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domingo, 14 de agosto de 2016

ÁLBUNS FUNDAMENTAIS ESPECIAL DIA DOS PAIS - Elis Regina - "Elis" (1980)







COMUNHÃO



“A vida é boa te digo eu/
A mãe ensina que ela é sábia/
O mal não faço, eu quero o bem/
A nossa casa reflete comunhão.”
da música “Comunhão”,
de Fernando Brant e Milton Nascimento,
criada para o musical Missa de Quilombo, 1982



Meu pai e eu éramos muito ligados. Nem todos os filhos sentem-se assim ligados aos seus pais. Muitos de nós passamos parte da vida lamentando o berço familiar, a descendência e tudo o que existe dentro de uma família.

Comigo não foi assim.

Cresci até os 4 anos com um pai muito feliz, animado e parceiro de aventuras. Cresci no Centro da cidade de Porto Alegre após nascer no Bom Fim. Nas imediações do Centro eu e ele íamos ao parquinho que ficava no Largo da Epatur. Eu viajava nos discos voadores, andava de charrete e montava nos cavalinhos do carrossel. Ele ficava me cuidando e fotografando ao mesmo tempo.

Meu pai curtia revelar as imagens e organizar nos álbuns, que naquele tempo eram feitas em câmera com negativo quadrado e a imagem final dependia das condições técnicas do fotógrafo – ele tinha talento! Todas as fotos aprovadas iam para um álbum-pasta que por anos nos acompanhou. Dono de um gênio forte, por vezes temperamental, sempre se percebia amor nele e alegria nestes momentos.

Assim cresci: parte saindo rumo aos parques, praças e ruas do bairro e por outras tive meus momentos de estar em casa. Lá brincava comigo de gravar a voz. Eu adorava. Vez em quando cantava ou contava do meu dia na escola.

Faz um tempo que recebi uma “cutucada”, como se diz no dialeto estranho das redes sociais, dos editores do ClyBlog para escrever sobre uma das maiores cantoras brasileiras, Elis Regina. O que isso tem a ver comigo e com a minha relação paterna? Tudo! Mas confesso que o convite me deixou atordoada, sem saber por onde começar. Elis está em muitos momentos da minha vida representando transformação.

Eu e Marcelo na abertura da exposição
A Aventura de Criar - Galeiria Duque, maio 2015
Comecei escutando Elis Regina em casa. Meu pai foi seu fã até o dia em que recebeu, junto com milhões de brasileiros, a notícia da sua morte. No auge da carreira artística, quando Elis já havia se consagrado num grande nome da música, uma estrela de maior grandeza. Meu pai não a perdoou por sair de cena tão cedo. Neste período, em plena década de 80, escutávamos sem parar os LPs da Elis em nossa vitrola CCE, que era muito bem equipada com duas caixas de som grandes para uma família de classe média. 

Depois de tantas audições no lar, eu já sabia as letras, os tempos e as paradas que a cantora fazia. Então, apresentava a dublagem nas reuniões de final de ano e nos aniversários à família. E me achava a segunda melhor cantora daquele momento por conta dessa total sintonia que tínhamos. Eu tinha de 7 para 8 anos de idade.

Nunca me rendi somente à voz, mas a toda atmosfera como intérprete que Elis criava para cada canção. A emoção, a quebra das palavras, o respirar das frases, a cadência de cada arranjo tornava cada faixa do LP única. Realmente algumas canções são “inescutáveis” se a intérprete não for Elis Regina.

O LP que mais tocou em mim é este, de 1980, que tem as faixas inesquecíveis: “Rebento” de Gilberto Gil; “Nova Estação“ de Luiz Guedes e Thomas Roth; “O Medo de Amar é o medo de ser livre” de Beto Guedes e Fernando Brant; “Aprendendo a jogar” e “Só Deus é quem sabe”, ambas de Guilherme Arantes; além da arrebatadora “Trem Azul”, de Lô Borges e Ronaldo Bastos, hino em minha vida. Quem escutava Elis recebia a melhor produção musical do momento.

Acervo de Elis da CCMQ
Jornal Zero Hora - 22/09/2005
Fui compreender seu universo e sua enorme contribuição a jovens compositores anos mais tarde, quando, adolescente, lendo matérias, vendo artigos e escutando amigos me dei conta do movimento, da visibilidade e da força que ela deu a uma galera referência até hoje na música brasileira.

