Sabe aqueles discos que a gente acha que ninguém mais gosta além de você? Pois é, "Am I Not Your Girl?", de Sinéad O'Connor era assim pra mim. Já era fã da cantora de seus trabalhos de carreira, mas aí na compilação "Red Hot + Blue" coletânea com vários artistas em homenagem a Cole Porter, descobri a veia jazz da irlandesa. No projeto da organização Red Hot, em benefício às vitimas da AIDS, Sinéad interpretava, de forma magnífica, a lindíssima "You do something to me" e aquilo me arrebatou. Mas acredito que a experiência tenha sido importante para ela também, uma vez que a cantora lançaria dois anos depois, um álbum só de standarts do jazz.
Sinéad canta com elegância, com precisão, confere a emoção exata para cada canção.
A faixa de abertura já justificaria todos os elogios à obra: "Why don't you do right?", canção originalmente do filme "As noivas do Tio Sam", mas imortalizada na voz da sensual personagem de desenho Jessica Rabbit, ganha carne e osso na boca de Sinéad O'Connor numa interpretação provocativa, insinuante, venenosa, digna da femme-fatale do desenho animado.
"Bewitched, Botched and Bewildered" que a segue, conjuga magicamente melancolia, delicadeza e graça, com a cantora colocando uma doçura tal, uma fragilidade na voz... que chega a ser algo realmente tocante. "Secret Love", originalmente cantada por Doris Day, nos anos 50, tem um arranjo mais aberto, mais luminoso, mas Sinéad canta num ar quase confidente ao revelar, "Once I had a secret love" e logo abre o peito para revelar que não tem segredos para mais ninguém, "My secret love is no secret anymore". E "Black Coffee", gravada anteriormente por nomes como Sarah Vaughn e Ella Fitzgerald, e trilha do filme "Algemas Partidas" em 1960, confirma perfeitamente aquela atmosfera misteriosa de filme noir.
No entanto é em "Success has made a failure of our home" que a irlandesa despeja sua maior carga emocional em uma das canções do disco. Apoiada por um arranjo jazz-rock intenso, Sinéad numa interpretação dramática, encarna uma mulher desesperada, quase indo às lágrimas, se desfazendo, se desintegrando diante de seu homem, implorando para que ele simplesmente diga que ela ainda é sua garota.
Outro ponto alto do disco é a ótima "I want to be loved by you", do filme "Quanto mais quente melhor", na qual Sinéad conserva a discontração e a leveza da original, interpretada por Marilyn Monroe, com direito até a um "Boop-boop-a-doop!", que, se não tem a mesma sensualidade da loira, tem graça e doçura.
A sombria canção do compositor húngaro Rezső Seress, letrada por László Jávor, "Gloomy Sunday", associada frequentemente a suicídios, traduzida para o inglês e cuja interpretação mais famosa é de Billie Holiday, ganha uma verão não menos emocional, intensa e cheia de possíveis "leituras" e "interpretações" na voz da irlandesa que, sabe-se bem, embora tenha morrido de causas naturais, tentara o suicídio diversas vezes durante a vida.
"Love Letters", clássico que já esteve nas trilhas de diversos filmes e peças, com os mais variados andamentos e ênfases, neste disco ganha uma sonoridade imponente de metais com uma poderosa introdução de uma orquestra de jazz, enquanto Sinéad, se comparada a outras grandes vozes como Nat King Cole e Elvis Presley que já interpretaram a canção, opta por uma interpretação sóbria, comedida, que lhe confere um aspecto ainda mais fragilizado.
Em uma leitura extremamente melancólica e dramática do clássico da bossa-nova, "Insensatez", de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, a irlandesa demonstra toda a importância e a influência da música brasileira em sua formação. "Scarlett Ribbons", canção de Natal na sua origem, aqui adquire uma carga quase fúnebre. Muito se dá pelo formato: a voz acompanhada apenas por uma flauta, e o tom cru do estúdio, com o ouvinte podendo captar todas as respirações, as pausas, os vazios...
"Don't cry for me, Argentina", do musical Evita, aparece em duas versões, uma cantada, que se não é nada excepcional, no mínimo é, inegavelmente, melhor do que a da Madonna, e uma instrumental, num jazz descontraído e acelerado, que, praticamente fecha o disco, que ainda tem uma mensagem pessoal da cantora sobre a dor (o que também fez ainda mais sentido depois das circunstâncias de sua morte).
Na época que soube do projeto da irlandesa, tratei de dar um jeito de dar um jeito de conseguir aquele seu novo álbum, só que duro como era na época (e ainda sou), o jeito foi gravar e ter em K7. Muito ouvi aquela fita. Gastei os cabeçotes do walkman com ela. Até evoluí depois, embora ainda sem grana, para o CD gravado, mas nunca havia tido uma mídia original. Até que numa dessas feiras de vinil, encontrei por um preço bem razoável o "Am I Not Your Girl?" em LP. O vendedor, um senhorzinho muito simpático que me contou ter sido DJ em festas disco dos anos 70, se derreteu pelo álbum. Disse ser aquele, na sua opinião, um grande disco, trabalho que muita gente não valoriza mas que para ele era o melhor da cantora, interpretações incríveis e tudo mais... Se eu tivesse alguma dúvida, as teria abandonado naquele momento com uma manifestação tão entusiástica como aquela. Mas a admiração pelo disco não parou nele: tenho o hábito de compartilhar nas redes sociais minhas trilhas sonoras do dia e num dia desses qualquer, ouvindo o álbum, lancei lá no Facebook, no Instagram, no Twitter, um "Ouvindo agora, "Am I Not Your Girl?", de Sinéad O'Connor". Ah, foi uma enxurrada de likes e comentários. "Grande disco", "Esse disco é muito bom", "Dos meus preferidos", e etc. Aí que eu descobri que não sou só eu que adoro esse disco. E, cá entre nós, um disco com tantos clássicos, canções eternizadas pelo cinema, músicas já interpretadas por nomes imortais, admirado desta maneira, e com essa importância na vida de tanta gente, não pode ser considerado menos que um ÁLBUM FUNDAMENTAL.
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FAIXAS:
1. "Why Don't You Do Right?" - Joe McCoy(2:30)
2. "Bewitched, Bothered and Bewildered" - Lorenz Hart, Richard Rodgers(6:15)
3. "Secret Love" - Sammy Fain, Paul Francis Webster(2:56)
4. "Black Coffee" - Sonny Burke, Paul Francis Webster (3:21)
5. "Success Has Made a Failure of Our Home" - Johnny Mullins(4:29)
6. "Don't Cry for Me Argentina" - Andrew Lloyd Webber, Tim Rice (5:39)
7. "I Want to Be Loved by You" - Bert Kalmar, Harry Ruby, Herbert Stothart (2:45)
8. "Gloomy Sunday" - László Jávor, Sam L. Lewis, Rezső Seress (3:56)
9. "Love Letters"Edward Heyman, Victor Young3:07
10. "How Insensitive" - Vinicius de Moraes, Norman Gimbel, Antônio Carlos Jobim(3:28)
11. "Scarlet Ribbons" - Evelyn Danzig, Jack Segal (4:14)
12. "Don't Cry for Me Argentina" (Instrumental) - Andrew Lloyd Webber, Tim Rice (5:10)
13. "Personal message about pain (Jesus and the Money Changers)" (Hidden track) - O'Connor (2:00)
“Uma das marcas da estatura constantemente crescente de Joe Henderson é que ele não pode ser categorizado de maneira ordenada. Por um lado, está entre os jovens exploradores de novas formas de expandir as linguagens do jazz. Por outro lado, ele pode ser igualmente convincente como um blues groover e como um mestre personalizador de baladas na tradição vintage dos tenores do jazz ultratonal. Este álbum ilustra ainda mais o alcance e a profundidade de Henderson.”
Nat Hantoff, do texto da contracapa original de “Inner Urge”
“Na hora marcada, as necessidades tornam-se maduras. É a hora em que o Espírito Criativo (que também se pode designar como Espírito Abstrato) encontra um caminho para a alma, depois para outras almas, e provoca um anseio, um desejo interior.”
