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quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Debate "As Canções", de Eduardo Coutinho - Ciclo de Cinema Documentário - Clube de Cinema de Porto Alegre - Sala Redenção da UFRGS (14/08/24)


Com a realização ainda em curso do 52º Festival de Cinema de Gramado, onde estive dias antes de descer a Serra de volta para Porto Alegre, participei de outra atividade envolvendo a crítica de cinema, esta na Sala Redenção, na Reitoria da UFRGS. Foi um debate sobre o belo documentário “As Canções”, de 2011, do mestre Eduardo Coutinho, um de seus últimos filmes. A ocasião foi em virtude de um afetuoso convite do colega de Accirs Paulo Casa Nova, presidente do Clube de Cinema de Porto Alegre, o mais antigo clube do tipo no Brasil, fundado em 1948 pelo célebre cinéfilo gaúcho P. F. Gastal e que teve como membros em sua longa história nomes como Mario Quintana, Erico Veríssimo, Ítala Nandi, Carlos Reverbel, Carlos Scliar, Vasco Prado, Fernando Corona, entre outros. O mote: uma homenagem a Coutinho, a quem perdemos tragicamente há 10 anos vitimado pelo próprio filho. Ou seja: um convite irrecusável.

Com mediação da também colega de associação de críticos Kelly Demo Christ, Diretora de Comunicação do CCPA, pude, além de rever esta preciosa obra de Coutinho, debatê-la com o público presente, bastante interessado e, assim como eu, impressionado com a riqueza poética e artística do filme. O enredo é simples: 18 pessoas comuns selecionadas aleatoriamente através de anúncios em jornais relatam de frente para a câmera, num cenário com apenas uma cadeira para sentarem e cortinas escuras atrás, casos particulares relacionados a determinada música que lhes marcara a vida. Simples, contudo, é modo de dizer, pois é justamente dessa aparente simplicidade que Coutinho, hábil entrevistador e perscrutador da alma humana, extrai histórias quando não marcantes, ainda mais do que isso: impactantes e emocionantes.

Entre os aspectos que pude dividir com os presentes, um deles foi a visão de mundo de Coutinho, um marxista convicto que pautou sua obra - principalmente a documental, a qual passou a se dedicar exclusivamente partir dos anos 70 e pela qual ficou identificado - por um humanismo atravessado pela perspectiva da dialética como motor para o entendimento das relações de classe e, por isso, humanas. Esta característica, que surgiu com total potência em sua obra-prima, “Cabra Marcado para Morrer”, de 1983, ainda sob a égide da Ditadura Militar, se materializou em várias de suas realizações posteriores, principalmente a partir dos anos 90, quando se consolida de vez no documentário. Filmes como “Santo Forte”, “Moscou”, “Edifício Master” e “O Fim e o Princípio” carregam invariavelmente esta forma dual de enxergar o ser humano em sociedade, desvelando com uma sensibilidade ímpar sentimentos muito profundos por meio de uma investigação quase antropológica.

Em “As Canções”, valendo-se da máxima de que somente uma música é capaz de ter potência suficiente para guardar na memória sentimentos sublimes, este aprofundamento emocional se dá em vários momentos, seja nos tocantes depoimentos, seja nas interpretações das músicas (sim, cada pessoa canta pelo menos um pedaço da canção, mesmo não sendo cantores profissionais), seja no sensível trabalho de edição. A forma jornalística como o cineasta conduz as abordagens ganha, na montagem, traços “ficcionais”, que vão trazendo correlações, espelhamentos, divisões, coincidências.

trailer de "As Canções", de Eduardo Coutinho

O sentimento de abandono marital da platônica Sonia é o mesmo da inglesa Isabell e da sofrida Lídia, mas não que suas aparições se deem necessariamente numa sequência. Igual, viuvez, como nos relatos de Gilmar e de Ózio. Isso quando não se suscitam correlações ainda mais sutis: não seria tão fatal quanto pensar que, da forma como o militar João Barbosa confessa ter tratado a esposa ou a conturbação do relacionamento de Sílvia (mulher de olhar triste que encerra o filme noutra tocante fala) uma forma de morte também?

Diversos elementos que a obra de Coutinho nos leva a refletir, como o que pudemos fazer por algumas horas na sessão do Clube de Cinema. Um privilégio e um prazer.

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"As Canções"
Direção: Eduardo Coutinho
Gênero: Documentário
Duração: 90 min.
Ano: 2014
País: Brasil
Onde encontrar: Netflix
🎬🎬🎬🎬🎬🎬🎬🎬🎬🎬


Daniel Rodrigues


segunda-feira, 16 de outubro de 2023

CLAQUETE ESPECIAL 15 ANOS DO CLYBLOG - Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes (última parte)

 

Coutinho dirige e atua em seu "Cabra...", um dos 10
maiores e um dos 5 filmes do diretor na lista
Chegamos, enfim, ao momento mais aguardado: o final do nosso especial “Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes”. Ou melhor, o início, já que seguimos uma ordem numeral inversa, partindo dos últimos da lista para, agora, os primeiros. Chegou a hora de dar fim a um dos conteúdos especiais alusivos aos 15 anos do Clyblog em 2023, iniciada em abril e publicado em cinco partes ano longo dos meses. Nossa proposta foi trazer aqui, de forma criteriosa e misturando noções de crítica e história do cinema com preferências pessoais, títulos que representassem o cinema brasileiro neste corte temporal. E justamente num ano em que o cinema brasileiro completou 125 de nascimento segundo a efeméride oficial. O que não invalida a nossa intenção, a qual teve como referência, se não a gênese da produção cinematográfica nacional, em 1898, outro marco inconteste para a história da cultura audiovisual sul-americana, que é a exibição do mais antigo filme brasileiro preservado: “Os Óculos do Vovô”, de 1913.