O tempo passou e meu pai acabou perdoando a morte de Elis Regina, voltou a escutar sua voz e vez em quando ele comentava: “Mas ela canta como ninguém mais poderia interpretar essa canção!”, e então se recolhia ao silêncio respeitoso de escutá-la.

Em 2005, tive a alegria de ser convidada por Sergio Napp, então Diretor da Casa de Cultura Mário Quintana, a criar o Acervo Elis Regina da CCMQ. Nesta época, mergulhei em todas as informações que recolhemos de acervos doados e de livros editados sobre ela. Lembro-me do impacto que tive com a análise do mapa astral de Elis, por um dos maiores astrólogos do país, Antônio Carlos “Bola” Harres, que anos mais tarde foi meu cunhado e que apresenta a configuração astral de Elis de uma forma que compreendemos os conflitos, o fluxo das emoções e as nuances talentosas da cantora.

Elis era uma mulher com força impulsiva e, ao mesmo tempo, com alta sensibilidade. Opostos atuando sempre ao mesmo tempo. Essa análise me ajudou a compor com os arquitetos Carlos e Lizete Jardim as cores, a atmosfera e a forma de apresentar os conteúdos do Acervo. Nesta época também conheci mais profundamente o repertório de Elis e a sua estreita relação com compositores que embalaram minha mesma infância, tais como: Milton Nascimento/Fernando Brant, Gil, Beto Guedes, Guilherme Arantes, Ronaldo Bastos, Lô Borges, João Bosco/Aldir Blanc, Ivan Lins, entre outros.

Durante todo o tempo de pesquisa sobre o Acervo meu pai me incentivou com orgulho de ver aquela escuta de anos atrás se transformar em um espaço físico homenageando a intérprete e a cantora, que mesmo sendo um dos maiores nomes da música brasileira, se achava brega perto de outras cantoras da sua época, a exemplo de Rita Lee.

Meses após termos aberto o Acervo Eis Regina, fui apresentada por Luiz Carlos Prestes Filho em Porto Alegre a Fernando Brant, compositor e letrista da mais alta qualidade musical e humana. Ele ficou muito feliz com o Acervo, que conheceu numa vista a CCMQ quando estava na fase de implementação da sede da União Brasileira de Compositores na capital gaúcha.  Ficamos amigos.

Eu e Fernando Brant na inauguração do UBC
em Porto Alegre em 2006
Em 2011, numa visita a Belo Horizonte, cidade onde Fernando morava, fomos ao show de Milton Nascimento que abria o novo espaço da cidade. Fazia poucos meses que Fernando havia participado do projeto Coleção Mario Quintana para a Infância, volumes IV e V, realizado por minha empresa Aprata. Todo faceiro com a chegada da Coleção (que levei pessoalmente a ele em agradecimento por tanta generosidade), ele me recebeu com esse convite irrecusável: “Vamos assistir o Bituca, Leo? Ele fará um show no teatro recém-inaugurado aqui após reforma pelo SESC e vai homenagear a Elis. Você tem que estar lá porque vais representar Porto Alegre nesse momento. Vamos?” Como é que eu diria não?

Fomos então direto para o teatro e lá chorei por 90 minutos do show, segurando a mão do Fernando, que emocionado com a audição de suas composições, enchia os olhos de água e dava longos suspiros sorrindo. Um dos maiores presentes que recebi da vida: reunir neste dia os compositores e a carga musical que tenho em minha bagagem relacionada a Elis.

Depois desse dia, só falei com ele por telefone e e-mail. Foi a nossa despedida amiga em grande estilo envolvidos pela atmosfera musical que ele construiu de tanta beleza e com a homenagem à mulher que, segundo ele, foi a maior incentivadora da carreira de todo aquele Clube da Esquina e os outros tantos desgarrados que até então buscavam uma oportunidade para persistir na música.

