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segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Moacir Santos - "Coisas" (1965)


"Moacir Santos é um jedi."
Ed Motta

"Eu sou o 'Ouro Negro' do Brasil."
Moacir Santos

A música popular brasileira, mesmo com sua trajetória centenária, demorou a se reconhecer negra. O samba, ritmo mais característico do Brasil, embora a gênese africana, com elementos oriundos das nações Banto, Iorubá, Jeje, Mina, Bornu, Gurunsi e outras, sofreu, ao longo do tempo, com diversas intervenções que, às vezes propositalmente, o distanciaram da origem. Caso do "boleramento" do samba da Rádio Nacional, nos anos 40 e 50, e da própria bossa-nova, demasiado jazz para ouvidos mais ortodoxos. O morro, mesmo, não aparecia no cenário. Ambas as ondas propunham características tão estrangeiras, que só faziam reduzir o espaço simbólico da verdadeira raiz da música brasileira, fosse por modismo, entreguismo ou, pior, vergonha.

Jorge Ben, com o emblemático “Samba Esquema Novo”, de 1963, foi o primeiro sopro de resgate deste africanismo na MPB. Instintivo, pop e moderno, levava a raiz afro-brasileira a outro nível ancorado na tradição violeira. Mas ainda era pouco. Se se olhar para uma das pinturas de Heitor dos Prazeres (aliás, também um grande sambista), que tematizam a gente do samba dos morros e das ruas, fica claro que havia uma série de outros instrumentos – e, portanto, outras texturas e tonalidades – nas rodas e cordões cariocas do início do século 20, que iam além do pandeiro e tarol. Como descreve José Ramos Tinhorão em seu “Os Sons Negros no Brasil”, cabia no samba toda a influência ibérica trazida da Europa pelos portugueses, como o fado e a fofa, mais as diversas culturas diaspóricas vindas da África, tal o batuque, o calundu, o folguedo e a umbigada.

Alguma coisa haveria de salvar a africanidade na música brasileira, e isso veio das mãos de Moacir Santos. Compositor, arranjador, saxofonista e vocalista, este pernambucano lança seu primeiro e absolutamente marcante álbum de estreia com base nas lições que ensinava a seus alunos, as despretensiosamente chamadas “coisas”. Acontece que essas "coisas" eram preciosidades, assim como os seus seguidores. Seus discípulos – entre eles, nada menos que Baden Powell, João Donato, Paulo Moura, Sérgio Mendes, Nara Leão, Eumir Deodato, Carlos Lyra e Roberto Menescal – aprenderam estes valiosos ensinamentos de harmonia e composição com um já maduro e experiente músico capaz de sinterizar mundos. Ex-integrante de orquestras de circo e bandas militares de diversas cidades do Nordeste, nos anos 40, Moacir, após trabalhar como instrumentista e arranjador da orquestra da Rádio Nacional, em 1951, já no Rio de Janeiro, aperfeiçoou seus estudos eruditos com os maestros alemães Ernest Krenek (que o introduz na técnica dodecafônica) e o célebre Hans-Joachim Koellreuter, de quem se tornou assistente, além de estudar também com Claudio Santoro e Cesar Guerra-Peixe.

Lançado há 60 anos pelo cultuado selo Forma – responsável por obras icônicas da música brasileira dos anos 60 como “Os Afro-Sambas”, de Vinicius de Moraes e Baden, e a trilha sonora de Sérgio Ricardo para “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, o filme de Glauber Rocha“Coisas” é justamente o nome dado ao disco que resume as avançadas ideias musicais de Moacir Santos. O trabalho revitaliza a bossa-nova sob a aura das matrizes africanas, ao passo de que também engendra harmonias jazzísticas e ritmos da cultura nordestina, como o frevo, o samba-de-roda, o maracatu e as bandas marciais. A valorização da cultura negra é perceptível tanto na atenção dispensada pelo compositor à percussão, com a incorporação de instrumentos pouco usuais (como berimbau, kalimba, atabaque, agogô e afoxé), como na invenção de uma base rítmica original, ligada a esse matiz. Coisa de gênio. 

São apenas 10 coisas, ou melhor: 10 lições instrumentais, que inventam esse Brasil profundo e sofisticado de Moa. "Coisa n° 4" não à toa passa à frente de suas três companheiras ordinárias para abrir o disco, visto que escolhida para provocar o impacto necessário ao florescer da obra. E o cumpre com louvor: um ritmo de ponto de candomblé se funde a uma base de metais em tom baixo, como o de uma banda marcial em dia de quermesse. É quando entra o trombone solo de Edmundo Maciel desenhando o riff, que serpenteia com elegância o ritmado carregado do culto de orixá. Depois, juntam-se trombone, metais e madeira, num desenvolvimento melódico airoso.

Moacir, revolucionário e mestre dos mestres
da música brasileira 
Dá tempo de recuperar o fôlego – talvez nem tanto assim – com a “nº 10”, uma bossa-nova com traços caribenhos com uma das melodias mais bonitas já escritas por Moacir. Samba-jazz puro, seja no toque sincopado do piano, seja na insinuante linha do trompete. Tudo muito apurado e com clara referência aos mestres Tom Jobim, Johnny Alf, João Donato e Antônio Maria.

Recuperando o tema escrito dois anos antes para a trilha sonora de “Ganga Zumba”, o primeiro filme de Cacá Diegues, “Tema de Nanã” vira agora a “Coisa nº 5”. Novamente, como na abertura do disco, o toque percussivo prevalece, mas logo se transforma numa marcha, que dignifica o gênio militar do herói quilombola. O arranjo de Moacir é espantosamente bem arquitetado, conjugando todos os metais e madeiras (sax alto, sax barítono, sax tenor, trompete, trombone, trombone baixo e flauta). Um ano antes, Nara, com arranjos do próprio autor, a incluiria em seu celebrado álbum de estreia cantando-a apenas em melismas. Somente em 1972 a música ganharia letra – e em inglês – no LP “Maestro”, que Moacir gravaria já nos Estados Unidos, para onde se mudou em 1967 para lecionar e exercer trabalhos free-lancer para cinema.

Enquanto o tema “3” é quase o estudo de um samba minimalista escrito sobre a combinação de três acordes, a “segunda coisa”, que vêm na sequência, esmera num jazz sensual e enigmático conduzido pela bateria de Wilson das Neves e o vibrafone do seu irmão, o também percussionista Cláudio das Neves. Desfilam solos da flauta de Copinha e o trombone baixo de Armando Pallas sobre uma base arranjada no tom médio dos metais. Nesta fica clara a habilidade melódico-harmônica de Moacir, que emprega escalas modais e ambíguas no uso das terças (ora maiores, ora menores), gesto que que torna o número ainda mais negro.

Outra estonteante é a de “nº 9”, subtitulada "Senzala", um lamento nagô com ares jazzísticos cujo toque do sax alto sustenta uma das melodias mais bonitas da música brasileira pós bossa-nova. Há algo arábico nessa melodia em permanente mistério, como uma saudade da mãe-África, como um banzo. Não se nota exaltação: apenas o sofrimento calado das correntes prendendo a pele escrava na escaldante noite no engenho. Já a “Coisa nº 6” acelera o compasso para um samba gafieira em que a volumosa instrumentalização dignifica Severino Araújo e a Orquestra Tabajara. Ritmada, suingada e lindamente melodiosa.

Não menos brilhante, a “sétima lição” é um samba-jazz exemplar, das melhores desse primeiro e referencial repertório de Moacir. Já a “Coisa nº 1”, não menos elegante, forja-se sobre uma sutil percussão de bongôs, um violão sincopado e a dança dos metais, que esculpem este samba cadenciado, que capta as lições da bossa nova e as ressignifica ao deslocar rítmicos e métricos, característica do compositor pernambucano.