Embora as corriqueiras e até salutares ausências (afinal, listas servem muito para que outras também sejam compostas), o que se viu aqui ao longo da extensa classificação foram títulos da maior importância e qualidade daquilo que foi produzido no cinema do Brasil neste mais de um século. De produções clássicas, passando pela fase muda, os alternativos, o cinema da atualidade aos sucessos de bilheteria. Num país de dimensão continental, houve trabalhos do Norte ao Sul, com representantes de seis estados da nação: São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Pernambuco e Bahia. Entre as décadas, leva pequena vantagem os anos 60 sobre os 80 e 2000, com 25, 24 e 23 títulos respectivamente, dando uma boa ideia dos períodos de maior incentivo à produção 

Diretores consagrados e filmes marcantes para a cinematografia brasileira e mundial também percorreram a listagem de cabo a rabo. Nomes como Glauber Rocha, Cacá Diegues, Hector Babenco, Kléber Mendonça Filho, Leon Hirszman, Nelson Pereira dos Santos, Eduardo Coutinho e Joaquim Pedro de Andrade se fizeram presentes de forma consistente e todos com mais de um título, provando sua importância basal para a concepção formativa do cinema brasileiro. Glauber, maior cineasta brasileiro, encabeça, com seis filmes, seguido de Coutinho, com cinco, e Nelson, Leon e Babenco, com quatro cada. Porém, os novatos, nem por isso deixaram de também demarcarem seus espaços, feito talvez ainda mais louvável uma vez que, com pouco tempo de realização, já figuram entre os grandes. Caio Sóh, com “Canastra Suja”, de 2018, (107º colocado), Gustavo Pizzi, de “Benzinho” (2018), e Gabriel Martins, com “Marte Um”, de 2022 (79º) estão aí para provar.

Katia, uma das 7 cineastas
mulheres: pouca representatividade
Embora em menor número, as diretoras não deixam de contribuir com seu talento ímpar. Kátia Lund (com duas co-direções, junto a Fernando Meirelles e a João Moreira Salles), Anna Muylaert, Daniela Thomas (“Terra Estrangeira”, com Walter Salles Jr.), Sandra Kogut, Laís Bodanzky, Tatiana Issa e Suzana Amaral formam o time de sete cineastas mulheres, que dão um pouco de diversidade à lista. Muito a se evoluir? Sim. Representatividades negras, LGBTQIAPN+ e indígenas aparecem de maneira periférica, até superficial, consequência natural participação de tais minorias na economia cultural brasileira ao longo da história. Quem sabe, daqui a mais uns anos não se precise demorar tanto mais para que se incluam definitivamente entre os essenciais do cinema brasileiro?

Outro recorte que vale ser frisado são os documentários, que se estendem por todas as postagens dessa série. Além de contarem com um dos dois mais representativos realizadores, Coutinho, rivalizam muito bem com as ficções, totalizando nada mais nada menos que 13 títulos neste formato, 11,8% do geral. Enfim, análises que podem se deduzir a uma coleção de filmes tão interessantes e simbólicos de uma nação, aqui representados por aqueles mais bem colocados e, de certa forma, mais significativos. Por isso, diferentemente do que vínhamos procedendo até então, ao invés de comentarmos apenas de 5 e 5, todos desta vez merecem algumas palavras. Afinal, eles podem se vangloriar de serem os 10 melhores filmes brasileiros de todos tempos. Ao menos, nesta singela e propositiva seleção. 

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10.
“Pixote, A Lei do Mais Fraco”, Hector Babenco (1980) 

Babenco chega à maturidade de seu cinema e faz o até hoje melhor trabalho de sua longa e regular filmografia. Com ar de documentário, toma forma de um drama realista e trágico, trazendo à tona mais uma mazela da sociedade brasileira: a desassistência político-social às crianças e a violência urbana. O pequeno Fernando, que, ao interpretar Pixote, faz bem dizer ele mesmo, nos emociona e nos entristece. Marília está num dos papeis mais espetaculares da história. Indicado ao Globo de Ouro e vencedor do New York Film Critics Circle Awards (além de Locarno e San Sebastian), é considerado dos filmes essenciais dos anos 80 no mundo.




09. “Eles não Usam Black Tie”, Leon Hirszman (1981)
Como um “Batalha de Argel” e “Alemanha Ano Zero”, é uma ficção que se mistura com a realidade, e neste caso, por vários fatores. Adaptação para o cinema da peça dos anos 50 de Gianfrancesco Guarnieri sobre uma greve e a repressão política decorrente, transpõe para a realidade da época do filme, de Abertura Política e ânsia pela democracia, retratando as greves no ABC Paulista. E ainda: tem o próprio Guarnieri como ator, que, segundo relatos, codirigiu o filme. Filme lindo, que remete a Eisenstein e Petri. Música original da peça de 58 de autoria de Adoniran Barbosa. Prêmio do Júri em Veneza.


08. ”Cabra Marcado para Morrer”, Eduardo Coutinho (1984) 
Mestre do documentário mundial, Coutinho não se entregava mesmo quando parecia impossível. “Cabra...”, um dos maiores filmes do gênero, é um documentário do documentário. Interrompido em 1964 pelo governo militar, narra a vida do líder camponês João Pedro Teixeira e teve suas filmagens retomadas 17 anos depois, introduzindo na narrativa os porquês da lacuna. Premiado na Alemanha, França, Cuba, Portugal e Brasil, onde conquistou Gramado e FestRio.