Quando voltei a Porto Alegre, contei a meus pais e os dois se emocionaram muito com essa vivência em Beagá. Tentei escrever sobre todos estes momentos, mas não conseguia elencar os fatos, porque a emoção me invadia e desorganizava a escrita. Comecei a escrever o texto com meu pai e Fernando ainda vivos. Porém foi somente com a partida de ambos, Fernando em junho de 2015, e meu pai, em junho de 2016, que me senti serena para contar essa história de total sintonia entre nós.

Obrigado meu pai por não proibir a escuta, mesmo doendo demais a ausência de Elis.

Obrigado Fernando por essa amizade inesquecível.

Obrigado Elis por esse sentimento de comunhão, por trazer até todos nós em forma de Arte - essa vibração prateada, brilhante e sonora, que foi sua passagem por esse planeta e que tanto nos liga amorosamente.

Saudade de tudo que vivemos e hoje é memória viva em mim!

Gratidão, Amor e Luz para vocês.


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Elis Regina - "Aprendendo a Jogar" - programa Fantástico (1980)

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FAIXAS:
1. "Sai Dessa" (Ana Terra/Nathan Marques)
2. "Rebento" (Gilberto Gil)
3. "Nova Estação" (Thomas Roth/Luiz Guedes)
4. "O Medo de Amar É o Medo de Ser Livre" (Beto Guedes/Fernando Brant)
5. "Aprendendo a Jogar" (Guilherme Arantes)
6. "Só Deus É quem Sabe" (Guilherme Arantes)
7. "O Trem Azul" (Lô Borges/Ronaldo Bastos)
8. "Vento de Maio" (Telo Borges/Márcio Borges)
9. "Calcanhar de Aquiles" (Jean Garfunkel /Paulo Garfunkel)

faixas bônus do relançamento em CD 
1. "Tiro ao Álvaro" (Adoniran Barbosa / Osvaldo Molles) – Com Adoniran Barbosa
2. "Se Eu Quiser Falar com Deus" (Gilberto Gil)
3. "O que Foi Feito Devera (de Vera)" (Milton Nascimento/Fernando Brant/Márcio Borges) – Com Milton Nascimento
4. "Outro Cais" (Marilton Borges/Duca Leal) – Com Os Borges

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OUÇA O DISCO

quinta-feira, 27 de abril de 2023

Elis Regina - "Falso Brilhante" (1976)

 




Ábuns Fundamentais ClyBlog - Elis Regina - Falso Brilhante
"Você não sente, não vê mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo
Que uma nova mudança em breve vai acontecer
O que há algum tempo era novo, jovem
Hoje é antigo
E precisamos todos rejuvenescer"
da letra de "Velha Roupa Colorida"



Acho que ninguém em perfeito juízo discorda de que Elis Regina foi uma das melhores, senão a maior cantora brasileira de todos os tempos. Logicamente, em pleno gozo de minha sanidade, me junto a esse coro quase unânime entre os apreciadores de música neste país. Embora admire seu repertório, é uma artista da qual não domino informações sobre sua obra. Talvez pelo fato de que alguns de seus clássicos  apareçam em maus de um formato, em mais de um álbum, com parceiros diferentes, etc. Tem "Águas de Março", com Tom, sem Tom, ao vivo, no estúdio, alegre, emburrada..; tem "Tiro ao Álvaro", com Adoniram, sem Adoniram, no disco solo, dando risada no do programa de TV; tem "Bêbado e a Equilibrista", bêbada, sóbria, equilibrada, caindo... e nisso, ainda que idolatrando a cada uma dessas versões, cada interpretação, eu sempre tão interessado em datas, set-lists, álbuns,  etc., nunca me esforcei em saber onde se localizavam essas músicas na discografia de Elis Regina.

Só que de uns tempos pra cá, vinha observando a constante referência a um álbum específico e ele, então,  passou a me chamar atenção. "Falso Brilhante" era destacado em sites como um dos melhores discos de Elis, aparecia em listas de melhores discos brasileiros, era mencionado como influência por algum músico da minha preferência, era amplamente reverenciado aqui e acolá, e aí que fui atrás de mais informações sobre o tal disco.

