Alice já estava cansada de ficar sentada no banco sem nada
para fazer. Foi
quando, de repente, um Coelho Branco de olhos cor-de-rosa passou
correndo perto dela.
Não havia nada de tão incrível nisso fora o fato do Coelho Branco repetir continuamente para si mesmo:
— Ai, rapaz! Ai, rapaz! Vou me atrasar. Alice se alvoroçou mesmo foi quando o Coelho Branco sacou um relógio
do bolso de seu colete, checou as horas e saiu apressado. Ela se deu
conta de que nunca tinha visto um coelho com um relógio no bolso
do colete. Ardendo de curiosidade, correu atrás dele a tempo de vê-lo se emburacar toca adentro no pé de uma cerca.
No instante seguinte, era Alice quem se entocava ali. Decidiu
perseguir o Coelho Branco sem refletir sobre como sairia daquele
buraco.
A toca tinha um trecho reto semelhante a um túnel. Depois,
inclinava-se bruscamente para baixo, tão bruscamente que Alice
não foi sequer capaz de pensar em frear. Simplesmente despencou
em um poço de grande profundidade.
Alice caía, caía, caía... Será que aquela queda não acabaria nunca?
— Então, de repente: plunct! Aterrissou em um amontoado de
gravetos e folhas secas. A queda havia chegado ao fim.
Sem nenhum arranhão, ela se levantou em um instante. Olhou
para cima, mas sobre sua cabeça tudo estava escuro. Atrás de Alice
havia outra passagem longa, onde ainda se podia ver o Coelho
Branco descendo bem depressa. Não dava para perder nem um
segundo: lá foi a menina, veloz como o vento ainda a tempo de vê-lo fazer a curva. Alice estava perto dele ao fazer, mas o Coelho Branco já
não podia mais ser visto. Sumira na escuridão de um salão comprido, baixo e mal iluminado.
De repente, de um ponto qualquer na escuridão do fundo do salão, viu surgir o Coelho que avançou lentamente para uma faixa um pouco mais iluminada onde ela podia distingui-lo melhor. Ele estancou a encará-la e Alice, por sua vez, o olhou com curiosidade.
De trás do Coelho Branco, também daquela treva, surgiram à luz algumas figuras no mínimo excêntricas: um tipo alto com uma cartola extravagante, um homenzinho baixo tão gordo que se assemelhava a um ovo, um par de gêmeos rechonchudos vestidos de forma rigorosamente igual, e um gato que a encarava com um sorriso sinistro na cara.
O Coelho, girando a corrente do relógio de bolso, e agora parecendo ignorar a presença da menina, depois de um angustiante período de silêncio, finalmente abriu a boca e falou: - Eu não disse que ela ia me seguir? Tá aí ela, gente. Podem descer a porrada.
Cly Reis
livremente inspirado em "Alice no País das Maravilhas",
“Quando eu era criança, as pessoas me perguntavam: ‘como é teu nome?’ Eu respondia: Adriana Partimpim. Meu pai até hoje só me chama de ‘Partimpim’.”
Adriana Calcanhoto
"Os artistas japoneses do grande período mudavam de nome várias vezes na vida. Amo isso!!!" Adriana Partimpim
“ADRIANA CALCANHOTO: Era possível, através da música, passar para o outro lado e adentrar o mundo fascinante dos adultos...?
ADRIANA PARTIMPIM: O disco foi feito para eu ser a criança que sou hoje e não a que já fui.
ADRIANA CALCANHOTO: Então o ‘disco infantil’...
ADRIANA PARTIMPIM: Ao invés de música para crianças, tarja que não considero exata, preferi chamar de disco de CLASSIFICAÇÃO LIVRE. Que, no fundo, é tudo o que ele mais gostaria de ser.” Trecho da entrevista que Adriana Partimpim concedeu à Adriana Calcanhoto na época do lançamento do disco
Vinicius de Moraes, depois dos vários projetos literários e musicais que encabeçou durante mais de 40 anos de vida artística, voltou seu olhar, no último deles, às crianças. Nada das mulheres, das paixões ardentes, da boemia, da praia ou dos orixás. O histórico “Arca de Noé”, em parceria com Toquinho e que envolveu vários outros artistas convidados, fez escola no Brasil no que se refere à produção cultural para os pequenos. Elevou-a – junto com outros igualmente célebres, como “Sítio do Picapau Amarelo”, “Pirilimpimpim” e “Plunct Plact Zum” – a um nível de igual qualidade ao que Vinicius fizera na bossa-nova e na literatura.
