").

Blanc e Bosco tem mais um monte de futebolices em sua discografia, mas "Galos de Briga", é um dos trabalhos que melhor simboliza bem esse entrosamento.





Neguinho da Beija-Flor - "É melhor sorrir" (1982): Quando uma música tem o poder de ser adaptada para todos os grandes times de uma cidade e ser cantada por cada uma de suas torcidas num estádio lotado, essa música tem lugar garantido entre as mais significativas do futebol. "O Campeão", conhecida também por "Meu Time", de Neguinho da Beija-Flor, integrante do álbum "É Melhor Sorrir", celebra um dia de futebol, desde a preparação, a espera, a ansiedade, até o momento mágico de torcer e vibrar pelo time do coração dentro do estádio. "Domingo, eu vou ao Maracanã / Vou torcer pro time que sou fã / Vou levar foguetes e bandeira / Não vai ser de brincadeira / Ele vai ser campeão / Não quero cadeira numerada / Vou ficar na arquibancada / Prá sentir mais emoção / Porque meu time bota pra ferver / E o nome dele são vocês que vão dizer / Ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô..........", e aí completa com o nome do seu time. Quem já ouviu isso no Maracanã, só trocando o nome do time no refrão, não tem como não se arrepiar.

O restante das faixas do disco não tem ligação com futebol, mas com uma dessas, que foi oficializada como hino do estádio, que serve para quatro dos maiores clubes do país, normalmente é entoado por milhares de vozes no maior templo do futebol mundial, há motivos mais que suficientes para incluir "É Melhor Sorrir" entre os álbuns importantes na relação música-futebol.





"A defesa é segura
e tem rojão"
da música "Um a Um"

Jackson do Pandeiro - "Jackson do Pandeiro" (1955): Uma das músicas mais marcantes na qual o futebol figura com protagonismo é a clássica "Um a Um", de Jackson do Pandeiro. A letra discorre sobre todas as posições de um time, setores do campo, situações de jogo, xinga o juiz, e exalta entusiasticamente as qualidades e virtudes do time do coração ("O meu clube tem time de primeira / Sua linha atacante é artilheira / A linha média é tal qual uma barreira / O center-forward corre bem na dianteira / A defesa é segura e tem rojão / E o goleiro é igual um paredão (...)  / Mas rapaz uma coisa dessa também tá demais / O juiz ladrão, rapaz! / Eu vi com esses dois olhos que a terra há de comer / Quando ele pegou o rapaz pelo calção / O rapaz ficou sem calção!..."). E, mais atual do que nunca, não aceitando derrota ou empate em hipótese alguma, ainda adverte:  "Se o meu time perder vai ter zum zum zum". E não é assim sempre ainda hoje?





Chico Buarque - Chico Buarque (1984): Chico Buarque, apaixonado por futebol, volta e meio tem alguma coisa relacionada ao esporte mais popular do mundo em seus discos. Um detalhezinho aqui outro ali, um verso, uma metáfora, uma referência... Poderia citar um monte delas aqui, mas escolhemos a música "Pelas Tabelas", do álbum "Chico Buarque", de 1984, por reunir uma série de elementos interessantes como o Maracanã, a torcida, a tabelinha e uma multidão na rua de verde e amarelo que naquele momento, poderia ser pela Seleção ou pelas manifestações pró-diretas, mas que nos últimos tempos se transformou numa imagem de terror de fanáticos conservadores fascistas. Saudades do tempo em que sair na rua de verde e amarelo era só para comemorar vitórias da Seleção ou reivindicar direitos democráticos.

"(...) Quando vi um bocado de gente descendo as favelas/ Achei que era o povo que vinha pedir / A cabeça do homem que olhava as favelas / Minha cabeça rolando no Maracanã / Quando vi a galera aplaudindo de pé as tabelas /Jurei que era ela que vinha chegando / Com minha cabeça já numa baixela / Claro que ninguém se toca com minha aflição / Quando vi todo mundo na rua de blusa amarela / Pensei que era ela puxando um cordão".