Era o disco de "Fascinação", um dos maiores clássicos do repertório da cantora, numa interpretação inesquecível de uma delicadeza precisa e emocionante. Mas também era o disco de "Como Nossos Pais", o rock de Belchior que tentava dar uma sacudida numa juventude estagnada, e que Elis interpretava com uma força e uma intensidade absurdas. Inigualáveis! Sim era Elis cantando rock! E não era o único: "Velha Roupa Colorida", também  de Belchior, e também sobre atitude, era outra canção carregada de rock'roll e que, igualmente Elis depositava garra, potência, vibração, chegando a rasgar a voz, dando tudo de si, num dos melhores momentos do álbum. Mas há  outros pontos altos: "Gracias a la Vida", de Violeta Parra parece carregar a força da resistência da mulher latina contra os regimes autoritários que prevaleciam aqui e no Chile, terra da autora. Bem como "Los Hermanos", do argentino Atahualpa Yupanqui, uma espécie de convocação à união em nome da mais bela "irmã", a liberdade.

E tem ainda três de João Bosco com Aldir Blanc, "Um por todos", "Jardins de Infância" e "O Cavaleiro e os Moinhos", sempre com a sonoridade rica e aquele tom ácido característico da dupla; e pra fechar ainda, uma versão de arrepiar de "Tatuagem" de Chico Buarque, numa releitura ímpar, na interpretação de Elis.

Alguns afirmam que "Falso Brilhante" seria o disco em Elis que cantava rock, e se formos parar para analisar, não está muito longe da verdade: as duas de Belchior, logo de saída; "Quero", muito Beatles; a releituras de Bosco e Blanc, pungentes e carregadas nas guitarras; e mesmo as duas versões dos hermanos, andinos e platenses, que exploram, combinam e incorporam as alternativas e possibilidades de outros ritmos e nacionalidades, como tão bem costuma fazer o rock'n roll.

Se "Falso Brilhante" é o disco rock de Elis, acho que, possivelmente, deva ser por isso que gosto tanto dele. O brilho verdadeiro de uma estrela. Um diamante cuidadosamente lapidado. Uma verdadeira joia musical.

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FAIXAS:

1. Como Nossos Pais (Belchior)
2. Velha Roupa Colorida (Belchior)
3. Los Hermanos (Atahualpa Yupanqui)
4. Um Por Todos (João Bosco/Aldir Blanc)
5. Fascinação (Fermo Dante Marchetti, Maurice de Féraudy. Versão: Armando Louzada)
6. Jardins De Infância (João Bosco/Aldir Blanc)
7. Quero (Thomas Roth)
8. Gracias A La Vida (Violeta Parra)
9. O Cavaleiro E Os Moinhos (João Bosco/Aldir Blanc)
10. Tatuagem (Chico Buarque)

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Ouça:

Eis Regina - Falso Brilhante (1976)


por Cly Reis

quinta-feira, 7 de maio de 2020

Rita Lee - "Lança Perfume" (1980)



“Se Deus quiser um dia eu viro semente
E quando a chuva molhar o jardim, ah, eu fico contente
E na primavera vou brotar na terra
E tomar banho de sol, banho de sol, banho de sol, sol.”
Rita Lee, da música "Baila Comigo"

São poucos os discos que sei as letras de cor e as canto corretamente, ou seja, como ela foi escrita. Geralmente curto a melodia em alguns, noutros sei parte da letra e na maioria das vezes troco a letra de todos e invento harmonias paralelas de vozes e sons ao que estou escutando. Cresci assim e já aceitei que é uma maneira pessoal minha de escuta.

Porém, o disco “Lança Perfume” é um desses discos que faz parte da minha história musical de vida. Ganhei o LP por muita insistência. Enchi o saco da minha avó paterna Hedy que, depois de vencida, deixou uma quantia alta na loja de discos dentro de um supermercado, que ficava na rua em que morávamos, em meados dos anos 80. Eu estava fazendo aniversário de 7 anos e esse foi o meu presente. Um LP recém-lançado da Rita Lee! Isso era uma fortuna numa época em que LPs eram um investimento alto para famílias de classe média. Minha avó, católica e muito reservada a determinadas sonoridades, ficou chocada quando um dia entrou na nossa casa e me viu cantando a faixa-título “Lança Perfume”. Comentou com a minha mãe: “Mas, Tia Anita, ela está cantando uma música que diz 'de quatro no ato'?!” Constrangida por não ter sabido o conteúdo das canções e ter me dado o LP, teve a resposta da minha mãe Anita, que sempre foi libertária e ousada: “ Posso imaginar o choque da vó, pois, um ano antes, ela havia me dado o disco do Pde. Zezinho!