Intitulada de “Navegação” em 2001, quando ganhou letra de Nei Lopes e vocal de Milton Nascimento para o álbum-tributo “Ouro Negro”, produzido por Zé Nogueira e Mário Adnet, e um dos mais cultuados temas do cancioneiro de Moa, a “Coisa nº 8” é a escolhida para fechar essa pequena ópera preta. E no mais alto nível de musicalidade e sofisticação. Mesmo sem o vocal, é possível embarcar neste navio moaciriano e intuir os versos: “Da proa desta embarcação/ Consigo interpretar, enfim/ A carta de navegação/ Que o mar traçou dentro de mim”.

Não é exagero dizer que, se não existisse “Coisas”, não existiriam “Os Afro-Sambas” de Vinicius e Baden, nem a África universal do Milton de “Minas"/"Geraes”, nem a “Maria Fumaça” soul-funk da Black Rio, nem o samba enraizado do Martinho da Vila de “Origens”, nem a “Refavela” de Gilberto Gil, nem a musicalidade colorida da Europa moura de Djavan. Não haveria lastro para tudo isso não fosse Moacir Santos e o salvamento que ele promoveu à música brasileira negra. Tal uma nova abolição. Como disse Ed Motta, Moacir é “essa mão de proteção sobre as nossas criações e de tudo que a gente tem pra fazer daqui pra frente”. O que quer dizer muita, mas muita coisa.

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FAIXAS:
1. "Coisa Nº 4" - 4:01
2. "Coisa Nº 10" (Moacir Santos, Mário Telles) - 3:06
3. "Coisa Nº 5 (Nanã)" (Santos, Telles) - 2:45
4. "Coisa Nº 3" - 3:00
5. "Coisa Nº 2" - 4:55
6. "Coisa Nº 9 (Senzala)" (Santos, Regina Werneck) - 3:08
7. "!Coisa Nº 6" - 3:22
8. "Coisa Nº 7 (Quem É Que Não Chora?)" (Santos, Telles) - 2:25
9. "Coisa Nº 1" (Santos, Clovis Mello) - 2:41
10. "Coisa Nº 8 (Navegação)" (Santos, Werneck) - 2:19
Todas as composições de autoria de Moacir Santos, exceto indicadas

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Daniel Rodrigues

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

João Donato - “Lugar Comum” (1975)

 

Acima, arte da capa original de
autoria de Rogério Duarte; abaixo,
capa da reedição em CD de 2004 

“Naquele momento fazíamos tudo informalmente: saíamos pelas noites, ele cantarolava as músicas e eu imaginava palavras pra elas. Assim fizemos ‘Bananeira’, ‘A Bruxa de Mentira’, ‘Emoriô’, ‘Que Besteira’”. 
Gilberto Gil

"A mais alta conquista de extrema complexidade em extrema simplicidade."
Caetano Veloso sobre João Donato


No final dos anos 60, João Donato e Gilberto Gil estavam distanciados de casa. Eles voltariam para o Brasil, porém, praticamente ao mesmo tempo, em 1972. Só que em condições totalmente distintas. Donato, depois de uma temporada frutífera de 10 anos nos Estados Unidos, em que tocou com músicos de alto calibre como Chet Baker, Buddy Shark e Wes Montgomery e lançou discos referenciais para o nascente jazz fusion, tal “A Bed Donato” e “Donato/Deodato” - este último, ao lado de outro brasileiro destacado no meio musical americano, Eumir Deodato. Um dos pioneiros da bossa nova, o acreano já era uma lenda entre os músicos brasileiros e já havia formatado seu estilo misto de samba com ritmos caribenhos e harmonias jazzísticas sofisticadas, o que só foi aperfeiçoado com a longa experiência nos EUA. 

Gil, por sua vez, deixaria o País em 1969 por um motivo bem mais espinhoso. Artífice do Tropicalismo, o baiano teve de se exilar em Londres por causa da Ditadura Militar junto com o parceiro e conterrâneo Caetano Veloso. Se o tempo de permanência foi bem menor do que o de Donato no estrangeiro, a sensação foi de que muitas vidas foram vividas naqueles pouco mais de 3 anos em solo europeu. Antenado e holístico, Gil aproveitou para se apropriar da atmosfera da Swingin’ London, mas, claro, não sem sentir falta do Brasil.

O retorno para casa representava, assim, tanto para Donato quanto Gil, um reencontro com suas próprias origens. O primeiro, de tão feliz, passou a escrever letras para suas composições instrumentais e, inclusive, a cantar, algo inédito até o célebre “Quem é Quem”, de 1973, quando se escuta pela primeira vez o registro de sua voz. Além disso, Donato arranjou e tocou com diversos artistas como Gal Costa, Marku Ribas, Emílio Santiago e Caetano, sempre adicionando sua musicalidade colorida e luminosa como sol dos trópicos. Estava pleno e realizado, semelhante a Gil, que retornara da expatriação com discos marcantes (“Expresso 2222”, “Gil & Jorge ou Xangô/Ogum”) e produzindo os amigos, como Jorge Mautner, Jards Macalé e Walter Smetak. Queria, agora, era aproveitar.

Não surpreende que estes dois brasileiros cheios de amor por sua terra se conectassem. O resultado disso está no não coincidentemente intitulado “Lugar Comum”, disco de Donato, que completa 50 anos de lançamento e que, embora creditado apenas a este, tem a essencial participação de Gil. Das 12 faixas, 8 são em parceria dos dois. Além disso, o próprio Gil é quem canta e/ou põe voz em quase metade dos números, inclusive creditado na ficha como responsável pelas “harmonias vocais” da obra como um todo. O protagonismo de Gil, somado ao de Donato, é tanto, que certamente credenciaria “Lugar...” a ser assinado por ambos. Mas quis-se – seja por camaradagem, modéstia ou questões contratuais – que somente o nome de Donato estivesse na capa.

Gil e Donato em 2006: reencontro para
cantarem juntos outra vez
Na contracapa e no miolo, no entanto, a união com Gil é evidente. A sonoridade jazzística de Donato cede espaço à africanidade baiana de Gil, seja em temas clássicos dos dois, como “Emoriô” e “Patumbalacundê”, seja contagiando outras, tal “Xangô É de Baê” (de Donato com Rubem Confete e Sidney da Conceição) ou “Ê Menina” (Donato e Gutemberg Guarabyra). Essa atitude afro-brasileira, que principalmente Gil começava a prescrutar – e que se manifestaria fortemente em dois de seus trabalhos subsequentes, ”Refavela” e ”Realce”, de 1977 e 79, respectivamente –, está evidente na instrumentalização do disco, que explora os microtons da percussão. Mas sem deixar de aproveitar também os ricos e característicos arranjos de Donato, que equilibram metais, madeiras, vozes e teclados em tons médios, tão bem escritos que suplantam as cordas. Caso da solar e lúdica “A Bruxa de Mentira” (“Não vejo a hora de ir/ Na barraquinha comprar/ Rapadoçura bombom/ Bruxinha gostosura (gostosura)”), que bem podia compor a trilha sonora de algum programa ou especial infantil como os que a TV brasileira tinha à época.