Wassily Kandinsky, de “Sobre o problema da forma", 1912
Todo amante de jazz tem motivos para reverenciar o ano de 1964. Assim como o igualmente rico 1959, em que pelo menos dois discos revolucionários para o gênero foram concebidos – “Kind of Blue”, de Miles Davis, e “The Shape of Jazz to Come”, de Ornette Coleman - o quarto ano da década de 1960, em que a abismal leva de grandes músicos surgidos no pós-Guerra encontrava-se em plena forma, impressiona pela quantidade de obras da mais fina estampa. De Wayne Shorter a Albert Ayler, de Lee Morgan a Sun Ra, vários dos “feras” do jazz deixaram sua marca em 1964. Quem também o fez com igual competência e qualidade foi Joe Henderson. A obra em questão é “Inner Urge”, em que o saxofonista tenor norte-americano está acompanhado de um estelar time: Bob Cranshaw, baixo, Elvin Jones, bateria, e McCoy Tyner, piano. Praticamente, o trio que acompanhava John Coltrane havia anos (afora Cranshaw, que tinha no lugar Jimmy Garrison) e que, poucos meses dali, gravaria com este o talvez maior feito não somente daquele fatídico ano, mas de toda a história do jazz: “A Love Supreme”.
Quarto disco de Henderson tanto como band leader quanto pela Blue Note, sua primeira gravadora e que o havia contratado um ano antes, carrega, como o título diz, o sincero “desejo interior” de um jovem artista em plena atividade. Em menos de dois anos, o produtivo Henderson estava com sangue nos olhos, visto que já tinha emendado outros três álbuns, sendo um deles o memorável “In ‘Out”, daquele mesmo milagroso 1964. Motivos havia, contudo, para que estivesse com todo esse gás. Embora fosse recente a carreira solo, sua trilha na música já vinha de pelo menos 15 anos antes. Dono de um estilo que oscila entre o austero e o onírico com a mesma naturalidade que seu sax salta de escala, Henderson sempre foi um “cabeção”. Estudou flauta, baixo e saxofone na Wayne State University e, mais tarde, composição no Kentucky State College, não raro destacando-se pela criatividade e aplicação, Dotado da rara habilidade de “ouvido absoluto”, era capaz de emular com perfeição seus mestres Charlie Parker, Dexter Gordon e Yusef Lateef só ao escutá-los. Nem a passagem pelo exército norte-americano, entre 1960 e 1962, foi capaz de freá-lo, visto que não parou com a música neste tempo e até ganhou prêmios tocando para os colegas soldados. Ao sair das forças armadas, sua arma passou a ser seu instrumento e o território a conquistar seria o centro nervoso do jazz, Nova York, para onde se mudou imediatamente após a baixa.
As experiências vividas e a sensibilidade musical de Henderson lhe legaram uma visão artística naturalmente abrangente, que o condicionaram a transitar do classicismo do be-bop à ousadia da avant-garde ou à complexidade harmônica da bossa nova num passo. Em “Inner”, esta ânsia de um “espírito abstrato”, como classificou o artista visual russo Wassily Kandinsky, referência da arte abstrata, está cristalina na multiplicidade e no ecletismo dos números musicais que o compõem. A perfeita engenharia sonora de Rudy Van Gelder e a produção invariavelmente caprichada de Alfred Lion estendem o tapete para a entrada da impecável faixa-título, melodiosa e instigante. São 12 minutos de passeio modal de uma turma acostumada com esse expediente desde que Miles e Dave Bruback o cunharam poucos anos antes. A alta química entre os integrantes da banda propiciam a Henderson o exercício de seus aforismos sonoros com liberdade. Enquanto Tyner dedilha notas líricas e dissonantes, Cranshaw espalha os tons graves com sabedoria e Jones... bem, Jones arrasa do início ao fim na combinação caixa/pratos e, em especial, no magnífico solo que executa quase ao final, quando não deixa o ouvinte respirar.
“Isotope”, na sequência, mantém o clima suspenso, porém agora num hard-bop colorido, suingado, que contrasta com o abstratismo da faixa inicial. Decréscimo nenhum, contudo. Espelhando-se na elegância de Dex Gordon, Henderson volta às raízes bop. Em seguida, um novo tema e uma nova guinada. As influências hispânicas, que tanto agradavam os jazzistas desde os anos 50 (a se ver pelo “Jazz Flamenco”, de Lionel Hampton, ou “Sketches of Spain”, de Miles) dominam a excelente “El Barrio”. Traços, no entanto, desenhados com os pincéis abstratos do autor, que a impregna de estilo e personalidade. A começar pelos acordes iniciais, quando as notas graves do sax de Henderson emanam caracteres típicos das terras madrilenhas. Jones, atinado, articula um compasso sincopado, enquanto o piano de Tyner e o baixo de Cranshaw insinuam movimentos airosos. Lá pelas tantas, de tão absorvido, Henderson, ao lançar um forte solfejo, chega a afastar-se do microfone, diminuindo a captação do som, o que sabiamente não foi “corrigido” por Van Gelder. Afinal, como no flamenco, é assim que “El Barrio” tinha que soar: orgânica. Tema absolutamente sensual e acachapante.
Não é exagero dizer que “You Know I Care”, versão para a canção de Duke Pearson, é das mais belas baladas do cancioneiro jazz – ao menos, do abastado ano de 1964 com certeza. Mudando totalmente de estilo – ou melhor, recorrendo a mais uma de suas facetas –, Henderson encarna o mais romântico dos jazzistas e faz ouvirem-se Coleman Hawkins, Lester Young, Gordon e... Joe Handerson também, é claro. Para um disco que, mesmo em apenas cinco faixas, não cansa de surpreender, não é de se estranhar que até o standart “Night and Day” venha igualmente cheio de originalidade. A leitura post-bop de Henderson e sua banda para o clássico de Cole Porter lhe dá um caráter sinuoso, que ora percorre os acordes-base com elegância, ora lhe acentua dissonâncias e modernidade modal. Uma reestruturação melódica que contribuiu para um olhar totalmente diferente deste popular song dos anos 30.
Por cinco anos, desde que entrara para a Blue Note, um ano antes de realizar “Inner”, até 1968, Joe Henderson apareceu em quase 30 álbuns do selo, sendo apenas cinco lançados sob o seu nome. Independentemente da assinatura, o que importava mesmo era espraiar a sua arte por tanto tempo restrita apenas aos conservatórios, aos palcos e até às trincheiras. Porém, de toda esta larga produção, “Inner” é o trabalho que melhor define sua alma exploratória e inquieta. Se "na hora marcada, as necessidades tornam-se maduras" aos "espíritos criativos", Henderson deu um jeito de não perdê-la. Por isso, por algum motivo mágico, 1964 parecia mobilizá-lo especialmente, assim como a outros de seus pares. Tanto é que, além deste e de “In ‘Out” – um lançado em abril e outro em novembro –, Henderson também integra os grupos de outros 10 projetos dentro daqueles 12 inesquecíveis meses, a maioria clássicos como ”Song for My Father", de Horace Silver, ou “The Sidewinder”, de Morgan. Pena que, tanto para Henderson quanto para todos os músicos e amantes do jazz, inexoravelmente 1º de janeiro de 1965 um dia chegou.
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FAIXAS:
1. “Inner Urge” - 12:00
2. “Isotope” - 9:10
3. “El Barrio” - 7:10
4. “You Know I Care” (Duke Pierson) - 7:15
5. “Night And Day” (Cole Porter) - 7:00
Todas as composições de autoria de Joe Henderson, exceto indicadas
"No disco americano, o poeta/cantor domina o tempo e portanto pode cantar: '´já tem coragem de saber que é imortal'".
Matinas Suzuki, em resenha da Folha Ilustrada de 1986
"Como existe João, e para que não se esqueça isso, este é um disco de rock and roll. Sem aspas."