07“Cidade de Deus”, Fernando Meirelles e Kátia Lund (2002)
Talvez apenas “Ganga Bruta”, “Rio 40 Graus”, “Terra em Transe” e “Dona Flor e Seus Dois Maridos” se equiparem em importância a “Cidade...” para o cinema nacional. Determinador de um “antes” e um “depois” na produção audiovisual não apenas brasileira, mas daquela produzida fora dos grandes estúdios sem ser relegada à margem. Pode-se afirmar que influenciou de Hollywood a Bollywood, ajudando a provocar uma mudança irreversível nos conceitos da indústria cinematográfica mundial. Ou se acha que "Quem quer Ser um Milionário?" existiria para o resto do mundo sem antes ter existido "Cidade..."? O cineasta, bem como alguns atores e técnicos, ganharam escala internacional a partir de então. Tudo isso, contudo, não foi com bravata, mas por conta de um filme extraordinário. Autoral e pop, “Cidade...” é revolucionário em estética, narrativa, abordagem e técnicas. Entre seus feitos, concorreu ao Oscar não como Filme Estrangeiro, mas nas cabeças: como Filme e Diretor (outra porta que abriu). Ao estilo Zé Pequeno, agora pode-se dizer: "Hollywood um caralho! Meu nome agora é cinema brasileiro, porra!".



06. “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, Roberto Santos (1965)
Uma joia meio esquecida. Leonardo Villar, de novo ele, faz o papel principal, que ele literalmente encarna. Baseado no conto-novela do Guimarães Rosa, é daquelas adaptações ao mesmo tempo fiéis mas que souberam transportar a história pra outro suporte. Obra-prima pouco lembrada.


05. 
"O Cangaceiro”, Lima Barreto (1953)
No nível do que Nelson Pereira faria com Jorge Amado e Ruy com Chico Buarque anos mais tarde, Lima Barreto teve a o privilégio de contar com diálogos escritos por Raquel de Queiroz. O que já seria suficiente ainda é completado por um filme de narrativa e condução perfeitas, com uma trilha magnífica, figurinos de Carybé, uma fotografia impecável e enquadramentos referenciados no Neo-Realismo de Vittorio De Sica e no western norte-americano de John Ford. O precursor do faroeste brasileiro ao recriar sua atmosfera e signos à realidade do nordeste. Se "Bacurau" foi aplaudido de pé em Cannes 66 anos depois, muitas dessas palmas devem-se a "O Cangaceiro", onde o filme de Barreto já havia emplacado o prêmio de Melhor Filme de Aventura e uma menção honrosa pela trilha sonora. Primeiro filme nacional a ganhar prestígio internacional, também levou os prêmios de Melhor filme no Festival de Edimburgo, na Escócia, Prêmio Saci de Melhor Filme (O Estado de S. Paulo) e Prêmio Associação Brasileira de Cronistas Cinematográficos.




04. “Limite”, Mário Peixoto (1930)
Scorsese apontou-o como um dos mais importantes filmes do séc. XX, tanto que o restaurou e para a posteridade pela sua World Cinema Foundation. David Bowie escolheu-o como o único filme brasileiro entre seus dez favoritos da América Latina. Influenciado pelas vanguardas europeias dos anos 20, Peixoto, que rodou apenas esta obra, traz-lhe, contudo, elementos muito subjetivos, que potencializam sua atmosfera experimental. Impressionantes pelo arrojo da fotografia, da montagem, da concepção cênica. Considerado por muitos o melhor filme brasileiro de todos os tempos. Um cult.


03. “Vidas Secas”, Nelson Pereira dos Santos (1963)
Genial. Precursor em muitas coisas: fotografia seca, roteiro, cenografia, atuações. Daquelas adaptações literárias tão boas quanto o livro, ouso dizer. Tem uma das cenas mais tristes do cinema mundial, a do sacrifício da cachorra Baleia. Limite também entre Neo-Realismo e Cinema Novo. Indicado a Palma de Ouro. Aula de cinema.




02. “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, Glauber Rocha (1963)
A obra-prima do Cinema Novo, um dos maiores filmes do século XX. De tirar o fôlego. Sobre este, reserva-se o direito de  um post inteiro, escrito no blog de cinema O Estado das Coisas em 2010. Mais recentemente, este marcante filme de Glauber mereceu outra resenha, esta no Clyblog.



1º.
 
"O Pagador de Promessas", Anselmo Duarte (1960) 

Com absoluta convicção, o melhor de todos os tempos no Brasil. Perfeito do início ao fim: fotografia, atuações, roteiro, trilha, edição, cenografia. Obra de Dias Gomes transposta para a tela com o cuidado do bom cinema clássico. Brasilidade na alma, das mazelas às qualidades. Cenas inesquecíveis, final arrepiante. E tem um dos papeis mais memoráveis do cinema: Leonardo Villar como Zé do Burro. E ainda é um Palma de Ouro em Cannes que venceu Antonioni, Pasolini e Buñuel. Tá bom pra ti? Irretocável.





Daniel Rodrigues

quinta-feira, 24 de agosto de 2023

CLAQUETE ESPECIAL 15 ANOS DO CLYBLOG - Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes (parte 4)

 

Os clássicos absolutos chegaram, entre eles,
"O Beijo da Mulher Aranha", primeiro filme
brasileiro a vencer um Oscar
Demorou um pouco além do normal, mas voltamos com mais uma parte da nossa série especial “Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes”. E tem justificativa para esta demora. Isso porque reservamos este quarto e penúltimo recorte da lista para o mês de agosto, o de aniversário do Clyblog, uma vez que este Claquete Especial, iniciado em abril, é justamente em celebração dos 15 anos do blog.

Talvez somente esta justificativa não baste, entendemos. Então, já que vínhamos mês a mês postando uma nova listagem com 20 títulos cada, propositalmente falhamos em julho para que agora, no mês do aniversário, fizéssemos uma sequência não apenas de 20 filmes, mas de 40 de uma vez. E não se tratam de quaisquer quatro dezenas! Afinal, a seleção inteira é tão rica, que igualável em qualidade a qualquer cinematografia mundial. Mas, especialmente, porque estes novos compreendem as posições do 50º ao 11º. Ou seja: aqueles “top top” mesmo, quase chegando nos “finalmentes”.