Com a morte do “Poetinha”, logo após o lançamento do primeiro volume de “Arca...”, em 1980, coincidindo com a acirrada competição televisiva dos programas infantis que tomariam os anos 80, essa proposta de oferecer alta qualidade de cultura para os baixinhos foi se esvaziando. Toquinho e Paulo Leminski bem que tentaram, mas sucumbiram a “Ilariês” e assemelhados. Parecia que não haveria jamais alguém que seguisse aquele caminho aberto por Vinicius em final de vida. Porém, passadas quase duas décadas e meia, o destino levou a gaúcho-carioca Adriana Calcanhoto a assumir esse espaço com o rico – e salvador – projeto “Adriana Partimpim”, de 2004.
A ideia de Adriana, a Calcanhoto, era antiga, de 10 anos antes. À época, ela já havia recolhido temas aos quais gostaria de propor uma nova roupagem sonora, mais solta, divertida e que agradasse tanto crianças quanto adultos. O parceiro Dé Palmeiro foi quem mais incentivou. Porém, imagina-se que deva ter contribuído em certa medida a forte ligação amorosa que Adriana passou a ter com a atriz e cineasta Suzana de Moraes, filha de Vinícius, com quem se casara quatro anos antes de “Partimpim” ser lançado. Pronto: havia juntado todo o necessário: a vontade de compor o repertório, sua experiência e qualidade artística, o apoio externo e o acolhimento emocional. Muito provavelmente, o universo viniciano dentro de casa (e do coração) contagiou Adriana ainda mais, quase que como uma bênção espiritual. O resultado é um disco com alma, diferenciado: ao mesmo tempo altamente musical, tanto no que se refere à escolha do repertório quanto em arranjos e sonoridade, mas também delicioso de se ouvir, pop no melhor sentido.
Não precisa mais de meia hora para isso. De grande experiência e rara sensibilidade, Adriana seleciona dez faixas tão certeiras que parecem, mesmo com idades de composição tão diferentes entre si, terem sido escritas para integrar somente esse disco. A beleza começa com um som de scratch de rap, seguido de uma batida de samba muito gingada e um violão digno dos melhores mestres do instrumento. É "Lição de Baião", canção do repertório de Baden Powell, gravada originalmente em 1961, e que tem a participação de ninguém menos que Louis Marcel Powell, filho e sucessor da maestria do pai nas cordas de nylon. Um barato a letra que brinca – como as crianças fazem! – com as palavras em francês e em português, construindo versos misturando os dois idiomas.
Quadrinhos que ilustram a canção "Oito Anos" (adrianapartimpim.com.br/um/)
"Oito Anos", que Paula Toller compôs para responder às inúmeras (e, não raro, capciosas) perguntas do filho Gabriel, virou um grande sucesso na voz de Partimpim. É divertidíssima em sua enumeração de indagações típicas de criança que está conhecendo o mundo. “Por que as cobras matam/ Por que o vidro embaça/ Por que você se pinta/ Por que o tempo passa”, são alguns dos versos que dão ideia da encrenca que é para uma mãe responder A própria autora comenta a respeito: "Quando cantei para o Gabriel fui mais mãe-artista que artista-mãe. Agora ouço Adriana interpretando ‘Oito anos’ como um menino esperto e adorável. Na leveza da voz dela, há espontaneidade e uma sutil implicância muito bem sacada, afinal, perguntar tanto é menos para saber a resposta do que para treinar a ferramenta perguntadora e a paciência do respondedor.”
A marchinha carnavalesca "Lig-Lig-Lig-Lé", dos anos 30, ganha um arranjo colorido em que se vale bem do clima com que Adriana orientou seus músicos: “tocaram com leveza, com delicadeza e espontaneidade, com muito humor e quase nenhuma coerência”. Querida desde a época de seu lançamento, no carnaval de 1937 (o noticiário da época a classificava como “sucesso fulminante” e “destinada a um recorde de bilheteria”), é das mais divertidas faixas do disco.
Mais do que “Oito Anos”, “Fico Assim sem Você”, na sequência, foi um verdadeiro hit de “Partimpim”, colocando o disco entre os mais vendidos da época. Versando um funk melódico de Claudinho & Buchecha – e cuja original já havia feito estrondoso sucesso nos anos 90 –, não só conquistou o grande público com sua bela melodia romântica e arranjo moderno – com a programação de ritmo funkeada, o violão bossa-nova de Adriana, bem como sua delicada voz, muito afeita à melodia da canção –, como, igualmente, prestou uma bonita homenagem à dupla carioca, desfeita tragicamente em 2002 por conta da morte de Claudinho. A letra, de certa forma, prenuncia a falta que um amigo faz ao outro caso se separassem (o que, fatalmente, ocorreu): "Avião sem asa/ Fogueira sem brasa/ Sou eu assim, sem você/ Futebol sem bola/ Piu-Piu sem Frajola/ Sou eu assim, sem você...". E o refrão não pode ser mais doce: "Eu não existo longe de você/ E a solidão é o meu pior castigo/ Eu conto as horas pra poder te ver/ Mas o relógio tá de mal comigo."
