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sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Wayne Shorter - "Adam's Apple" (1966)

 

“’Adam’s Apple’, a faixa-título, representa à sua maneira uma espécie de jazz contemporâneo universal e o ímpeto da dance music combinados, uma atualização do blues mais familiar e um veículo para as divertidas jornadas às paradas de sucesso”. 
Don Heckeman, do texto da contracapa original do disco

Parecia interminável a inspiração de Wayne Shorter naqueles idos de anos 60. Não que o lendário saxofonista e compositor norte-americano não tivesse também representativa produção já nos anos 50, principalmente na The Jazz Massangers de Art Blakey na qual foi revelado, ou nas décadas que se seguiram dos anos 70 em diante. Ocorre que, principalmente no intervalo entre 1964 e 1970, anos em que esteve sob o selo Blue Note rodeado do que de melhor havia em capital humano e técnico, a obra do jovem Shorter, então na faixa dos 30 anos, dá a impressão de ter entrado num looping criativo. Foram vários discos dignos de perfeição, que pareciam encadear-se e lançados em curtos espaços de tempo entre um e outro -- não raro, num mesmo ano como “Night Dreamer”, “JuJu” e “Speak No Evil”, os três de 1964, ou “The Soothsayer”, “Et Cetera” e “The All Seeing Eye”, todos de um ano depois. Mudavam os integrantes, adicionavam-se elementos sonoros, experimentavam-se formatos, e a qualidade mantinha-se, como se fosse tudo a continuidade de uma mesma coisa.

E era. Devidamente selada pelo estilo marcante de tocar de Shorter – capaz de ir do mais feroz grito dissonante à absoluta leveza lírica –, esta sequência mágica de obras resulta, em 1966, em “Adam’s Apple”, seu 10º álbum solo e o 7º pela Blue Note. Nesta obra, o band leader está acompanhado de um trio afiadíssimo e com o qual tinha total entrosamento: Reggie Workman, na bateria; Joe Chambers, ao baixo; e o fiel escudeiro Herbie Hancock, ao piano. Experimentando aqui, reiterando características ali, “Adam’s...” é indubitavelmente mais um dos discos clássicos de Shorter desta fase áurea, o qual, inclusive, traz alguns de seus temas mais conhecidos.

Começando pela faixa-título, a primeira investida incisiva de Shorter no estilo jazz-soul. Lee Morgan, Donald Byrd, Blue Mitchell e o próprio Hancock já haviam aderido ao groove popular de James Brown, Otis Redding e Aretha Franklin, mas Shorter, be-boper de formação, não havia se entregado completamente ainda. “Adam’s Apple”, no entanto, é puro R&B, é o funk nas escalas jazzísticas que tanto o próprio Shorter se valeria anos mais tarde com a sua Weather Report, banda sinônimo do fusion. São quase 6 min de pura sonoridade pop: riff que gruda nos ouvidos; sax soando inteiro nas modulações de intensidade; piano martelando um ritmo que faz mexer os quadris; baixo dançante; e a bateria - um detalhe à parte - numa aula de marcação rítmica, tanto no chipô quanto na variação caixa/tom-tom. Shorter não resistia à tentação do pop e dava uma mordiscada graúda na maçã de Adão.

Como todo bom Shorter, não podem faltar as baladas, aquelas as quais ele se esbalda em elegância. Em “Adam’s...”, o músico faz isso em dois momentos: a versão de “502 Blues (Drinkin' And Drivin')”, um blues inebriado de paixão em que dá para se sentir, literalmente, dirigindo pela noite de Nova York enchendo a cara por um amor não correspondido; e na linda “Teru”, que retraz propositalmente acordes de outro de seus temas românticos, a clássica “Virgo”, de “Night Dreamer”.

Elemento fundamental para a estética de Shorter nesta e em várias outras épocas de sua longa carreira, o piano do amigo Hancock carrega toda uma atmosfera mágica que une classe, sensibilidade e arrojo. Essa característica, que perpasse toda a fase da Blue Note, quase como uma coassinatura, está fortemente presente em “El Gaucho”, uma bossa nova em que, mais uma vez, Workman se destaca executando com muito estilo e variabilidade timbrística o sincopado ritmo latino. Temas como este já davam a entender, aliás, porque Shorter e Hancock, em especial entre os quatro, se entrosariam tão bem com a música brasileira pouco tempo dali.

“Footsprint”, embora menos “pop” que a música que dá nome ao álbum, é um dos temas mais conhecidos do vasto repertório autoral de Shorter, compositor gravado desde muito cedo por outros jazzistas, inclusive. Talvez seja justamente isso que tenha feito este belo tema bluesy cair nas graças de um outro artista: Miles Davis. E quando este ícone do jazz gostava de algo, sabia-se o destino: adquiria-se outro status. Adotada por Miles, que a gravou em seu “Smiles”, de 1967, “Footsprint” entrou no set-list do trompetista e foi largamente executada em turnê pela Europa e Estados Unidos naquela metade dos anos 60 contando, inclusive, com o próprio Shorter na banda. Não podia dar em outra coisa que não se tornar um clássico do jazz, aqui gravada pela primeira vez.

No continuum shortesiano, não pode faltar também aquela música que desassossega o ouvinte, como são “Night Dreamer”, do disco ao qual dá nome, ou a enigmática “Dance Cadaverous”, de “Speak No Evil”. Aqui, é o caso de “Chief Crazy Horse”, com sua construção harmônica modal (num show à parte de todos, aliás) e variações de escala e compasso. Certamente a mais desafiadora para a banda, o que, dados o entrosamento e perícia do quarteto, não foi nenhum problema.

Como disse o crítico e editor da American Record Guide Don Heckeman, Shorter tem o talento e a técnica para fazer tudo o que deseja, mas o que mais o impressionava no então jovem músico era a capacidade de compor obras coesas a partir desta plasticidade e versatilidade. Para ele, “Adam’s...” é exatamente isso: “uma conquista ainda melhor em sua totalidade, uma vez que nos fornece um corte transversal revelador daquela que é a mais rara das qualidades: a maturidade artística”.

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FAIXAS:
1. "Adam's Apple" – 6:49
2. "502 Blues (Drinkin' and Drivin')" (Jimmy Rowles) – 6:34
3. "El Gaucho" – 6:30
4. "Footprints" – 7:29
5. "Teru" – 6:12
6. "Chief Crazy Horse" – 7:34
7. "The Collector"* (Herbie Hancock) – 6:54 
Todas as composições de autoria de Wayne Shorter, exceto indicadas
*Faixa bônus do relançamento em CD

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OUÇA O DISCO:

Daniel Rodrigues

segunda-feira, 28 de junho de 2021

Dexter Gordon - "One Flight Up" (1964)

 

“Não sei se houve algum significado especial no título deste álbum mas, de qualquer forma, poderia ser interpretado apropriadamente como o significando de que os pretendentes avançaram num voo em criatividade, que seus voos de fantasia são mais livres do que nunca sob os céus de Paris. Juntos, os cinco oferecem uma demonstração esplêndida de como falar a língua internacional do jazz.”
Leonard Feather, do texto original da contracapa do disco

Quase chegada a metade dos anos 60, Dexter Gordon já estava consagrado como um gigante do jazz norte-americano. Saxofonista "à moda antiga", carregava no corpanzil de 1,96m a estatura de mitos do sax tenor que o antecederam, como Coleman Hawkins, Charlie Parker, Lester Young e Ben Webster. Nem a aparição àqueles idos de jovens talentos do instrumento, como John Coltrane, Sonny Rollins, Joe Henderson e Wayne Shorter intimidavam o velho músico. Menos ainda as inovações sonoras e conceituais pareciam abalá-lo. Free Jazz? Avant Garde? Pós-bop? Creative jazz? Não importava. Confiante e em plena forma, seguia na sua linha clássica como um dos precursores do bebop.