Agradeço até hoje o presente da vó, porque, lá em casa, o LP se tornou a playlist das nossas manhãs. Minha irmã, que é 4 anos mais nova do que eu, também capricorniana como a Rita, recorda até hoje com alegria que praticamente furamos o bolachão de tanto que escutávamos. Ele passou a ser utilizado em playback em festas de aniversário da nossa família e nas festas de Natal, sempre com aplausos entusiasmados dos familiares.

A Rainha do Rock Brasileiro, que comemora 40 anos
de seu "Lança Perfume"
Cada canção para mim é como um hit, está no universo imaginário da minha geração e estourou em mercados da América do Norte e Europa. Imaginem: estamos falando de 1980 e, nessa época, o mundo era menos interligado, não tínhamos essa rapidez de comunicação e nem as plataformas compartilhadas para promover os discos. Mesmo assim, é indissociável pensar em música nos anos 80 sem citar esse disco da Rita. Ela é a roqueira que nos representa desde antes e desde então.
Quando soube essa semana de uma LIVE BATE PAPO sobre os 40 anos desse LP, que acontecerá hoje, 07/05, às 19h30, no @litaree_real, mediado por Guilherme Samora (que assessora a Rita faz uns anos) e com as participações de Mel Lisboa (que fez a Rita no teatro) e outros convidados, tais como Pedro Bial, Rita Cadillac e Ronnie Von, minha vivência emocional com esse disco veio à tona e então decidi compartilhar com vocês.

Elis com o figurino inspirado
em Rita Lee
Rita Lee sempre foi um exemplo para mim e tenho a gratidão de através dos anos de escuta e de leitura (com os livros que ela tem lançado recentemente) saber mais das ideias, da vida e do que é essencial para ela. Rita com seu talento revolucionou a história da música brasileira, inspirou artistas e mulheres da sua geração e me inspira diariamente. Faz uns anos soube que Elis Regina teve uma amizade muito íntima com ela quando foi morar e produzir em São Paulo. Em uma entrevista, Elis disse ter visto Rita “lamber o microfone” e completou: “Passei anos da minha vida com vontade de fazer isso e com medo de ser eletrocutada”. Há também uma história sobre o figurino do último show de Elis, que foi copiado do figurino que é capa desse LP: o macacão transpassado com plissado. Elis viu Rita vestindo-o e ficou louca para ter um igual, porque Rita tem essa porrada de estilo saindo por todos os poros. Elis vestiu um macacão semelhante assinado por Clodovil em “Trem Azul”, seu último show, em 1981, realizando a vontade de chegar próxima a estética da Rainha do Rock Brasileiro.

Eu continuo escutando e lendo Rita. Uns anos atrás, quando adotamos uma gatinha ruiva que chegou em nossa casa para nos dar muito amor e alegria, imediatamente pensei em Rita e ela ganhou o nome de Lee, que já se foi para colorir o céu dos lovecats. Rita é parte de 40 anos da minha existência e isso é muito forte e lindo. Quero continuar tendo saúde para gozar no final e, quem sabe, fugir para Shangrilá com o meu Roberto de Carvalho (Daniel Rodrigues) e brotar para um banho de Sol divino!



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FAIXAS:
1. "Lança Perfume" - 05:15
2. "Bem-Me-Quer" - 04:19
3. "Baila Comigo" (Rita Lee) - 05:30
4. "Shangrilá" - 02:53
5. "Caso Sério" - 05:31
6. "Nem Luxo, Nem Lixo" - 05:05
7. "João Ninguém" - 03:38
8. "Ôrra Meu!" (Rita Lee) - 03:56
Todas as composições de autoria de Rita Lee e Roberto de Carvalho, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:
Rita Lee - "Lança Perfume"

Leocádia Costa

segunda-feira, 31 de agosto de 2020

ÁLBUNS FUNDAMENTAIS ESPECIAL 12 ANOS DO CLYBLOG - Milton Nascimento & Lô Borges - "Clube da Esquina" (1972)


Um clube na esquina das ruas Paraisópolis e Divinópolis, em Beagá


“Memória de tanta espera
Teu corpo crescendo, salta do chão
E eu já vejo meu corpo descer
Um dia te encontro no meio
Da sala ou da rua
Não sei o que vou te contar”.
"Ao que vai nascer" – Milton Nascimento e Fernando Brant


Muitas histórias cercam a criação do LP "Clube da Esquina", e cada uma delas nos mostra esse universo que jovens músicos e compositores deixaram como parte do seu legado artístico a todos nós.