Outra delícia é "Canção da Falsa Tartaruga", em que o poeta concretista Augusto de Campos, fértil parceiro de Adriana (a Calcanhoto), e seu filho, o músico e também poeta Cid Campos, versam com muita habilidade e sensibilidade um trecho de “Alice no País das Maravilhas”, clássico do escritor britânico Lewis Carroll, de 1865. O resultado é uma canção delicada, com um refrão de notas abertas tão bonito que é impossível não cantar junto sempre que se ouve: “Quem não diz: - Ave!/ Quem não diz: - Eia!/ Quem não diz: - Opa!/ Que bela Sopa!” E por que uma sopa de uma falsa tartaruga? Ora, alguém já viu uma tartaruga de verdade fazer sopa?...
Rebuscando mais um pouco o variado conhecimento musical, Adriana traz a bossa nova meiga e melancólica “Formiga Bossa Nova”, adaptação do poema do português Alexandre O’Nell que ficara conhecida, em 1969, na voz da cantora lusa Amália Rodrigues. Outra mostra do quanto a proposta de “Partimpim” não é trazer somente temas de fácil assimilação, uma vez que abarca (também) o público infantil. Caso também de “Ser de Sagitário”, composta por Péricles Cavalcanti para sua filha, que ainda não havia nascido e que ele e sua esposa não sabiam nem que sexo teria, apenas que nasceria no começo de dezembro, ou seja, na vigência do signo de sagitário. “Você metade gente/ e metade cavalo/ Durante o fim do ano/ cruza o planetário”, diz a poética e tocante letra, fazendo uma metáfora com o centauro, símbolo do signo no zodíaco.
O poetinha Vinícius de Moraes: inspiração e bênção
Na mesma linha, outra brilhante canção de “Partimpim”: “Ciranda da Bailarina”. Se “Formiga Bossa Nova” e “Ser de Sagitário” não poupam as crianças de refletirem e aguçarem seus sentimentos, esta, clássico de Edu Lobo e Chico Buarque da trilha do balé “O Grande Circo Místico”, de 1983, vale-se da fantasia e da figura de linguagem da comparação para concluir aquilo que é óbvio, mas que nem todo mundo admite: que ninguém é perfeito. Ao dizer que só a bailarina, tão artificial quanto mítica, não tem pereba, marca de bexiga ou vacina e nem dente com comida ou casca de ferida, está se deixando claro que todo mundo é ser humano. E aí é que está a beleza! Afinal,“sala sem mobília/ Goteira na vasilha/ Problema na família/ Quem não tem?” Bela versão de Adriana em que seus violão e vocal apurados funcionam muito bem novamente. Fora que ainda lhe foi permitido finalmente dizer a ridiculamente proibida palavra “pentelho” sem o grosseiro corte da censura como ocorreu na versão original, ainda dos tempos de Ditadura.
Os craques da nova MPB Moreno Veloso, Kassin e Domênico, este último, autor de "Borboleta", canção encomendada especialmente a ele por Adriana para o disco, antecede outra das especiais de “Partimpim”: “Saiba”, que o encerra. Lindamente classificada como“uma canção para ninar adultos”, “Saiba”, de Arnaldo Antunes, fecha o disco com a mais doce e profunda poesia, pondo os baixinhos para refletirem sobre coisa séria, mas necessária - e, por que não dizer, comum. A música leva o ouvinte a pensar sobre a condição humana a partir de uma proposição óbvia, porém pouco elucubrada: a de que “todo mundo foi criança” e que o ciclo da vida, inevitavelmente, se encerra um dia. Como não ficar tocado por versos como estes? “Saiba/ Todo mundo teve infância/ Maomé já foi criança/ Arquimedes, Buda, Galileu/ e também você e eu”. A letra ainda tem a função educativa de apresentar versos e termos rebuscados, como os nomes estrangeiros Nietzsche e Sadam Hussein, ou rimas diferentes do comum: “Simone de Beauvoir” com “Fernandinho Beira-Mar” ou “Pinochet” com “você”, ambas rimas de classificação “preciosa”, um tipo raro que combina palavras de idiomas distintos. Um final emocionante e que lembra, em certa medida, as melancólicas “Menininha” e “O filho que eu quero ter”, que finalizam os dois volumes de “Arca de Noé”, respectivamente.