Caetano Veloso, ao Correio da Bahia, 1990
Os anos 80 foram de diversificação para Caetano Veloso. Maduro artisticamente, mais curado das feridas do exílio nos anos 70 e consolidado como um dos artistas mais importantes e populares do Brasil, o baiano lançou-se em vários tipos de projetos naquela década. Estreia, em 1986, um programa de auditório na Globo ao lado de Chico Buarque, “Chico & Caetano”, marco da tevê brasileira. Cria trilhas para tevê, teatro e cinema, além de rodar o seu próprio filme, o autoral “O Cinema Falado”, daquele mesmo ano. Arrisca-se até como ator nos filmes “Tabu”, de Julio Bressane, de 1982, e um ano depois, “Onda Nova”, de José Antônio Garcia e Ícaro Martins. Também, escrevera artigos tão polêmicos quanto carregados de qualidade literária e filosófica. Na carreira musical, concluía a jornada junto à Outra Banda da Terra – que o acompanhara por praticamente toda a década anterior –, integra o naipe de “Brasil” (1981), de João Gilberto, juntamente com Gilberto Gil e Maria Bethânia, produz o amigo Jorge Mautner e obtém sucesso naquilo que era o ápice da popularidade de um músico no Brasil à época: as trilhas de telenovelas – casos de “O Homem Proibido”, de 1982 (com “Queixa”), “Eu Prometo”, 1983 (“Você é Linda”) e “Tieta”, 1989 (“Meia Lua Inteira”).
Dentre esses variados projetos, faltava investir mais fortemente em um: a projeção internacional. Se no seu quintal estava tudo dominado, agora eram os gringos que precisava atingir para expandir seu trabalho naturalmente universal. Conhecido na Europa desde que vivera na Inglaterra, no período da Ditadura Militar, Caetano mantinha frequência de shows internacionais em diversos países, como Suíça, Portugal, França, Itália, Israel, entre outros. Mas faltava o coração da indústria fonográfica: os Estados Unidos. Surge, então, a oportunidade de gravar em Nova York um disco especialmente para o mercado norte-americano, algo que Gil já o fizera, em 1979, no ótimo “Nightingale”. Porém, ao contrário do parceiro de Tropicalismo, que optara por versar para inglês clássicos de seu repertório, os quais ganharam novos arranjos para banda, Caetano escolhe a simplicidade do acústico. É o que se revela no cristalino “Caetano Veloso”, de 1986.
Formato que já vinha sendo lapidado pelo artista há alguns anos em shows – incluindo “Totalmente Demais”, disco coirmão gravado no Brasil naquele mesmo ano –, o som voz/violão/percussão ganha no “Disco Americano”, como é apelidado, a sua mais alta qualidade. Com um repertório escolhido a dedo, Caetano traça um histórico de seu gênio compositivo ao longo das então mais de três décadas de carreira. Composições antigas, como “Coração Vagabundo”, de seu primeiro disco (“Domingo”, de 1967), e “Saudosismo”, de 1968, se aliam a temas mais recentes, como “Luz do Sol”, escrita para a trilha do filme “Índia, a Filha do Sol”, de 1982, e duas de “Velô”, de 1983. Além disso, puxam-se clássicos do cancioneiro caetaneano como “O Leãozinho”, “Terra” e “Trilhos Urbanos”, esta última, a que tem a primazia de abrir os caminhos, ditando o clima que se seguirá nas 13 faixas do álbum. Tudo sob um arranjo simples e sofisticado ao mesmo tempo, com o violão do próprio Caetano fazendo toda a base bossa-novística, as percussões de Mestre Marçal e Marcelo Costa contribuindo com texturas e leves ritmações e o violão solo de Toni Costa completando a arquitetura sonora.
Assim como “Trilhos...”, ainda melhor do que sua original nessa versão, ocorre o mesmo com “O Homem Velho”, que, somente voz/violão, faz revelar a real essência da canção. Escrita para o pai de Caetano quando de seu falecimento, tem uma de suas mais tocantes letras, com versos como: “A solidão agora é sólida, uma pedra ao sol/ As linhas do destino nas mãos a mão apagou/ Ele já tem a alma saturada de poesia, soul e rock'n'roll/ As coisas migram e ele serve de farol”. Caetano está cantando lindamente, dando às interpretações a medida certa de emotividade. É o que se nota em “Eu Sei que Vou te Amar”, numa das mais belas versões do clássico de Tom e Vinícius – à altura das interpretações de Elizeth Cardoso, João Gilberto e do próprio Tom Jobim.
Outras imortais de Caê, como “O Leãozinho”, bastante afeita ao acústico, também são levadas apenas por seu intérprete ao violão, límpidas. Mesmo caso de “Odara”, originalmente uma disco music que, desta maneira, soa como se sempre tivesse sido tocada na sutiliza do acústico. Aliás, a musicalidade de Caetano é tamanha que ele consegue dar tal roupagem a duas melodias totalmente distintas dos ritmos brasileiros: “Get Out of Town”, standart do cancioneiro norte-americano, de Cole Porter, e “Billie Dean”, o pop dançante de Michael Jackson. Tal como ousara nos anos 70 em “Qualquer Coisa”, de 1975, quando pôs Beatles dentro do som mais brasileiro de todos: o samba. E são duas das mais belas canções do disco: “Get Out...”, superelegante, que conta com um solo de violão arrasador de Toni Costa, e “Billie...”, em que aproveita a radiosa melodia original para transformá-la, inclusive mesclando-a em pout-pourri com o samba de gafieira “Nega Maluca” e a sinfônica “Eleanor Rigby”, que o faz voltar a Lennon e McCartney, inclusive pela marcante participação de Toni Costa relembrando a guitarra de Perinho Albuquerque em "Eleanor...";
“Cá-Já”, do álbum “Muito”, de 1978, ganha arranjo mais encorpado com as percussões e o violão de Toni Costa. Daquele mesmo disco, “Terra”, talvez a mais brilhante composição de Caetano, encerra repetindo a sonoridade de pequena banda e, mais uma vez, superando a primeira gravação. Versos inesquecíveis como: “De onde nem tempo, nem espaço/ Que a força mande coragem/ Prá gente te dar carinho/ Durante toda a viagem/ Que realizas no nada/ Através do qual carregas/ O nome da tua carne...”, se redimensionam em beleza na discrição exata em que cabe a canção. Caetano faz menos ser muito mais.
Naquela mesma década de 80, logo em seguida viria uma nova fase na carreira musical de Caetano quando, junto aos “Ambitious Lovers” Peter Scherer e Arto Lindsay, incorpora elementos do pós-jazz e da ethnic fusion à sua abundante musicalidade e poética tropicalista. Mais uma faceta que Caetano apresentava. Porém, a versatilidade de usar de formas variadas seu talento naqueles anos ganha no “Disco Americano” certa redenção. Todos sabem (mesmo que alguns façam de conta do contrário) de suas qualidades artísticas, mas o seu âmago está, de fato, no ensinamento permanente e na profunda reverência à batida e ao canto de João. O resto é quase perfumaria – e se não é, o disco feito para os Estados Unidos faz passar essa sensação ao ouvi-lo. Tudo cabe ali: o samba, o jazz, o rock, o pop. O moderno e o passado. Só voz, violão e canção: basta isso para Caetano ser totalmente demais.
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FAIXAS: 1. Trilhos urbanos 2. O homem velho 3. Luz do sol 4. Cá-já 5. Dindi (Tom Jobim/Aloysio de Oliveira)/ Eu sei que vou te amar (Tom/Vinicius de Moraes)/ 6. Nega maluca(Fernando Lobo, Evaldo Ruy)/ Billie Jean (Michael Jackson)/ Eleanor Rigby (Lennon-McCartney) 7. O leãozinho 8. Coração vagabundo 9. Pulsar (Augusto de Campos/Caetano Veloso) 10. Get out of town (Cole Porter) 11. Saudosismo 12. Odara 13. Terra Todas as composições de autoria de Caetano Veloso, exceto indicadas
Meu amigo Roger Lerina acertou em cheio em sua resenha do show de John Pizzarelli no último dia 8 de março no Centro de Eventos do BarraShoppingSul, dentro da programação especial do Porto Alegre Jazz Festival: Ele "é diversão na certa”. Tocando para um público de meia idade – mesclado salutarmente com alguns jovens mais atentados –, o guitarrista inovou desta vez. Misturando aquele feijão-com-arroz gostoso de standards clássicos como “They Can’t Take That Away From Me” e “I Got Rhythm”, dos irmãos George & Ira Gershwin, com músicas de Nat King Cole e dos Beatles, o músico provou que sabe cativar uma plateia com sua simpatia, com arranjos bem escolhidos e de fácil assimilação pelo público. Seu grupo, apesar de não ter nenhum virtuoso, mostrou ser correto e direto ao ponto, sem firulas. O pianista Konrad Paszkudzki, o baixista Mike Karn e o baterista Andy Watson cumpriram muito bem seu papel de coadjuvantes da grande estrela.