O período em que esteve na Blue Note é o melhor recorte desta boa fase. Após anos pulando entre os selos Decca, Savoy, Jazzland e outros – sem, contudo, estabelecer-se em nenhum deles –, ele emenda, entre 1961 e 1966, uma série de sete álbuns memoráveis como "Doin' Alright", "Dexter Calling" e o aclamado "Go", constante invariavelmente em listas de obras fundamentais da história jazz. Todos no melhor estilo hard-bop, sua jurisdição. Somado a isso, recebe a acolhida de braços abertos da Europa, que, assim como para com diversos outros nomes do jazz, o idolatrava. Muda-se para Paris e vive um momento iluminado na – e pela –“Cidade Luz”. A confiança era tamanha que, para sustentar toda a envergadura de Dex, fosse física ou musical, precisava de tanto chão que não cabia nem nas dimensões territoriais de Estados Unidos e França juntas. Por isso, não era se de estranhar que passasse a também pisar novos terrenos. Foi o que fez em "One Flight Up", de 1964, passo firme do músico nos domínios do jazz moderno. 

Mas como estreitar a ponte entre Novo e Velho Mundo? Levando seus músicos para gravar no Barclay Studios, em Paris, ora. Aos 41 anos, assimilando como um garoto os preceitos do jazz modal – os quais haviam se tornado comuns ao repertório jazzístico havia uns 5 anos pelas mãos, principalmente, de Miles Davis e Dave Bruback –, Gordon, como vinha procedendo já de trabalhos anteriores, rodeia-se de uma banda que casa juventude e experiência: os conterrâneos Donald Byrd, ao trompete (32 anos); Kenny Drew, piano (36); e Art Taylor, bateria (30), mais o dinamarquês Niels-Henning Orsted Pedersen (de apenas 18 anos), ao baixo. O conjunto lhe dá, ao mesmo tempo, suporte à sua verve solística admirável e o municia desse ímpeto modernizante. O resultado é uma química perfeita entre o veterano saxofonista e grupo em apenas três faixas, todas irretocáveis.

E se é pra aderir àquelas que se apresentavam como novas formas, então que seja, literalmente, com grandeza. "Tanya" é isso: 18 min e 21 seg que preenchem o lado A com a fluidez controlada das escalas modais, o que não impede (até ressalta, aliás) as capacidades de improviso. Gordon, be-bopper nato acostumado a números extensos como os que executava nos night clubs desde os anos 40, destrincha um solo magnífico em que alia seu tradicional lirismo a um vigor renovado. Mas o band leader não monopoliza o espaço, dando igual prestígio a seus companheiros, a se ver pela participação de Byrd, autor da música, e um ainda mais inspirado Drew. Isso sem falar na linha de baixo marcante de Pedersen, das melhores performances do gigante de quatro cordas que o jazz já presenciou, digna de um Ron Carter, Paul Chambers ou Dave Holland.

Fôlego recuperado, o segundo lado do álbum traz "Coppin' the Haven", escrita por outro membro da banda, o pianista Kenny Drew. Suingue com alma de blues e bossa nova, casa a classe do bebop com texturas modernas, a se ver pelo toque destacado da bateria de Taylor, potente e sem discrição nas investidas na caixa como faziam os contemporâneos Elvin Jones e Tony Williams à época. Sinais de que os gêneros pop como o a soul, o rock e a música étnica já contaminavam o ambiente jazzístico. E Gordon os assimila com generosidade madura. A se destacarem ainda os solos – além do de Gordon, impecável – de Byrd ao trompete, forte e pronunciado, e de Drew ao piano, habilidoso em conduzir o improviso e não esquecer de manter a base.

O disco finaliza com um popular song de 1939 cujos acordes o jazz já havia incorporado havia anos. Aí, sai da frente, que Dexter Gordon vem com um show de interpretação! É a balada "Darn that Dream", imortalizada na voz de Billie Holliday e gravada por Miles Davis em seu clássico "Birth of the Cool", de 1949. Com Gordon e seu quarteto, o standart se redimensiona, ganhando uma amplitude onírica invejável que somente tenoristas daquela estirpe são capazes. Quanta fineza e sensibilidade! Notas e acordes saem elegantes, altivos e esguios como o seu emissor.

Apenas em 1976, de volta à terra natal, terminaria a temporada europeia de Gordon, a qual, além de extensa, findava-se absolutamente produtiva, ajudando a reforçar a mitologia em torno do lendário artista. “One...” é um retrato desta fase áurea, a verdadeira Conexão França do jazz. Só mesmo um gigante como Gordon para plantar com tamanha autoridade e firmeza um pé em cada continente.

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FAIXAS:
1. "Tanya" (Donald Byrd) - 18:18
2. "Coppin' the Haven" (Kenny Drew) - 11:17
3. "Darn That Dream" (Eddie DeLange, Jimmy Van Heusen) - 7:30
4. "Kong Neptune” (Dexter Gordon)*
*Faixa-bônus da versão em CD remasterizada de 2015

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 31 de maio de 2021

Miles Davis - "Bags Groove" (1957)

 

"Em fevereiro de 1954, pela primeira vez em um tempo, eu me sentia bem de verdade. Minha embocadura estava firme porque eu vinha tocando todas as noites e tinha finalmente me livrado da heroína. Eu me sentia forte, física e musicalmente. Me sentia pronto para tudo."
Miles Davis

Era incrível a capacidade de Miles Davis para compor grandes bandas. O músico, que completaria 95 anos no último mês de maio e cuja prematura morte completará três décadas em setembro, desde que se tornara um jovem band leader, aos 22, no final dos anos 40, estabelecera tal protagonismo. Após alguns anos de “escola” aprendendo teoria musical na Julliard School mas, principalmente, tocando na banda de Charlie Parker, o grande revolucionário do jazz, o homem que pôs o gênero de ponta-cabeça diversas vezes ao longo de meio século, em menos de 10 anos de carreira solo e menos de 30 de idade já era considerado uma lenda no meio jazz nova-iorquino. Além de lançar discos referenciais, como “Birth of the Cool” (1949/50), cujo nome fala por si, e a trilogia hard-bopCookin’/ Relaxin’/ Steamin’” (1956), o trompetista tinha um tino especial também para agregar a si outros talentos, formando grupos às vezes tão inesquecíveis quanto seus álbuns. Tanto veteranos, como Charles Mingus, Art Blakey e Max Roach quanto então novatos, como Gerry Mulligan, John Coltrane, Herbie Hancock e Tony Williams, eram recrutados por Miles, um líder natural.

Era tanto prestígio de Miles já à época, que ele mantinha contrato com duas gravadoras, Blue Note e Prestige, e estava em vias de assinar com outra: a Columbia. Toda essa autoridade permitiu que, em “Bags Groove”, de 1957, ele pudesse contar não com uma, mas duas bandas. E, diga-se: bandas de dar inveja a qualquer front man. O disco reúne duas sessões de gravação ocorridas em 1954 no famoso estúdio Van Gelder, em Nova York: a 29 de junho e a 24 de dezembro. Para cada uma, Miles teve escalações estelares. Acompanhando-o na segunda delas estão, além dos velhos parceiros Percy Heath, ao baixo, e Kenny Clarke, na bateria, ninguém menos que Milt 'Bags' Jackson, nos vibrafones, membro da inesquecível Modern Jazz Quartet e a maior referência deste instrumento na história do jazz, e Thelonious Monk ao piano, considerado um dos maiores gênios da música do século XX. Duas referências do jazz bebop e ambos tocando pela primeira vez com o trompetista. 