A brincadeira de assumir outra personalidade foi levada a sério (sic) por Adriana, a Calcanhoto, que deu vida à outra Adriana, a Partimpim. Com nome artístico independente de sua criadora, a criatura Adriana Partimpim deu tão certo, que, além deste primeiro álbum, outros dois ótimos vieram a seguir (2009 e 2012), além de dois DVD’s ao vivo igualmente imperdíveis. Mais do que isso: o projeto Partimpim pareceu simbolizar um salto qualitativo na obra e na carreira de Calcanhoto, um momento em que ela conseguiu reunir sua competência artística, estética e performática a seus mais íntimos sentimentos. E o resultado foi algo genuíno. Infantil? Adulto? Tanto faz. Como conseguira Vinícius de Moraes em “Arca...”, o trabalho das Adrianas, a Calcanhoto e a Partimpim, rompeu as fronteiras da idade dos ouvintes e da idade do tempo. Afinal, contempla, igualmente, as crianças grandes e os pequenos adultos.
Clipe de"Fico Assim sem Você"
********************************** FAIXAS: 1. "Lição de Baião" (Daniel Marechal/Jadir de Castro) - 03:16 2. "Oito Anos" (Dunga/Paula Toller) - 03:08 3. "Lig-Lig-Lig-Lé" (Oswaldo Santiago/Paulo Barbosa) - 02:38 4. "Fico Assim Sem Você" (Abdullah/Cacá Moraes) - 03:08 5. "Canção da Falsa Tartaruga" (Augusto de Campos/Cid Campos sobre texto de Lewis Carroll) - 04:07 6. "Formiga Bossa Nova" (Alain Oulman/Alexandre O'Neill) - 02:28 7. "Ciranda da Bailarina" (Chico Buarque/Edu Lobo) - 02:49 8. "Ser de Sagitário" (Péricles Cavalcanti) - 03:03 9. "Borboleta" (Domênico Lancellotti) - 02:30 10. "Saiba" (Arnaldo Antunes) - 03:01
Mais de um motivo levou Leocádia e eu a irmos a vernissage da exposição
de Zoravia Bettiol no Margs. O
primeiro e mais óbvio é a importância de sua obra para as artes visuais no Rio
Grande do Sul e no Brasil nos últimos 60 anos, tempo o qual está sendo
comemorado juntamente aos 80 de vida da artista admirada por gente como Jorge Amado, Moacyr Scliar, Erico Verissimo, Mário Quintana, Mário Schemberg e o
próprio Vasco Prado, marido por quase três décadas e com quem compartilhara,
inclusive, admiração. Só isso, já justificaria a ida. Mas tem mais. Filha de
Iemanjá assim como Leocádia, a quem conhece e nutre amizade há pelo menos uma
década, Zoravia dedica, entre as 150 obras selecionadas de diversas fases,
técnicas e produções, algumas aos orixás e, obviamente, à Rainha dos Mares. Mas
não para por aí. Justamente uma das obras mais representativas e impactantes da
mostra, uma escultura em ferro fundido de cerca de 1 metro e meio chamada
exatamente de “Iemanjá”, de 1973, é do acervo pessoal de Leocádia, que a cedeu
para a rica exposição “Zoravia Bettiol –
o lírico e o onírico”. Claro que estaríamos lá.
Tal foi nossa surpresa que a referida escultura encontra-se logo na
entrada das quatro salas que compõem a diversa e numerosa seleção feita pelos
curadores Paula Ramos e Paulo Gomes, a qual vasculha as variadas fases
criativas de Zoravia. Há desenhos, pinturas, gravuras, arte têxtil, objetos,
ornatos e joias, além de registros de performances. Disso, resulta uma
impressionante diversidade de técnicas e estilos, as quais Zoravia domina com
naturalidade, sem excetuar seu rigor de perscrutadora voraz e quase obsessiva. Além
da visível liberdade criativa e da utilização das cores, nota-se um exercício
permanente para encontrar a trama certa dos fios, a pincelada mais expressiva,
a textura ideal da impressão. Tudo intenso, em permanente ebulição.