Mas as semelhanças com os shows anteriores terminaram aí. Escorado um scat singing junto com sua guitarra, Pizzarelli usou a técnica aperfeiçoada por George Benson a seu favor. Usando este expediente em quase todos os solos, o guitarrista mostrou ter amplo conhecimento da história de seu instrumento no jazz, circulando pelos estilos dos sóbrios, Jim Hall, Barney Kessel e Herb Ellis num momento e na exuberância do já citado Benson e de Wes Montgomery no outro. Após começar o espetáculo suavemente com as composições dos Gershwin e de seu ídolo King Cole, Pizzarelli apresentou suas novidades. Primeiro, uma versão de “Honey Pie” dos Beatles quase irreconhecível. Na sequência, talvez o grande momento musical da noite, a versão de “I Feel Fine”, de Lennon & McCartney, utilizando-se do tema clássico do funky soul da gravadora Blue Note, “The Sidewinder”, do trompetista Lee Morgan como base do arranjo.
O virtuoso Pizzarelli e sua competente banda
Em compensação, pra mim soou estranha a versão “bossanovística” de “Silly Love Songs”, dos Wings de Macca. Talvez porque a composição esteja tão entranhada no universo pop que “abrasileirá-la” tenha parecido forçado. Outra novidade foi a apresentação de “Oscar Night”, composta pelo falecido pianista de Pizzarelli, Ray Kennedy, em homenagem a Oscar Peterson. Totalmente instrumental, a música faz um passeio/homenagem pelo estilo do grande pianista canadense, abrindo espaço para todos os músicos mostrarem sua destreza.
A partir daí, o guitarrista chama ao palco o neto de Tom Jobim, Daniel – cada vez mais parecido com o avô – para emular o encontro de Frank Sinatra com Jobim há 50 anos atrás. E se saem bem. Como no disco, as clássicas “Dindi” e “Água de Beber” dividem espaço com “Baubles, Bangles and Beads” e “I Concentrate on You, de Cole Porter, mas Pizzarelli tem o cuidado de acrescentar outras pérolas jobinianas no repertório, como “Bonita”, “Two Kites” e “Wave”. Daniel, pouco à vontade somente ao microfone, deslanchou ao piano e voz. No final, a indefectível “The Girl From Ipanema”, que suscitou mais um dos engraçados comentários do guitarrista sobre a onipresença desta canção no mundo inteiro.
Pra finalizar, o número que Pizzarelli sempre apresenta em sues shows: a homenagem ao seu estado natal, New Jersey, com “I Like Jersey Best”, onde brinca com “as versões” de Bruce Springsteen, Bob Dylan, Paul Simon, Lou Reed, Lou Rawls, Billie Holiday, James Taylor, Bee Gees e, até mesmo, João Gilberto e João Bosco. Um final divertido para um show muito musical. Tudo isso começou com o duo da voz de Dudu Sperb com o piano de Luiz Mauro Filho. Como se esperava, dados os talentos do cantor e do pianista, a noite iniciou maravilhosa com clássicos como "Ilusão à Taa", de Johnny Alf; "Stardust", de Hoagy Carmichael, e da linda "Mistérios", de Joyce. Primeiro, a sobriedade gaúcha armando a plateia para a animação de John Pizzarelli. “Volte logo, Pizza”, como disse meu querido amigo Sepeh de los Santos.
Porto Alegre já está aguardando o retorno de Pizza
“Eu praticamente já podia ouvi-lo [a Cannonball Adderley] na minha
banda desde a primeira vez que o escutei”.
Miles Davis
“Ouvindo Miles – que é mais um grande solista do que um grande
trompetista –, de repente todos os fundamentos deixam de ter significado para
mim, por ele ser tão brilhante de outra forma”.
Cannonball Adderley
Uma revolução geralmente é precedida de algum marco precursor. Com obras-primas da arte musical isso também acontece. Na história do jazz, uma das principais revoluções ocorridas, a do jazz modal, promovida por Miles Davis em “Kind of Blue”, de 1959, talvez soe tão original que a faça parecer ter partido do zero. Porém, resultado da própria evolução do trabalho de seu autor – ainda mais quando se pensa na tetralogia da Prestige e, principalmente, em dois dos discos que o antecederam, “Ascenseur pour l'Échafaud” e “'Round About Midnight” –, é de se supor que tenha recebido também algum outro exemplo anterior. E, de fato, se há um álbum responsável por abrir caminhos em estética e conceito para o mais célebre disco do jazz da história, este é “Somethin’ Else”, do saxofonista Cannonball Adderley.
Realizado pelo selo Blue Note um ano antes de Adderley compor o sexteto de Miles na gravação de “Kind...”, “Somethin’...” conta, não por coincidência, com o próprio trompetista na formação. Adderley pede que a gravadora Columbia o ceda e concebe, assim, uma formação de banda rara e lendária, que tinha ainda o mestre Art Blakey, na bateria; Sam Jones, no contrabaixo; e Hank Jones, no piano. Todavia, o feito fazia-se sui generis, principalmente, porque Miles não se colocava como coadjuvante desde as clássicas gravações com o mito Charlie Parker, nos anos 40. Experiente e de espírito líder, Miles, então, naturalmente assume um papel mais do que de sideman, e, sim, o de quase um “guia espiritual”. Autor da faixa-título e responsável por ajudar a escolher o repertório, ele coprotagoniza ainda praticamente todos os solos.
Em “Somethin’...” estão algumas das maiores preciosidades dos estilos cool e hard bop, além de antecipar com clareza a elaboração harmônica do jazz modal, aperfeiçoada por Miles em “Kind...”. A estonteante versão de "Autumn Leaves" é o melhor exemplo disso. Perfeita sintonia dos sopros no chorus; bateria de Blakey criativa e variante; insinuante contrabaixo de Sam Jones; e o piano de Hank vivo e sonoro. É ele quem lança os acordes iniciais da canção. Isso, só para começar, pois a música avança mais um pouco e a primeira sessão de improvisos traz um dos mais inspirados solos de Miles de toda sua carreira. Que capricho! Assertivo e poético como um Louis Armstrong. O band leader Adderley, entretanto, não sucumbe, e emenda sua primeira participação com o lirismo que lhe é característico num extenso solo da mais alta sensibilidade. A bola volta para Miles, que retoma o toque pronunciado e cool. Mas não para finalizar, contudo. Hank também solta pérolas sobre as teclas, num solo de profunda elegância, que antecede um final falso. Parece que a faixa se encaminha para a conclusão, quando, sobre a base do chorus, Hank e Miles tornam a improvisar, criando aquele efeito do jazz modal de solos sobre uma base modulada. Um prenúncio do que Miles desenvolveria junto a outro pianista, Bill Evans, um ano dali. Tudo isso faz de "Autumn Leaves" um número histórico.
Outro standart do cancioneiro norte-americano, a clássica "Love for Sale", de Porter, também ganha feições muito próprias nas mãos da banda. A começar pelo piano, que novamente dá a largada, mas, aqui, diferentemente do arrojo da primeira, lírico e romântico. A banda entra e Blakey é quem determina a virada para um jazz bem blues marcado nas vassourinhas na caixa e intercalado por alegres incursões do piano. Miles, mais uma vez o centro, sustenta todos os lances de chorus, fazendo as pontes e “knees” previstos no arranjo. Porém, agora é de Adderley que saem os improvisos. Vigoroso, rico, blues. Hard bop na essência.
A faixa-título, um blues suingado, denota a preferência de seu autor, Miles, que, não por acaso, comanda-a do início ao fim. Primeiro, no solo, inteligente em sua economia, mas altamente significativo naquilo que expressa. Somente por volta de quase 3 minutos que Adderley aparece. E para fazer bonito com seu sax exuberante, clara tradição que liga Parker, Louis Jordan e Benny Carter. Interessante notar a sintonia do grupo: ali por 4 minutos, percebendo a intensidade do approach do saxofonista, Blakey acelera o ritmo, para logo desfazê-lo e voltar ao compasso de antes, tudo desenhado pelo baixo escalonado de Sam. A segunda metade de “Somethin’...” traz um bate-bola entre Miles e Adderley, no mínimo, memorável.
