"Adoro estar perto de crianças, porque elas são livres e brilhantes e te fazem acordar. Então, pensar sobre esse conceito do brilho das crianças foi o que serviu de modelo para eu escrever essas canções infantis".
Chick Corea
É interessante perceber como músicos acostumados a se experimentarem uma hora chegam à música infantil. Foi assim com Woody Guthrie, Carole King e Esquivel, assim como com os brasileiros Chico Buarque, Adriana Calcanhoto (sob o pseudônimo Partimpim), Paulo Leminski e Vinicius de Moraes. Até mesmo na música clássica, a se ver por Prokofiev, Debussy e Mozart. Há exemplos no jazz também, de Sammy Davis Jr., com seu “Sings the Complete ‘Dr. Dolittle’”, a Vince Guaraldi, que um dia foi escalado para compor as trilhas da série infantil televisiva Peanuts e ficou mundialmente conhecido justamente por esse trabalho.
Não é uma regra, mas quando esses músicos se tornam mães ou pais, há um motivo a mais para dedicarem canções aos pequenos. Chick Corea é um desses casos. No início dos anos 70, já uma lenda do jazz mundial, ele estava recém divorciado da mãe de seus filhos, Thaddeus e Liana, e casava-se pela segunda vez, agora com a também pianista Gayle Moran, esposa que o acompanhou até o final da vida, em 2021. Porém, os filhos ainda eram pequenos àquela altura. Como, então, afagá-los neste novo momento de suas vidas pessoais? Como mantê-los próximos a si? Não há confirmação sobre esta motivação, mas a resposta parece ter vindo, nada estranhamente, em formato de música. A coincidência dos períodos entre a nova configuração familiar, as primeiras composições com a temática da criança e o começo das improvisações solo ao piano dão a “Children’s Songs”, de 1984, este caráter.
Virtuose do piano, mas também um visionário da música contemporânea, Corea ajudou a moldar o curso do jazz moderno, influenciando gerações de músicos com sua habilidade técnica, ousadia harmônica e busca incessante pela inovação. Sua obra passa pelo hard bop, jazz fusion, latin jazz, eletrônico, vanguarda e música clássica. Escritas entre 1971 e 1983, as “Children’s Songs” captam, num grande poder de síntese e sensibilidade, vários aspectos de toda essa musicalidade em 20 peças e mais um “adendo” final.
A onipresença dos filhos na vida de Corea fez com que ele, inspirado na série “Mikrokosmos”, de 1940, do compositor húngaro Béla Bartók (uma de suas grandes influências), passasse a escrever, dentre outros diversos formatos, breves miniaturas de música infantil. Ele cria suas versões em composições ao mesmo tempo líricas e ricas em estrutura melódica e harmônica, que passeiam pelo romântico, pelo jazz, pelo folk e pelo pop. Na simplicidade lúdica das “Children’s Songs” há um trabalho complexo. Há paralelos estilísticos e estruturais com o ciclo de Bartók, como o uso das escalas pentatônicas, o emprego de compassos e de ritmos cruzados incomuns, a variedade de atmosferas sonoras em um tempo relativamente curto de cada peça e o aumento gradativo de dificuldade e complexidade ao longo da sequência.
A lúdica capa com os Smurfs de "Friends", de 1978, onde já tinham duas das "Children's Songs"
Traços desse repertório aparecem, a partir de então, em vários momentos de sua vasta produção musical, seja em carreira solo, em bandas ou parcerias. Uma versão mais lenta de "Nº 1" aparece pela primeira vez no álbum “Crystal Silence”, duo com Gary Burton, de 1972, e um ano depois junto da Return to Forever em “Light as a Feather”. A célebre banda de jazz fusion de Corea, entretanto, já havia prenunciado as “canções infantis” dentro da faixa "Space Circus Part I", constante no primeiro disco deles, “Hymn of the Seventh Galaxy”. Já os temas "Nº 5" e "Nº 15" surgem em “Friends”, de 1978, quando acompanhado dos músicos Steve Gadd, Eddie Gomez e Joe Farrell.
A ebulição elétrica da Return to Forever foi usada mais uma vez por Corea para trazer esses conceitos musicais dentro da extensa "Songs of the Pharoah Kings", que encerra epicamente o álbum “Where Have I Known You Before”, de 1974, a qual escondia, na verdade, a fuga “Nº 6”. Até mesmo o travesso tema "Nº 9" fez sua primeira aparição no álbum solo “The Leprechaun”, de 1976, como "Pixieland Rag".
Somente nos anos 80, agora desnudadas de qualquer arranjo ou grandes instrumentalizações, as “Children’s Songs” são reunidas e gravadas ao piano solo em julho de 1983, no Tonstudio Bauer, em Ludwigsburg, Alemanha, pelo selo ECM. A exceção é a última faixa, em que o Corea forma um trio de câmara com Ida Kavafian, ao violino, e Fred Sherry, no violoncelo. O alegremente elegante "Addendum", que fecha “Children's Songss”, demonstra a excelência contrapontística do pianista e a capacidade de compor para cordas, uma habilidade que surgiu em “The Leprechaun” e foi aprimorada ainda mais por ele no clássico “Mad Hatter”, de 1978.
Corea, que pretendia "transmitir simplicidade como beleza, representada no espírito de uma criança", como escreveu no encarte original do disco, não apenas conseguiu seu objetivo como entendeu ser importante não se eximir (e nem isentar a criança) de experimentar densidades musicais não tão comuns de serem dirigidas a esse público. Lances lúdicos, coloridos e graciosos se juntam à dramaticidade, melancolia e introspecção. E não necessariamente nessa ordem, como na impermanência da vida, algo essencial que um ser humano aprenda desde pequeno. E o objetivo principal foi atingido: os filhos Thaddeus e Liana sentiram-se devidamente afagados. E os fãs também.
Não é de se estranhar que crianças ou adolescentes, ao perceberem a divisa que se lhes impõe entre infância/adolescência e a desencantada fase adulta, pensem assim. Um dos filhos da psicanálise, o cinema, invariavelmente, toma-lhe emprestado conceitos teóricos para, a seu modo, evidenciar a condição humana e as mudanças sociais. Pois mesmo que nem sempre dita da boca pra fora, esta frase ecoa através das últimas décadas através de filmes que, historicamente pontuais, revelam sentimentos em comum no comportamento juvenil da idade contemporânea. Terreno onde se encontram e dialogam “A Guerra dos Botões” de Yves Robert (“La Guierre des Boutons”, França, 1962), “Os Meninos da Rua Paulo” e “A Rede Social”.