O disco começa com outra característica de Miles fazendo-se presente, que é a de não apenas estar ao lado de músicos de primeira linha como, principalmente, saber tirar o melhor proveito disso. As duas versões da faixa-título, de autoria do próprio Milt, são tão solares que fazem esquentar o frio nova-iorquino daquela véspera de Natal. O estilo solístico de Miles e sua liderança no comando da banda, atributos totalmente recuperados por ele naquele 1954 depois de um longo e tortuoso período de vício em heroína, ficam evidentes em seus improvisos inteligentes, econômicos e altamente expressivos. 

Mas não é apenas Miles que brilha, visto que tudo na música “Bags...” abre espaço para diálogos. A elegância característica do estilo de Miles se reflete no soar classudo do vibrafone de Milt. Poder-se-ia dizer tranquilamente que a faixa, por motivos óbvios, além da autoria e da autorreferência, é dele, não fosse estar dividindo os estúdios com Miles e Monk. Este último, por sua vez, conversa tanto com a elegância peculiar dos dois colegas quanto, principalmente, no uso inteligente e econômico das frases sonoras. No caso do pianista, mais que isso: precisão – e uma precisão singular, pois capaz de expressar sentimento.

Capa do disco com Rollins,
que corresponde ao
lado B de "Bags Groove"
O repertório do álbum se completaria com outra gravação ocorrida meses antes, só que num clima totalmente contrário: em pleno calor do verão junino da Big Apple, Miles entra em estúdio amparado por Clarke novamente, mas agora tendo ao piano outro craque das teclas, Horace Silver. Mas ao invés do vibrafone percussivo de Milt, agora a sonoridade complementar muda para outro sopro: o vigoroso saxofone tenor de Sonny Rollins. Substituições feitas, qualidade mantida. Como um time que não se afeta com a intempéries e sabe mudar as peças mantendo o mesmo esquema vitorioso, 

Os quatro números restantes são fruto da sessão feita para “Miles Davis With Sonny Rollins”, de 1954 (este, lançado naquele ano mesmo), quando Miles, que já havia trabalhado rapidamente com o saxofonista três anos antes, apresentava-o, então com 24 anos, como jovem promessa do jazz. E se o lado A de “Bags...” tinha como autor não Miles, mas seu parceiro Milt, a segunda parte também era praticamente toda assinada por Rollins. “Airegin”, um bop clássico, é o resultado do entrosamento dos dois. Miles gostou tanto do tema, que o regravaria no já referido “Cookin’” com Coltrane, no sax, Red Garland, ao piano, Paul Chambers, baixo, e Philly Joe Jones, na bateria. O mesmo acontece com “Oleo”, um gostoso jazz bluesy, que Miles aproveitaria no repertório de outro disco memorável daquela época, “Relaxin’”, e com o qual contou com a mesma “cozinha” de “Cookin’”.

“Bags...” tem ainda outra de Rollins, a inspiradíssima “Doxy” e sua levada balançante, que não muito tempo dali se tornaria um clássico do cancioneiro jazz, interpretada por monstros como Coltrane, Dexter Gordon e Herb Ellis. Completam o repertório dois takes do standart “But Not For Me”, de Gershwin. Classe pouca é bobagem. 

Isso tudo, acredite-se, antes de Miles ter lançado aquele que é considerado sua obra-prima, “Kind of Blue”, de 1959, a criação do jazz modal e com o qual contou com Coltrane, Bill Evans, Cannoball Adderley, Jimmy Cobb e Wynton Kelly. Antes de ter tocado com o infalível quarteto Williams, Hancock, Wayne Shorter e Ron Carter, noutro passo fundamental para o jazz. Muito antes de ter feito “In a Silent Way” e “Bitches Brew”, as revoluções do jazz fusion em que teve, além de Hancock, Shorter e Williams, outros coadjuvantes ilustres como Chick Corea, Joe Zawinul e John McLauglin. Como talvez nenhum outro músico do jazz, Miles tinha a capacidade de reunir os diferentes e saber extrair disso o melhor. De unir verão e inverno e torná-los a mesma estação. “Bags...” é uma pontinha de tudo isso que Miles fez e representou para o jazz e a música moderna. E haja bagagem para conter tanta história e tantos talentos orbitando ao redor do planeta Miles Davis!

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FAIXAS:
1. "Bags' Groove" (Take 1) (Milt Jackson) - 11:16
2. "Bags' Groove" (Take 2) - 9:24
3. "Airegin" (Sonny Rollins) - 5:01
4. "Oleo" (Rollins) - 5:14
5. "But Not for Me" (Take 2) (George Gershwin/ Ira Gershwin) - 4:36
6. "Doxy" (Rollins) - 4:55
7. "But Not for Me" (Take 1) - 5:45


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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

McCoy Tyner - "Extensions" (1972)

 

“Quem trouxer uma boa ação terá uma dezena como esta”. 
Corão, 6:161

A ideia que move o homem é a da perpetuação. Da espécie, da genealogia, das relações. E o homem desde as cavernas escolheu a forma mais elevada de expressar essa perpetuação: a arte. Embora a antiguidade da relação do ser humano com a arte, pode-se dizer que 60 anos é tempo suficiente para se verificar se um trabalho artístico conseguiu dar continuidade a algo que o motivou. “Extensions”, do pianista de jazz norte-americano McCoy Tyner, que não leva este nome à toa, é uma realização desta magnitude. 

Poucos anos após assimilar a morte do mestre John Coltrane, com quem havia se tornado um músico profissional, Tyner realiza uma viagem para dentro de si mesmo. Já havia intentado isso em “The Real McCoy”, de 1967, mas seguiu em busca do seu verdadeiro “eu”, explorando, descobrindo, expandindo-se. Por isso, a noção de extensibilidade proposta por Tyner vai além de um mero produto sonoro-musical, pois atinge num só tempo dimensões altamente profundas, como a da raça, da espiritualidade e da ancestralidade. Em “Extensions”, Tyner vai à gênese.

Coltrane, aliás, abridor de portas do spiritual jazz e da vanguarda jazzística, é fundamental para essa procura existencial e espiritual. Afora a própria influência do saxofonista mais cultuado do jazz para Tyner e toda uma geração, o pianista reúne figuras não apenas devotas ao autor de “Giant Steps” como ainda vai além. Estão com ele Elvin Jones, companheiro do “quarteto clássico” que acompanhou por cinco anos Trane em suas principais obras; o versátil Ron Carter, cujo baixo é capaz de apoderar-se do mais profundo intimismo; Wayne Shorter, um dos mais ilustres herdeiros do saxofone mágico da linhagem de Coltrane; Gary Bartz, cujo sax alto conversa igualmente com o extracorpóreo; e para fechar, ninguém menos que a esposa dele: a pianista e harpista Alice Coltrane, grandiosa compositora e arranjadora, que dividiu a vida, os estúdios e os palcos com o marido e que substituiu, justamente, o próprio Tyner, em 1966. Tê-la neste disco significava para Tyner não apenas um resgate para com ela, mãe de Ravi Coltrane, fruto do casal e músico talentoso como os pais, como uma reconexão com quem, mesmo não mais vivo, fora-lhe tão importante.