Waltinho, um dos 6 com 2 filmes entre
os 40 melhores
E se o adensamento já vinha acontecendo fortemente, com a presença de grandes realizadores, títulos clássicos e premiados e escolas reconhecidas somadas às novas produções do furtivo século XXI, agora, então, esta confluência se faz ainda mais presente. Dá para se ter ideia pelos nomes de cineastas de primeira linha como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Walter Salles Jr., Luis Sergio Person, Hector Babenco e Eduardo Coutinho, que já deram as caras com obras anteriormente e, desta feita, emplacam dois filmes cada entre os selecionados, até então os mais bem colocados. Somam-se a eles os altamente competentes João Moreira Salles, Jorge Furtado e Bruno Barreto, também com dois entre os 40.

Pode-se dizer que, agora, é quando de fato entram os clássicos incontestes, aqueles “divisores de águas” do cinema nacional (e, por que não, mundial), como “Ganga Bruta”, de Humberto Mauro, "O Beijo da Mulher Aranha", de Babenco, “São Paulo S/A”, de Person, e “Tropa de Elite”, de José Padilha. Mas também pedem passagem “novos clássicos”, tal o perturbador documentário “Estamira” e o premiado “Bacurau”, de 2019, quarto mais recente entre os 110 atrás apenas de “Três Verões” (63º), “Marte Um” (79º) e “Marighella” (106º).

Elas, as cineastas mulheres, se ainda em desigualdade na contagem geral, marcam forte presença nesta fatia mais qualificada até aqui. Estão entre elas Kátia Lund, Daniela Thomas e Anna Muylaert, esta última, responsável por um dos filmes mais tocantes e críticos do cinema brasileiro, “Que Horas Ela Volta?”. Então, pegando carona na expressão, para quem estava nos perguntando "que horas eles voltariam?”: voltamos. E voltamos abalando com 40 filmes imperdíveis, que dignificam o cinema brasileiro e latino-americano. Pensa bem: apenas 10 títulos os separam do melhor cinema do Brasil. Isso diz muito.

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50. "Estamira”, Marcos Prado (2004)

Dentre as dezenas de documentários realizados na década 00, um merece especial destaque por sua força expressiva incomum: "Estamira". Certamente o que colabora para esta pungência do filme do até então apenas produtor Marcos Prado, sócio de José Padilha à época, é a abordagem sem filtro e nem concessões da personagem central, uma mulher catadora de lixo com sério desequilíbrio mental, capaz de extravasar o mais colérico impulso e a mais profunda sabedoria filosófica. A própria presença da câmera, aliás, é bastantemente honesta, visto que por vezes perturba Estamira. Obra bela e inquietante. Melhor doc do FestRio, Mostra de SP, Karlovy Vary e Marselha, além de prêmios em Belém, Miami e Nuremberg.




49. “Tropa de Elite”, de José Padilha (2007)
48. “Batismo de Sangue”, de Helvécio Ratón (2007)
47. “Terra Estrangeira”, Walter Salles Jr. e Daniela Thomas (1996) 
46. “O Dia em que Dorival Encarou a Guarda”, Jorge Furtado e José Pedro Goulart (1986)
45. “Amarelo Manga”, de Cláudio Assis (2002)



44. “Nunca Fomos Tão Felizes”, Murilo Salles (1984) 
43. “Edifício Master”, de Eduardo Coutinho (2002)
42. “O Homem da Capa Preta”, Sérgio Rezende (1986)
41. “O Beijo da Mulher Aranha”, Hector Babenco (1985)


40. 
“São Bernardo”, Leon Hirszman (1971) 

Adaptação do livro do Graciliano Ramos, que transporta para a tela não só a história, mas a secura das relações e a incomunicabilidade numa grande fazenda do início do século XX, escorada na desigualdade dos latifúndios. Não há diálogo: a vida é assim e pronto. Daqueles filmes impecáveis em narrativa e concepção. E Leon, comunista como era, não deixa de, num deslocamento temporal, dar seu recado quanto à reforma agrária. A trilha, vanguarda e folk, algo varèsiana e smetakiana, é de Caetano Veloso, que acompanha a secura da narrativa e cria uma "música" totalmente vocal em cima de melismas lamentosos e desconcertados. Recebeu vários prêmios em festivais, entre eles o de melhor ator para Othon Bastos no Festival de Gramado, o Prêmio Air France de melhor filme, diretor, ator e atriz (Isabel Ribeiro), além do Coruja de Ouro de melhor diretor e atriz coadjuvante (Vanda Lacerda). 



39. “Carandiru”, de Hector Babenco (2002)
38. “O Som do Redor”, Kleber Mendonça Filho (2012)
37. “Que Horas Ela Volta?”, Anna Muylaert (2015) 
36. “Notícias de uma Guerra Particular”, Kátia Lund e João Moreira Salles (1999)
35. “Ganga Bruta”, Humberto Mauro (1933)



34. “Lavoura Arcaica”, Luiz Fernando Carvalho (2001)
33. “Bar Esperança, O Último que Fecha”, Hugo Carvana (1982) 
32. “Couro de Gato”, Joaquim Pedro de Andrade (1962)
31. “Os Fuzis”, Ruy Guerra (1964)


30. “O Bandido da Luz Vermelha”, Rogério Sganzerla (1968) 

Se existe cinema marginal, esta classificação se deve a “O Bandido...”. Transgressor, louco, efervescente, non-sense, crítico, revolucionário. Adjetivos são pouco pra definir a obra inaugural de Sganzerla, que trilharia pela "marginalidade" até o final da coerente carreira. Um filme de manifesto, questionamento de ordem política, de uma estética diferente e bela (apesar do baixo orçamento) e a vontade de avacalhar com tudo. "Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha e se esculhamba". Grande vencedor do Festival de Brasília de 1968. O filme que fez o “terceiro mundo explodir” de criatividade.