Engenheiros do Hawaii - "Várias Variáveis" (1991): Os Engenheiros do Hawaii, banda da capital gaúcha, sempre demonstrou estreita ligação com o futebol. Volta e meia usavam em suas letras expressões referentes ao jogo ("jogam bombas em Nova Iorque / jogam bombas em Moscou / como se jogassem beijos pra torcida / depois de marcar um gol" - "Beijos Pra Torcida" 1986); subiam ao palco, não raro, com camisetas de seus clubes do coração, Gessinger, gremista fanático, coma do Tricolor, é claro; e tinham, até mesmo, em uma de suas músicas, "Anoiteceu em Porto Alegre", uma narração de rádio do gol do título mundial do Grêmio, de 1983. No entanto "Várias Variáveis", de 1991, que não continha especificamente nenhuma música com qualquer menção ao esporte, destaca-se pela capa, que o justifica em estar nessa lista. Nela, entre várias engrenagens, símbolo adotado pelo grupo como marca, preenchidas com ícones pop, símbolos, imagens geográficas, históricas, comerciais, encontramos os escudos dos dois grandes clubes do Rio Grande do Sul, InternacionalGrêmio. Uma capa que dimensiona bem a importância do futebol e a paixão dos gaúchos por seus clubes situando-os entre as coisas mais importantes entre tantos elementos como ideologias, religiões, comportamento, economia, coisas que fazem mexer as engrenagens do mundo. Afinal, como dizem, o futebol é a coisa desimportante mais importante do mundo. Não é mesmo?





Novos Baianos - "Novos Baianos F.C. (1973): O que era aquilo? Uma banda? Uma família? Uma comunidade? Um time de futebol? Tudo isso! Os Novos Baianos meio que inauguraram um novo conceito de grupo musical: moravam juntos, todos colaboravam em tarefas, faziam música e, apaixonados por futebol, batiam uma bolinha. Para isso, montaram dois campos de futebol no sítio onde a banda vivia, na zona leste do Rio, onde, entre uma gravação e outra, jogavam aquela pelada, ou ao contrário, entre uma partidinha e outra, rolava algum som. Um desses momentos de descontração e atividade paralela é captado na capa do disco "Novos Baianos F.C.", de 1973, com a banda "rolando um caroço" no seu campinho em Jacarepaguá. Além do registro da foto, e da extensão (Futebol Clube) não deixa dúvidas quanto à paixão daquela turma pelo jogo de bola, o disco ainda traz a faixa "Só se não for brasileiro nessa hora", que exalta a pelada, o jeito moleque, o gosto por correr atrás da bola: "Que a vida que há no menino atrás da bola / Pára carro, para tudo / Quando já não há tempo / Para apito, para grito / E o menino deixa a vida pela bola / Só se não for brasileiro nessa hora".

"Novos Baianos F.C", de certa forma, resume o espírito do grupo. Um time. Uma equipe entrosada, quase um Carrossel Holandês onde todos se revezavam e executavam mais de uma tarefa dentro de campo. Futebol total. Ou seria música total? 





Pixinguinha - "Som Pixinguinha" (1971) - Uma das primeiras composições alusivas ao futebol foi "1x0" do mestre Pixinguinha. Gravada no final dos anos 1920, a canção instrumental, homenageava o grande feito da conquista do Campeonato Sul-Americano de 1919, numa partida contra o Uruguai, vencida arduamente, depois de duas prorrogações, pelo placar mínimo, 1x0, gol do ídolo da época, Arthur Friedenreich. 

A música até ganhou letra nos anos 1990, do músico Nelson Ângelo, que a regravou então, cantada, em parceria com Chico Buarque, mas nem precisava: instrumentalmente ela, com seu ritmo, fluidez, construção, já consegue transmitir a dinâmica de um jogo, a ginga, a expectativa do torcedor, a movimentação dentro de campo..., tudo!

A canção foi gravada, originalmente, nos anos 1920, saiu em compactos posteriores, em algumas coletâneas, mas o registro que destacamos aqui é o álbum "Som Pixinguinha", de 1971, o último disco gravado pelo mestre do choro, que viria a ser reeditado, anos depois, no Projeto Pixinguinha, rebatizado como "São Pixinguinha". Nada mais justo. Só coisas divinas. Amém, Pixinguinha! Amém!