Esse cuidado e labor extremos se notam muito nas xilogravuras, das
especialidades de Zoravia. O detalhismo do desenho se expressa lúdico na Série
“Circo”, de 1967, cujos traços refazem de os cordéis nordestinos,
principalmente na forma das figuras humanas. Na série que versa sobre os
pecados capitais, é possível identificar a textura do tramado da corda, vista
em trabalhos têxteis feitos à base desse material. O lúdico, igualmente, está
presente de maneira incisiva, caso das séries Namorados (1965) e as dedicadas
aos deuses gregos (1965-66/76), onde se nota, aliás, parecença com as imagens
do candomblé – o maravilhoso “Netuno”, tal um preto velho, não deixa dúvida
dessa universalidade. Desta cultura tão brasileira quanto universal, Zoravia
extrai outros trabalhos e séries, como a própria série “Iemanjá” (1973). Sobre
isso, Jorge Amado tem um depoimento sobre Zoravia destacado na mostra: “Como ninguém, Zoravia canta e transmite a
atmosfera desse universo infantil onde o maravilhoso é o cotidiano e onde o
insólito é a terra”.
Há também lindas obras como “Criança Adormecida” (xilo, 1961), em que o
traço do desenho mostra-se rigorosamente estudado na criação final, e “Meias
Amarelas”, da série Romeu e Julieta (1970) A temática sociopolítica, igualmente
forte em toda sua carreira, tem uma das longas paredes da mostra praticamente
dedicadas com exclusividade. “Só o povo pode fazer o novo” (acrílica sobre
madeira, 1984), carrega o espírito do período do clamor pelas Diretas a qual o
Brasil passava naquele então. Visto com o olhar de hoje, em que aquele grito
democrático parece ter perdido significado, lembrei-me dos realistas versos de
Nei Lisboa: “cada povo tem o novo que
merece”.
Adentrando a sala mais ao fundo, depara-se com o que talvez tenha mais
impressionado a mim e até a Leocádia, acredito: o conjunto completo de
xilogravuras para a lenda “A Salamanca do Jarau”, publicada por Simões Lopes
Neto em seu célebre “Lendas do Sul” (1913). Zoravia ilustrou o texto em 1959,
produzindo 27 imagens que estão sendo expostas pela primeira vez em sua
totalidade, acompanhadas por vários – e belos – estudos preparatórios. Cada
imagem é de uma riqueza impressionante. Para mim, que já vi algumas séries
baseadas em obras literárias, como as que Dalí fez para a "Divina Comédia" ou
“Alice no País das Maravilhas”, esta não fica a dever em nada.
Uma exposição de absoluta diversidade, que instiga justamente por isso.
Como bem descreve o texto curatorial: “O
fato é que Zoravia Bettiol, ao contrário de muitos artistas de sua geração,
preocupados com a unidade estilística e fiéis a determinado meio expressivo,
buscou na diversidade parcelas dela mesma. Porém, em cada manifestação, em cada
trabalho, é sempre ela, Zoravia.”
*********
“Zoravia Bettiol – o lírico e o onírico”
onde:Margs - Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado
Malagoli
(Praça da Alfândega, s/n° Centro – Porto Alegre/RS)
quando:até 11 de dezembro, de
terça a domingo, das 10h às 19h
entrada:gratuita
curadoria:Paula Ramos e Paulo
Gomes
Da série Circo, dos anos 60.
Obra da série Namorados.
Os Deuses Gregos em traços que remetem ao candomblé.
Netuno imponente sobre as águas
Estandarte de Oxóssi, da série Iemanjá.
A belíssima criança adormecida, dos anos 60.
Sensualidade na obra da série dedicada a Romeu e Julieta.
Política e causa social em acrílica sobre madeira.
Uma das mais belas séries, inspirada nos 7 Pecados Capitais, de 1987.
Zoravia desenhada pelo marido Vasco Prado a traços próximos aos de Picasso.
Uma das obras de 2005 em que a artista interage com diversas técnicas.
Capa da impressionante série dedicada à obra de Simões Lopes Neto.
Mais uma das xilos de A Salamanca do Jarau.
Outra das gravuras da série inspirada em Simões Lopes Neto.
As duas filhas de Iemanjá com a escultura em homenagem à orixá.
Tive o prazer de poder visitar a exposição "Salvador Dalí", aberta no Centro Cultural Banco do Brasil, aqui no rio, onde estão expostas mais de 150 obras do artista espanhol. Verdadeiramente impressionante sob todos os aspectos, técnico, criativo, expressivo, etc. A obra do catalão, notória pelo surrealismo, é vista ao longo de toda sua carreira apresentando todas suas diversas fases, sua natural evolução em cada uma delas e suas próprias transformações conceituais e formais.