29. "Santiago", de João Moreira Salles (2007)
28. “Jogo de Cena”, Eduardo Coutinho (2007)
27. “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”, Glauber Rocha (1968)
26. “Noite Vazia”, Walter Hugo Khouri (1964)
25. “São Paulo S/A”, Luis Sérgio Person (1965) 



24. "Terra em Transe", Glauber Rocha (1967) 
23. "Sargento Getúlio”, Hermano Penna (1981) 
22. “O Caso dos Irmãos Naves”, Luis Sergio Person (1967) 
21. “Memórias do Cárcere”, Nelson Pereira dos Santos (1984) 

20. 
 “Ilha das Flores”, Jorge Furtado (1989)

É incontestável a importância de "Ilha das Flores" para a cinematografia gaúcha e nacional. O filme que, em plenos anos 80 ainda de fim do período de Ditadura, expôs ao mundo uma realidade muito pouco enxergada, o fez de forma absolutamente criativa e impactante. Ao acompanhar o percurso de um mero tomate da horta até o lixão a céu aberto onde vive uma fatia da população em total miséria e descaso social, Furtado virou de cabeça para baixo a narrativa do audiovisual brasileiro, influenciado diretamente as produções de TV dos anos 80 e 90 e o cinema pós-retomada nos anos 2000. Urso de Prata para curta-metragem no 40° Festival de Berlim, Prêmio Especial do Júri e Melhor Filme do Júri Popular no 3° Festival de Clermont-Ferrand, França, entre outras premiações na Alemanha, Estados Unidos e Brasil. Um clássico ainda hoje perturbador.



19. “O Beijo no Asfalto”, Bruno Barreto (1980) 
18. “Central do Brasil”, de Walter Salles Jr. (1998) 
17. “Dnª Flor e seus Dois Maridos”, Bruno Barreto (1976)
16. “Garrincha, A Alegria do Povo”, Joaquim Pedro de Andrade (1962)
15. “Barravento”, Glauber Rocha (1962)


14. “Rio 40 Graus”, Nelson Pereira dos Santos (1955)
13. “Bacurau”, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles (2019)
12. “Assalto ao Trem Pagador”, Roberto Faria (1962) 
11. “Bye Bye Brasil”, Cacá Diegues (1979) 



Daniel Rodrigues


segunda-feira, 19 de junho de 2023

CLAQUETE ESPECIAL 15 ANOS DO CLYBLOG - Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes (parte 3)


Grande Otelo em "Rio, Zona Norte" com o seu realizador, 
Nelson Pereira dos Santos, que chega para ficar
Chegamos à terceira parte de nossa lista dos 110 melhores filmes brasileiros, em comemoração aos 110 anos do primeiro filme realizado no Brasil, “Os Óculos do Vovô”. E justo naquele em que é celebrado o Dia do Cinema Brasileiro! E podemos dizer que a coisa está ficando cada vez mais séria. Não que os primeiros-últimos da ordem já não garantissem uma qualidade excepcional. Afinal, separar APENAS 110 títulos entre tantos memoráveis foi tarefa não só difícil como incompleta. Porém, é óbvio que, à medida que vai se avançando na classificação, também se intensifica a importância das obras.

É bem o caso do nosso novo recorte, que vai do 70º ao 51º posto. E em verdade vos digo: só tem filmão! Se nos 40 títulos anteriores já figuravam grandes realizadores, como Eduardo Coutinho, Glauber Rocha, Hector Babenco e Humberto Mauro, agora entram no páreo outras referências indeléveis do cinema nacional, como Leon Hirzsman, Nelson Pereira dos Santos e Kleber Mendonça Filho com seus primeiros listados. Por que, claro, todos eles voltarão mais pra frente com mais obras. Mesmo caso de Cláudio Assis, aqui com “A Febre do Rato”, e Ruy Guerra, já mencionado com seu "Os Cafajestes" (102º) e agora representado por um dos raros musicais de toda a seleção: “Ópera do Malandro”. Como Guerra, Walter Avancini, Julio Bressane, Joaquim Pedro de Andrade, Walter Lima Jr. e Rogério Sganzerla, já presentes, voltam à carga com todo merecimento. 

Entre as mulheres, se até então apareceram apenas filmes de Suzana Amaral, Laís Bodanzky e Tatiana Issa, Sandra Kogut amplia a representatividade feminina trazendo uma obra-prima da recente cinematografia brasileira: “Três Verões”. Por falar em época, ao contrário do recorte imediatamente anterior, onde calhou de não haver nenhuma produção dos anos 80, nesta, pelo contrário, elas são maioria entre as décadas, com 8 títulos, 4 a mais que a segunda com mais filmes, os anos 60. Este é um dos retratos de momentos importantes do audiovisual brasileiro que uma lista de teor histórico como esta pode suscitar. A constatação é uma mostra (à exceção de “Morte e Vida Severina”, teledrama da TV Globo) do quanto a Embrafilme, bem estruturada nos anos 80, rendeu ao cinema brasileiro frutos muito qualificados e duradouros. A mesma Embrafilme desmontada nos anos 90 por Collor... Mas isso é outra história.

Confiram, então, mais uma parte da lista destes filmes que, se não são necessariamente todos os melhores, infalivelmente guardam qualidades que os credenciam a estarem aqui.

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70.
“O Homem que Virou Suco”, João Batista de Andrade (1981) 

A forte e memorável atuação de José Dumond (Melhor ator em Gramado, Brasília e Huelva), mais uma vez espetacular como em “A Hora da Estrela” e “Morte e Vida Severina”, leva o filme, que conta a história do poeta popular nordestino Deraldo. Ele quer tenta viver em São Paulo de sua arte mas é irresponsavelmente confundido com um assassino. Suas raízes e verdades, então, viram “suco” na grande cidade. Melhor Filme em Moscou e Nevers, é daquelas corajosas realizações  ficcionais, mas abertamente realista que quase documental, e de extrema importância para o período de abertura política no Brasil após os Anos de Chumbo da Ditadura Militar.