Se a tal frase é proferida em apenas um dos filmes, o fato de não aparecer nos dois outros é quase detalhe. Aliás, nem precisaria, de tão implícita que está. Afinal, todos os três se compõe do mesmo barro: a construção do sujeito e seus limites de razão e moral.
"A Guerra...": equilíbrio entre realidade e sonho
”A Guerra dos Botões” equilibra realidade e sonho, empunhando aspectos sociais universais através de um olhar sincero e lúdico, mas não menos satírico e crítico. Ao estilo dos realistas fantásticos (além de Vigo, lembra bastante Renoir na sua suave complexidade humanística), conta a história de um grupo de estudantes da interiorana e pobre Longeverne, que, liderados pelo rebelde Lebrac, declaram guerra aos da vizinha e igualmente carente Velrans. A ideia é arrancar todos os botões e confiscar os cintos dos “presos”, para que, mais do que serem castigados pelos pais ao voltarem para casa, percam sua honra ao deixar à mostra as cuecas. Revoltado contra a tirania dos adultos, Lebrac - um símbolo inconsciente da criança que quer ter o direito de ser criança - foge para não ser internado no orfanato. Através de uma temperada fotografia p&b e do clima fantástico proporcionado pela ambientação silvestre Robert mostra como o ser humano, a partir de sua tomada de consciência da realidade, elabora as questões de afeto, orgulho, rejeição e socialização.
Peanuts e Ozu
Não à toa, a ”A Guerra dos Botões” foi premiado com o Jean Vigo de Melhor Filme infanto-juvenil, pois presta uma justa homenagem ao diretor de “Zero de Conduta” (1933) a ponto de parecer-lhe uma obra póstuma. Robert, assim como Vigo, joga sua perspicaz lente sobre as questões da criança numa pequeno universo, ajustando o foco sobre os desajustes sociais, o abismo entre as gerações e os valores decaídos. Seu enquadramento lembra o plano rebaixado das tirinhas Peanuts de Charles Schultz e dos filmes do japonês Yasujiro Ozu, tal é a sintonia que estabelece com a vida das crianças. Os adultos aparecem aos poucos, como “fantasmas”, como uma triste materialização do erro a que aquelas crianças se tornarão no futuro.
A turma de Charlie Brown e "Filho Único", de Ozu: Ocidente e Oriente na visão das crianças
Feito sete anos depois, sob uma textura de cores oníricas que valoriza a tonalidade natural (como o amarronzado da terra, da madeira e das peles coradas da meninice), o húngaro “Os Meninos da Rua Paulo” (“A pál-utcai fiúk”, dirigido por Zoltán Fábri e inspirado no clássico do escritor Ferenc Molnár) se assemelha bastante a “A Guerra dos Botões” estrutural e formalmente falando. A narrativa, os elementos simbólicos, as atribuições de valores, a dinâmica e a variedade dos enquadramentos, etc. Porém, diferente do primeiro, onde o personagem Lebrec revolta-se contra o opressor sistema da família e da escola, neste, é o pequeno Nemecsek quem paga pela bravura ao desafiar os rivais, acamando-se com pneumonia por causa de um banho gelado e, consequentemente, morrendo..
A paisagem inocente de “A Guerra...” é substituída por uma capital Budapeste do final do século XIX de ares bucólicos, uma cidade grande ainda por se tornar grande como aquelas crianças. Os “botões morais”, aqui, se trocam por bolitas de gude – e tão importantes moralmente quanto botões. Se o orfanato antes representava a pena por virar adulo, aqui, passa pela perda do amigo e pelo progresso social que avança ao ser construído sobre o terreno da rua Paulo, palco das divertidas guerrinhas, um moderno e imponente prédio.
Rua Paulo
Pois ambas as obras se unem por um ponto: a necessidade de se inventar convenções de interatividade social. A psicologia infantil julga natural que a criança imite o adulto como um “ensaio para o futuro”. Hoje, no entanto, na era da Internet, jogar gude ou fazer guerrinha na floresta já não é tão interessante às crianças como prática de interação social, e a esta etapa fundamental do que se chama de Psicologia do Desenvolvimento se põe um imenso vazio. A mídia, ditadora de padrões e proto-verdades, ocupa o lugar dos pais em aspectos relevantes da criação, como a elaboração dos valores e a orientação cognitiva. Isso faz com que as crianças/adolescentes pulem etapas, agindo não só cada vez mais igual aos adultos como, também, “amadurecendo” precocemente.
"Os Meninos...": os conflitos reais entre realidade e sonho
É o caso do jovem Mark Zuckerberg, do bom “A Rede Social” (“The Social Network”, 2010). No filme do talentoso David Fincher, a não-assimilação das frustrações da vida adulta, como o fora da namorada e a rejeição pela “fraternidade” a qual dava tanto valor, inflamaram a necessidade de pertencimento do protagonista, levando este “herói pós-moderno” a criar, em resposta, a sua própria “fraternidade”. Mas não sem pena: cunhar o bilionário Facebook (hoje Meta, agrupando aí o Instagram) rendeu-lhe fama e divisas (ou seria “admiração dos coleguinhas” e “muitas bolitas”?), mas também algo mais grave, típico dos dias atuais: o isolamento – tal qual num orfanato ou uma cama de enfermo. Mas se os personagens de “A Guerra...” e “Os Meninos...” lograram reconhecimento, por conta de suas condutas pautadas em símbolos comuns ao grupo, a amoralidade despreocupada de Mark, característica da Geração Y, abre espaço para uma nova ética. A razão, nos dias atuais, conforme o sociólogo francês Michel Maffesoli, dá lugar à lógica da “hedonização”, à fragmentação dos sentimentos e emoções no coletivo, e não mais no âmbito pessoal.
Assim, os três filmes, mesmo produzidos em épocas tão distintas, se conectam por esta necessidade de criação de significados que justifiquem a existência. Junto ao “rito de passagem” que marca a fase inicial da vida para aquilo que se será até a morte brota a insegurança do esvaziamento de sentidos, da perda de algo genuíno, de si mesmo. “Serei, a partir de agora, só mais um ‘boboca’”? “O quão inevitável é esse ciclo”? Como em “Zero de Conduta”, onde as impostas verdades da escola interna oprimiam principalmente as crianças que se opunham àqueles cambaleantes valores do mundo entre-Guerras, a vida moderna coloca, hoje, situações que, embora diferentes em forma, implicam no questionamento de signos semelhantes.