Selfie com Dalí
Além, é claro, das telas surrealistas, propriamente ditas, as grandes atrações da exposição, é interessante observar com atenção as ilustrações feitas por Dalí para livros como "Dom Quixote", "Alice no País das Maravilhas" e "Fausto"; as adaptações cinematográficas em parceria com Luis Buñuel e o trecho de sonho dirigido por Alfred Hitchcock no filme "Spellbound"; e dedicar uma especial atenção às obras de sua última fase, pouco antes de falecer, na qual seu surrealismo ganhava elementos mais geométricos e abstratos, e suas telas traziam um conteúdo mais carregado de homenagens e reminiscências, parecendo já antecipar sua morte.
É um imenso privilégio ter no Brasil uma exposição deste porte e significância e não menor, é o de poder visitá-la e apreciar a obra de um dos grandes mestres das artes de todos os tempos. Grande mostra. Quem tiver a oportunidade de ir, não perca.
Abaixo, algumas imagens da exposição:
Auto-retrato cubista
Primeira fase ainda com bastantes elementos abstratos
Obra ainda da primeira fase do artista
Público prestigiando a exposição
"Monumento Imperial a Mujer Niña".
Em destaque, uma pequena "Monalisa",
um dos muitos enigmas, símbolos e referências
ocultos nos quadros de Dalí.
Publicações com destaque para o artista
A obra de Dalí sempre repleta de símbolos e significados.
O elemento ovo sempre muito presente.
"La Velocidad máxima de La madonna de Raffael"
Materiais de antigas exposições da obra de Dalí
Série de obras remetendo a botânica
Da série de ilustrações para "Dom Quixote",
os Moinhos de Vento
Das ilustrações para "Alice no País das Maravilhas",
A Toca do Coelho
As páginas de "Alice...", de Carrol,
ilustradas por Dalí
ilustrações para a obra "Fausto"
de Goethe
Na última fase da carreira,
a presença mais constante de elementos geométricos
Homenagem de Dalí a Michelângelo
já nos últimos anos de vida.
Mulher transfigurando-se em violino
Este blogueiro na instalação interativa que reproduz
a sala, criada por Dalí,
imitando o rosto de Mae West
********************************************
Exposição Salvador Dalí visitação:até 22 de setembro, de quarta a segunda, das 9h às 21h local:Centro Cultural Banco do Brasil Rio de Janeiro Rua Primeiro de Março, 66, Centro, Rio de Janeiro (RJ) ingresso:gratuito
“CHAPELEIRO: Se você conhecesse o Tempo tão
bem quanto eu conheço você não falaria em gastá-lo, como uma coisa.
Ele é
alguém.
ALICE: Não sei o que você quer dizer.
CHAPELEIRO: É claro que você não sabe!
Eu
diria até mesmo que você nunca falou com o Tempo!
ALICE: Talvez não, mas sei que devo marcar
o tempo
quando aprendo música.”
trecho de “Alice no País das
Maravilhas”,
de Lewis Carroll
Depois de “Blow By Blow” do Jeff Beck, meu preferido, apresento pra
vocês mais um favoritíssimo da casa: “The Mad Hatter”, do pianista e tecladista
norte-americano Chick Corea. Como sempre, um pouquinho de história: em 1978,
aos 37 anos, Armando Anthony Corea já tinha uma longa estrada na música. Tocou
com os percussionistas Mongo Santamaria e Willie Bobo, com o flautista Herbie
Mann e com o sax tenor Stan Getz. Gravou seus primeiros discos solo na metade
dos anos 60 e mergulhou de cabeça na sonoridade free daqueles tempos.
Em 1968, foi convidado por Miles Davis a substituir Herbie Hancock em
sua banda. Participou dos seminais discos "In a Silent Way"e “Bitches Brew”.
Paralelamente, tinha os grupos Circle – com e sem o multiinstrumentista Anrhony
Braxton – e a primeira encarnação do Return to Forever, da qual participavam os
brasileiros Airto Moreira e Flora Purim, além de Joe Farrell e Stanley Clarke.
Após dois discos com esta formação, Corea foi com tudo pro fusion, trazendo para a banda, primeiro o guitarrista Bill Connors,
e depois descobrindo um jovem de 19 anos, Al Di Meola.