69. “Sem Essa Aranha”, Rogério Sganzerla (1970) 
68. “Pra Frente, Brasil”, Roberto Faria (1982) 
67. “Tropa de Elite 2 - O Inimigo Agora é Outro”, José Padilha (2010)
66. “Ópera do Malandro”, Ruy Guerra (1986) 
65. “O Estranho Mundo de Zé do Caixão”, José Mojica Marins (1968)



64. “O Padre e a Moça”, Joaquim Pedro de Andrade (1966)
63. “Três Verões”, Sandra Kogut (2020)
62. “Ele, O Boto”, Walter Lima Jr. (1987) 
61. “A Pedreira de São Diogo”, Leon Hirzsman (1962) 

 
60.
“Os 7 Gatinhos”, Neville D’Almeida (1980) 


Neville é daqueles cineastas da “elite intelectual carioca” que produz coisas às vezes intragáveis, mas esse é um acerto inconteste. Baseado em Nelson Rodrigues, tem o dedo do próprio no roteiro e, além de trilha com músicas de Roberto e Erasmo, é uma tragicomédia crítica e consistente à hipocrisia e depravação da sociedade brasileira. Interpretações (Thelma Reston, Melhor Coadjuvante em Gramado) e cenas inesquecíveis como a dos “caralhinhos voadores” e “me chama de contínuo” estão neste longa referencial.





59. “O Mandarim”, de Julio Bressane (1995)
58. “Morte e Vida Severina”, Walter Avancini (1981)
57. “Casa Grande”, Fellipe Gamarano Barbosa (2014)
56. “A Febre do Rato”, Cláudio Assis (2011)
55. “O Romance da Empregada”, Bruno Barreto (1888)



54. “Faca de Dois Gumes”, Murilo Salles (1989)
53. “Rio, Zona Norte”, Nelson Pereira dos Santos (1957)
52. “Aquarius”, Kleber Mendonça Filho (2016)
51. “Blá Blá Blá”, Andrea Tognacci (1968)


Daniel Rodrigues

sexta-feira, 12 de maio de 2023

CLAQUETE ESPECIAL 15 ANOS DO CLYBLOG - Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes (parte 2)

 

O novíssimo "Marte Um" já figurando
na lista dos melhores da história
A lista dos 110 filmes dos 110 anos de cinema brasileiro continua. Nesta segunda parte, na ordem decrescente iniciada da última posição, são mais 20 títulos, e a diversidade e criatividade típicas do cinema nacional se fazem cada vez mais presentes. Obras marcantes da retomada, como “Bicho de Sete Cabeças” e “O Invasor” convivem com clássicos combativos do cinema novo (“O Desafio”), documentários de décadas distintas (“Partido Alto”, dos anos 70, e “Jorge Mautner, O Filho do Holocausto” e “O Fim e o Princípio”, anos 2010) e longas recentíssimos. Entre estes, “Marte Um”, o mais novo de toda a lista, que precisou de menos de um ano de lançamento para carimbar seu lugar ao lado de consagradas chanchadas ou de produções inovadoras, tal o experimental "A Margem" e “A Velha a Fiar”, primeiro “videoclipe” do Brasil em que o tarimbado Humberto Mauro ilustra a canção popular de mesmo nome do Trio Irakitã.

A ausência, pelo menos neste novo recorte, são os filmes dos anos 80, que geralmente pipocam entre os escolhidos, mas que certamente virão mais adiante. Interessante perceber que cineastas mundialmente consagrados como Babenco, Karim e Coutinho se emparelham com novos realizadores como os jovens Gabriel Martins e Gustavo Pizzi. Tradição e renovação. Fiquemos, então, com mais uma parte da listagem que a gente traz como uma das celebrações pelos 15 anos do Clyblog.

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90.
“A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água”, Walter Avancini (1978)

Possivelmente, em algum momento o brasileiro viu uma cena em que Paulo Gracindo bebe um martelinho num boteco pensando que fosse cachaça e, indignado com a enganação, grita: “Água!”. A palavra ecoa enquanto a imagem congela e uma música brasileiríssima divina começa a tocar anunciando os créditos iniciais. Tanto quanto uma cena como a da nudez na praia de Norma Bengell em “Os Cafajestes” ou da operação do Bope no baile funk em “Tropa de Elite”, este começo do “teledrama” baseado no conto de Jorge Amado tem ainda a primazia de ser uma obra feita para a televisão, o que a coloca em tese em inferioridade diante do comum 35mm do cinema. Mas a questão instrumental não interfere neste média absolutamente brilhante dirigido por Avancini. Atuações e diálogos memoráveis, arte primorosa, ritmo perfeito, figurino geniais de Carybé, trilha magnífica de Dori Caymmi. Não à toa deu um dos Emmy conquistados pela TV Globo.


89. “O Invasor”, de Beto Brant (2001) 
88. “O Desafio”, Paulo César Saraceni (1965) 
87. “Jorge Mautner, O Filho do Holocausto”, Pedro Bial e Heitor d'Alincourt (2013)
86. “Dzi Croquetes”, Tatiana Issa, Raphael Alvarez (2005)
85. “Dois Filhos de Francisco”, Breno Silveira (2005)


84, “Partido Alto”, Leon Hirszman (1976-82)
83. “Eu, Tu, Eles”, de Andrucha Waddington (2000)
82. “O Xangô de Baker Street”, de Miguel Faria Jr. (2001) 
81. “O Homem do Sputnik”, Carlos Manga (1959)

80.
“Bicho de Sete Cabeças”, Laís Bodanzky (2000)

Da leva do início dos 2000, que sinalizam o começo do fim da retomada. Símbolo desta fase, “Bicho...” é um dos filmes que denotaram que o cinema brasileiro saíra da pior fase e entrava numa outra nova e inédita. Além de lançar a cineasta e o hoje astro internacional Rodrigo Santoro, conta com uma estética e edição arrojadas, com sua câmera nervosa e atuações marcantes, tanto a do jovem protagonista quanto dos tarimbados Othon Bastos e Cássia Kiss. Vários prêmios: Qualidade Brasil, Grande Prêmio Cinema Brasil, Troféu APCA de "Melhor Filme", além de ser o filme mais premiado dos festivais de Brasília e do Recife. Ainda, está nos 100 da Abracine. Trilha de André Abujamra e com músicas de Arnaldo Antunes.