A faixa-título e de abertura, uma bossa nova refinada guiada pelo piano elétrico de Donato e completada por frases dos metais/madeiras, é um verdadeiro primor da MPB dos anos 70. A letra, igualmente, uma preciosidade: “Beira do mar, lugar comum/ Começo do caminhar/ Pra beira de outro lugar/ Beira do mar, todo mar é um/ Começo do caminhar/ Pra dentro do fundo azul”. Gravada por Gil um ano antes, no show "Ao Vivo no Tuca", “Lugar...”, antes chamada “Índio Perdido”, é um dos exemplos de temas instrumentais de Donato já existentes, que passam a ganhar letra e título diferente nesta época. Outra da dupla Gil/Donato, a rumba “Tudo Bem”, cantada pelos dois em coro, é de uma simplicidade formal e, ao mesmo tempo, beleza melódica, assombrosas. Poucos instrumentos (piano, violão, percussão e baixo) e um clima da mais pura Cuba musical.

Donato, mestre em criar arranjos engenhosos sobre melodias de estrutura simples, emprega esse método noutra clássica dele e de Gil: “Bananeira” – a qual ganharia, naquele mesmo ano, uma versão bem mais funk de Emílio Santiago em sua disco de estreia e cujo arranjo conta com a versatilidade do próprio Donato. Eles assinam juntos ainda “Deixei Recado”, um afoxé impregnado de jazz encarregado de encerrar de forma muito afro-baiana o álbum, e “Que Besteira”, típica composição forjada pelo improviso de dois artistas felizes com aquele recente e frutífero encontro e conscientes da beleza do que estavam criando. 

“Lugar...” ainda conta com mais duas pequenas joias com outros parceiros de Donato: “Pretty Dolly”, com Norman Gimbel, letrista norte-americano cantado por nomes como Sarah Vaughan, Dean Martin e Tony Benett e responsável pela tradução de “Garota de Ipanema” (“The Girl from Ipanema”), que popularizou o hino da bossa nova para o mundo; e “Naturalmente”, a primeira de uma série que assinaria com Caetano e que impressiona pela modernidade de letra e música, que lembra o pós-tropicalismo de Walter Franco e antecipa em quase 10 anos o rock concretista de Arnaldo Antunes/Titãs.

Gil conta, em seu livro “Gilberto Bem Perto” (coescrito com Regina Zappa), que várias músicas dele e de Donato surgiram de maneira informal, quando os dois caminhavam de noite do Rio de Janeiro costeando as praias compondo e se divertindo. Esta cena de espontaneidade e comunhão é a imagem perfeita da magia do encontro destes dois gênios, que tanto sentiram falta do calor dos trópicos. Agora, juntos, na beira do mar, recomeçavam o caminhar para a beira de outro lugar. Um lugar comum a eles: a música do Brasil.

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FAIXAS:
1. “Lugar Comum” (Gilberto Gil, João Donato) - 3:32
2. “Tudo Tem” (Gil, Donato) - 3:20
3. “A Bruxa De Mentira” (Gil, Donato) - 3:21
4. “Ê Menina” (Gutemberg Guarabyra, Donato) - 3:02
5. “Bananeira” (Gil, Donato) - 3:31
6. “Patumbalacundê” (Durval Ferreira, Gil, Donato, Orlandivo) - 3:05
7. “Xangô É de Baê” (Donato, Rubem Confete, Sidney da Conceição) - 3:13
8. “Pretty Dolly” (Donato, Norman Gimbel) - 2:19
9. “Emoriô” (Gil, Donato) - 3:25
10. “Naturalmente” (Caetano Veloso, Donato) - 3:22
11. “Que Besteira” (Gil, Donato) - 3:37
12. “Deixei Recado” (Gil, Donato) - 2:14


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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 15 de julho de 2024

Gilberto Gil - "Gilberto Gil ao Vivo" ou "Ao Vivo no Tuca" (1974)

 

“A experiência do exílio universaliza o caráter da música de Gil, mas também serve para reabrasileirá-la”
Marcelo Fróes, pesquisador musical

O forçado período de exílio, no final dos anos 60/início dos 70, em razão da perseguição do Governo Militar brasileiro, fez bem a Gilberto Gil. A afirmação soa cruel humanisticamente falando, mas, em contrapartida, é impossível dissociar a música do compositor e cantor baiano daquilo que ele produziu em sua fase pós-tropicalista, justamente a que coincide com aquele momento. Sondar, hoje, a música de Gil sem esta intervenção temporal, num continuum que ligue “Batmakumba” diretamente a “Realce”, é impensável. Londres, com seu frio e neblina, mas também com seus “lindos verdes campos” que o oportunizaram a Swinging London e a lisergia, marcou-se de vez na alma de Gil. E isso por um simples motivo: a cosmopolita Londres em muito combinava com a visão holística deste artista.

Os sinais do Velho Mundo ficam evidentes já em “Expresso 2222”, de 1972, seja na influência beatle, seja, por outro lado, no re-enraizamento, espécie de contramovimento em direção às origens de quem tanto tempo ficou distante de sua terra. Mas outras sensibilidades também puderam ser extraídas daquela inevitável influência europeia, que é o próprio cosmopolitismo. E Gil, hábil, traduziu isso em sonoridade. Jards Macalé já havia dado os primeiros passos desde seu compacto "Só Morto", de 1970, e, posteriormente, ao instaurá-la em “Transa”, que Caetano Veloso, companheiro de Tropicália e de exílio de Gil, gravaria na mesma Londres antes de voltar ao Brasil. Era uma sonoridade elétrica (ainda sem teclados), mas sem peso e distorções, que mesclava o rock aos sons brasileiros numa medida que, hegemonizada, soava como um novo jazz fusion. Um fusion essencialmente brasileiro. Não o que Airto Moreira, Hermeto Pascoal ou Eumir Deodato vinham praticando nos Estados Unidos. Era um jazz brasileiro, mas tão brasileiro, que é fácil se esquivar de chamar de jazz, ao passo que é difícil classificar somente de MPB.

O sumo desta sonoridade universalista está no disco ao vivo que Gil gravava há 50 anos com uma afiada banda num único e histórico final de semana de outubro de 1974 no Teatro da Universidade Católica de São Paulo, o conhecido Tuca – palco de diversas combativas apresentações no período da Ditadura. Gil estava num momento transitório entre o disco “Expresso 2222”, que marcou sua volta ao Brasil, e um grande projeto, a trilogia “Re” (“Refazenda”/"Refavela”/”Realce”) a qual tomaria seus próximos três anos a partir de 1975. Além disso, Gil engavetara um disco de estúdio previsto para aquela época e para o qual havia composto várias canções, renomeado “Cidade do Salvador” quando lançado posteriormente na caixa “Ensaio Geral”, de 1998, produzida pelo pesquisador musical Marcelo Froés. Nem por isso, o artista se desconectara de suas próprias buscas sonoras. Pelo contrário. Absorvido pelos estímulos da música pop e com o que captara no período internacional, Gil realiza este show onde exercita o que havia de mais arrojado em termos de arranjo, melodia, harmonia e performance de sua época. Era o Gil tropicalista, novamente, dando as cartas da “novidade que veio dar na praia” na música brasileira. 

“João Sabino”, faixa inicial, é exemplar. Inédita, assim como todas as outras cinco que compõem o disco. Ou seja: embora se trate da gravação de uma apresentação, sua estrutura é de um álbum totalmente novo, com faixas inéditas ou nunca tocadas por Gil, e não de versões ao vivo de temas conhecidos e/ou consagrados - tal como o próprio realizaria em diversos outros momentos da carreira, como os ao vivo "Refestança" (com Rita Lee, de 1980), e "Quanta Gente Veio Ver" (1998). Soma-se a isso a exímia execução, que dá a impressão de uma gravação tecnicamente perfeita como que engendrada num estúdio, da fantástica banda formada por: Gil, na voz, violão e arranjos; Aloísio Milanês, nos teclados; o "Som Imaginário” Frederiko, guitarra; Rubão Sabino, baixo elétrico; e Tutty Moreno, bateria. 