Neste tempo todo, Corea fazia projetos especiais para a gravadora ECM,
como discos de piano solo, duetos com o vibrafonista Gary Burton e trios com
Dave Holland e Barry Altschul. Em 1976, sentindo a necessidade de misturar a
linguagem acústica de seus discos da ECM com o fusion, muito em moda na época,
Corea fez uma trilogia de discos temáticos onde estas preocupações tomam a
forma de música: “The Leprechaun”, baseado nas histórias de duendes, e “My
Spanish Heart”, onde ele se debruça sobre a Espanha e seus sons, ambos de 76, e
“The Mad Hatter”, de 78. Na minha opinião, este terceiro é provavelmente o
trabalho em que Corea consegue mesclar as duas linguagens – e o acento erudito
com quinteto de cordas – com sucesso total, musicalmente falando.
Baseado no clássico livro de Lewis Carroll, "Alice no País das Maravilhas", a chave para entender o disco está na capa com Corea vestido de
Chapeleiro Maluco. A viagem inicia aí. Em termos musicais, "The Mad
Hatter" começa com Corea pilotando seus teclados em “The Woods”. Com moogs, mini-moogs, sintetizadores,
pianos elétricos e outros bichos, ele consegue reproduzir os sons de uma
floresta, com sapos, grilos e insetos, dando uma prévia do que virá pela
frente, a mistura de clássico com moderno. “Tweedle Dee” segue na mesma trilha,
fazendo uso das cordas e dos sopros (três trompetes e um trombone), pode-se
verificar com clareza a influência de Bela Bártok em sua música. Na música
seguinte, “The Trial”, temos a primeira aparição da exímia cantora e
tecladista, além de mulher de Corea, Gayle Moran (que havia participado da
segunda formação da Mahavishnu Orchestra, ao lado de John McLaughlin e Jean-Luc
Ponty). No julgamento do Rei de Copas, retirado diretamente do livro de
Carroll, Gayle canta com acento lírico: “Who’ll
stole the tarts / Was it the king of Hearts?”.
O principal momento jazzístico do disco acontece com “Humpty Dumpty”,
uma preferida dos músicos de Porto Alegre. Com um quarteto básico de jazz,
Corea consegue performances extraordinárias de seus colegas Joe Farrell no sax
tenor, Eddie Gomez no baixo acústico e Steve Gadd na bateria. Em meio a todos
aqueles teclados, cordas e sopros, é interessante ouvir o contraste de um grupo
acústico tocando um hard-bop
clássico. Cada músico dá seu showzinho particular, mas preste atenção no som de
baixo de Gomez. Madeira pura!
O lado 1 do LP termina com “Prelude to Falling Alice”, onde o tema é
tocado ao piano e “Falling Alice”, quando o pianista e compositor usa de todo o
arsenal sonoro para contar a queda de Alice. Gayle Moran canta o tema
principal, acompanhada pelas cordas e pelos sopros. Nesta música, temos a
primeira aparição de Herbie Hancock no piano elétrico, fazendo a harmonia para
o solo de mini-moog de Corea. Neste
período, ele e Corea começam a gravar duos de pianos. Destaque também para o
sax tenor de Farrell, um talento subestimado do jazz. Como estamos no tempo do
LP, há um fechamento musical da história pra que as coisas comecem de novo no
lado 2.
Ao virar o disco, “Tweedle Dum” reprisa o tema de “Tweedle Dee” numa
espécie de introdução da melhor faixa do disco, “Dear Alice”. Com 13 min e 7
seg, a música é uma espécie de tour de
force de todos os envolvidos. Pra começar com Eddie Gomez fazendo a melodia
no baixo acústico e Corea fazendo pequenos comentários ao piano acústico.
Durante 2min e 46seg, o baixista conduz a música com seu solo, à medida que
Gadd vai entrando aos poucos com acentos rítmicos na bateria. Moran entra para
cantar o tema principal e aí temos Farrell brilhando no solo de flauta,
secondado pelo quinteto de cordas e pelos sopros. Depois, Chick mostra toda sua
destreza e musicalidade ao piano. Tudo isso com Gadd dando seu show à parte e
mostrando porque é um dos bateristas mais cultuados do mundo. Na época, ele deu
uma entrevista dizendo que pedia as partituras de piano de Corea e estudava em
casa antes de gravar. Esta preocupação deu resultado: em algumas passagens de
"Dear Alice", os dois instrumentos parecem uma coisa só. Esta música
sozinha valeria o disco inteiro, tamanha a musicalidade que Corea e seus
músicos atingem, sem falar no arranjo perfeito que contrapõe as cordas e os
sopros.
Para encerrar o disco, "The Mad Hatter Rhapsody" com Corea no
mini-moog e Hancock em sua segunda
aparição no piano elétrico. O encontro destas duas feras é sensacional.