79. “Marte Um”, Gabriel Martins (2022)
78. “Madame Satã”, de Karim Ainouz (2002) 
77. “Babilônia 2000”, Eduardo Coutinho (2001)
76. “Benzinho”, Gustavo Pizzi (2018)
75. “A Margem”, Ozualdo Candeias (1967)


74. “Estômago”, de Marcos Jorge (2007) 
73. “Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia”, Hector Babenco (1976) 
72. “O Fim e o Princípio”, Eduardo Coutinho (2006)
71. “A Velha a Fiar”, Humberto Mauro (1964)


Daniel Rodrigues

terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Sete Documentários sobre Carnaval



Cena do filme "Nossa Escola de Samba"
É farta a filmografia sobre o samba e seus autores. O gênero musical, assim como o Carnaval brasileiro, ao qual está associado, é tema e/ou perpassa histórias ficcionais das mais diversas no cinema desde que o samba é samba. Porém, é interessante perceber (e até talvez sintomático) que haja poucos documentários sobre a tradicional festa do Momo. É fato que os filmes, inclusive os de ficção, enquanto resultado da produção artística de suas épocas, assim como quaisquer outras artes, são reflexo da sociedade e da cultura da qual se originam. Neste contexto, entretanto, o documentário pode ser visto como ainda mais incisivo e fiel à sociedade que representa, visto que a concepção documental tem exatamente este propósito de registro histórico. Independentemente se o objeto retratado é do passado ou algo que esteja acontecendo no “presente”, o documentário será sempre um anal de seu tempo.

Por esta ótica é estranho não se encontrar tantos documentários sobre Carnaval no Brasil, o país ao qual o mundo atribui a verdadeira realização de tal festa. Mesmo com o crescimento exponencial da produção documental no País nos últimos 30 anos, o volume de filmes deste gênero não parece ter seguindo a tendência, restando não muitos que versam especificamente sobre o tema. O que explicaria isso? Há motivos socioculturais que interfiram nesta desatenção? Teria a ver com a dificuldade brasileira de assumir sua identidade? Seria a confirmação da pecha do “país sem memória”? Que não se enxerga? Que tem vergonha de sua face? Que não se questiona? 

Perguntas que ficam no ar, mas que os docs aqui listados talvez respondam em parte. Há desde realizações dos anos 60, num Brasil ainda subdesenvolvido, a filmes dos anos 90 e século XXI de abordagens distintas, da grandeza do Carnaval carioca, à religiosidade e o paganismo da festividade e à analogia com outras realidades. Para este Carnaval, então, entre uma pulada no bloco de sua cidade e uma parada em casa pra tomar um refresco, quem sabe ver-se retratado na tela?

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“As Pastoras - Vozes Femininas do Samba”, de Juliana Chagas (2018)

Um tocante e revelador retrato do envolvimento das mulheres com o samba, a comunidade e o carnaval. No caso, da Escola Portela, em que as figuras femininas que dão título ao filme são personagens centrais. As vozes das pastoras, como as mulheres cantoras são chamadas na escola, dão leveza ao samba. Nos primórdios, eram elas que, ao cantar em coro as composições que mais gostavam, determinavam qual seria o samba vencedor na quadra. Hoje, as pastoras fazem parte da Velha Guarda e continuam a emprestar suas vozes aos sambas mais tradicionais de suas escolas. Além de colher depoimentos vivos e destacar a condição feminina, fato raro dentro do samba e da cultura popular, o documentário traz momentos sublimes, como o acompanhamento dos momentos de tensão da apuração dos resultados dos desfiles na casa de Dona Nenê, viúva do bamba Manacéa, ao lado de sua filha Áurea Maria, uma das pastoras pertencentes à Velha Guarda.



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“Ensaio Geral”, de Arthur Fontes (2000)

Indicado ao Emmy Internacional de melhor documentário, este doc produzido para a TV mostra com riqueza de detalhes os bastidores e a linha de frente de todo o processo de construção do carnaval da Mocidade Independente de Padre Miguel para o ano 2000, desde o sorteio da ordem dos desfiles até o seu ápice, o desfile propriamente dito. Num enfoque distanciado, sublinha a influência dos bicheiros na escola, expõe a disputa pela escolha do samba-enredo (na qual são feitas, inclusive, ameaças de morte) e esmiuça a tensão entre conceitos estéticos do carnavalesco Roberto Lage e a vontade de presidentes de ala de colocar mulheres semidespidas na passarela. "Ensaio Geral" é um painel de matizes contraditórios, expondo um Carnaval que surge como produto bonito, mas de um trabalho estafante, fragmentado e mal pago. Um trabalho cujo fundamento é a alegria da identidade comunitária, mas na qual a alienação está sempre presente.