Zero de conduta
Poster do clássico de Vigo
“A Rede Social”, mesmo não se tratando de um conto de crianças, não só traz o tema da necessidade comum de interação afetiva como também se centra na dificuldade de se transpor a barreira infância/fase adulta. A esquizofrênica busca de valores da pós-modernidade ofusca o que o psicólogo infantil Lev Vygotsky chamaria de processo de “mediação” no desenvolvimento do ser humano. Para ele, ao contrário do que pensava Piaget, o desenvolvimento cognitivo dependia das interações com as pessoas e com os instrumentos reais do mundo da criança, como o brinquedo, o computador ou o lápis. Mas se os signos culturais já vêm distorcidos, como os instrumentos (mesmo tão avançados como o computador) serão capazes de desenvolver o indivíduo a um estágio mais elevado de consciência?
Entretanto, mais do que isso, outro fator une ideologicamente essas obras: os limites entre as razões moderna e pós-moderna. Se nos dois filmes mais antigos ainda se preservava uma crença na razão, esta passa, agora, a não ter peso. N’”A Guerra dos Botões” há uma cena que, no meio da batalha na floresta, os dois exércitos se unem para socorrer um coelho com a pata machucada. Naquele momento, todos pararam de guerrear, e se estabeleceu uma fronteira entre real e imaginário. Igualmente, ao perceberem que cometeram um erro ao roubar à força as bolas de gude do pequeno Nemecsek, de “Os meninos...”, os grandalhões e valentões do grupo rival reveem sua conduta e devolveram-nas a seu dono. Em “A Rede Social” tudo isso cai por terra. Mark rouba ideias descaradamente e “puxa o tapete” de amigos sem culpa. E isso, na sua “crença”, é normal. Afinal, para que lhe servem valores de lealdade ou justiça com tanta fortuna e 500 milhões amigos (virtuais)?
Mark, Lebrac, Nemecsek
Mark é astuto como Lebrac e Nemecsek, mas moralmente alheio. Algo dentro de pessoas da sua geração, desta geração, se perdeu, e não é de se estranhar que justo a palavra “amizade” soe ao mesmo tempo tão poderosa e irônica nas redes sociais. Já não se acodem mais coelhos machucados nem se arde em febre até a morte para se preservar dignidade. Para aquele jovem Zuckenberg, não é isso que tem valor. O negócio é se proteger. Encarar as emoções de frente dá margem a se demonstrar fraco. É mais fácil fechar-se num tubo de mensagens curtas e de distâncias físicas seguras; pois, se não, a guarda se abre para que se lhe arranquem os botões e lhe caiam as calças.
Zuckenberg: astúcia sem tempos de hedonização
Pensando bem, parece, sim, estar se falando de dignidade; só que de outra forma, assim como de reconhecimento, proteção, laços, amor... e talvez “A Rede Social” também seja um filme sobre crianças... e sejamos todos meio bobocas.
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trailer de"A Guerra dos Botões"
Daniel Rodrigues
* texto atualizado, originalmente escrito em 2011 para o blog O Estado das Coisas
Acima, capa original com Guaradi transformado em HQ. A outra, clássica capa da reedição com o catcher Charlie Brown
"Que puxa!"
Bordão do personagem Charlie Brown
É ímpar a figura de Vince Guaraldi no mundo do jazz. Branco e de ascendência italiana, já se diferenciava quando surgiu, nos anos 50, pela cor de pele e pela origem da grande maioria dos músicos do gênero, pretos e afrodescendentes. Mesmo para com brancos e pianistas como Dave Brubeck e Lennie Tristano mantinha dessemelhanças, haja vista seu tipo meio dândi, meio personagem de quadrinhos: bigode pontudo, terno slim e óculos nerd. Talvez essas particularidades (e, principalmente, a semelhança com um HQ), tenham levado o já vencedor de um Grammy de Melhor Canção de Jazz (em 1962, por “"Cast Your Fate to the Wind”) a topar abraçar um projeto único e pelo qual, quiçá, nem imaginasse que seria mais lembrado anos mais tarde do que pelo prêmio que venceu. A convite do produtor da TV CBS Lee Mendelson, a partir de 1963, Guaraldi passa a assinar a trilha sonora da série Peanuts, do simpático e inteligente cachorrinho Snoopy e seu dono, o introvertido e sensível Charlie Brown. Qual a melhor maneira de “musicar” o universo lúdico do programa? Na cabeça diferentona de Guaraldi, com jazz. E por que não? A ousadia não apenas funcionou, como se tornou uma marca até hoje ligada diretamente ao desenho e à história do jazz.
Dentre os mais de 40 episódios e os diversos discos produzidos para a série, o que melhor resume o universo sonoro criado pelo compositor sobre a criação do cartunista Charles M. Schulz é “A Boy Named Charlie Brown”, de 1964. Muito deste resultado se deve, por incrível que pareça, à “crueza” escolhida pelo músico para vestir esse trabalho. Se os ouvidos da maioria são acostumados nos programas infantis com arranjos lotados de sonoridades cintilantes, harmonias simétricas e vozes muito bem equalizadas, Guaraldi despe a música de “A Boy...” de qualquer floreio desnecessário. Única e somente a sonoridade poderosa – e suficiente – de um trio de jazz em temas instrumentais com ele ao piano, Monty Budwig, ao baixo, e Colin Bailey, na bateria. E mais: ao invés de construções melódicas previsíveis, a “dificultação” dos improvisos, tal como o jazz feito para adultos.
O que parece subverter uma lógica, no entanto, é um grande acerto. A carga emocional, as dificuldades das relações humanas e a busca de identidade dos personagens que a história carrega por trás do tom divertido e do traço irregular dos desenhos é, por si, uma inovação da série de Schulz. Algo pouco visto até então na TV norte-americana pós-Guerra, quanto menos em um produto voltado a crianças. Desta forma, a trilha de Guaraldi se adequa de uma maneira muito sensível e poderosa ao desenho e seu enredo, fazendo com que o jazz se integre tão improvável quanto naturalmente. A faixa de abertura, “Oh, Good Grief”, uma das assinaturas sonoras dos Peanuts, é exemplar neste sentido: um jazz suingado, algo totalmente avesso ao que se poderia esperar de uma histriônica ou agitada canção para este tipo de programa. Ao contrário: vê-se, sim, a elegância de mestres do piano como Oscar Peterson e Fats Weller, e um ritmo cadenciado que nem se exalta em demasia, nem recai para algo sisudo e cerebral.
Já a capa, que faz referência ao esporte olímpico baseball, traz muito dessa atmosfera a qual Guaraldi traduziu em forma de sons: o mundo das crianças, com suas brincadeiras coletivas e atividades lúdicas. Como “Baseball Theme’, uma das faixas, o compositor consegue criar o mais fiel espelho musical da série, captando-lhe o clima alegre, mas também com momentos de melancolia. O esporte praticado pela turminha é um bom exemplo, pois muitas vezes motivo de frustração (e zoação!) do inseguro Charlie Brown e onde as complexidades das relações entre humanos (e não só humanos, pois tanto Snoppy quanto seu fiel parceiro, o passarinho Woodstock, participam das atividades) são experenciadas.