Afora isso, “João Sabino” – homenagem ao pai do baixista da banda, que está excelente na faixa – é um samba de mais de 11 min, repleto da variações e uma melodia com lances experimentais, que exige domínio dos músicos. Na letra, metalinguística, Gil equipara as “localidades” da cidade natal dos Sabino, a capixaba Cachoeiro do Itapemirim (“Pai do filho do Espirito Santo”) com religiosidade e das notas musicais (“Nessa localidade de lá/ Uma abertura de si/ Uma embocadura pra dó/ Sustenindo uma passagem pra ré/ Mi bemol/ (...) De mi pra fá/ Sustenindo, suspendendo/ Sustentando, ajudando o sol/ Nascer"”). E Gil o faz com muita improvisação no canto, incidentando passagens e brincando com as palavras e os vocalises, o que antecipa, até pela extensão do número, a grande jam que gravaria com Jorge Ben no ano seguinte no clássico “Gil & Jorge/Xangô Ogum”. Som eletrificado com alto poder de improvisação dos músicos, que sintetiza a sina bossa-novista, a tradição do samba e a influência nordestina às novas sonoridades pós-“Bitches Brew” e “A Bad Donato”. Um show.

É a vez da psicodélica “Abre o Olho”, espécie de diálogo consigo mesmo no espelho, em que Gil reflete algumas maluquices saborosas enquanto põe colírio nos olhos sob efeito da maconha. “Ele disse: ‘Abra o olho’/ Eu disse ‘aberto’, aí vi tudo longe/ Ele disse: ‘Perto’/ Eu disse: ‘Está certo’/ Ele disse: ‘Está tudinho errado’/ Eu falei: ‘Tá direito’”. Essa divagação toda para chegar na catártica (e sábia) frase do refrão: “Viva Pelé do pé preto/ Viva Zagalo da cabeça branca”. Seu violão e canto são tão intensos, sua performance é tão completa, que nem dá pra perceber que o resto da banda não está tocando.

Gravada originalmente pelo seu coautor, o amigo João Donato, no disco homônimo, “Lugar Comum” ganha aqui a única versão cantada pelo próprio Gil. Delicada e num arranjo redondo, tem a segurança dos músicos na retaguarda, entre eles Tutty, baterista dos revolucionários “Transa”, “Expresso 2222” e dos discos iniciais de Jards, entre outros. Destaque do repertório, talvez a mais sintética de todas da atmosfera empregada nesta apresentação, é “Menina Goiaba”, que bem poderia receber o subtítulo de “Pequena Sinfonia de São João”. São mais de 6 min em que Gil e banda conduzem o ouvinte em uma viagem ao Nordeste festivo e brejeiro, iniciando numa moda de viola, avançando para uma marchinha e finalizando com uma quadrilha num misto de rock e sertanejo com a formosa guitarra de Fredera. Linha melódica intrincada, mas deliciosa como uma guloseima junina, cheia de idas e vindas, transições, variações rítmicas e adornos. E que execução da banda! Jazz fusion brasileiríssimo. E para quem desistiu de lançar um álbum novo àquela época, Gil resolveu muito bem consigo mesmo a dicotomia quando diz na letra da música: “Andei também muito goiaba/ E o disco que eu prometi/ Não foi gravado, não”.

Como já havia feito (e voltaria a fazer inúmeras vezes na carreira), Gil versa Caetano com a magia que somente um irmão espiritual conseguiria. Assim como “Beira-Mar”, do seu trabalho de estreia, em 1967, agora é outra balada caetaneana trazida por Gil: “Sim, Foi Você”. Igualmente, cantada e tocada somente a voz e violão e numa sensibilidade elevada. Para fechar, outro número extenso e uma explosão de talento da banda em “Herói Das Estrelas”. Originalmente gravado pelo seu autor, Jorge Mautner – que o assina junto com o parceiro Nelson Jacobina – naquele mesmo ano num disco produzido por Gil, agora o tema recebe uma roupagem jazzística de dar inveja a qualquer compositor (ainda bem que Gil e Mautner são tão amigos). Rubão está simplesmente sensacional no baixo, assim como Tutty, com sua bateria permanentemente inventiva. Aloísio Milanês, igualmente, improvisa brilhantemente de cabo a rabo (de cometa). E o que falar do violão de Gil? Uma batuta tomada de suingue, de brasilidade, de africanidade. Perfeita para finalizar um show/disco impecável.

Quem escuta algumas das obras posteriores de Gil, talvez nem perceba o quanto este disco ao vivo teve influência. Nas duas versões de “Essa é pra Tocar no Rádio” (“Gil e Jorge” e “Refazenda”), é evidente o trato jazz que recebem, assim como “Ela”, “Lamento Sertanejo” (“Refazenda”, 1875), “Babá Alapalá”, “Samba do Avião” (“Refavela”, 1977) e “Minha Nega Na Janela” (“Antologia do Samba-Choro”, 1978), além da clara semelhança do conceito sonoro de todo “Gil e Jorge”. Gil só viraria a chave desta habilidosa condensação sonora quando fecha a trilogia "Re" no pop “Realce”, de 1978. Porém, não sem, meses antes, encerrar aquele ciclo com outro disco ao vivo, gravado no 12º Festival de Jazz de Montreux, na Suíça. A mídia internacional entendia, enfim, que aquilo era, sim, jazz. Gil, assim, voltava à Europa de onde, no início daquela década, mesmo que forçadamente, precisou se refugiar e aprendeu a ser mais universal do que já era. Igual diz a sua “Back in Bahia”: “Como se ter ido fosse necessário para voltar”.

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A caixa “Ensaio Geral”, lançada em 1998, trouxe em “Ao Vivo no Tuca”, além das faixas do vinil oficial, outras cinco inéditas garimpadas em gravações das másters originais do mesmo show e outras de estúdio da época, somente voz e violão. “Dos Pés à Cabeça”, escrita para a voz de Maria Bethânia, foi registrada por ela no espetáculo “A Cena Muda”, de 1974. Já “O Compositor me Disse” foi para a voz de Elis Regina e gravada pela Pimentinha em “Elis”, também de 1974. Proibido pela Censura de apresentar músicas novas de sua própria autoria, Chico Buarque gravaria músicas de outros compositores, entre elas, “Copo Vazio”, de Gil, em “Sinal Fechado”, do mesmo ano. No espírito do álbum original, todas as extras são cantadas pela primeira vez na voz de Gil.