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“Escola de Samba", Alegria de Viver", de Cacá Diegues (1962) - Episódio do filme "5 Vezes Favela"

Embora “ficcional”, este episódio do longa “5 Vezes Favela”, um dos marcos do Cinema Novo brasileiro dos anos 60, tem todas as características de documentário, colocando-se na fronteira entre um gênero e outro tal como este movimento cinematográfico propôs. A história retrata o jovem sambista vivido por Oduvaldo Viana Filho, que assume a direção da escola de samba de sua comunidade poucos meses antes do Carnaval, enfrentando problemas de dívidas, rixa com uma escola rival e discussões com a esposa, a cobiçada mulata Dalva. Primeiro filme do mestre Cacá Diegues, que se tornaria expoente do cinema brasileiro, embora encenado, tem como conceito a aproximação do Brasil de suas realidades até então obscurecidas como a pobreza e a vida das periferias. A história, muito crível dentro do contexto social daquelas pessoas, se passa na agremiação Unidos do Cabuçu, de Engenho Novo, o “Rio, Zona Norte” que Nelson Pereira dos Santos começava a desvendar para o cinema brasileiro anos antes. Realizado dois anos antes do golpe militar, “5 Vezes Favela” já denotava as forças “subversivas” que a Ditadura combateria com unhas e dentes. No caso de “Escola de Samba”, além de montagem de Ruy Guerra e produção executiva de Eduardo Coutinho, dois cineasta diretamente ligados ao comunismo, foi viabilizado pelo CPC - Centro Popular de Cultura, da tão perseguida UNE.



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“Fevereiros”
, de Marcio Debellian (2017)

Não é o primeiro documentário que tem Maria Bethânia como protagonista, a se ver por “Maria Bethânia - Pedrinha de Aruanda”, “Bethânia Bem de Perto”, "Maria - Ninguém Sabe Quem Sou Eu", “Os Doces Bárbaros” e outros. Mas o seu universo é tão rico e mágico que um filme como “Fevereiros” traz qualidades muito próprias não antes exploradas. O diretor faz um feliz paralelo entre o registro da vitória da escola de samba carioca Estação Primeira de Mangueira, em 2016, que teve um enredo homenageando a cantora baiana, com os seus momentos na cidade-natal, Santo Amaro, no Recôncavo, durante as festas da Nossa Senhora da Purificação, ambas ocorridas no mês de fevereiro. As correlações dos aspectos religiosos, ancestrais e sociais entre uma festividade e outra, entre um ritual e outro, são de grande riqueza. Fora, claro, a linda trilha sonora que vai naturalmente pontuando o filme, seja na voz da Abelha-Rainha, seja na de artistas correlatos a ela, como o irmão Caetano Veloso, Chico Buarque, D. Edith do Prato, os sambistas da Mangueira, entre outros. Mais um doc de Bethânia, mas Bethânia nunca é demais. 



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“Nossa Escola de Samba”
, de Manuel Horacio Giménez (1968) - episódio do filme "Brasil Verdade"

Mais antigo registro formalmente documental sobre o Carnaval, esta preciosidade tem como a figura central de Antônio Fernandes da Silveira, conhecido por Seu China, morador do bairro carioca que abriga a Escola de Samba Unidos de Vila Isabel, a qual ele mesmo foi um dos fundadores, em 1945. Com influências do cinéma vérité francês de Edgar Morin e Jean Rouch, em voga nos meios intelectuais à época, este documentário social traz um olhar sociológico-antropológico a um tema até então pouco explorado, com off narrado na própria voz de Seu China, evidenciando as dificuldades sociais da população pobre e o quanto o Carnaval representa um sopro de alegria para o povo. Além disso, intercala episódios cotidianos “encenados”, que se misturam a captações de lances espontâneos da “câmera-olho” de Giménez. Tudo sob um P&B rigoroso, magistralmente bem fotografado por Thomas Farkas e Alberto Salvá. Este curta, integrante do longa "Brasil Verdade", foi filmado no ano do golpe militar e um antes da chegada de um personagem essencial para o desenvolvimento da Escola vindo, ironicamente, de dentro do quartel: um jovem de 27 anos chamado Martinho da Vila, ainda um sargento burocrata do Exército.



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“Estou me Guardando pra Quando o Carnaval Chegar”
, de Marcelo Gomes (2019)

Parafraseando o samba moroso de Chico Buarque, o filme de Gomes traz uma abordagem bem diferente do comum quando se pensa em Carnaval, até por não ser um filme sobre a festa, mas sobre a fuga dela. Nada de Marquês de Sapucaí, circuito Barra-Ondina ou blocos de rua pelas capitais brasileiras. Na cidade de Toritama, interior de Pernambuco, considerada capital nacional do jeans, mais de 20 milhões do tecido são produzidos anualmente em fábricas caseiras. Orgulhosos de serem os próprios chefes, os proprietários destas fábricas trabalham sem parar em todas as épocas do ano, exceto o Carnaval: quando chega a semana de folga eles vendem tudo que acumularam e descansam em praias paradisíacas. Exibido na mostra competitiva do 24º festival É Tudo Verdade, o filme recebeu menção honrosa do júri oficial e da Associação Brasileira de Documentaristas e Curta-Metragistas, além de ser escolhido como melhor filme pelo júri da Associação Brasileira de Críticos de Cinema.



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“Imperatriz do Carnaval”
, de Medeiros Schultz (2001)

Assim como “Ensaio Geral”, trata-se de outro longa-metragem sobre a preparação de uma escola de samba para o Carnaval do marcante ano de 2000. Porém, esta, ao invés de abordar a Mocidade, traz os preparativos da Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense para os desfiles na Sapucaí. O diretor acompanhou todo o processo de preparação da escola: a composição e a escolha da música, a criação dos figurinos e alegorias, o trabalho no barracão, a produção das fantasias, os ensaios, a vida dos carnavalescos em casa e na escola e, por fim, o vitorioso desfile de bicampeã. No total, foram gravadas 50 horas de material, incluindo uma gravação inédita da bateria da escola em sistema surround. Segundo o jornalista e pesquisador Sérgio Cabral, narrador do documentário e autor do livro “As Escolas de Samba do Rio de Janeiro”, Imperatriz do Carnaval é “a melhor, mais profunda e mais completa radiografia audiovisual de uma escola de samba já realizada no Brasil”.




Daniel Rodrigues