O álbum contém essa capacidade quase didática no que se refere ao universo dos personagens, o qual vinha das tirinhas, criada nos anos 50, e que, com a série televisiva então recém-estreada, ganhava maturidade narrativa. Assim, outras faixas também se baseiam em personagens ou fatos importantes. Charlie Brown, figura central da história e alter ego de Schulz, é motivo de dois números. O primeiro é “Charlie Brown Theme”, o clássico jazz bluesy gravado por Guaraldi em mais discos e com outros arranjos, mas que, neste trabalho, está em sua versão mais pura, mais concisa: o piano deslizando o suave riff, o baixo escalonando as notas e a leve bateria conduzida nas escovinhas. A outra que tematiza o desajeitado Minduim é “Blue Charlie Brown”, ainda mais blueser e, se não tão conhecida como a anterior, igualmente bela e saborosa de ouvir.
Também ganham as suas “Frieda”, a vaidosa garotinha de cabelos cacheados, tão garbosa quanto sua pequena musa; e “Schroeder”, o alemãozinho pianista e fã de Beethoven como o próprio Guaraldi, melodia a qual o autor aproveitaria em uma versão cantada anos depois, a mesma que o músico brasileiro Renato Teixeira “chuparia” descaradamente para criar o famoso jingle da marca de calçados infantil Ortopé, que brasileiros de mais de 40 anos muito escutaram.
Claro, não poderia faltar também o tema que mais define a série musicalmente falando: “Linus and Lucy”, inspirado nos irmãos Van Pelt e com suas duas geniais linhas de piano conjugadas: uma bem marcada nas teclas brancas graves, e outra que desenha o riff em tons médios alegres, mágicos, lúdicos. Na variação, a música ganha um ritmo abrasileirado, haja vista a proximidade e admiração de Guaraldi, já de muitos anos parceiro do violonista carioca Bola Sete, pelo samba e pela bossa nova. Por falar em música brasileira, “Pebble Beach” traz esse forte elemento latino para os baixinhos de uma maneira muito bonita e expressiva, mostrando que na vida também é preciso de um pouco de ginga para sobreviver.
Mas como essa vida não é somente feita de momentos de euforia, Guaraldi, alinhado com o que a próprio enredo da série propõe, apresenta um tema que aparentemente é uma contradição considerando-se seu título: “Hapiness Is”, visto que contemplativa, lenta, quase tristonha. Mas, como sustentam os especialistas em psicologia infantil, na infância, felicidade e tristeza se misturam. Afinal, sofrer também é necessário para saber enfrentar as decepções e as frustrações inerentes a qualquer ser humano. A felicidade é e pode ser um pouco triste ou vice-versa.
Pedagógica, mas não no sentido rígido da palavra, a série Snoppy foi a primeira a tratar a criança como um ser pensante de verdade na televisão, e a música de Guaraldi é um dos principais elementos desta construção conceitual. Sem menosprezar a inteligência dos pequenos de compreenderem as sutilezas existenciais por trás dos lances engraçados e fantásticos, o desenho aninado ousava em associar uma música pouco convencional para este tipo de produto, inventando uma espécie de children jazz. Se outro músico tivesse sido convidado a fazer a trilha que não Guaraldi, por melhor ou mais conceituado que fosse, talvez não funcionasse tão bem, não desse tanta liga. Não se sabe. Mas, com certeza, ter chamado um personagem de HQ para ilustrar em música a vida de seus pequenos parceiros facilitou muito.
Cena da partida de baseball de"A Boy Named Charlie Brown", transformado em longa-metragem em 1969
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FAIXAS:
1. "Oh, Good Grief" (Lee Mendelson, Vince Guaraldi) - 2:21
2. "Pebble Beach" - 2:47
3. "Happiness Is" - 3:37
4. "Schroeder" - 1:51
5. "Charlie Brown Theme" (Mendelson, Guaraldi) - 4:20
6. "Linus And Lucy" - 3:03
7. "Blue Charlie Brown" - 7:26
8. "Baseball Theme" - 3:13
9. "Freda (With The Naturally Curly Hair)" - 4:31
10. "Fly me to the Moon" (Bart Howard" - 8:55*
Todas as composições de autoria de Vince Guaraldi, exceto indicadas
Oitentinha de Lennon , setentinha dos Snoopy e Peanuts, Poetinha citado pelo Papa... Olha, é tanta coisa boa que nem parece diminutivo. Pra seguir nessa, então, a gente vem com um Música da Cabeça, digamos, repletinho. Dá só uma espiadinha: Tom Waits, Radiohead, Louis Armstrong, Dorival Caymmi, Beethoven, Bernard Herrmann e mais. Tá bom? Mas tem mais! Entre os quadros, um "Palavra, Lê" a ver com os "aninhos" completos por Tom Zé. Programa novinho em folha às 21h, na aumentativa Rádio Elétrica. Produção e apresentação do MDCzinho: Daniel Rodrigues.
A tentativa de "ressuscitar" para as novas gerações o alucinado personagem Pica-Pau não acrescenta nada. O filme é ruim, a história é ruim, os personagens são ruins, as piadas são ruins... Tirando os recursos técnicos e uma caracterização até que bem aceitável do pássaro doido em animação 3D, pode-se dizer que nada presta no filme do diretor Alex Zamm. Ao contrário da adaptação cinematográfica animada de "Snoopy e Charlie Brown: Peanuts, O Filme" que despertava nos adultos a nostalgia pelos desenhos antigos e conquistava as crianças pela identificação da infância e com atualizações sutis e interessantes e pontuais, "Pica-Pau, o filme" não consegue nenhuma das duas coisas, não tendo a capacidade de reviver a magia dos desenhos antigos da TV para quem, como eu, tanto curtia e idolatrava as traquinagens do passarinho do topete vermelho, nem ser cativante o bastante para fazer com que as crianças se aficcionem a ele tal como acontecia conosco em nossas infâncias.