Enquanto Corea sola, Hancock faz harmonias diferenciadas no Fender Rhodes.
Nesta faixa, Hancock consegue tirar Gadd da bateria e coloca seu fiel escudeiro
Harvey Mason, que dá um suingue todo especial à faixa. Depois que os dois
tecladistas demonstram toda a sua qualidade, vem um interlúdio com o tema
principal tocado pela flauta e pelos sopros. Claro que a latinidade não poderia
ficar de fora e uma passagem de uma salsa estilizada com teclados e Gadd no cowbell fazem a cama para o tema final
onde volta Gayle Moran para apoteose final. Um disco maravilhoso. Quem não tem,
procure nas lojas ou na internet.
Fã de quadrinhos, desenhista, cartunista amador que sou, neste último domingo pela manhã dei uma fugida de casa, deixei minha bebê dormindo e fui dar aquela olhada na segunda edição do Rio Comicon. Nada de novo no que diz respeito ao formato, espaço físico ou distribuição em relação ao ano anterior, mas curiosamente, não sei porquê, este ano gostei mais, mesmo tendo menos tempo para apreciar. Não sei, talvez porque tenha me fixado mais na área de peineis mas, no geral, me pareceu ter destaques mais interessantes este ano do que no anterior. Mas o que se pode concluir facilmente desta pequena tour entre quadrinhos é que tem muita gente talentosíssima por aí e com os mais variados estilos.
painel dos irmãos Bá e Moon
no saguão principal
Meus destaques para a dupla competentíssima de irmãos brasileiros Gabriel Bá e Fábio Moon, para o gringo Bob Schreck ex-editor da DC, para a paulista Erica Awano que fez uma adaptação mangá para Alice no País das Maravilhas e para o espaço da sensual personagem Valentina, do desenhista Guido Crepax.
O homenageado desta edição foi o norte-americano Will Eisner, criador do personagem Spirit, do qual não sou lá muito admirador. Nesta parte, devo admitir que gostei muito mais da homenagem da última edição ao italiano Milo Manara, ex-colaborador de Federico Fellini.
Também homenageadas a CLAMP, estúdio japonês de mangás, e a DC Comics, vovózinha com 75 anos de super-herois e aventuras, tiveram grandes murais ao longo da via férrea, mas particularmente, acho que ao menos esta segunda mereceria espaço melhor.
Este seu ilustre blogueiro entre quadrinhos
De quebra fiz algumas pequenas comprinhas: o sétimo número da irreverente e provocativa publicação Tarja Preta que conta com nomes como Alan Sieber e Matias Maxx; a Tune 8 de Rafael Albuquerque; e um independente bem legal que dá um ar todo macabro a algumas lendas brasileiras, chamado Salomão Ventura, o Caçador de Lendas, com roteiro e ilustrações do bom Giorgio Galli.
A ideia era dar uma passada rápida mas com tantas coisas pra ver, pra comprar, foi impossível ser breve. Só não pude participar de oficinas, debates e etc. (mas acho que não ia querer mesmo), mas de resto foi um ótimo programa para uma manhã de domingo.
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EXPOSIÇÃO, PAINEIS E DESTAQUES
O público viu, curtiu e comprou
Um artista mostra seu talento
A Comic Cow. Tem uma HQ nela, de verdade.
As mais diversas técnicas, temas e expressões
Bob Schreck, um dos mais legais
Trabalho do ilustrador Rafael Albuquerque
Painel do artista Rafael Coutinho
Ilustração do artista Dan Goldman
Chris Claremont, um dos destaques do evento...
... e seu trabalho com os X-Men
CLAP
A CLAP teve seus paineis expostos
ao longo da via férrea
A CLAP é um estúdo japonês conceituado
no que diz respeito a mangás
(gênero que não curto muito)
DC Comics
Assim como a CLAP, a DC Comics teve seus paineis
colocados ao longo dos antigos trilhos...
... e a meu juízo, merecia instalações melhores
Algumas das 'fardas' clássicas da DC:
Batman, Flash, Superman
Dois momentos marcantes do Homem-Morcego:
A clássica "Piada Mortal"...
... e o imortal HQ "Cavaleiro das Trevas".
O ensandecido Coringa de "Asilo Arkhan"
Valentina
O espaço dedicado à personagem
E ela, toda sensual
O Espírito Vivo de Will Eisner
A fachada do espaço dedicado a Eisner com seu
personagem marcante, The Spirit
Os diversos trabalhos de Eisner expostos
A loura fatal do The Spirit: Ellen Dolan
Projeções com imagens do material de Will Eisner
já na saída da exposição