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FAIXAS:
1. “João Sabino” - 11:33
2. “Abra o Olho” - 4:50
3. “Lugar Comum” (Gilberto Gil, João Donato) - 4:50
4. “Menina Goiaba” - 6:50
5. “Sim, Foi Você” (Caetano Veloso) - 5:47
6. “Herói das Estrelas” (Jorge Mautner, Nelson Jacobina) - 6:01
Faixas bônus da versão em CD:
7. “Cibernética” - 7:45
8. “Dos Pés à Cabeça” - 4:27
9. “O Compositor me Disse” - 4:01
10. “Copo Vazio” - 6:39
11. “Dia de Festa” (Rubão Sabino) - 5:05
Todas as composições de autoria de Gilberto Gil, exceto indicadas

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Daniel Rodrigues

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Música da Cabeça - Programa #349

 

Imagine Paulo Moreira numa capa de Reid Miles para a Blue Note, que ele tanto gostava? Pois para homenagear nosso querido Paulinho, que nos deixou esta semana, o MDC de hoje faz quase isso com uma programação especial só com o que teve de melhor de jazz no nosso Cabeção, quadro que ele nos inspirou e deu nome. Na playlist, Miles Davis, Charlie Parker, Eumir Deodato e outros, tudo extraído de edições de 2018 até agora. Ao som de jazz, o programa hoje presta este tributo às 21h, na jazzística Rádio Elétrica. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues. (R.I.P., amigo "cabeção")


www.radioeletrica.com

quarta-feira, 28 de junho de 2023

Música da Cabeça - Programa #324

Pode desmobilizar o motim: a ordem agora é para curtir o MDC. Aqui não tem espaço pra Grupo Wagner, e sim pra grupos como U2, Nenhum de Nós, The Seeds, Os Mulheres Negras, Garbage e mais. No "Cabeção", uma homenagem aos 8.0 do maestro Eumir Deodato. Avançando pelas ruas da cidade, a tropa musical toma posto às 21h na amotinada Rádio Elétrica. Produção, apresentação e voz de comando: Daniel Rodrigues.


www.radioeletrica.com

quarta-feira, 6 de julho de 2022

Música da Cabeça - Programa #274

 

Sabe a CPI do MEC? Vai ficar pra depois das eleições. O que não fica para depois das eleições é o MDC, que hoje tem The Sugarcubes, Emílio Santiago, Sepultura, The Beach Boys, Eumir Deodato e mais. Ainda tem um Cabeção sobre o pianista e compositor de jazz Ahmad Jamal. Sem procrastinação, o programa vai ao ar às 21h na investigativa Rádio Elétrica. Produção, apresentação e comissão instalada: Daniel Rodrigues.


Rádio Elétrica:
www.radioeletrica.com

segunda-feira, 15 de julho de 2019

Airto Moreira - "Seeds of the Ground" ou "The Natural Sounds of Airto" (1971)



Capa original, de 1971, e a da reedição
em CD, de 1994
“Airto tem um curto período de tempo [nos Estados Unidos] e já tem um impacto importante aqui. Sua influência, expressões criativas e sons inovadores têm sido fortemente sentidos por muitos de nossos principais músicos. O som único de Airto beneficia-se fortemente da compreensão da necessidade de melhores métodos de comunicação – uma necessidade que ele sente que pode ser respondida através da música”. 
Bob Small, produtor musical

A virada dos anos 60 para os 70 foi um momento especialmente frutífero para músicos brasileiros no mercado internacional. Após uma primeira leva de compositores, cantores, instrumentistas e arranjadores descobertos pelos gringos por conta da bossa-nova, vários outros aproveitaram o prestígio já estabelecido da musica brasileira no exterior para abrir novas frentes. O principal destino: Estados Unidos. É quando talentos como Hermeto Pascoal, Dom Um Romão, João Donato e Eumir Deodato, entre outros, partem de mala e cuia para residir naquele que é maior mercado da música no mundo.

Caso de Airto Moreira. O já experiente percussionista catarinense, que, no Brasil, havia integrado os célebres trios Sambalanço (com César Camargo Mariano e Humberto Cláiber) e Sambrasa – ao lado de Hermeto e Cláiber –, além do igualmente icônico Quarteto Novo – novamente ao lado do “Bruxo”, mas também contando com Theo de Barros e Heraldo do Monte. Em 1967, participa do III Festival de Música Popular Brasileira, acompanhando Edu Lobo e Marília Medalha na interpretação da vencedora "Ponteio", a qual coassina com Edu o arranjo. Êxitos obtidos, o negócio era, agora, alçar outros voos.

Dono de um tempo rítmico que abarcava a sutiliza harmônica da bossa nova ao arrojo do jazz moderno, Airto, já em terras yankees, foi impulsionado definitivamente no disputado meio do jazz com a participação no referencial “Bitches Brew”, de Miles Davis, em 1969. Foi em apenas uma faixa (“Feio”), mas o suficiente para pô-lo no rol dos músicos da primeira linha. Tanto é que, um ano depois, veio o primeiro disco solo: “Natural Feelings”, pela Buddah Records, uma joia do jazz fusion com a cara daquilo que só um artista brasileiro é capaz de conceber mesmo longe de casa. Tão melhor que o álbum de estreia, no entanto, é “Seeds of the Ground”, de 1971, onde Airto, acompanhado do inseparável Hermeto (piano, teclados, violão e flauta), responsável pelas composições e arranjos, da magnífica Flora Purim aos vocais, do mago do baixo acústico Ron Carter e a maestria de Sivuca (violão e acordeom), deságua toda a sua inventividade enraizada na cultura brasileira mas conectada com a vanguarda internacional. E ali eram o lugar e a hora perfeitas para deixar fluir esta nova música.

“Andei”, que abre “Seeds...” (também intitulado como "The Natural Sounds of Airto"), deixa bem clara a proposta. Trata-se de um baião nordestino, que inicia com o som característico do Brasil: o de um berimbau. Em seguida, a potente bateria de Airto entra, carregando consigo toda a banda e os próprios vocalizes, formando uma sonoridade cheia e quase funkeada. O baixo de Ron, brasileiríssimo, dialoga com o berimbau. Ainda, a flauta de Hermeto completa a intensa atmosfera com aqueles solos que somente ele sabe extrair. Um “cartão de visitas” irrepreensível. Além disso, como classificar uma peça ímpar como esta? Um baião-fusion? Um brazilian-groove? Ou um ethnic-funk? É o talento do músico brasileiro dando um nó no sempre tão inovador jazz.

A incrível “O Sonho” traz pela primeira vez no disco a voz de Flora, esposa de Airto. A abertura onírica e dissonante, que remete ao abstratismo de Gil Melle e Don Cherry, logo se resolve em um jazz modal em que Airto e Hermeto estão especialmente afinados, um na bateria e o outro no piano elétrico – este último que, aliás, manda ver num longo e inspirado improviso. E Flora, então?! Que performance! Sua voz desenha com naturalidade a complexa e variante linha melódica, mudando de escalas e tons e, principalmente, dando unidade a este devaneio sonoro. Além de tudo isso, Flora ainda inventa de soltar gritos e sussurros pra lá de sensuais ao final da faixa. Caramba! De arrepiar.

Airto como a esposa e cantora Flora Purim e o parceiro
Hermeto: união de craques da música brasileira nos EUA
Na sequência, vem a bucólica e soturna “Uri”, que, pela atmosfera sertaneja e idílica, bem poderia compor a trilha de algum filme ou peça teatral baseada em uma obra da Guimarães Rosa. O violão sustenta a base, enquanto Airto intercala diversos instrumentos de percussão (chocalhos, tímpano, temple block e outros). A voz do coautor Googie e a de Flora, especialmente, que vai do agudo ao grave num lance, convivem com contracantos, gritos e vocalizes. Outro craque brasileiro vivendo na terra de Charlie Parker, Sivuca, em uma de suas participações, solta notas densas do acordeom, ampliando o clima sombrio e contemplativo. Mais uma mostra da contribuição sui genneris do Brasil para a música moderna que se produzia no exterior àqueles idos.

O baião aparece novamente em “Papo Furado”, em que Airto, brilhante na instrumentalização da percussão junto com outro ilustre convidado, Dom Um Romão, divide vocais com Hermeto, este, segurando todas no violão. O mesmo pode-se dizer de Carter, que parece ter vestido gibão e entrado no forró. A romântica “Juntos”, noutro clima, exige mais uma vez de Flora habilidades vocais – as quais ela, claro, mostra dominar totalmente dado a grande cantora que é. O tom baixo, que pede cuidado na afinação, dá um charme todo especial ao número, o qual conta, como em “Andei”, com o solo de flauta de Hermeto. Uma febril balada jazz, que faz remeter a Sarah Vaughan dos anos de Columbia.