Tem um recado ecológico e tal, tipo, "não derrube as árvores", "não jogue lixo na natureza", "não cace e não mate animais silvestres" mas parece que em nome do compromisso com a mensagem, tudo fica meio sem graça, meio engessado. Embora dê uma surra no empresário que quer construir uma mega-mansão no meio de uma reserva florestal (Timothy Omudson), na sua namorada toda dondoquinha (Thayla Ayala) e nos caçadores que insistem em persegui-lo, o Pica-Pau, não tem aquela espontaneidade, aquela imprevisibilidade de comportamento, aquela "maldade" que nos fazia morrer de rir. Teria tido um efeito melhor, pelo menos no público adulto, adaptações de momentos dos desenhos como o da construção da estrada em que a empresa tem que desviar por causa da árvore onde o bichinho mora; a do caçador e seu cachorro tonto que queriam patos mas acabam se vendo às voltas com nosso amiguinho; o o do taxidermista; ou a do lenhador e o desmatamento, que teriam o mesmo apelo ecológico mas manteriam o carisma não só do personagem principal como poderiam ainda trazer de volta aqueles perseguidores do pássaro, os "vilões", estreitando ainda mais a identificação com a antiga série.
A cena do Pica-Pau tocando "Surfin' Bird" com a banda dos garotos até que é legal. Tirando isso mais algum momento que outro (que nem me fixou na mente), algumas bicadas, pancadas, quedas, lambuzos e nada de muito empolgante. Se serve para aliviar, quando começou o filme eu achei que não fosse aguentar até o final mas aí entre uma piadinha aqui outra acolá, um risinho que outro, até deu para aguentar.
O velho truque da Pica-Pau boneca. Acham mesmo que le vai cair nessa?
Muitos de meus amigos vieram das nuvens, Com o sol e a chuva como bagagem. Fizeram a estação da amizade sincera, A mais bela das quatro estações da terra. Têm a doçura das mais belas paisagens, E a fidelidade dos pássaros migradores. E em seu coração está gravada uma ternura infinita, Mas, as vezes, uma tristeza aparece em seus olhos. Então, vêm se aquecer comigo, e você também virá. Poderá retornar às nuvens, E sorrir de novo a outros rostos, Distribuir à sua volta um pouco da sua ternura, Quando alguem quiser esconder sua tristeza. Como não sabemos o que a vida nos dá, Talvez eu não seja mais ninguém. Se me resta um amigo que realmente me compreenda, Me esquecerei das lágrimas e penas. Então, talvez eu vá até você aquecer Meu coração com sua chama.
Que coisa bem gostosa assistir ao filme do Snoopy!
Sessão de cinema com gosto de infância. Sensação garantida muito por conta do fato dos realizadores terem optado por não inventar. Não inventaram nada, foram conservadores, românticos até, e por isso mesmo acertaram em cheio mantendo-se, de um modo geral, fiéis às características originais dos personagens, fiéis aos quadrinhos e à série de TV. E é importante salientar estes três aspectos porque por mais que pareçam uma única coisa, na verdade são complementares e de importâncias distintas. A inocência está lá, a tônica de diálogos concisos mas de notável complexidade psicológica também, a atmosfera de um bairro onde crianças brincam livres e descobrem a vida está intacta.
As aventuras do intrépido Ás Mascarado.
Dos novos recursos que o cinema proporciona e que poderiam resultar numa produção mirabolante e tudo mais, o diretor Steve Martino valeu-se praticamente só do ganho das texturas e das dimensionalidades (mais ainda para quem assiste em 3D, logicamente) conduzindo seu filme no antigo e consagrado formato das tirinhas (lateral, chapado, na altura das crianças), utilizando-se apenas de cenas mais dinâmicas, com profundidade e velocidade, nas "pirações" do beagle maluco, Snoopy, com seu alter-ego aviador, o Ás Mascarado. Tirando esses momentos mais agitados, que, diga-se de passagem, inteligentemente foram bem inseridos de modo a manter o interesse das crianças que por mais que gostem dos personagens e achem graça, não querem ver apenas Charlie Brown se lamentando com seus "Que puxa!", a história toda é conduzida como uma artesanal colcha de retalhos de situações e historinhas dos episódios da TV, tudo, acertadamente ao som das antigas trilhas de Vince Guaraldi intercaladas com ritmos mais atuais, como, por exemplo, na excelente cena em que Charlie Brown dá um show no baile mas... (Com ele sempre tem o "mas"). "Snoopy e Charlie Brown: Peanuts, O Filme" (2016) é um excelente programa para adultos e crianças. Para nós marmanjos, em nome da nostalgia que felizmente não é frustrada pelo filme; para as crianças pela curtição, pelo entretenimento, pelos personagens adoráveis e apaixonantes, crianças como elas cheias de vida, medos, descobertas, inseguranças e alegrias; e para ambos pelo que transmite sobre caráter, solidariedade e honestidade, coisas que estão tão em falta no mundo de hoje e que é bom que as crianças aprendam desde cedo, e que nós recordemos.
Charlie Brown botando pra quebrar no baile da escola.
Nesta época de final de ano, o cinema, essa representação encenada e
diegética da realidade, reforça sua função, seja ela de ajudar a refletir ou
simplesmente entreter (ou os dois juntos, por que não?). Como n’"O Poderoso Chefão - Parte 2", em que os acontecimentos da máfia e da política estão fervilhando
em plena virada de 1959 para 1960 em Cuba, ou em “Boogie Nights”, quando todos
interrompem a chegada da década de 80 por causa de um suicídio em plena festa
de Réveillon, o dia de Natal também (ou a passagem de 24 para 25) aparece em
alguns filmes não necessariamente como tema central, mas como um pano de fundo
essencial àquilo que se quer contar. Às vezes é um detalhe, mas extremamente
simbólico para determinada obra de cinema. Um nexo narrativo que contribui para
a história de forma a lhe trazer os ícones que a data representa (o nascimento
e o significado simbólico de Cristo, a figura pop do Papai Noel, a valorização
dos sentimentos de fraternidade e compaixão, a representação do consumismo, o
pertencimento à sociedade capitalista ocidental, etc.).
Por isso, o Clyblog registra aqui algo nessa linha: não aquelas
comédias natalinas típicas que, embora divertidas, são óbvias. Aqui, fugimos da
obviedade. Listamos, sim, filmes que se nutrem dos elementos natalinos mais
profundos por assim dizer, ainda que apenas como instrumento para dar um toque
à trama, para gerar contraste entre a aparência e real ou apenas para contar
melhor uma história. Se você está cansado de assistir as franquias “Esqueceram
de Mim” ou “Meu Papai é Noel”, aqui vão alguns títulos que não esquecem da
data, mas vão além da mesmice – e que, justo por isso, merecem ser vistos mesmo
em outras épocas do ano. Mesmo que, porventura, apenas passem pelo tema, o
Natal, com seus significados, está lá.