Noutra abertamente bluesy, "One for Daddy-O”, esta, mais sensual, evidencia-se de largada o viçoso jazz de Adderley. Impressionantes modulações be bop são extraídas do saxofone. Miles responde, fazendo aquilo que sabe com maestria: solar. Adderley, admirado com a expressividade do colega e mestre, disse certa vez sobre Miles: “Um solo reflete a maneira como ele pensa a composição, e o solo passa a ser a coisa principal”. Hank também dá sua contribuição antes de Adderley e Miles improvisarem novamente. Ao final, ouve-se Miles perguntando ao produtor Alfred Lion: "Era isso que você queria, Alfred?". Só podia ser.
A balada "Dancing in the Dark" traz um clima ainda mais sensual: escovinhas arrastando na caixa, solo comovido do sax, piano marcando delicadamente o compasso e o baixo quase desmaiando. A única em que apenas Adderley protagoniza é justamente a que, acertadamente, fecha o disco. Assim, independente de “Somethin’...” ter a cara de um disco dele ou de Miles, o fato é que se trata de um dos mais brilhantes da história do jazz, reconhecido pela uDiscoverMusic como o melhor álbum de todos os tempos da Blue Note, um dos 30 essenciais do jazz dos anos 50 pela JazzWise Magazine e um dos 15 recomendados pelo site AllAboutJazz em toda discografia jazz. Não é para menos, uma vez que a aura e a sofisticação que arrebatariam o mundo da música em “Kind...” já estavam lançadas aqui por Cannonball, que, com um tiro de canhão, fez o arremesso no ponto certo. Depois, foi só rolar a bola pra dentro.
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O relançamento em CD inclui a faixa bônus "Bangoon" ou "Allison's Uncle", este último, o título original dado pelo fato de a sessão de gravação ter sido feita logo após a esposa do irmão de Adderley (Nat) ter dado à luz à sua filha, Allison.
Quem é amante de jazz e afeito às comparações futebolísticas a diversos
outros assuntos, vai concordar: se Miles Davis é o Pelé e John Coltrane o Garrincha do jazz, Dexter Gordon é o
Nilton Santos. Miles por conta da longevidade e quantidade de gols feitos nas diferentes
eras em que atuou. Coltrane pela meteórica e decisiva passagem, marcada pela
genialidade, pela paixão por sua arte e pela habilidade jamais igualada.
Gordon, por sua vez, poderia ter o mesmo apelido que o zagueiro do Botafogo e
das duas primeiras seleções brasileiras campeãs mundiais: “enciclopédia”. O
saxofonista era um craque do jazz.
Atravessando em atividade da fase áurea ao declínio do gênero, dos anos
40 aos 90, o californiano Dexter Keith Gordon estudou clarinete aos 13 anos e
na adolescência já dominava o sax tenor. Só na primeira década como músico
profissional já somava passagens pelas bandas de Louis Armstrong, Nat “King”
Cole, Lionel Hampton, Ben Webster, Lester Young e nas orquestras de
Fletcher Henderson e Billy Eckstine, esta última, com a qual tocou para gente
do calibre de Sarah Vaughan e Dizzy Gillespie. Ainda nos anos 40, gravou
pela Savoy, ao lado dos colegas Wardell Gray e Teddy Edwards, discos revolucionários
que se tornariam referência para a então nova geração de saxofonistas tenores,
entre os quais Coltrane e Sonny Rollins. Como se não bastasse, na década
seguinte, o jovem alto e galante foi também um dos precursores de outra
revolução: o estilo mundialmente assimilado chamado bebop.
Chegado aos anos 60, na faixa dos 30 e já com toda essa bagagem, mesmo
não sendo uma celebridade de massas (o que cantores como Frank Sinatra e Tony
Bennett cumpriam com autoridade), era evidente que o passe de Dexter Gordon
estava valorizado. Pois o produtor Alfred Lion resolveu bancar. Em 1961, chama-o
para seu selo, Blue Note, no qual permanece por quatro anos. O crème de la crème dos sete álbuns
gravados por Gordon neste período é “Go!”,
de 1962. Com a companhia de uma estelar “cozinha”, formada pelo requintado
pianista Sonny Clark, o ágil baterista Billy Higgins e o flexível baixista
Butch Warren, Gordon usa de toda sua maestria e compõem um disco impecável,
considerado um dos melhores de todos os tempos da discografia jazz. Virtuose e
dono de um estilo abarcante – no qual se ouviam facilmente a fineza de Armstrong,
a pulsação de Charlie Parker, a sutileza de Young e a potência de Coleman
Hawkins – é possível derivar do seu fraseado a tradição e a modernidade. Ele,
que havia passado pela descoberta do swing,
pelo estouro das big bands e pelo
advento do cool e do bebop, junta tudo isso de uma forma
absolutamente natural e híbrida.
Nesse clima abre a literalmente saborosa “Chees Cake”, única composição
do álbum de autoria de Gordon. Acordes de baixo anunciam o começo, somando-se a
este a bateria, marcada no prato de ataque. É quando vem Gordon com seu
vigoroso e elegante sopro, extraído de pulmões possantes guardados em sua
parruda caixa torácica. O riff, dos
mais marcantes do cancioneiro jazz. Desenvolve-se um solo extenso e gostosamente
inventivo, rebuscando o bebop e o recheando-lhe
com novos temperos, que coloca a canção no limiar entre o cool e o hard bop. Clark
assume brevemente em um notável solo antes de Gordon retornar para a segunda
intervenção. Nova maravilha. Fluxo altamente vibrante e suingado, com uma
engenhosa escolha das notas e escalas que só poderiam sair de um ”decano” como
Gordon.
"Guess I'll Hang My Tears Out to Dry", na sequência, é um
verdadeiro convite à melancolia e ao romantismo da noite nova-iorquina. Balada
de ouvir dançando agarradinho ou para afundar as mágoas num copo de bourbon sem gelo. Linda. O soprar de
Gordon é seguro e cheio, mas não menos lânguido e introspectivo, como quem está
escutando o próprio coração e reproduzindo-o em sons. É possível sentir cada nota,
cada sentimento. O sax se alonga em sua conversa com os apaixonados e/ou
descornados, tomando-lhe quase 4 minutos. Dá um passe para que Clark faça, com
habilidade, mate no peito e ponha no chão. O pianista faz um afago nas teclas,
enquanto Higgins vaporiza a atmosfera com uma levada nas escovinhas tendo como
companheiro para isso Warren serpenteando as cordas. Mas não dura muito tempo a
vez do trio, pois Gordon “retoma a bola” para finalizar a canção repetindo
frases e retomando as mesmas ideias amorosas de seu sax. Junto a "Blue in Green", de Miles, “Round Midnight”, com Chet Baker, “Naima”, de Coltrane, “Like
Someone in Love”, com Ella Fitzgerald, está entre as 10 grandes baladas jazz da
história.
"Second Balcony Jump" vem para elevar o ânimo num jazz bluesy animado e gracioso. Nada menos
que 3 minutos e 40 de um improviso solto e ininterrupto de muita expressividade
e agilidade de Gordon. Como nas anteriores, é Sonny Clark quem tem a primazia
do segundo solo, o qual faz com absoluta destreza de quem “chuta” com as duas
valendo-se da liberdade dada pelo líder. Gordon reaparece já dentro da área para
finalizar com uma mais curta improvisação em que ratifica sua presença. Higgins
dá um breve solo antes do saxofonista terminar o número brincando ao executar o
clássico desfecho: “pam-pam-ram-ram-pam/
pam pam!”.
Sintonizado com um ritmo latino que se fazia novo nos Estados Unidos e
que tomava o gosto dos músicos estrangeiros, uma tal de bossa-nova, Gordon traz
uma feliz interpretação do clássico “Love for Sale”. Assim como Stan Getz,
Charlie Byrd, Henri Mancini, Vince Guaraldi e outros impressionados com as inovações harmônicas e melódicas levadas a eles principalmente por conta da
trilha do filme “Orfeu Negro”, de 1959 (o disco “Bossa Nova at Carnegie Hall”,
o definitivo carimbo internacional da bossa-nova, seria gravado no final
daquele ano), o saxofonista entra no gingado brasileiro e tece uma malemolente
versão para a música de Cole Porter. Muito ajudado pela marcação sambada de Higgins. Clark, visivelmente movido pelo piano de Tom Jobim, é outro a entrar
no espírito bossa-novista. Gordon, por sua vez, dá um show de manutenção dos
tempos durante o riff, soltando a
criatividade e apuro nos improvisos. Clark, por sua vez, vive aqui seu mais
inspirado solo, engenhoso dentro dos tempos circulares que encadeia.