“Seeds...” encerra com duas versões de “O Galho da Roseira”, composição de Hermeto originalmente de 1941, que era cantada por seus pais durante os trabalhos da roça em sua infância no interior de Alagoas. Porém, não se trata apenas de dois takes lançados ao final do disco com pequenas diferenças entre si, haja vista que ficam quase irreconhecíveis de uma para a outra. A parte 1, bem fiel à estrutura original – visto que arranjada pelo próprio Hermeto –, traz já de início o acordeom de Sivuca em solfejos serenos junto com as vozes de Hermeto e Flora. Até que, então, entra o restante do time, com Ron impressionando em suas modulações típicas no braço do baixo, Dom Um diversificando as texturas (sinos, chocalho, reco-reco, temple block) e Hermeto fazendo suas “bruxarias”, como transformar um violão em rabeca. Mas em termos de violão, a criatividade da turma não para por aí, porque contam com as mãos mágicas de Sivuca, que larga a gaita para pegar a viola caipira, num dos solos mais brilhantes do disco. Hermeto, no entanto, não fica atrás em um novo improviso, agora, no eletric harpsichord, articulando um momento modal ao tema tipicamente rural.

“O Galho...”, que recebeu da crítica o título de uma das melhores de 1971, ganha, na versão 2, caráter de um típico jazz fusion, como o que Airto contribuiria a partir daquele ano na banda Return to Forever ao acompanhar o pianista norte-americano Chick Corea em um de seus melhores momentos da carreira. Airto, como na faixa anterior, deixa tudo para os companheiros Ron, Hermeto, Sivuca e Dom Um, que se soltam, fechando o disco com uma pegada mais jazzística impossível.

Depois de “Seeds...”, vieram outros projetos de prestígio de Airto, a contratação pelo cultuado selo CTI, a participação na legendária Weather Report e a formação de uma nova banda. Bastante ativo nas décadas seguintes e ainda hoje vivendo nos Estados Unidos, Airto virou, merecidamente, uma lenda do calibre de Wayne Shorter, Herbie Hancock, Stanley Clarke, Keith Jarrett, George Benson, Jaco Pastorius e George Duke, parceiros com quem tocou. Mas o fato é que, por obra natural do destino, a fenomenal banda responsável por “Seeds...” nunca mais voltou a tocar junta. Isso faz com que o disco ganhe ainda mais importância por ter registrado um momento especial da música brasileira em que esta nada devia a qualquer outra que estivesse sendo produzida àquela época. Pelo contrário: estava dando exemplo e ensinando ao mundo um pouco de ginga, que só um brasileiro é capaz de oferecer.

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FAIXAS:
1. Andei (I Walked) - 2:40 
2. O Sonho (Moon Dreams) - 7:45 (Ray Evans/ Jay Livingston)
3. Uri (Wind) - 6:10 
4. Papo Furado (Jive Talking) - 3:29 
5. Juntos (We Love) - 3:22 (Hermeto/ Flora Purim)
6. O Galho Da Roseira (The Branches Of The Rose Tree) - 7:54
7. O Galho Da Roseira (The Branches Of The Rose Tree) Part II - 8:21
Todas as composições de autoria de Hermeto Pascoal, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:
Airto Moreira - "Seeds of the Ground"

Daniel Rodrigues

quarta-feira, 21 de junho de 2017

Banda Black Rio - "Maria Fumaça" (1977)




“A Banda Black Rio é um dos maiores acontecimentos musicais desse planeta”.
Lucas Arruda


“Coisa mais séria que tem! Um dos discos instrumentais mais bem feitos no Brasil. Tudo absolutamente certo aqui: temas, timbres, só acerto.”
Ed Motta


O jazz no Brasil teve de caminhar alguns quilômetros em círculos para que obtivesse uma identificação real com o país do carnaval. Em termos de indústria fonográfica, até os anos 70 as apostas sempre estiveram sobre o samba e derivados ou outros gêneros comerciais, como o bolero, a canção romântica, a bossa-nova carioca, os festivais, a MPB e até o rock. Mesmo presente na sonoridade das orquestras das gafieiras ou na bossa nova, o jazz se misturava aos sons brasileiros mais pela natural influência exercida pelos Estados Unidos na cultura latina do que pelo exemplo de complexidade harmônica de um Charlie Parker ou Charles Mingus. Expressões bastante significativas nessa linha houve nos anos 50 e 60, inegável, mas jazz brasileiro mesmo, com “b” maiúsculo, esse ainda não havia nascido.

Por essas ironias que somente a Sociologia e a Antropologia podem explicar, precisou que o gênero mais norte-americano da música desse uma imensa volta para se solidificar num país tão africanizado quanto os Estados Unidos como o Brasil. Essa solidificação se deve a um simples motivo: assim como na criação do jazz, cunhado por mentes e corações de descendentes de escravos, a absorção do estilo no Brasil se deu também pelos negros. No caso, mais de meio século depois, pela via da soul music. O chamado movimento “Black Rio”, que estourava nas periferias cariocas no início da década de 70, era fruto de uma nova classe social de negros que surgia oriundos das “refavelas”, como bem definiu Gilberto Gil. Reunia milhões de jovens em torno da música de James Brown, Earth, Wind & Fire, Aretha Franklin e Sly & Family Stone. DJ’s, dançarinos, produtores, equipes de som, promoters e, claro, músicos, que começavam a despontar da Baixada e da Zona Norte, mostrando que não eram apenas Tim Maia e Cassiano que existiam. Tinha, sim, outros muitos talentos. Dentro deste turbilhão de descobertas e conquistas, um grupo de músicos originários de outras bandas captou a essência daquilo e se autodenominou como a própria cena exigia: Black Rio.

Formada da junção de alguns integrantes dos conjuntos Impacto 8, Grupo Senzala e Don Salvador & Grupo Abolição, a Black Rio compunha-se com o genial saxofonista Oberdan Magalhães, idealizador e principal cabeça da banda; o magnífico e experiente pianista Cristóvão Bastos; os sopros afiados de José Carlos Barroso (trompete) e Lúcio da Silva (trombone); o não menos incrível baixista Jamil Joanes; Cláudio Stevenson, referência da guitarra soul no Brasil; e, igualmente impecável, o baterista e percussionista Luiz Carlos. Com uma insuspeita e natural mescla de samba, baião, funk, gafieira, rock, R&B, fusion, soul e até cool, a Black Rio inaugurava de vez o verdadeiro jazz brasileiro. Um jazz dançante, gingado, sincopado, cheio de groove e de rebuscamentos harmônicos.

Banda das mais requisitadas dos bailes funk daquela época, eram todos instrumentistas de mão cheia. Se nas apresentações eles tinham a luxuosa participação vocal de dois estreantes até então pouco conhecidos chamados Carlos Dafé e Sandra de Sá, tamanhos talento e habilidade não podia se perder depois que a festa acabasse e as equipes de som guardassem os equipamentos. Precisava ser registrado. Foi isso que a gravadora WEA providenciou ao chamar o tarimbado produtor Mazola – por sua vez, muito bem assessorado por Liminha e Dom Filó, este último, um dos organizadores do movimento Black no Brasil. Eles ajudaram a dar corpo a Maria Fumaça, primeiro dos três discos da Black Rio, a obra-prima do jazz instrumental brasileiro e da MPB, uma joia que completa 40 anos de lançamento em 2017.