“Duro de Matar” (“Die Hard”, John
McTiernan, EUA, 1988)
Provavelmente o melhor filme de ação dos anos 80 junto com “Um Tira da
Pesada”, “48 Horas” e alguns outros poucos, tem o Natal como pano de fundo para
uma trama inteligente que mescla policial, comédia e realismo (sim, realismo)
na medida certa. O policial nova-iorquino John McClane (Bruce Willis) vai
visitar a esposa em Los Angeles, que está numa festa de Natal da empresa onde
trabalha, no edifício Nakatomi Plaza. Durante a festa, terroristas alemães,
liderados por Hans Gruber (Alan Rickman) invadem o prédio e sequestram todos os
convidados com a intenção de roubar milhões em ações da companhia. McClane
escapa de ser aprisionado pelo grupo de Gruber e, com grande dificuldade, mas
com perícia e astúcia, passa a combatê-los.
A fórmula é muito parecida com o que Hollywood fazia de muito tempo no
gênero ação/policial – as sequências com o gancho da tensão e as explosivas
cenas de ação, entremeadas por tiradas engraçadas que aliviam a seriedade e a periculosidade
– mas adiciona-lhe algo que passaria a servir de exemplo para trocentas
produções posteriores: a pegada realista. McClane derrota os terroristas neste
dia de Natal atípico, mas o consegue a custas de muito esfolamento. O conceito
de anti-herói, humano e mortal, é uma quebra de paradigma no cinema norte-americano
do gênero. Se há estilhaços de vidro no chão e McClane está descalço, ele vai
cortar o pé, ora essa! É exatamente isso que acontece, numa ressignificação do
tipo James Bond, perfeito e inatingível. Tanto é que, por tudo que passa, McClane
sai um trapo no final do filme, o qual finaliza emblematicamente com o jazz
natalino “Let It Snow! Let It Snow! Let It Snow!” na voz de Vaughn Monroe.
Igualmente, o contraste dos elementos visuais e alegóricos da data com a
violência (o vermelho da roupa do Papai Noel com o sangue dos ferimentos)
funciona muito bem. Daqueles que sempre que estão passando na TV se assiste,
inevitável.
"Duro de Matar" - "Ho-Ho-Ho!"
“Morte e Vida Severina” (Walter
Avancini, BRA, 1981)
Uma obra-prima da teledramaturgia mundial (vencedora do Emmy daquele
ano), é a encenação do poema de João Cabral de Melo Neto, o qual se chama
também “Auto de Natal Pernambucano”. Com músicas primorosas de Chico Buarque e
aproveitando parte do elenco que Zelito Viana usara na filmagem da história quatro
anos antes para o cinema, esta é, sem dúvida, a mais bela versão do texto
clássico do poeta pernambucano.
De forte cunho social e denunciador, narra a trajetória do retirante
nordestino Severino (José Dumond, impecável) do sertão árido à capital Recife
através de versos musicados ou recitados em busca de respostas à vida miserável
que leva. O que encontra em muitas das etapas dessa cruzada é apenas morte
através do descaso e da desassistência do povo, de “Severinos iguais em tudo na
vida”, o que o faz pensar em “saltar fora da ponte e da vida”. Mas o nascimento
de mais um “Severino”, filho de um carpinteiro pobre mas sábio, vem trazer
cores à desesperança. É a “boa nova” que o Natal ensina, o Cristo incutido
naquela pequena e franzina vida que se rebenta. “E não há melhor resposta/ que o espetáculo da vida?”.
“A Felicidade não se Compra”
(“It's a Wonderful Life”, Frank Capra, EUA, 1946)
Capra é um dos mestres do primeiro cinemão norte-americano. Era capaz
de criar filmes de marcantes conceitos estético e narrativo a um espírito
fortemente nacionalista, seja na valorização dos símbolos de seu país, seja no
recorrente tom moral típico daquele povo, o qual vai da puerilidade à
arrogância. No caso, mais para onírico, “A Felicidade...” conta a história de
um espírito candidato a anjo que, para ganhar suas asas, recebeu a missão de
ajudar um empresário (James Stewart) que, em virtude de grave problema
financeiro, tinha a intenção de se suicidar. O aspirante a anjo aparece-lhe na
véspera do Natal quando este está prestes a saltar de uma ponte. Ele fala de
sua missão e comentou que seria um desperdício matar-se, pois ele era
importante para muita gente. Ante o ceticismo de seu protegido, que se sentia
um fracassado, o amigo espiritual mostrou-lhe várias situações que teriam
acontecido se não fosse sua interferência: a morte do irmão, o desespero da II
Guerra (recém terminada quando o filme foi rodado), a tristeza da esposa, a
situação lastimável de sua cidade, entre outras.
Com fotografia P&B impecável – bastante forjada no cinema soviético
de Eisenstein e Vertov –, Capra amarra uma história cheia de acontecimentos com
um domínio narrativo espantoso sem deixá-la confusa ou chata. Trata-se de um
típico clássico natalino, eu sei, mas com tamanha qualidade não daria para
deixá-lo de fora – até por que, atualmente, está em desuso assistir a filmes
antigos ainda mais nessa ditatoriamente colorida época natalina. No final, a
mensagem é evidente, o que não lhe tira a emoção – até por que muito bem
escrito e realizado.
“Cortina de Fumaça” (“Smoke”,
Wayne Wang e Paul Auster, EUA/Alemanha, 1995)
Uma ode à solidariedade e ao respeito às diferenças, sejam elas
raciais, de gênero ou qualidades pessoais. Tem coisa mais a ver com Natal isso?
Pois esta pequena obra-prima com cara de Jim Jarmusch traz isso e mais um
pouco. O “isso” é a história envolvente e coral: Auggie Wren (Harvey Keitel)
tem uma tabacaria onde circulam tipos bem peculiares (olha aí as diferenças
subtextualizadas). Ele também tem um hábito próprio: o de fotografar, às oito
da manhã, a fachada de sua loja. É assim que ele conhece o escritor em crise
criativa e emocional Paul Benjamin (William Hurt), que, por um momento
fortuito, acaba conhecendo um jovem negro morador de rua a quem ajuda a
encontrar seu pai. A história é, na verdade, um reencontro das raízes pessoais
e dos laços afetivos mal resolvidos no passado.
O “um pouco mais” a que me referi é, além desse instigante subtexto, há
a célebre cena em que Auggie vai parar na casa de uma senhora cega cujo neto
furtara-lhe a loja. Ela, amorosa e sem os pré-conceitos de quem enxerga apenas
com os olhos, o recebe e o convida para cear com ela naquela véspera de Natal.
Tudo ao som da belíssima canção “Innocent When You Dream”, de Tom Waits. Cena emocionante. Uma história tão linda que, renovadas as emoções de todos na
trama, motiva o até então travado escritor Paul em seu novo romance, chamado: “Auggie
When’s a Christmas Story”.