Independente do que tocassem, só o fato de se reunir essa estelar turma já seria suficiente. Mas Tyner estava imbuído de pretensões mais elevadas neste projeto. Queria puxar o fio do novelo que lhe trouxera até ali como artista, como ser social e como pertencente de uma raça. Queria perscrutar a “extensão” de sua existência. A fonte para isso? A África. Muçulmano devoto, Tyner buscava invariavelmente nas raízes antepassadas a inspiração para sua música. No entanto, naquele momento de vida, calhava-lhe reunir os ecos do spiritual jazz – proclamado por Coltrane e muito bem progredido por outros músicos, como Albert Ayler, Pharoah Sanders e a própria Alice –, do bop e do modal com o legado dos ritmos africanos. A riqueza continental da África lhe oferecia a dimensão espacial perfeita para o autorreconhecimento, mas também para o do jazz e de toda a música moderna. A capa não deixa dúvidas ao mostrar a realeza negra com suas vestes islâmicas típicas.

O disco começa mandando uma mensagem vinda do rio que banha toda a África Continente e as áfricas imaginárias pelo mundo: o Nilo. Os mais de 12 minutos da faixa de abertura dimensionam a exuberância de um tema em homenagem ao maior – e mais histórico – rio do mundo. ”Message From The Nile”, com um início transbordante como uma nascente, abre ao som cintilante da harpa de Alice. Denso, o tema diz a que veio: variações de ritmo e textura da percussão, um piano lírico e consciente de seu papel central; e a dupla de sax, formando um só corpo – melódico e astral. Essencial para o desenvolvimento de civilizações milenares, como a egípcia, a grega e a hebraica, o Nilo recebe de volta Tyner em suas águas sagradas para um novo batismo. Essa é a mensagem. Tyner, Bartz e Shorter, padrinhos, parecem colocar a música a alguns metros do chão com seus improvisos, enquanto a harpa de Alice, última a solar, vem para, definitivamente, selar a sensação de elevação.  

Tyner com o mestre e amigo John Coltrane à época do
"quarteto clássico": inspiração espiritual

Estava muito clara a visão do band leader. Em uma época em que vários músicos do jazz, inclusive muitos contemporâneos de Tyner, se rendiam ao fascínio pop do jazz fusion, absorvendo com facilidade elementos do rock e da soul music, o pianista, convicto com seu Corão debaixo do braço, mantinha-se ainda mais fiel às raízes. Embora se abrisse para o matiz africano como os ultramodernos, fazia-o muito mais como contrição do que experimento ou frivolidade. “The Wanderer”, que vem na sequência, forjada no hard-bop ao qual ele e toda a banda se formaram, capta a ideia da “extensão” ao reafirmar aquilo que a música da África levou para o outro lado do Atlântico, como se a mensagem enviada do Nilo fosse justamente essa: o jazz puro e essencial. Como em todo o álbum, o autor prova que é a verdadeira ponte entre a tradição e o moderno.

Por falar em essência, o que é mais essencial para a música afro-americana do que o blues? “Survival Blues”, novamente faz uma ode aos ancestrais, mas localizando-os na América. O tema inicia com farfalhar de notas miúdas das mãos esquerda e direita de Tyner para, aos poucos e dissonantemente, formar um esboço melódico. É, sim, um blues, mas como o próprio título sugere, que necessita brigar por sua “sobrevivência”. As notas e acordes, como seres tirados de suas terras para servir de escravo por séculos num território que não era seu, travam uma batalha com o espaço sonoro para existirem, para ocuparem aquilo que lhes pertence. Jones, especialmente inspirado, está em casa: livre para exercitar sua verve polirrítmica. O blues, assim, como lamento e redenção, como música de trabalho dos trabalhadores escravizados, cumpre sua função sincrética, quase religiosa. Torna-se mais “espiritual” do que os mestres precursores jamais supuseram.

Se foi breve o passeio pela África, com certeza foi profundo. Por isso, não poderia deixar de se encerrar pedindo a bênção – seja de Alá ou dos orixás, que saíram da mesma África para jogar seus encantos na ponta sul da América. Mais spiritual jazz impossível, “His Blessings”  pega emprestada a atmosfera de Coltrane, principalmente, em seu maior canto divino, “A Love Supreme”, de 1964, em que Tyner foi um importante colaborador e Alice uma fundamental encorajadora. Com esparsas percussões (pratos ou rolos de tímpano), o tema tem na força dos sopros de Shorter e Bartz sua alma, suas vozes. Carter, outro fundamental para a construção harmônica, lança o arco para fazer de seu baixo uma flecha, como o caçador Oxóssi. A arpa de Alice desenha todo o espectro sonoro, atribuindo ares do Oriente egípcio, caldeu e fenício enraizado na civilização moderna. Já Tyner, dono e autor da canção, impregna-a de motivos oníricos e devotos, louvores urgentes de serem ditos.

Se Tyner já vinha de um tempo cogitando autodescobrir-se, em “Extensions” ele realiza justo o que o termo propõe: extensões deste significado. Afinal, não é um descobrir apenas de si, mas de seu povo, de sua raça, de sua gente. A civilização negra, seja da África, das Américas ou de onde quer que seja, está representada em seus acordes. Todos eles guardam no coração, inequivocamente, os sons que a Mãe-África lhes legou. E a arte, aqui respaldada pela linguagem da música, é capaz de manter vivas suas origens, de aproximá-la, de colá-la novamente à porção meridional ocidental, hoje chamada América e dividida por um imenso oceano, mas que um dia formou uma só terra.

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Gravado pelo selo Blue Note,, em fevereiro de 1970, no Van Gelder Studio, em Englewood Cliffs, New Jersey, “Extensions” foi lançado somente dois anos depois, em 1972, pela United Artists Records.

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FAIXAS:
1. “Message From The Nile” - 12:10
2. “The Wanderer” - 7:35
3. “Survival Blues” - 13:02
4. “His Blessings” - 6:41
Todas as composições de autoria de McCoy Tyner.

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Daniel Rodrigues

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

"Soul", filme de Peter Docter (2020)

 

VENCEDOR DO OSCAR DE
MELHOR FILME DE ANIMAÇÃO E
MELHOR TRILHA SONORA


Esse é o filme para apresentar para aquela pessoa que você conhece que tem preconceito com longas de animação. O conceito dessa pessoa vai mudar , com certeza. Não só pela estética, pelo visual exuberante, pela qualidade de animação que ultrapassa a perfeição, mas também pela delicadeza e profundidade do roteiro e a maneira como ele aborda esse tema da vida e morte de modo tão simples e belo. Vou secar as lágrimas e continuar o texto...

Em "Soul", Joe Gardner é um professor de música de ensino fundamental, desanimado por não conseguir alcançar seu sonho de tocar no lendário clube de jazz, The Blue Note, em Nova York. Quando um acidente o transporta para fora do seu corpo, fazendo com que ele exista em outra realidade na forma de sua alma, ele se vê forçado a embarcar em uma aventura ao lado da alma de uma criança que ainda está aprendendo sobre si, para aprender o que é necessário para retomar sua vida.

Eu acredito que esse seja um dos longas da Pixar que menos senti o peso “infantil”, temos muito desta parte com a personagem 22, mas de resto é um filme repleto de simbolismos. Claro que uma criança conseguirá entender sobre o que fala o filme, vai acompanhar a narrativa muito bem, mas o filme, dialoga muito mais com quem já tem uma história de vida, embora apresente uma certa dificuladade em trabalhar conceitos estabelecidos por ele mesmo, onde em tal hora, determinada coisa é importante e em outra, logo ali, já não é mais.