"Where Are You?" é mais uma balada para morrer de amor. As
pronúncias seguras de sentimento do sax impressionam pela elasticidade e
controle dos tempos, realizando leves atrasos, ataques carregados e modulações,
todas precisas. Por volta dos 3 minutos e 30, Gordon intensifica a emotividade
ao subir um tom. Prenúncio de uma breve pausa para o mais uma vez sutil e
inteligente dedilhado de Clark, envolto num clima de nightclub, de fumaças de cigarro e cheiro de trago no ar, forjada
pela condução de Higgins e Warren. “Go!” finaliza com a sibilante "Three
O'Clock in the Morning", a qual começa com o piano marcando o tique-taque
do relógio nas agudas teclas pretas. São três da manhã e é possível enxergar um
casal enamorado passeando feliz e bêbado pelas ruas desertas da Big Apple
entrando de bar em bar e alheios a qualquer coisa que não seu affair. É assim que o disco se encerra:
na felicidade inebriada da boemia da Village Vanguard.
A lenda em torno de Dexter Gordon não terminaria em “Go!”. Um pouco
pela desvalorização de “velhos” como ele em detrimento dos jovens ases do free-jazz e da avant-garde – semfalar
nos astros pop ascendidos naquela década, quase hegemônicos na indústria
fonográfica de então –, um pouco para se isolar por conta do vício em heroína,
o músico norte-americano refugia-se na Europa. Lá é redescoberto e passa a
viver em Paris e em Copenhague, onde vira a celebridade que não tinha sido até
então. Torna à terra natal somente em 1976, quando é recebido com honras.
Afinal, não é todo dia que se tem de volta o herdeiro de Armstrong, Parker,
Hawkins e Young. Passados o estouro do rock
‘n’ roll, acalmado o fervor dos anos hippies
e assimilada a hibridização do jazz com o rock – a esta época já haviam morrido
Coltrane, Lee Morgan, Jimi Hendrix, Janis Joplin e iam-se já seis anos do rompimento dos Beatles –, Dexter Gordon finalmente ocupa seu lugar dentro de
casa.
Ainda, quatro anos antes de morrer, aos 63, roda, com o cineasta
francês Bertrand Tavernier, o memorável filme “Por Volta da Meia-Noite” (1986),
em que protagoniza o papel justamente de um saxofonista de jazz norte-americano
autoexilado em Paris, onde é ovacionado. A abordagem dos problemas com drogas e
álcool, os desajustes familiares e a saudade do ninho demonstrada pelo
personagem tornam o filme bastante autobiográfico, mesmo que a história se
baseie também em parte na trajetória de dois dos mestres de Gordon: Young e Bud
Powell. A aura mítica que se cria em torno do alter-ego de Gordon, Dale Turner, é tão natural quanto a sua
interpretação de si mesmo no longa: os gestos entre o charmoso e o ébrio, a voz
naturalmente rouca, a fala pausada, o sorriso maroto, o porte altivo preservado
da juventude. Pela atuação, o músico chegou a concorrer ao Oscar de Melhor Ator
naquele ano. Não precisou nem vencer para reforçar o mito do então último
expoente da gênese do jazz, gênero do qual ele foi, se não o maior como um Pelé
ou o mais genial Coltrane, o exemplar mais completo como Nilton Santos. De modo que “Go!” não é simplesmente um disco: é um “golaço!”.
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FAIXAS
1. "Cheese Cake" (Dexter Gordon) - 6:33
2. "Guess I'll
Hang My Tears Out to Dry" (Jule Styne/Sammy Cahn) - 5:23
Mesmo assim o machismo imperava nos estúdios e
sufocava carreiras,
salvo alguns como Clift, que assumiu
e sofreu na carne o
preço.
Eles tentaram esconder Burt,
Scott e muitos outros, nos todos sabíamos,
mas os chefões nunca se renderam,
e eu poucas vezes”.
John Ford
Dos quatro deuses rebeldes do método Lee Strasberg – Marlon Brando, James Dean, Montgomery Clift e Paul Newman –, apenas Paul era
heterossexual. Clift era gay assumido e sofreu enormes rejeições, ainda que tenha enfrentado todas elas. Depois de aconselhado por Liz Taylor, virou um
arrogante de primeira; era sua defesa pessoal. James Dean não fazia esforço
para esconder a homossexualidade: frequentava bares gays onde adorava queimar o
corpo com cigarro em trips sexuais.
Marlon Brando, esse sim: traçou de Vivian Leigh a Jean Cocteau. E mais, muito
mais. Mas estes grandes atores não seriam os pioneiros. Tyrone Power, sir
Laurence Olivier, George Cukor, Vincent Price, Errol Flynn e o músico Cole
Porter, por exemplo, sempre tiveram preferências homossexuais. Errol desfilava
com muitas namoradas e lançava cantadinhas não correspondidas à sua partner, Olivia de Havilland. Além
disso, adorava desfrutar de orgias com homens e mulheres. Seu grande parceiro
de festinhas foi Willian Holden, que não era gay, mas topava a mulherada.
Os estúdios criaram vários casamentos de fachada para seus
atores de ponta. Queriam sempre abafar os comentários da imprensa sobre suas
sexualidades. Um deles era Burt Lancaster, que foi proibido de “sair do armário”.
Acabou casando forçadamente e tendo filhos. Mesmo assim, manteve
relacionamentos com Rock Hudson e Cary Grant. E, por fim, foi um grande
ativista do movimento gay. O charmoso Cary Grant e Randolph Scott, um dos reis
do western da "era dos
estúdios", segundo seus amigos pessoais, eram casados e mantinham famílias
para despistar os estúdios e a imprensa. Chegaram a morar juntos e foram
fotografados em momentos picantes na piscina. As fotos geraram revolta dos
chefões de "Oliú", que ameaçaram suspender trabalhos de ambos os
atores que foram obrigados a se separar. Após isso, Cary tentaria suicídio com
pílulas para dormir. Já Gary Cooper, bonito e másculo, o protótipo do herói
americano, foi aconselhado por seus agentes a abandonar seu parceiro sexual sob
pena de ter sua próxima produção cancelada – que se chamaria nada menos que
"Matar ou Morrer", um dos maiores westerns da história.
Mas o caso mais polêmico foi o do ator e galã Rock Hudson.
Em 1955, ele levava uma carreira ascendente no cinema, mas a tranquilidade logo
ia dar lugar a um escândalo: uma revista especializada em fofocas publicaria
uma matéria com fontes seguras sobre a homossexualidade de Hudson. Seus agentes
não perderam tempo e casaram o ator com sua secretária – o mesmo que aconteceu
com Anthony Perkins. O casamento "falso" durou poucos anos e logo o
galã entraria para uma vida de promiscuidade sexual sem limites. Hudson
recorria às ruas todas as noites e levava para a cama até vagabundos e jovens
de toda a cidade. Era um sexo mecânico e sem erotismo. A regra de Hudson era “quanto
mais, melhor”, não importando a “qualidade”.
O resultado de tudo isso acabou vindo anos mais tarde. Em
1984, o ator foi a primeira grande celebridade do cinema americano a ser
diagnosticada com HIV. Rock Hudson faleceu em 1985 em decorrência da doença e o
fato teve uma enorme proporção. Tanto que chamou a atenção de celebridades e do
governo dos EUA, quando muitos doaram quantias milionárias para as pesquisas da
cura da AIDS, tendo Hudson como símbolo póstumo da campanha. Em 1992 e com
menos estardalhaço da imprensa, o astro tímido de “Psicose”, Tony Perkins,
sucumbiria ao HIV. Elogiado por Hitchcock e por muitos diretores, e criticado
por sua opção sexual pela MGM, ele partiria discretamente em sua casa em
Hollywood, mas não sem antes dizer em uma entrevista: "Que possamos ser livres em nossas escolhas, mesmo pagando um
preço eu prefiro ser livre." Que assim seja.
Meu
amor por Caetano Veloso resplandecia quando escutei “Circuladô”.
Como qualquer brasileiro, hora ou outra ouvia alguma música desse
artista baiano por aí. Porém, na infância (época em que já me
ligava em música, vale dizer), meu interesse por aquele cara que
apresentava um programa que achava meio chato na Globo com o Chico Buarque era menor do que para com as bandas de rock da época, RPM, Legião Urbana, Titãs, entre outros. Essas realmente me empolgavam.