"Cortina de Fumaça" - História de Natal de Auggie Wren
“O Natal do Charlie Brown” ou “Feliz
Natal, Charlie Brown” (“A Charlie Brown Christmas”, Bill Melendez, EUA, 1965)
Já havia me referido ao filme indiretamente aqui no blog no Natal de
2013 quando escrevi sobre a magnífica trilha sonora de Vince Guaraldi nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS. Pois além da preciosidade que musica o episódio, a própria
animação merece destaque. Com os elementos característicos da série de Charles
Schulz, o curta “O Natal do Charlie Brown” é o primeiro desenho animado da
turma dos Peanuts. Quando o questionador Charlie Brown reclama sobre o sentido
materialista que as pessoas dão à data, Lucy sugere que ele se torne o diretor
de uma peça teatral no colégio. Charlie Brown aceita, mas, claro, sua
insegurança e os ingovernáveis fatores externos fazem com que ele perca o
controle, frustrando-se. “Que puxa!” O
amigo de todas as horas Linus, entretanto, lhe consola relembrando o verdadeiro
sentido natalino.
Tem um Charlie Brown e Snoopy novo por estrear no Brasil que aproveita
o Natal (comercialmente, inclusive) como pano de fundo, mas este aqui é
insuperável, não só pela trilha original de Guaraldi mas pela precisão de
Melendez na direção, que sempre imprimiu à série de TV a dose certa de doçura,
comédia, entretenimento e ludicidade. Atração – e ensinamento – para crianças e
adultos.
Sou um tanto suspeito em falar desse filme, pois trata-se de meu
preferido da longa, profícua e expressiva filmografia do gênio Bergman.
Entretanto, como deixar de fora essa obra-prima que, além de alinhar-se
bastante com o recorte que proponho, é o amadurecimento total de um artista que
já nascera maduro para o cinema. Superprodução que encerra a carreira do
cineasta na grande tela, transcorre-se em dois anos da primeira década do
século XX na família Ekdahl. Após um alegre Natal, o pai de um casal de
crianças morre. Deste momento em diante Alexander (Bertil Guve), o menino, passa
a ver o fantasma do pai frequentemente. Tempos depois, sua mãe casa-se com um
extremamente rígido religioso e as crianças são obrigadas a deixar a casa da
avó paterna para viverem com a família do padrasto de hábitos severos, onde são
tratados como prisioneiros. Na casa do padrasto o sensível e inventivo
Alexander passa a ver o fantasma da primeira esposa dele e suas filhas, que
haviam morrido tentando escapar dele. Decorrido algum tempo, a mãe se
conscientiza da real personalidade do marido e de quanto seus filhos sofrem
naquela casa e planeja um modo de tirá-los daquele lugar e levá-los de volta para
casa.
O proposital clima espiritualista de toda a história faz cama para a
impactante sequência da fuga, em que as forças divinas operam um milagre de
Natal e os três conseguem escapar da prisão domiciliar. Haveria muito a se
falar sobre “Fanny e Alexander” (a relação entre pais e filhos, a
espiritualidade imanente, a percepção afinada da criança, a metáfora da vida
como palco – e vice-versa –, os limites entre vida e morte, etc.) mas destaco
aqui um fator primordial: o fato de o Natal estar presente no início e no final
do filme. A data do nascimento de Jesus demarca dois momentos psicológicos e
emocionais dos personagens, numa significação das possibilidades de mudança e
desenvolvimento da vida e das pessoas. Cada um com suas qualidades e
dificuldades, com suas personalidades e jeitos, mas passíveis de enxergarem o
mundo para além de si mesmos. Afinal, é Natal.
‘nada temam, escutem: trago notícias alegres, que repartirei com toda a gente,
pois entre vocês nasceu, neste dia, na cidade de Davi,
um salvador, que é Cristo, nosso Senhor.’ (...)
E, de repente, ao redor do anjo, surgiu uma multidão de vozes
celestiais louvando ao Senhor e dizendo:
‘Glória a Deus nas Alturas, e paz na Terra aos homens de boa vontade’.
Este é o significado do Natal, Charlie Brown.” Lino Van Pelt
Quando criança, o período do Natal me era empolgante por diversos
motivos. Além dos presentes, da reunião familiar e da decoração
pela casa, um deles era porque, nesta época, haveria programações
de tevê especiais que não se viam durante todo o ano. Era
necessário esperar 12 meses para que fossem transmitidas, pois
passavam somente no final de dezembro. Na Globo, depois da Missa do
Galo e de alguns desenhos temáticos da Turma do Mickey, rodava, já
de madrugada, um clássico hollywoodiano do nível de “E o Vento
Levou”, “O Mágico de Oz” ou “Hamlet” do Zefirelli. À
tarde, independente do dia que caísse o feriado, soltavam algum
filmão antigo sobre o Livro Sagrado como “Rei dos Reis”, “A
Bíblia” ou “Os 10 Mandamentos”. O Chaves, no SBT, repetiria
pela milésima vez o episódio em que todos da vila vão cear na casa
do Seu Barriga e causam a maior confusão – e eu via sempre. Dos desenhos animados, eram tradicionais os episódios natalinos. Todo
desenho que se prestasse deveria ter o seu! A Manchete dava vários
da Hanna-Barbera. Globo e SBT faziam o mesmo com o seu estoque: tinha
Natal dos Smurfs, da Pantera Cor-De-Rosa, do Pato Donald, do Tom &
Jerry e de vários outros.
Um dos que não me cansava de rever era o filme de Natal de um dos
desenhos que sempre me fez a cabeça: Snoopy. Era “Merry
Christimas, Charlie Brown”, o qual tinha como trilha sonora este
disco: “A Charlie Brown Christmas”, da Vince Guaraldi
Trio. Além de achar a série engraçada e prazerosa de ver – desde
lá, já adorava os personagens, o estilo de traço do Charles
Schulz, simples e expressivo, a coloração pastel, os longos
diálogos, o ritmo das narrativas e todo aquele universo da turma do
Minduim –, um dos elementos que mais me atraíam era, justamente, a
trilha sonora. Aquilo me arrebatava, embora me fosse enigmático.
O responsável por me fazer gostar assim, ainda pequeno, com uns 7, 8
anos, de um estilo de música que eu ainda nem sabia que se chamava
jazz é Vince Guaraldi. Pianista, maestro e compositor, dono de um
estilo de tocar e de compor de rara sensibilidade, ele é o autor de
todas as trilhas dos Peanuts desde as primeiras séries para tevê,
em 1964. Todas geniais. Oriundo da cena jazz da Costa Oeste, o “Dr.