Vou contar brevemente as histórias que me ligam a esse grupo e às canções.

Na minha lembrança musical, comecei a escutar Minas através de Milton Nascimento e Fernando Brant muito pequena. Meus pais tinham uma maior predileção por Chico e Caetano, mas Milton era alguém que eles admiravam através das canções interpretadas por Elis Regina, que é guardada por Milton e Fernando, integrantes desse grupo de uma forma muito afetiva. Daí, através de intérpretes como Joana, conheci "Nos Bailes da Vida", e essa canção entrou para a minha vida. Sempre que transformava a sala do nosso apartamento em palco, "Nos Bailes da Vida", de Fernando Brant e Milton Nascimento, me levava às lágrimas. Emocionava profundamente uma criança de 7 anos.

Museu Clube da Esquinsa, entre a Paraisópolis
 e Divinópolis, em Santa Tereza (BH)
Elis cantava em seu repertório muitas canções de Milton e seus parceiros de Clube e eu, muito atenta às criações musicais, sempre olhava quem eram o compositor e o letrista. Fui identificando o jeito de cada um deles, ora diverso, ora profundamente lírico, e daí Ronaldo Bastos e "Trem Azul" entraram para a minha vida. "Cais" era uma das canções prediletas, que constava no disco de 78 de Elis, ao qual eu que sempre confundi letras, troquei palavras, mas sabia tudo de cor. "Cais" era outra canção que fazia a minha plateia imaginária delirar, no volume 10, do aparelho três em um da CCE que tivemos.

Com o tempo fui escolhendo escutas de outros mineiros. Vieram os irmãos Borges, descobri Flávio Venturini e o maestro Wagner Tiso e meu pai comprou o disco “O Som Brasileiro de Sarah Vaughan”, com a participação de Milton, abrindo o LP cantando com a Diva Sarah "Travessia" ("Bridges"). Este disco furou de tanto escutarmos lá em casa. Com o tempo e a chegada do Daniel em minha vida, conheci, vendo-os tocar ao vivo, Toninho Horta e Robertinho Silva, que estavam em torno desse clube.

Capa do livro
"Coração Americano"
"Minha parceria com Bituca nasceu de uma amizade que começou na Galeria do Maleta, em Belo Horizonte, num bar chamado Oxalá. Ficamos muitos amigos, mas depois Milton foi para São Paulo. Eu sempre ia visitá-lo e nunca tinha pensado em fazer letra para música, embora curtisse muito as coisas que o Bituca fazia com o Márcio Borges. Numa dessa visitas a São Paulo, ele me mostrou uma música e disse que eu tinha que escrever a letra. Não queria, mas acabei levando uma fita para Belo Horizonte e escrevi a letra de 'Travessia', sem nenhuma pretensão”, contou Fernando Brant, parceiro de Milton, ao Jornal de Música em 1976. Esse trecho foi compilado do livro maravilhoso que comprei em Ouro Preto, publicado pela PRAX editora, “Coração Americano: 35 anos do álbum duplo Clube da Esquina”, em 2008.

Daí, sem imaginar que algo dessa grandeza fosse acontecer, a vida me apresenta uma chance de conhecer o Fernando Brant. Isso aconteceu em 2004, quando eu estava produzindo uma edição do Rumos Itaú Cultural em Porto Alegre. Fernando não participou desse evento, mas o seu amigo, o pesquisador Luiz Carlos Prestes Filho, sim. Por razões óbvias – já que fui batizada com o nome da sua avó, mãe de Prestes, Leocádia – ficamos amigos, trabalhamos juntos em algumas ações culturais aqui na cidade e, anos mais tarde, em 2008, o próprio Luiz Carlos me comentou que Fernando estaria aqui para lançar uma unidade da União Brasileira de Compositores (UBC) na capital. Meu nome havia sido cogitado para gerenciar o escritório, ele queria me conhecer e eu fiquei chocada e feliz com a possibilidade.