"O centroavante, o mais importante
Que emocionante, é uma partida de futebol"
da música "Uma partida de futebol"

Skank - "Samba Poconé" (1996): Logo depois que o Brasil ganhou a Copa do Mundo de 1994, o futebol voltou a virar mania nacional. Literalmente, virou moda. As camisetas de clubes, antes restritas às peladas e aos estádios, naquele momento tomavam as ruas. Embora vários artistas manifestassem esse momento, nenhuma banda soube traduzir tão bem esse momento como o Skank. Além dos integrantes se apresentarem, não raro, com camisetas de seus clubes do coração, os grandes de Minas Gerais, Cruzeiro e Atlético, talvez tenham feito a mais empolgante e entusiástica música daquele período e uma das mais marcantes da história da música braseira, sobre futebol. "É Uma Partida de Futebol" transmitia, com rara felicidade às emoções de dentro e fora de campo, com expectativa do jogo, lances de perigo, reação da torcida, tudo com muita alegria e ritmo ("Bola na trave não altera o placar / Bola na área sem ninguém pra cabecear / Bola na rede pra fazer o gol / Quem não sonhou em ser um jogador de futebol? / A bandeira no estádio é um estandarte / A flâmula pendurada na parede do quarto / O distintivo na camisa do uniforme / Que coisa linda é uma partida de futebol (...)"). Sem dúvida, um marco na histórica relação bola-microfone, tão estreita na música brasileira.





"É camisa dez da Seleção
laiá, laiá, laiá!"
da música "Camisa 10

Luiz Américo - "Camisa 10" (1974): É o típico exemplo de artista de uma música só. Luiz Américo gravou a música "Camisa 10" para a Copa do Mundo de 1974, lamentando a ausência de Pelé, que se despedira da Seleção depois da Copa do México em 1970, e questionando as escolhas do técnico Zagallo, campeão na Copa anterior, mas de escolhas bastante duvidosas para o Mundial seguinte. A letra, inteligente, cheia de boas sacadas e trocadilhos com os nomes dos jogadores ("Desculpe seu Zagalo/ Puseram uma palhinha na sua fogueira / E se não fosse a força desse tal Pereira / Comiam um frango assado lá na jaula do leão / Mas não tem nada não!"), acabaria por confirmar os temores dos autores, Hélio Matheus e Luís Vagner, de um time confuso, mal convocado e mal escalado que não convenceu em nenhum momento e acabou eliminado de maneira impiedosa pela Laranja Mecânica de Johan Cruyff.

Lançada em um álbum sem outras alusões a futebol, "Camisa 10", além de ser, com certeza, a maior cornetada musical da discografia nacional, talvez seja a canção mais marcante da tabelinha música-futebol no Brasil.





Jorge Ben - "Ben" (1972)Jorge Benjor, talvez seja o músico com mais referências ao futebol em sua obra. Volta e meia tem! Tem menção a clube, exaltação a craque de verdade, para craque inventado, música por posição, para infração dentro de campo, pra negociação entre clubes... Tem de tudo. "África Brasil" , disco já destacado aqui no ClyBlog, nos nossos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS, provavelmente seja o álbum que mais contém referências ao esporte, com uma música cuja letra conta o desejo de um de seus filhos em querer ser jogador de futebol ("Meus filhos, meu tesouro"), uma para o craque Zico ("Camisa 10 da Gávea), e uma para um fictício meia-atacante africano de futebol encantador, "Umbabaraúma, Ponta de Lança Africano". No entanto, a canção de Jorge Benjor mais marcante sobre futebol, é, sem dúvida, uma das mais lembradas no quesito em toda a música brasileira, está no disco "Ben", de 1972. "Fio Maravilha" descreve, quase com a precisão de um locutor esportivo, o lance mágico do atacante Fio, do Flamengo, dos anos 70, em que ele faz, segundo o autor "uma jogada celestial". Jorge Benjor, exímio construtor de imagens musicais, soma à narração do lance, a reação da torcida e o grito de reverencia e agradecimento da massa para o craque, num dos refrões mais populares da música brasileira, "Fio Maravilha / Nós gostamos de você /Fio Maravilha / Fazmais um pr'a gente ver".

Curiosamente, anos depois, Fio acabou processando Jorge Benjor pela utilização de seu nome sem autorização. O próprio Fio desistiu do processo sem sentido até porque, antes da música ele não era ninguém e, pelo contrário, era conhecido, exatamente, por perder muitos gols. Simplesmente, um hino do futebol brasileiro!



por Cly Reis