Funk”, como era apelidado, ostentava um bigode pontiagudo tão
caricato quanto de um desenho animado e dizia-se, modestamente, um
mero “reformado pianista de boogie-woogie”, porém, mais
que isso, dominava o cool, o jazz contemporâneo, o soul e o
latin jazz, tornando-se influência para nomes como George Winston,
Dave Brubeck, Wynton e Ellis Marsalis. Este é o primeiro disco, além
das coletâneas e homenagens lançadas até hoje, dos três que
produziu para a série ao longo de aproximadamente 10 anos, até sua
morte prematura em 1976, aos 47 anos, vítima de um ataque cardíaco.
Pois “A Charlie Brown Christmas” é, assim como os desenhos do
cachorrinho Snoopy, apaixonante. A beleza começa na faixa inicial:
“O Tannenbaum”. A banda, composta por Guaraldi, Jerry Granelli,
na bateria, e Fred Marshall, no baixo acústico – a clássica e
charmosa formação em trio do jazz –, toca esta canção
tradicional germânica de Natal datada do século XIX. Claro, num
clima jazz-erudito ao modo de Gershwin. Nela, o piano de Guaraldi
desliza uma melodia suave e mágica, dando o tom que dominará o que
vem a seguir. “What Child is This?”, outra adaptação do
cancioneiro folk, este, da Inglaterra romanesca, vem numa arrojada
versão em que os três passeiam com elegância pela melodia,
situando-a entre o lúdico e o misterioso. O clima se mantém em “My
Little Drum”, composição do próprio Guaraldi, na qual o arranjo
se vale, pela primeira, do coral infantil, único tipo de voz usado
em todo o disco, o qual mantém, nesta, um vocalise constante
enquanto o piano desenha acordes que aludem a “O Tannenbaum”.
Quebrando o clima introspectivo – equilíbrio que, aliás, é
característico das próprias histórias do seriado –, vem a
clássica “Linus & Lucy”, certamente a mais conhecida canção
da série, curiosamente mais marcante do que os temas dos próprios
Snoopy e Charlie Brown. Esperta, faceira, bem humorada. Guaraldi,
como bom admirador de Herbie Hancock e Thelonius Monk, colore a
melodia com uma linha de piano swingada e moderna. Afinal, Natal é
tempo de alegria!
Das melhores do álbum, a emocionante “Christmas
Time Is Here” (que conta também com uma igualmente linda versão
cantada pelo coral infantil),
melancólica e sonhadora como o personagem Charlie Brown, é um show
do trio. Guaraldi, delicado e preciso no dedilhar, moderando
intensidades, volumes, ataques e sustenidos, improvisa belamente;
Granelli, raspando a escovinha sobre a caixa, ataca-a levemente para
marcar o tempo; e Marshall, no baixo, passeia pelas escalas com
liberdade e firmeza.
“Skating”
mais uma vez levanta o astral, musicando a brincadeira de esqui no
gelo praticada pelos personagens. Bluesy e cheia de swing, tem na
bateria um dos destaques, seja na parte que Granelli esfrega as
escovinhas ou na mais agitada, em que dá intensidade à música. O
riff, repleto de fantasia, traduz em sons a complexidade/simplicidade
do ato de brincar para o mundo da criança. O espírito natalino
retorna com a afortunada versão da cantata de CharlesWesley,
adaptada por Felix Mendelssohn em 1840, “Hark! The Herald Angels
Sing”, apenas com coral e órgão.
Na bossa-nova “Christmas Is
Coming”, Guaraldi homenageia dois de seus ídolos, Tom Jobim e Luis
Bonfá, e, de novo, seu toque remete aos mestres Hancock e Monk e
ainda Ahmad Jamal, Red Garland e Sonny Clark pelo fraseado de mão
esquerda solto e inteligente. Ele faz o mesmo em “The Christmas
Song”, solando por cerca de 1 minuto e 45 segundos (dos 3 minutos e
20 de toda a faixa), criando um jazz lírico e de cadência
arrastada.
Em “Für Elise”, a cândida
bagatela romântica de Beethoven escrita no início do século XIX,
que dispensa comentários de tão incrível, dá a impressão de que
Guaraldi cede lugar ao piano para o menino Schröeder, o alemãozinho
superdotado e amante do compositor da Nona, personagem dos Peanuts. O
tema de “What Child Is This?” é retomado com seu nome original
no folclore inglês, “Greensleeves”. A trilha finaliza com a
saltitante “Thanksgiving Theme”, não sem antes executar a minha
preferida de todos os temas inventados por Guaraldi para os
personagens de Snoopy: “Great Pumpkin Waltz”. Usada em outro
episódio da série, o da Grande Abóbora, é um tema simplesmente
magistral, que conta, além do trio, com a guitarra de John Gray e a
flauta de Tom Harrell. A melhor tradução do universo lúdico,
enigmático e fantasioso da série, que não se abstinha de mostrar
as aflições, emoções, incertezas, amores e fragilidades das
crianças. Pois a vida não é assim, repleta dessas belezas?
Neste sentido, Snoopy e Cia., que
mostra tão bem o mundo dos pequenos, tem tudo a ver com Natal, época
de celebrar a vida através do nascimento do Menino Jesus – e nada
melhor do que fazê-lo com boa música, né? Por isso, não é à toa
ter me lembrado deste desenho e de minha infância como pano de fundo
para um ÁLBUNS FUNDAMENTAIS especial de Natal. Ainda mais porque,
hoje, não se transmitem mais programas assim na tevê como ocorria
antes nesta época, inclusive os Peanuts, que nem passam mais há
muito tempo. O importante, entretanto, é o que disse Lino em sua
inocente sapiência ao citar, no episódio em questão, a passagem
bíblica de São Lucas sobre o nascimento de Cristo (e arrastando seu
inseparável cobertor azul, obviamente): “Este
é o significado do Natal, Charlie Brown”.
**********************************************
trecho do episódio"Charlie Brown Christmas"
FAIXAS:
1.
O Tannenbaum (Tradicional - Versão: Guaraldi) - 5:08
2.
What Child Is This? (Tradicional - Versão: William Chatterton Dix) -
2:25
3. My Little Drum (Guaraldi) -
3:12
4. Linus and Lucy (Guaraldi) -
3:06
5. Christmas Time Is Here
(Guaraldi/Lee Mendelson) - 6:05
6.
Christmas Time Is Here (Guaraldi/Mendelson) - 2:47
7.
Skating (Guaraldi/Mendelson) - 2:27
8.
Hark! The Herald Angels Sing (Mendelssohn/Wesley) - 1:55
9.
Christmas Is Coming (Guaraldi) - 3:25
10.
Für Elise (Ludwig van Beethoven) - 1:06
11.
The Christmas Song (Mel Tormé/Robert Wells) - 3:17