Como se pode supor, não se está falando de qualquer trem, mas sim um expresso supersônico lotado de musicalidade e animação, que transborda talento do primeiro ao último acorde. Sonoridade Motown com toques de Steely Dan e samba de teleco-teco dos anos 50/60. Tudo isso pode ser imediatamente comprovado ao se escutar a arrasadora faixa-título, certamente uma das melhores aberturas de disco de toda a discografia brasileira. O que inicia com um show de habilidade de toda a banda, num ritmo de sambalanço, logo ganha cara de um baião jazzístico, quando o triângulo dialoga os sopros, cujas frases são magistralmente escritas e executadas. A guitarra de Cláudio faz o riff com ecos que sobrevoam a melodia; Jamil dá aula de condução e improviso no baixo; Cristóvão manda ver no Fender Rhodes; Luis Carlos faz chover na bateria. Quando o samba toma conta, praticamente todos assumem percussões: cuíca, pandeiro e tamborim.

Sem perder o embalo, uma versão originalíssima de “Na Baixa Do Sapateiro”, comandada pelo sax de Oberdan, que atualiza para a soul o teor suingado da melodia, e outra igualmente impecável: “Mr. Funky Samba”. Jamil, autor do tema, está especialmente inspirado, fazendo escalamentos sobre a base funkeada e sambada como bem define o título. Mas não só ele: Luiz Carlos adiciona ritmos da disco ao jazz hard bop, e Cristóvão mais uma vez impressiona por sua versatilidade na base de Fender Rhodes e no solo de piano elétrico. Uma música que jamais data, tamanha sua força e modernidade.

O líder Oberdan assina outras duas composições, a sincopada “Caminho Da Roça” e a carioquíssima “Leblon Via Vaz Lôbo”, em que Cláudio e o próprio improvisam solos da mais alta qualidade. Outros integrantes, no entanto, não ficam para trás nas criações, caso de Cláudio e Cristóvão, que coassinam uma das melhores do disco: “Metalúrgica”. Como o título indica, são os sopros que estão afiados no chorus. O que não quer dizer que os colegas também não brilhem, caso de Luiz Carlos, criando diversas variações rítmicas, Cláudio, distorcendo as cordas, e a levada sempre inventiva de Jamil.

A versatilidade e o conceito moderno da Black Rio revisitam outros mestres da MPB, como Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira (“Baião”), onde o ritmo nordestino ganha tons disco e funk; Edu Lobo (“Casa Forte”), de quem realçam-lhe a força e a expressividade das linhas melódicas; e Braguinha, quando o lendário choro “Urubu Malandro”, de 1913, vira um suingado e vibrante samba de gafieira. Nota-se um cuidado, mesmo com a sonoridade eletrificada, de não perder a essência da canção, o que se vê na manutenção de Cristóvão nos teclados e da adaptação das frases de flauta para uma variação sax/trompete/trombone.

Outra pérola de Jamil desfecha essa impecável obra num tom de soul e jazz cool, que antevê o que se chamaria anos adiante no Brasil de “charme”. Embora a canção seja de autoria do baixista, é o trompete de Barrosinho que arrasa desenhando toda melodia do início ao fim.

Talvez seja certo exagero, uma vez que já se podia referenciar como jazz “brazuca” o som de Hermeto Pascoal, Moacir Santos, Airto Moreira, João Donato, Eumir Deodato, Flora Purim, Dom Um Romão, entre outros – embora, a maioria tenha-o feito e consolidado seus trabalhos fora do Brasil. Com a Black Rio foi diferente. Com todos pés cravados em terra brasilis, foi o misto de contexto histórico, necessidade social, proveito artístico e oportunidade de mercado que a fizeram tornar-se a referência que é ainda hoje. Uma referência do jazz com cheiro, cor e sabor latinos. Mas para além das meras classificações, a Black Rio é o legítimo retrato de uma era em que o Brasil negro e mestiço passou a mostrar a riqueza "do black jovem, do Black Rio, da nova dança no salão".

Banda Black Rio - "Maria Fumaça"


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FAIXAS
1. Maria Fumaça (Luiz Carlos Santos/Oberdan) - 2:22
2. Na Baixa Do Sapateiro (Ary Barroso) - 3:02
3. Mr. Funky Samba (Jamil Joanes) - 3:36
4. Caminho Da Roça (J. Carlos Barroso/Oberdan) - 2:57
5. Metalúrgica (Claudio Stevenson/Cristóvão Bastos) - 2:30
6. Baião (Humberto Teixeira/Luiz Gonzaga) - 3:26
7. Casa Forte (Edu Lobo) - 2:22
8. Leblon Via Vaz Lôbo (Oberdan) - 3:02
9. Urubu Malandro (Louro/João De Barro) - 2:28
10. Junia (Joanes) - 3:39

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OUÇA O DISCO


por Daniel Rodrigues

quinta-feira, 30 de março de 2017

Dom Um Romão – “Dom Um Romão” ou “Braun-Blek-Blu” (1973)




As duas capas: edição original e
da reedição de 1974
“Agora as mesas foram viradas. 
Os brasileiros estão contratando músicos 
de jazz para tocar sua música. 
É ainda um casamento da música
 brasileira e do jazz, mas o corte 
está sendo feito do ponto de vista brasileiro.” 
Gary Giddins,
no texto original 
da contracapa do LP



Quando o jazz fusion, no final dos anos 60 e início dos 70, escancarou as portas do jazz tradicional, mesclando-o ao gênero mais pop do século XX, o rock, um novo paradigma se abriu. Até então fortemente ligado ao ritmo dançante do swing, ao virtuosismo do be-bop e à sofisticação do cool, o jazz passava a ser, na prática, tudo: rock, funk, vanguarda, clássico, ritmos latinos, música indiana, oriental, etc.. Para bem ou para mal, qualquer coisa que minimamente se valesse de elaboração musical passou a também poder ser considerado jazz. Houve quem se favorecesse com tal releitura, caso da música brasileira. Principalmente pós-bossa nova, o Brasil e seus músicos entraram de vez no mapa da música moderna e passaram a ditar, Tetê a Tetê com norte-americanos e europeus, os rumos da arte musical “culta”. Tom Jobim, João Donato, Moacir Santos, Eumir Deodato e Sérgio Mendes, nos Estados Unidos desde os anos 60, desbravaram essa trilha. Agora uma nova e ainda mais arejada geração de brazucas desembarcava nos “states”. Os percussionistas, em especial, considerando as características da música brasileira, tiraram vantagem. Caso dos rapidamente reconhecidos Naná Vasconcelos e Airto Moreira e de outro craque das baquetas, que ganhou os corações e mentes dos exigentes jazzistas: Dom Um Romão.

Dono de um estilo único e muito natural que une a versatilidade adquirida nas orquestras da noite carioca à alta técnica da sincopa e das divisões rítmicas, Romão tem uma história peculiar. Filho de um também baterista, literalmente herdou-lhe o dom, pondo-o em prática, nos anos 50, nos bares boêmios do Beco das Garrafas. Cedo, já havia realizado feitos invejáveis para qualquer músico de sua geração: no Brasil, participara, em 1958, da gravação do marco inicial da bossa nova “Canção do Amor Demais”, de Elizeth Cardoso, e, alguns anos mais tarde, do memorável “O Som”, da Meirelles e os Copa 5, de 1964, o “A Love Supreme” brasileiro. Já nos Estados Unidos, integrou a “cozinha” do clássico “Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim”, em 1967, e substituíra o amigo Airto na mitológica banda Weather Report, a maior referência do jazz fusion, tocando, de 1972 a 1976, ao lado de feras como Wayne Shorter, Josef Zawinul, Alphonso Johnson e Eric Gravatt. Mas faltava-lhe o trabalho solo no exterior (já tinha um LP homônimo, de 1964, gravado no Brasil), aquele que ratificasse não apenas suas qualidades como instrumentista, mas também como compositor e band leader. A oportunidade veio em 1973, quando o cultuado selo Muse o chama para realizar um projeto à altura de seu merecimento.