Fui escutá-lo com atenção e identificação pela primeira vez em
1988 (aos 9), quando meu irmão trouxe para casa um cassete com um
dos discos dele, o qual tinha uma sonoridade leve e acústica que me
dava condições de perceber com clareza as ricas construções
melódicas, o timbre cristalino da voz e a habilidade composicional
de Caê. O disco era “Caetano Veloso”, de 1986, feito para o
mercado norte-americano que continha coisas de várias épocas de sua
obra, como “Trilhos Urbanos”, “Cá Já”, “Terra” e duas
versões magníficas em inglês: “Billy Jean” (Michael Jackson) e
“Get Out of Town” (Cole Porter). Foi então que percebi: aquilo era,
evidentemente, diferenciado. Tinha que passar a ouvi-lo com mais
atenção de modo a não correr o risco de perder algo espetacular
que se apresentava à minha frente.
E
teria perdido mesmo. Apaixonei-me por seu álbum seguinte, “O
Estrangeiro”, de 1989, outro fundamental e no qual ele inicia a
grande fase da parceria com o Ambitious Lovers Arto Lindsay e com o
eclético maestro Jacques Morelembaum. Mas o disco que realmente me
fez entrar de vez na órbita de Caetano foi “Circuladô”, de
1991. No momento em que a MTV brasileira se estabelecia como um canal
bom e vendável, a indústria musical nacional, claro, se ligou neste
filão. Como já ocorria nos Estados Unidos, músicos passaram a
produzir com a mente não só na execução das rádios, mas no
videoclipe que produziriam para passar na Music Television. Com o
antenado Caetano Veloso, não foi diferente. A música de trabalho do
álbum estreou na emissora com um ótimo clipe da Conspiração
Filmes (com a participação do grupo de teatro Intrépida Trupe),
onde o compositor apresentava algo interessantíssimo: quase só voz
e percussão durante os versos, com uma guitarra wah-wah de
leve ao fundo, explodindo num samba-reggae no refrão com percussões
e samples, “Fora da Ordem” trazia a inteligente
verborragia político-filosófica de Caetano sobre sua visão
discordante – mas ao mesmo tempo poética – da Nova Ordem
Mundial, então recentemente anunciada por Bush “pai”: “Eu
não espero pelo dia em que todos os homens concordem/ Apenas sei de
diversas harmonias bonitas, possíveis sem Juízo Final”, versava
Caetano.
“Fora
da Ordem”, mesmo sem um ritmo identificável (não é exatamente
rock, reggae, funk ou samba) estourou e virou, em pouco tempo, um hit
dos mais tocados na MTV. Ao seu final, engenhosas repetições da
frase central da letra (“Alguma coisa está fora da ordem/ Fora
da Nova Ordem Mundial...”) ditas em outros idiomas que não o
português, como francês, japonês, espanhol e inglês, intercalando
vozes do cantor e femininas – entre estas, a de Bebel Gilberto.
Esta faixa abre o disco, que adquiri na época com grande interesse
de descobrir o que mais conteria. Já na primeira audição, o lado A
do meu cassete me arrebataria, sensação que se repete até hoje.
Isso porque, depois da música que não cansava de rever todos os
dias na TV, viria uma sequência de emocionar. A começar pela faixa
que traz a ideia central do álbum: “Circuladô de Fulô”, poesia
do filólogo, ensaísta e poeta Haroldo de Campos musicado por
Caetano com absoluta genialidade. O compositor já exercitava isso desde os anos 60, tendo posto música sobre poemas de Waly Salomão,
Torquato Neto, Gregório de Matos, Paulo Leminski, entre outros. Mas
essa é sua obra-prima neste sentido. Remetendo ao baião e ao
repente do mais embrionário folclore nordestino, ao mesmo tempo traz
a dissonância da vanguarda erudita, a polifonia dos motetos
populares medievais e um toque da milenar sonoridade oriental.
Caetano desliza o poema sobre os sons, cantando linda e tecnicamente
os versos que merecem ao menos a reprodução de um trecho: “O
povo é o inventalínguas na malícia da maestria no matreiro da
maravilha no visgo do improviso/ Tenteando a travessia/ Azeitava o
eixo do sol...”. Algo da melhor poesia já escrita em nossa
literatura.
O
próprio Haroldo de Campos comentou sobre a canção: “Devo
destacar que o trabalho que ele fez, ao musicar o fragmento
'Circuladô de Fulô', de minhas 'Galáxias', é particularmente
admirável por retratar com fidelidade seu conteúdo. Ele soube
restituir-me com extrema sensibilidade o clima do meu poema, que é,
todo ele, voltado à celebração da inventividade dos cantadores
nordestinos no plano da linguagem e do som, na grande tradição oral
dos trovadores medievais”.
Minhas
emoções não parariam. De surpresa, a voz adolescente do filho mais
velho de Caetano, Moreno Veloso (ainda não o músico profissional
que se tornaria) inicia, juntamente a uma orquestra de cordas
arranjada por Morelenbaum, uma das mais belas melodias de todo o
cancioneiro de seu pai: “Itapuã”. Lírica, graciosa. Impossível
não ser tocado todas as vezes que escuto: “Itapuã, o teu sol
me queima e o meu verso teima/ Em cantar teu nome/ Teu nome sem fim”,
ou: “Abaeté/ Tudo meu e dela/ A lagoa bela sabe, cala e diz/ Eu
cantar-te nos constela em ti/ E eu sou feliz.” Ainda mais
depois de ter conhecido a praia de Itapuã e ter sentido física e
espiritualmente suas “palmas altas”, suas “águas que se movem”
e sua “areia branca”, tão “assim: Caymmi”, como dizem os
versos.
Igualmente,
toca-me fundo “Boas-Vindas”, um samba-de-roda típico da região
de onde Caetano vem, o Recôncavo Baiano. Isso porque o artista
celebra a renovação da vida com a chegada de seu novo filho, Tom,
ainda na barriga (“Lhe damos as boas-vindas, boas-vindas,
boas-vindas/ Venha conhecer a vida/ Eu digo que ela é gostosa...”),
cantando com a família e amigos (“Minha mãe e eu/ Meus irmãos
e eu/ E os pais da sua mãe...”). O eterno companheiro Gilberto Gil, com sua inconfundível batida de violão; o “príncipe” Naná
Vasconcelos, na percussão (talking drum, cerâmica e congas);
e D. Edith do Prato, tocando, como diz sua alcunha, um prato de
cozinha raspado com um talher. Ainda, Moreno, junto com os outros
músicos, mantém o ritmo nas palmas, numa verdadeira festa de
interior animada ao som de samba rural. Lindíssima.
Dando
uma estratégica pausa nessa sequência, a complexa “Ela Ela”
carrega um manancial de referências e sensações. Apenas com
Caetano à voz e Arto Lindsay na guitarra, é uma verdadeira peça
avant-garde. O característico som do instrumento de Arto, com
sua afinação diferenciada e em altas distorção e amplificação,
cria traços sonoros que se assemelham aos criados por Cage com seu
piano preparado, às cordas agudas de Ligeti, às percussões
exóticas de Xenakis e aos ruídos eletroacústicos das fitas
magnéticas de Stockhausen. Caetano, por sua vez, exercita um arranjo
vocal assimétrico e dissonante, o que, junto aos grunhidos da
guitarra, formam não uma melodia palpável, mas um corpo sonoro de
puro atonalismo. A letra, por sua vez, remete ao modernismo e ao
dadaísmo. “Ela Ela”, no entanto, não lembra apenas essas pontes
externas. Na própria obra de Caetano ele já visitara os caminhos da
vanguarda (e seguiria visitando, haja vista a “doidecafônica”
“Doideca”, do disco “Livro”, de 1997, ou “Cantiga de Boi”,
de “Noites do Norte”, 2001). Na trilha que compusera para o filme
“São Bernardo”, em 1971, nota-se também semelhanças pelo
estilo de canto. Igualmente, nas colaborações com Walter Smetak,
nas experimentações de “Araçá Azul” (1973) e “Jóia”
(1975) e na explosão moderno-nordestina “Triste Bahia”, do
memorável disco "Transa", de 1972.