Um longa de surpresas boas. Reflexivo, profundo e,
ao mesmo tempo, viualmente agradável para os pequenos.

A Pixar com "Soul" atinge um nível de qualidade de animação absurda! As cores, a modelagem dos personagens, as texturas, os cenários, o cuidado em cada detalhe, é tudo primoroso. A construção de personagem, a sua jornada, a forma sutil e divertida da narrativa faz com que você nem perceba o tempo passar. A Pixar acerta demais. 

Eu não consigo lembrar de um longa Pixar que seja decepção. Claro quetem aqueles que não atingem a nossa expectativa mas o que provavelmente, nesses casos, ocorre mais por culpa nossa do que do filme, porque DECEPÇÃO mesmo, nunca houve. "Soul" é tão magnífico em seu texto, que, por mais sutil que sejam suas falas, quando você  reflete sobre o que está sendo dito em tela, aquilo é como um soco na sua consciência. Tem suas falhas, suas incoerências com a própria história, mas é uma narrativa muito bem feita com umas viradas que quebram suas expectativas.

 Por mais que utilizem mais uma vez a fórmula Pixar (e muito bem executada, mais uma vez), seus longas nunca são só isso e sempre entregam algo mais. Em "Soul”, você vai ver uma animação para se divertir e passar tempo e termina refletindo sobre a sua vida, sua jornada, se dedicar uma vida para realizar apenas um sonho, deixar de aproveitar outras oportunidades da vida, outras portas que se abrem, por um único objetivo e vai acabar se questionando se tudo isso é tão valido assim.

 E quando chegar no seu sonho? Vai ter forças para buscar outro? A vida tem sentido sem um objetivo? Ahhhhh!!!! Chega... Assistam “Soul”, sou seus bando de Zé.

Na boa! A animação de “Soul”, junto com sua trilha, são algumas das melhores coisas
que você vai ver e ouvir nesse 2021. Já falo agora!



por Vagner Rodrigues


segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Joe Henderson - “Inner Urge” (1964)

 

“Uma das marcas da estatura constantemente crescente de Joe Henderson é que ele não pode ser categorizado de maneira ordenada. Por um lado, está entre os jovens exploradores de novas formas de expandir as linguagens do jazz. Por outro lado, ele pode ser igualmente convincente como um blues groover e como um mestre personalizador de baladas na tradição vintage dos tenores do jazz ultratonal. Este álbum ilustra ainda mais o alcance e a profundidade de Henderson.”
Nat Hantoff, do texto da contracapa original de “Inner Urge”

“Na hora marcada, as necessidades tornam-se maduras. É a hora em que o Espírito Criativo (que também se pode designar como Espírito Abstrato) encontra um caminho para a alma, depois para outras almas, e provoca um anseio, um desejo interior.”
Wassily Kandinsky, de “Sobre o problema da forma", 1912

Todo amante de jazz tem motivos para reverenciar o ano de 1964. Assim como o igualmente rico 1959, em que pelo menos dois discos revolucionários para o gênero foram concebidos – “Kind of Blue”, de Miles Davis, e “The Shape of Jazz to Come”, de Ornette Coleman - o quarto ano da década de 1960, em que a abismal leva de grandes músicos surgidos no pós-Guerra encontrava-se em plena forma, impressiona pela quantidade de obras da mais fina estampa. De Wayne Shorter a Albert Ayler, de Lee Morgan a Sun Ra, vários dos “feras” do jazz deixaram sua marca em 1964. Quem também o fez com igual competência e qualidade foi Joe Henderson. A obra em questão é “Inner Urge”, em que o saxofonista tenor norte-americano está acompanhado de um estelar time: Bob Cranshaw, baixo, Elvin Jones, bateria, e McCoy Tyner, piano. Praticamente, o trio que acompanhava John Coltrane havia anos (afora Cranshaw, que tinha no lugar Jimmy Garrison) e que, poucos meses dali, gravaria com este o talvez maior feito não somente daquele fatídico ano, mas de toda a história do jazz: “A Love Supreme”.

Quarto disco de Henderson tanto como band leader quanto pela Blue Note, sua primeira gravadora e que o havia contratado um ano antes, carrega, como o título diz, o sincero “desejo interior” de um jovem artista em plena atividade. Em menos de dois anos, o produtivo Henderson estava com sangue nos olhos, visto que já tinha emendado outros três álbuns, sendo um deles o memorável “In ‘Out”, daquele mesmo milagroso 1964. Motivos havia, contudo, para que estivesse com todo esse gás. Embora fosse recente a carreira solo, sua trilha na música já vinha de pelo menos 15 anos antes. Dono de um estilo que oscila entre o austero e o onírico com a mesma naturalidade que seu sax salta de escala, Henderson sempre foi um “cabeção”. Estudou flauta, baixo e saxofone na Wayne State University e, mais tarde, composição no Kentucky State College, não raro destacando-se pela criatividade e aplicação, Dotado da rara habilidade de “ouvido absoluto”, era capaz de emular com perfeição seus mestres Charlie Parker, Dexter Gordon e Yusef Lateef só ao escutá-los. Nem a passagem pelo exército norte-americano, entre 1960 e 1962, foi capaz de freá-lo, visto que não parou com a música neste tempo e até ganhou prêmios tocando para os colegas soldados. Ao sair das forças armadas, sua arma passou a ser seu instrumento e o território a conquistar seria o centro nervoso do jazz, Nova York, para onde se mudou imediatamente após a baixa. 

As experiências vividas e a sensibilidade musical de Henderson lhe legaram uma visão artística  naturalmente abrangente, que o condicionaram a transitar do classicismo do be-bop à ousadia da avant-garde ou à complexidade harmônica da bossa nova num passo. Em “Inner”, esta ânsia de um “espírito abstrato”, como classificou o artista visual russo Wassily Kandinsky, referência da arte abstrata, está cristalina na multiplicidade e no ecletismo dos números musicais que o compõem. A perfeita engenharia sonora de Rudy Van Gelder e a produção invariavelmente caprichada de Alfred Lion estendem o tapete para a entrada da impecável faixa-título, melodiosa e instigante. São 12 minutos de passeio modal de uma turma acostumada com esse expediente desde que Miles e Dave Bruback o cunharam poucos anos antes. A alta química entre os integrantes da banda propiciam a Henderson o exercício de seus aforismos sonoros com liberdade. Enquanto Tyner dedilha notas líricas e dissonantes, Cranshaw espalha os tons graves com sabedoria e Jones... bem, Jones arrasa do início ao fim na combinação caixa/pratos e, em especial, no magnífico solo que executa quase ao final, quando não deixa o ouvinte respirar. 

“Isotope”, na sequência, mantém o clima suspenso, porém agora num hard-bop colorido, suingado, que contrasta com o abstratismo da faixa inicial. Decréscimo nenhum, contudo. Espelhando-se na elegância de Dex Gordon, Henderson volta às raízes bop. Em seguida, um novo tema e uma nova guinada. As influências hispânicas, que tanto agradavam os jazzistas desde os anos 50 (a se ver pelo “Jazz Flamenco”, de Lionel Hampton, ou “Sketches of Spain”, de Miles) dominam a excelente “El Barrio”. Traços, no entanto, desenhados com os pincéis abstratos do autor, que a impregna de estilo e personalidade. A começar pelos acordes iniciais, quando as notas graves do sax de Henderson emanam caracteres típicos das terras madrilenhas. Jones, atinado, articula um compasso sincopado, enquanto o piano de Tyner e o baixo de Cranshaw insinuam movimentos airosos. Lá pelas tantas, de tão absorvido, Henderson, ao lançar um forte solfejo, chega a afastar-se do microfone, diminuindo a captação do som, o que sabiamente não foi “corrigido” por Van Gelder. Afinal, como no flamenco, é assim que “El Barrio” tinha que soar: orgânica. Tema absolutamente sensual e acachapante. 