A reverência ao novo contratado fica evidente pelo time convidado a participar das gravações. O set reuniu uma lista extensa de músicos: dos “gringos”, figuras referenciais como Stanley Clarke e Frank Tusa, no contrabaixo; Gravatt, na percussão; Lloyd McNeill, flauta; Joe Beck, guitarra elétrica; Jerry Dodgion; sax-alto e flauta; Richard Kimball, sintetizador; Mauricio Smith, sax-soprano e flauta; Jimmy Bossey, sax-tenor; e William Campbell Jr., trompete. Ainda, como não poderia deixar de ser, o disco conta com músicos brasileiros – e não quaisquer músicos –: no órgão e no piano acústico, Sivuca; no harpischord, Donato; no piano elétrico e acústico, Dom Salvador; na percussão, Portinho; e no violão, Amauri Tristão.

“Dom Um Romão” traz seis faixas de absoluta perfeição e que representam a contribuição sui generis que o Brasil dava à nova feição do jazz: o samba, o baião, o maracatu e os ritmos folclóricos brasileiros e latinos fundidos ao hard-bop, ao jazz modal, ao cool jazz. Tudo começa na espetacular “Dom’s Tune”, um “cartão de visitas” arrasador que virou tema cult entre os músicos e admiradores tardios de Romão. Pura destreza e musicalidade, a começar pela rica percussão do próprio autor, que comunga vários instrumentos como caxixi, chocalho, pratos, chipô, tamborim e sinos. Sobre uma base modal de tempo 5/3 do piano de Dom Salvador, Beck esmerilha a guitarra, solando os mais de 8 minutos do número. Isso sem falar dos sintetizadores de Richard Kimball, das incursões percussivas de Portinho e da frase repetida dos sopros que, a partir da segunda metade, passam a dar um riff para a música. Certamente um dos melhores exemplares do jazz dos anos 70.

Segue “Cinnamon Flower”, uma versão bastante original de “Cravo e Canela”, de Milton Nascimento, evidenciando a inventividade harmônica e melódica do compositor mineiro, muito a ver com o jazz contemporâneo. Em ritmo de baião, tem Romão percutindo a trinca típica do gênero (bumbo-caixa-triângulo), além do riff executado nas flautas, os quais evocam aqueles lindos versos: “A lua morena/ A dança do vento/ O ventre da noite/ E o sol da manhã/ A chuva cigana/ A dança dos rios/ O mel do Cacau/ E o sol da manhã”. A guitarra com pedal wah-wah faz não só a levada como também o principal solo, dando ainda mais modernidade a um tema de raízes folk. O melhor do jazz fusion, mas num ritmo tão tipicamente tupiniquim, que somente um brasileiro podia estar à frente.

Romão relembra os tempos de bossa nova num tema altamente elegante: “Family Talk”. Composição sua mas que bem poderia ser de Tom Jobim nalgum de seus discos da A&M, “Tide” ou “Wave” (este último, em que o baterista participa), haja vista a parecença da sonoridade transparente e o conceito musical sofisticadíssimo: dominante em “Sol”, batida de violão ao estilo João Gilberto, baixo acústico trasteando como o de Ron Carter, a levada malemolente da bateria no aro da caixa e, principalmente, o arranjo, que privilegia a flauta como executora do riff. Perfeita. Não bastasse, o mestre Donato aparece para fazer um solo bem a seu estilo: econômico e inteligente.

Assim como a segunda faixa, “Ponteio” é mais uma releitura de clássico da MPB, esta agora, que em muito lembra Shorter e a Weather Report, talvez a versão mais inspirada que a composição de Edu Lobo e Capinam pudesse ganhar. Romão comanda um constante triângulo, enquanto seu xará Dom Salvador, o electric piano. É o pianista também quem desvela um rico solo no teclado acústico, que tem por trás as inventivas viradas e variações rítmicas de Romão na bateria, enquanto os intensos baixo de Clarke e congas de Gravatt mantém uma atmosfera caribenha. Outro solo, agora de flauta na segunda parte, incute ainda mais a complexidade jazzística ao tema, que não perde, entretanto, o teor grave da melodia original, a qual remete inevitavelmente às rodas e duelos de viola nordestinos.

“Braun-Blek-Blu”, que informalmente dá nome ao disco, é outro espetáculo à parte. Sozinho no estúdio, somente ele e seu aparato, Romão substitui uma bateria de escola de samba inteira. Ao mesmo tempo em que é um samba marchado e acelerado, exigindo alta técnica e controle dos tempos, lembra, sem erro, também o maracatu rural do Nordeste brasileiro com seus tambores, chocalhos e gonguê. Hábil, o percussionista consegue variar o compasso, acelerando e desacelerando o ritmo. Isso, enquanto executa viradas e ataques junto com os próprios vocalises, que se hegemonizam às batidas. Nada menos que impressionante.

O sertão dos trópicos retorna com a interpretação de mais um hino do cancioneiro brasileiro: “Adeus, Maria Fulô”. No entanto, Romão e Cia. dão uma pegada de latin jazz explosivo ao singelo baião. E com consentimento do próprio autor, Sivuca, que comanda o órgão e o piano, enquanto o sax soprano de Mauricio Smith anuncia, apenas em sons, o riff (“Adeus, vou-me embora, meu bem/ Chorar não ajuda ninguém/ Enxugue o seu pranto de dor/ Que a seca mal começou”). O mesmo Smith é quem manda um belo solo, desta vez improvisando com total liberdade no tenor. Romão preenche o espaço com uma rara multiplicidade de texturas e cores, ajudado pela percussão de Gravatt e Portinho. Um final digno a um disco irreparável do primeiro ao último acorde.

Como disse o jornalista Maurício Pinheiro:“No viés de reinvenção dos conceitos do jazz moderno, o álbum é um testemunho dos estímulos provocados por essa geração que marcou o início dos anos 1970”. Junto com trabalhos igualmente essenciais e revolucionários dos compatriotas Airto, (“Fingers”), Flora Purim, (“Butterfly Dreams”) e Hermeto Pascoal (“A Música Livre de Hermeto Pascoal”) – todos do mesmo ano e gravados nos Estados Unidos –, “Dom Um Romão” marca uma fase áurea do jazz moderno brasileiro no exterior, servindo de referência até os dias de hoje para músicos (brasileiros ou não) das mais diferentes vertentes. Afinal, tudo é jazz.

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Reeditado dois anos depois com nova arte, em 1990, a 32 Jazz lançou em um único CD, intitulado “The Complete Muse Recordings”, os dois trabalhos de Dom Um Romão pelo selo Muse, este e o também ótimo “Spirit of the Times”, de 1974, do qual se incluíram suas sete faixas: “Shakin' (Ginga Gingou)”, “Wait On The Corner”, “Lamento Negro”, “Highway”, “The Angels”, “The Salvation Army”, e “Kitchen (Cosinha)”.

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FAIXAS:
1, “Dom’s Tune” (Dum Um Romão) - 8:39
2. “Cinnamon Flower” (“Cravo e Canela”)(Milton Nascimento) - 3:30
3. “Family Talk” (Romão) - 5:30
4. “Ponteio” (Edu Lobo/Capinam) - 6:30
5. “Braun-Blek-Blu” (Romão) - 4:40
6. “Adeus, Maria Fulô” (Sivuca/Humberto Teixeira) - 7:59

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OUÇA O DISCO:

Daniel Rodrigues