Se
“Ela Ela” quebra a emotividade com seu hermetismo, “Santa
Clara, Padroeira da Televisão” volta a fazer os olhos marejarem.
Numa interessante abordagem sobre a simbologia e a relevância da
tevê, Caetano desmistifica a visão preconceituosa geralmente
atribuída a esta mídia (“Que a televisão não seja sempre
vista/ Como a montra condenada, a fenestra sinistra/ Mas tomada pelo
que ela é/ De poesia...”) e, ainda por cima, expõe
recordações e impressões pessoais muito belas (“Quando a
tarde cai onde o meu pai/ Me fez e me criou/ Ninguém vai saber que
cor me dói/ E foi e aqui ficou...”). Coisa de poeta. Ao final,
depois de todos os instrumentos calarem, ainda um improvável solo de
trompete bem jazzístico.
Viro
de lado a minha fita e me deparo com bucolismo e melancolia. É a
versão de Caetano para um baião clássico: “Baião da Penha”,
em que reduz o compasso festivo do ritmo para criar uma peça
extremamente sensível e chorosa. Caetano a canta no mais alto nível
técnico apenas acompanhado de seu próprio violão. Em seguida,
“Neide Candolina”, talvez a mais pop do disco cujo brilhante
arranjo coloca o baixo e a guitarra em segundo plano para destacar o
ritmo da bateria, o arranjo de voz criado por Bebel e,
principalmente, os samples do mestre Ryuichi Sakamoto, o
compositor japonês mais brasileiro da world music. São os
efeitos eletrônicos de Sakamoto que dão o direcionamento da canção,
que, ao que se nota só pela descrição, é diferenciada e original.
Tanto
quanto é a letra de “Neide Candolina”, que homenageia a
professora de Língua Portuguesa que Caetano tivera no primário e
com a qual me identifico tamanhamente. Isso porque eu também tive
minha “Neide Candolina”: professora Berenice Brito, a Berê. O
significado de Berê para mim, também homem das letras, é muito
parecido dada a importância formativa que ele atribui à sua mestra.
Primeiro, o fato de serem duas “pretas chiques”, “lindas”
e “elegantes”, ambas ostentando seus cabelos “pixaim
Senegal” onde estiverem, seja na “sua suja Salvador” (no
caso de Berê, na também emporcalhada Porto Alegre) ou na “Europa”
– ainda mais pelo fato de Berê ter um namorado italiano e ir para
o Velho Mundo seguidamente. Igualmente, há a parte em que ele diz:
“Tem um Gol que ela mesma comprou/ Com o dinheiro que juntou/
Ensinando Português no Central”. Dadas as devidas localidades
e modelos, Berê, que ensinou a mesma matéria a mim e a centenas e
centenas de alunos gaúchos na Intercap, tendo se aposentado
exercendo isso, também tinha um veículo próprio Wolkswagen (um
fusca). Afora todas essas coincidências, ainda o exemplo de caráter
e cidadania é característico das duas. Se Neide “nunca furou
um sinal” por ser uma “preta correta democrata social,
racial”, lembro claramente de Berenice fazendo qualquer aluno
(mesmo os que se davam bem com ela, como eu) redigir repetidas vezes
como tema de casa todo o hino nacional caso ela tivesse percebido um
erro na hora de ouvir-nos cantá-lo.
O
clima animado é substituído, em seguida, por um de epicismo e
contemplação. É “A Terceira Margem do Rio”, outra obra-prima
do disco que se trata de, nada mais, nada menos, uma das raras
parcerias de Caetano com outro mestre da música brasileira: Milton Nascimento. Encomendada para a trilha sonora do filme homônimo de
Nelson Pereira dos Santos, baseado na obra de Guimarães Rosa,
carrega a atmosfera rica e densa do escritor tanto na elegante
melodia quanto na letra de alto poder poético de Caetano. O que são
de bonitos esses versos? “Meio a meio o rio ri/ Por entre as
árvores da vida/ O rio riu, ri/ Por sob a risca da canoa/ O rio riu,
ri/ O que ninguém jamais olvida/ Ouvi, ouvi, ouvi/ A voz das
águas...”. A música, típica composição de Milton, traz seu
tom grandioso, muito brasilianista mas quase românico, e isso apenas
em violões e percussões (cerâmica, caxixi e cabaça).
Não
deixando a bola cair, “O Cu do Mundo”, bossa-nova meio rock com
direito a samples e urros da guitarra de Arto, é outras das
mais legais do disco. Lembro-me de ouvi-la na antiga (e finada)
Ipanema FM e me impressionar com aquela letra indignada e sem papas
na língua: “O furto, o estupro, o rapto pútrido/ O fétido
sequestro/ O adjetivo esdrúxulo em U/ Onde o cujo faz a curva/ (O cu
do mundo, esse nosso sítio)”. A palavra “cu” dita de forma
aberta, no título, era uma das primeiras mostras conscientes de
libertação da censura que o Brasil recentemente vivia e que
descambaria na idiotice desbocada dos Mamonas Assassinas. À medida
que as partes vão se repetindo, vão entrando as vozes convidadas:
primeiro, de Gilberto Gil e, depois, de Gal Costa, num arranjo vocal
precioso que Caetano forjaria de maneira semelhante novamente 19 anos
depois na música “Cobra Coral”, quando chamara para dividir os
microfones com ele Lulu Santos e Zélia Duncan. Até o jazzista Butch
Morris faz uma ponta em “O Cu do Mundo”, com um intenso solo de
corneta, certamente contribuição como produtor de Arto, o
pernambucano mais norte-americano da world music.
Canção
irmã de “Você é Linda” (e de “Você é Minha”, que seria
gravada seis anos depois em “Livro”) “Lindeza”, romântica e
suave, é realmente muito bela. Juntamente com o violão-base, estão
o contrabaixo, as cordas e o piano de Sakamoto, que retorna para
finalizar o disco em grande estilo num arranjo criado a seis mãos
por ele, Arto e Caetano. Um acorde grave e ressonante do piano
desfecha esse disco irrepreensível, resultado de um momento de
aperfeiçoamento das técnicas de estúdio (foi gravado no Brasil e
em Nova York, onde também foi mixado e masterizado) e de boas
parcerias com a permanente criatividade de Caetano. “Circuladô”
é tão representativo que passou a servir como referência para
outros discos do próprio autor no que se refere à arquitetura de
repertório. Além das parecenças que já mencionei durante essa
resenha, isso fica evidente ao se fazer ainda outros paralelos, como
os começos pop de “Zii et Zie” (2009, com “Perdeu”) e "Abraçaço" (2012, com “A Bossa Nova é Foda”), a
musicalização de autores da literatura como tema principal do
projeto (“Noites do Norte”, este sobre texto de Joaquim Nabuco)
ou a faixa dedicada à indignação político-social (“Haiti”, de
“Tropicália 2”, de 1993, e “A Base de Guantánamo”, de “Zii
et Zie”).
Quanto
a mim, o impacto que “Circuladô” exerceria seria ainda maior.
Com apenas 13 anos, fui ao show de sua turnê em Porto Alegre, no
antigo Teatro da Ospa, o primeiro que assisti sozinho em minha vida.
Claro que eu, negro de classe média e muito jovem, era uma entidade
estranha naquele lugar, principalmente considerando aquela Porto
Alegre de era Collor em que a maioria dos meus pares ou não se
interessava, ou se constrangia em ir ou não tinha condições de ver
um espetáculo como aquele. Mas os olhares eram mais de admiração
do que de censura. Para mim, foi divertido e emancipador. No entanto,
mais do que isso, foi a partir dali que definitivamente me apaixonei
pela obra e pelo universo de Caetano. Foi a partir dali que meu amor
por ele resplandeceu. Foi a partir dali que tudo virou fulô.
vídeo de"Fora da Ordem",Caetano Veloso
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FAIXAS:
1.
Fora da ordem
2.
Circuladô de fulô (Caetano Veloso/Haroldo de Campos)
3.
Itapuã
4.
Boas vindas
5. Ela
ela (Veloso/Arto Lindsay)
6.
Santa Clara, padroeira da televisão
7.
Baião da Penha (Guio de Morais/David Nasser)
8.
Neide Candolina
9. A
terceira margem do rio (Veloso/Milton Nascimento)
10. O
cu do mundo
11,
Lindeza
todas
as composições de autoria de Caetano Veloso, exceto indicadas.