Não é exagero dizer que “You Know I Care”, versão para a canção de Duke Pearson, é das mais belas baladas do cancioneiro jazz – ao menos, do abastado ano de 1964 com certeza. Mudando totalmente de estilo – ou melhor, recorrendo a mais uma de suas facetas –, Henderson encarna o mais romântico dos jazzistas e faz ouvirem-se Coleman Hawkins, Lester Young, Gordon e... Joe Handerson também, é claro. Para um disco que, mesmo em apenas cinco faixas, não cansa de surpreender, não é de se estranhar que até o standart “Night and Day” venha igualmente cheio de originalidade. A leitura post-bop de Henderson e sua banda para o clássico de Cole Porter lhe dá um caráter sinuoso, que ora percorre os acordes-base com elegância, ora lhe acentua dissonâncias e modernidade modal. Uma reestruturação melódica que contribuiu para um olhar totalmente diferente deste popular song dos anos 30.

Por cinco anos, desde que entrara para a Blue Note, um ano antes de realizar “Inner”, até 1968, Joe Henderson apareceu em quase 30 álbuns do selo, sendo apenas cinco lançados sob o seu nome. Independentemente da assinatura, o que importava mesmo era espraiar a sua arte por tanto tempo restrita apenas aos conservatórios, aos palcos e até às trincheiras. Porém, de toda esta larga produção, “Inner” é o trabalho que melhor define sua alma exploratória e inquieta. Se "na hora marcada, as necessidades tornam-se maduras" aos "espíritos criativos", Henderson deu um jeito de não perdê-la. Por isso, por algum motivo mágico, 1964 parecia mobilizá-lo especialmente, assim como a outros de seus pares. Tanto é que, além deste e de “In ‘Out” – um lançado em abril e outro em novembro –, Henderson também integra os grupos de outros 10 projetos dentro daqueles 12 inesquecíveis meses, a maioria clássicos como ”Song for My Father", de Horace Silver, ou “The Sidewinder”, de Morgan. Pena que, tanto para Henderson quanto para todos os músicos e amantes do jazz, inexoravelmente 1º de janeiro de 1965 um dia chegou.


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FAIXAS:
1. “Inner Urge” - 12:00
2. “Isotope” - 9:10
3. “El Barrio” - 7:10
4. “You Know I Care” (Duke Pierson) - 7:15
5. “Night And Day” (Cole Porter) - 7:00
Todas as composições de autoria de Joe Henderson, exceto indicadas

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Daniel Rodrigues

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Donald Byrd - "Black Byrd" (1973)



"Há muito tempo, dentro e fora da música, Donald é um pesquisador. Ele continua buscando e absorvendo experiências. Quanto ao seu futuro na música, na opinião do próprio Donald, 'o céu é o limite'".
Nat Hentoff, texto da contracapa original do disco

Um dos melhores e mais perfeitos álbuns que já ouvi. Foda, foda, foda! Os puristas gritaram de indignação quando Donald Byrd lançou "Black Byrd", uma incursão completa no R&B que irrompeu em um fenômeno popular. Byrd foi considerado um vendido e um traidor de suas credenciais no hard bop, especialmente depois que "Black Byrd" se tornou o álbum mais vendido da história do Blue Note. O que os elitistas perderam, porém, foi que "Black Byrd" foi o momento em que a marca de fusão de Byrd finalmente saiu da sombra de sua principal influência, Miles Davis, e encontrou uma voz própria e distinta. Nunca antes um músico de jazz abraçou o som e o estilo de celebração do funk contemporâneo tão completamente quanto Byrd fez aqui - nem mesmo Davis, cujo dark funk da selva caótico contrastava fortemente com a música alegre e dançante do "Black Byrd".

Byrd dá rédea solta ao produtor/arranjador/compositor Larry Mizell, que cria uma série de peças melódicas fortemente focadas, muitas vezes em dívida com as orquestrações mais longas de Isaac Hayes e Curtis Mayfield. Eles são construídos sobre os ritmos funk mais simples que Byrd já enfrentou, e se as estruturas não são tão soltas ou complexas como seu material de fusão anterior, elas compensam com um senso funky de groove que é quase irresistível.

Os solos de Byrd são principalmente melódicos e econômicos, mas isso permite que o funk ocupe o centro do palco. Claro, talvez o piano elétrico, os efeitos sonoros e a onipresente flauta de Roger Glenn datem um pouco a música, mas isso é realmente parte de seu charme. "Black Byrd" era o que há de mais moderno para a época e estabeleceu um novo padrão para todas as futuras fusões jazz/R&B/funk - das quais havia muitas. Byrd continuaria a refinar esse som em álbuns igualmente essenciais como "Street Lady" e os fantásticos "Places and Spaces", Mas "Black Byrd" se mantém como sua declaração de assinatura inovadora.

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FAIXAS:

1. "Flight Time"  - 8:31
2. "Black Byrd" - 7:21
3. "Love's So Far Away"  - 6:01
4. "Mr. Thomas"  (L. Mizell/W. Jordan) - 5:04
5. "Sky High"  5:57
6. "Slop Jar Blues" - 5:39
7. "Where Are We Going?" (L. Gordon/ L. Mizell) - 4:39
Todas as composições de autoria de Larry Mizell, exceto indicadas


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por Daniel Vicini

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Jimmy Smith - “Back At The Chicken Shack - The Incredible Jimmy Smith” (1960)




"Smith transformou a péssima imagem do órgão com sua emocionante síntese de bebop, blues e gospel, fazendo uma música arrebatadora. Ele criou um novo estilo – o soul jazz – e seus muitos discípulos formaram bandas em torno da Hammond B3”.
Andrew Gilbert, escritor norte-americano e especialista em jazz

O som cheio e reconfortante aos ouvidos do órgão, em seus mais variados tipos, é capaz de tocar a alma. Ligado à tradição sacra, muitos cultos, seja nos templos católicos ou protestantes, foram celebrados ao longo dos séculos ao som de seus tubos comprimidores de ar. Um som que remete à libertação e ao louvor. Não era de se estranhar que sua sonoridade de adequasse à música moderna, principalmente aquela derivada dos negros, mestres em harmonizar religião e arte. Vendido para igrejas como uma alternativa de baixo custo aos órgãos convencionais, o modelo eletromecânico Hammond caiu como uma luva não apenas para a música gospel, mas, consequentemente, para o rhythm and blues, o blues, o rock, o reggae e, claro, o jazz, gênero acostumado tanto a tocar almas quanto a inovar. Grande responsável por juntar estes dois polos, tradição e modernidade, corpo e espírito, foi o tarimbado organista norte-americano Jimmy Smith. “Back At The Chicken Shack”, além de marcar a criação de um novo subgênero, a soul jazz (o que, por si só, já justificaria o adjetivo "incrível" que lhe é dado no título do álbum), também abriu portas para toda uma geração de músicos tanto no jazz quanto na música pop. 

Smith sempre teve um pé na igreja e outro nos nightclubs. Nascido em 1928, na Filadélfia, frequentou nos anos 40 a Hamilton School of Music e a Ornstein School of Music, ambas na sua cidade, onde estudou piano. O primeiro contato com um Hammond foi em 1951, mas foi três anos depois, quando conheceu a portátil versão B3 do aparelho que, desde então, não parou mais de ganhar notoriedade no meio musical, seja nas renomadas casas de Nova York Café Bohemia e o clube Birdland, seja em festivais de jazz como o de Newport. Em meados dos anos 50, Smith já era o grande nome do órgão do jazz, popularizando como ninguém o instrumento ao longo dos anos. Se antes havia alguma resistência ao instrumento, o músico desfez totalmente qualquer preconceito. “Back...”, seu 24º álbum, carrega com muita propriedade todas as vertentes assimiladas por ele até então, fundindo como jamais se havia ousado bebob, blues e gospel. E o faz com altíssima sofisticação. Tanto que os 60 anos que o disco completa em 2020 parecem torná-lo ainda mais moderno e atemporal - aliás, como todas as obras que contém essas qualidades: poderia ter sido realizado ontem que continuaria soando atual.

Jimmy Smith detonando o seu Hammond B3: o sacro
órgão agora faz parte do som da música pop
Veja-se, então, a preciosa faixa-título, um blues cheio de groove e perícia, tanto de Smith como dos companheiros de banda: Stanley Turrentine, saxofone tenor, Kenny Burrell, guitarra, e Donald Bailey, bateria. Esse time, produzido por Alfred Lion e comandados na mesa de som por Rudy Van Gelder, só podia dar num grande disco, histórico, diga-se. Outra de suingue puro é “Minor Chant”, Nesta, a astúcia fica por conta do sax de Turrentine, autor da faixa, sustentado pelas mãos seguras Smith ao órgão na base. No que prossegue, no entanto, é o próprio band leader que impressiona com o seu improviso.

A popular “When I Grow Too Old To Dream”, blues leve e melodioso, tem ares românticos na entonação de Turrentine, que dá o tom em praticamente metade dos quase 10 minutos da faixa. Vez de Smith entrar aprontando um solo mais colorido, herança das manhãs de culto na igreja em que punha os fiéis para sacolejar em nome de Deus. “When...” só perde em tonalidades e em tempo de duração para a última faixa, “Messy Bessie”, quando os músicos aproveitam seus mais de 12 minutos para explorar a sonoridade do blues mais uma vez. Todos têm a sua vez: Burrell e Turrentine, sempre hábeis; Bailey, perfeito no andamento e variações; e Smith, evidentemente, fazendo seu órgão elétrico elevar-se como é da natureza do clássico instrumento.

Mandando às favas o preconceito com o órgão, até então espécie de primo pobre do acordeão ou da autoharp, Smith tornou o instrumento cool e, de quebra, influenciou uma constelação de organistas de jazz, incluindo Jimmy McGriff, Don Patterson, Richard "Groove" Holmes, Joey DeFrancesco, Tony Monaco e Larry Goldings, além de tecladistas de rock como Jon Lord, Brian Auger e Keith Emerson. “Back...” é um disco pop por natureza, desde a descontraída capa, que contrariava as taciturnas artes da Blue Note (Smith em um galinheiro acompanhando de um cão galgo), até a sua sonoridade inovadora, que conversa com a música pop, sendo um dos grandes responsáveis por essa fusão. Para Smith, no entanto, este resultado era mais do que natural: bastava tocar seu órgão para, consequentemente, tocar a alma das pessoas. 

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FAIXAS:
1. “Back At The Chicken Shack” (Jimmy Smith) - 8:00
2. “When I Grow Too Old To Dream” (Hammerstein/Romberg) - 9:59
3. “Minor Chant” (Stanley Turrentine) - 7:30
4. “Messy Bessie” (Smith) - 12:30

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Jimmy Smith - “Back At The Chicken Shack”


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Grant Green - "Green Street" (1961)



“A qualidade e a quantidade de novos talentos que surgiram no jazz moderno nos últimos anos colocaram muitos dos críticos em uma situação curiosa. O empilhamento de superlativo em cima de superlativo acabou por construir uma montanha perigosamente precipitada. Depois de terem saudado a novidade mais brilhante e a mais notável, que palavras você deixa para quando surge um Grant Green?”
Leonard Feather, crítico e autor da "Nova Enciclopédia do Jazz", em texto da contracapa original de "Green Street"

Todo jazzista que se prezasse nos anos 50/60 sabia que o selo Blue Note era um nível maior a ser atingido. Não que outros como Prestige!, Verve, Atlantic, Columbia ou Savoy também não fossem objeto de desejo de músicos da época. Mas a Blue Note era um ápice. Era como se todos esses selos fossem grandes clubes da primeira divisão, mas aquele, comandado por Alfred Lion, era o campeão. Portanto, pertencer ao plantel da Blue Note significava ser um craque ou aspirante a isso. Fora os já consagrados, cuja camiseta já os estava esperando quando contratados, para estar nesse seleto time havia de se provar que merecia vesti-la. O jovem guitarrista Grant Green, passou, em 1961, aos 26 anos, por aquilo que em futebol se chama de “peneira”. Vindo do fraseado alegre e ligeiro do boogie-woogie, ou mostrava serviço nos primeiros lances ou estava fora. Claro que o talentoso Green não decepcionou, abrindo sua trajetória na gravadora marcando um golaço com “Grant's First Stand”, daquele ano.

Porém – e isso é característica dos grandes atacantes – Green era inquieto. Tanto que, naquele mesmo ano, além de gravar outros dois álbuns por selos alternativos ("Green Blues", pela Muse, e "Reaching Out", pela 1201 Music), ainda surpreenderia com outra jogada de mestre: ”Green Street”. Acompanhado por Ben Tucker, no baixo, e Dave Bailey, bateria, ele aproveita o enxuto formato de trio para destrinchar toda sua técnica apurada nos bares de St. Louis, quando foi descoberto por um embasbacado Lou Donaldson. Não à toa a surpresa do saxofonista, haja vista que Green era aprendiz de be-bop através do sopro de Charlie Parker e admirador da leveza cool de outro senhor do sax, Lester Young. “No. 1 Green Street”, que abre o disco de maneira bem didática e metalinguística, mostra um guitarrista dono de seu estilo, que mescla a herança dos mestres do sax com a influência dos “professores” do seu próprio instrumento, Charlie Christian e Jimmy Raney. O que resulta é um blues suingado em que Green desfila sua variada técnica e seus modos, como as repetições cíclicas de extrema perfeição e os paralelismos de acordes.

A sequência à abertura é muito bem articulada com um clássico: “'Round About Midnight”. Se já é difícil estragar este standard de Thelonious Monk, dá pra imaginar o que esta vira nas mãos abençoadas de Grant Green. Ele imprime groove ao sentimental tema, não sem, claro, dedilhar tanto com os dedos quanto com o coração. Das melhores versões do famoso tema. “Grant's Dimensions”, logo em seguida, assim como o nome sugere, é um hard-bop animado em que o seu autor perscruta os caminhos que o levariam, não longe dali, ao refinamento modal de “Idle Moments” (1963) e “Matador” (1964).

Outra autorreferenciável, “Green With Envy” repete a fineza do fraseado e do toque, limpo e convidativo. Para quem se criou nos barrelhouses do Meio-Oeste, articular os improvisos rápidos e precisos como o desta faixa é moleza. Aliás, corrigindo: Grant Green faz parecer fácil. Tanto ele quanto seus companheiros, como Tucker, que engendra um solo blueser da mais alta qualidade, e Bailey, que também não desperdiça seu momento de brilho, mostrando habilidade ao dialogar com a guitarra logo em seguida. As alamedas coloridas do mais cintilante verde chegam ao final com outro emblema do cancioneiro jazzístico transformado em um eficiente jazz bluesy. “Alone Together” ganha levadas e combinações típicas do saxofone, só que no timbre das cordas de uma guitarra.

Com lugar garantido no escrete da Blue Note, Green, parafraseando a gíria do futebol, era daquelas que jogavam em várias posições. Ele ainda desbravaria muita coisa antes da sua precoce morte em 1979, aos 44 anos, de ataque cardíaco. A infinita capacidade do músico o sabia fazer aproveitar com a mesma fluidez o jazz modal, o latin-jazz e o jazz-funk. E assim como os grandes craques, sofreu influência, mas também influenciou. Mark Knopfler e Stanley Jordan são dois cujo estilo de dedilhado da guitarra não deixa dúvidas de que o espírito de Green passou por aquelas cordas. Coisa de craque, cujos gramados são não apenas o seu campo, mas sua casa. Verdes, onde ele sempre morou.

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FAIXAS:

1. “Green Street” - 07:20
2. “'Round About Midnight” (Bernie Hanighen/Thelonious Monk/Cootie Williams) - 07:03
3. “Grant's Dimensions” - 07:56
4. “Green With Envy” - 09:46
5. “Alone Together” (Howard Dietz/Arthur Schwartz) - 07:12

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Daniel Rodrigues

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Horace Silver - “Song for My Father” (1964)



“Nunca houve um pensamento consciente sobre a introdução de Horace Silver. Nós escrevemos essa linha de baixo brasileira e quando o baterista Jim Gordon a ouviu, ele tocou suas figuras. Quanto à linha de piano, acho que a ouvi em um álbum antigo de Sergio Mendes. Talvez seja onde Horace também ouviu.” 
Donald Fagen, sobre a composição de “Rikki Don't Lose That Number”, da Steely Dan

Para ouvidos atentos, a música pop é uma porta para se conhecer coisas magníficas do passado. O natural processo de reelaboração que o rock e seus subgêneros promovem desde os anos 50 seguidamente processam ideias trazidas anteriormente na música clássica, na vanguarda e outros estilos. O jazz é uma destas fontes inesgotáveis de proveito para a música pop. Dois bons exemplos disso são “Groove is in the Heart”, sucesso nos anos 90 da tecno-soul Deee-Lite, cujo riff tiraram de “Bring Down the Birds", que Herbie Hancock fez para a trilha sonora de “Blow Up” (1967), ou “Human Behaviour”, da Björk, que sampleia “Go Down Dying”, de Quincy Jones & Ray Brown Orchestra, presente na trilha de “The Adventures” (1970).

Quanto mais vai se recuperando obras antigas no jazz, mais vão se encontrando os efeitos que causaram. Caso de “Song for My Father”, música que dá título ao clássico disco do pianista norte-americano Horace Silver, de 1964. Quem a escuta após ter conhecido “Rikki Don't Lose That Number”, um dos sucessos da Steely Dan, que pega emprestada sua base de dois tempos de dois acordes, acaba por ter-lhe ainda mais consideração. O brilhante tema de Silver, por sua vez, pega carona na música brasileira tanto na linha de piano quanto no ritmo latino, haja vista a influência que a bossa nova já exercia no cenário musical norte-americano àqueles idos.

O disco, entretanto, não se resume à faixa-título. Ou seja: consegue ser tão bom quanto, num show de habilidade de Silver e seu quinteto – o ótimo Carmell Jones, no trompete; o referencial Joe Henderson, no saxofone tenor; um fabuloso Teddy Smith, no baixo; e igualmente talentoso Roger Humphries, na bateria. Além desta, em que a turma desfila um jazz modal entre o samba e o bluesy de alta elegância e que traz um dos riffs mais célebres do jazz moderno, há outras joias irreparáveis – lapidadas, aliás, pelas mãos do engenheiro de som oficial da Blue Note, Rudy Van Gelder. A animada “The Natives Are Restless Tonight” é uma delas. É Jones quem dá a largada dos solos, mas Henderson, talento da geração de grandes tenoristas como John Coltrane e Sonny Rollins, é quem vem para detonar. Depois, o próprio Silver manda um improvisa com vigor sobre a cama muito bem posta por Humphries e Smith, os quais deixam suas marcas ambos também com solos em separado.

Irmã de “Song...”, “Calcutta Cutie” traz praticamente a mesma base da faixa inicial, dotando o disco de uma clara coesão conceitual. Porém, as semelhanças não são simples ou rasas. Numa atmosfera muito mais enigmática – sustentado em boa parte pela bateria levada no chipô e no tambor pela bateria e pelo fraseado em 2/2 do baixo –, nesta é o próprio band leader quem se encarrega de estabelecer todo clima entre o sóbrio e o misterioso, com algumas levadas de rhythm & blues pelo meio, que logo voltam à origem indiana que norteia o tema.

Sem fugir muito do clima, “Que Pasa” é outro jazz modal cadenciado, o que dá aos músicos o espaço-tempo ideal para esmiuçarem suas intenções. Silver, com domínio de ponta a ponta; Humphries, aplicando variações de timbre e ritmo; Henderson, intercalando intensidade e doçura como lhe é característico; e Smith, segurando a cadência com alma blues. De autoria de Handerson, “The Kicker”, por sua vez, é um empolgado hard-bop que privilegia os sopros, tanto dele quanto de Jones, especialmente inspirado nesta. Humphries, no entanto, um pouco antes de encerrar a faixa, arrasa nas baquetas.

Depois de tanta perícia com os instrumentos, nada mais adequado que terminar um álbum desses com uma balada romântica. Caso de “Lonely Woman”, em que o piano de Silver é como um pulverizar de sementes sobre a terra, semeando flores e sons. Somente ele solando, somente o dedilhar sobre as teclas conduzindo. Se outras faixas ganharam maior intensidade, nesta toda energia se concentra e emana do coração. Comparando-a com a de mesmo título de Ornette Coleman, prenúncio do free-jazz, que remete a uma "solitária mulher" intempestiva pela condição, esta, ao contrário, curte a paixão na solidão. Um encerramento digno de um dos melhores álbuns do jazz dos anos 60.

Donald Fagen, da Steely Dan, talvez não admita totalmente a inspiração que Horace Silver lhe deu. Não importa. O fato é que, da mesma ideia sonora, surgiram duas músicas excelentes: “Song...” e ““Rikki...”. A de Silver, contudo, tem a vantagem de ter sido escrita primeiro. Se o jazz continuar sendo usado de fonte pela música pop como neste caso, melhor para a música pop, que terá base em algo de qualidade. Para o jazz, nada muda: fica apenas o elogio de ser reafirmado como o maior gênero musical dos Estados Unidos, título ao qual Horace Silver deu uma boa contribuição com este memorável disco.

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FAIXAS:
1. "Song for My Father" – 7:17
2. "The Natives Are Restless Tonight" – 6:09
3. "Calcutta Cutie" – 8:31[10]
4. "Que Pasa" – 7:47
5. "The Kicker" (Joe Henderson) – 5:26
6. "Lonely Woman" – 7:02
Todas as composições de autoria de Horace Silver, exceto indicada

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Horace Silver - “Song for My Father”


Daniel Rodrigues