Nos conhecemos numa atividade de lançamento da UCB muito bonita e nossa amizade já antiga, pois eu o escutava desde pequena, se estreitou. Fernando me trouxe Minas, me nutriu de mais canções, de novos intérpretes, ampliou minha visão do Clube da Esquina. Participou do projeto Coleção Mario Quintana em 2011 produzido por mim e minha irmã, na Aprata sobre a obra do poeta Mario Quintana, a quem visitou numa das vindas a Porto Alegre. Através do Fernando, conheci pessoalmente Ronaldo Bastos e Edmundo Souto, além de ter a oportunidade de assistir, em 2011, a um show que reabriu o Cine Palladium (SESC-MG) com Milton Nascimento ao vivo e convidados, em Belo Horizonte. Durante quase duas horas e meia de show, pude chorar enlouquecidamente, de mãos dadas com Fernando, igualmente emocionado, ouvindo a magnitude de Milton, apresentando seu repertório. Dentre as canções, muitas delas compostas por Fernando e Bituca (como ele chamava Milton), muitas interpretadas por Elis - eu ali sentada, ia sendo lembrada por Fernando, canção a canção, me dizendo as histórias que estavam guardadas em seu coração.

Foi um dos momentos mais belos que tive nessa vida. Um momento de total reconexão com as minhas raízes, de compreensão sobre a minha vida, sobre a nossa música e o que ela de fato representa na trajetória de cada ser humano brasileiro.

Fiz de Minas minha casa. É um estado ao qual sempre quero retornar. Gosto do clima, das pessoas, das sonoridades, dos prédios, das histórias e do sotaque que dá uma falsa impressão de timidez, mas é puro charme e singeleza. 

Fernando Brant e Milton Nascimento à época do Clube da Esquina

Esse clube aconteceu numa esquina, entre as ruas Paraisópolis e Divinópolis, em Beagá, aonde está mantida a atmosfera de empatia e encontro, parecendo que a qualquer momento eles irão se reencontrar, pegar o violão, tomar um chopp e fazer novas e velhas canções, entre risadas e comentários profundos sobre a nossa realidade brasileira. Este espaço físico e emocional do Clube da Esquina emana essa importância viva de cada músico em nossas vidas, da sua Arte e da sua gentileza em mostrar para todos nós suas inquietações. Eles tocam os nossos corações através dos corações que eles gentilmente compartilham, abrem e escancaram com a gente. Deixam a gente com mais coragem para se expor e mostrar que nem tudo é planejado, simplesmente, acontece. Trazem à tona essa força da canção brasileira, tão diversa e tão entrosada, que não se pode dizer qual gênero estamos escutando, porque em cada faixa muitas vozes se misturam, muitas energias impulsionam num só coro ânimo para viver.

Vi isso num coral de primeira infância num evento de educação que participei e compreendi o quanto Minas é agraciado com tanta música. Eles estão marcados na história de todas as gerações, para que cada indivíduo possa refazer sua vida, restabelecer seu equilíbrio e seguir em frente, pois “nada será como antes, amanhã”. 

A trilha do Clube da Esquina, seus compositores e intérpretes, estão gravados na trilha sonora da minha vida. Fernando foi um amigo que guardo no lado esquerdo do peito, com sua risada aberta e tempinho para um chopp, bate-papo e troca de e-mails rápidos, porque o melhor da vida é estar com os amigos presencialmente, sempre que possível.

A todos vocês a minha profunda gratidão.

”...mas  agora eu quero tomar suas mãos
Vou buscá-la onde for
Venha até a esquina
Você não conhece o futuro
Que tenho nas mãos...”
"Clube da Esquina nº 1" - Milton Nascimento, Lô Borges e Márcio Borges


por  L E O C Á D I A     C O S T A



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Documentário: "História do Clube da Esquina - A MPB de Minas Gerais"




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FAIXAS:
Disco 1
1. "Tudo Que Você Podia Ser" - Interpretação: Milton Nascimento (Lô Borges, Márcio Borges) - 2:56
2. "Cais" - Milton Nascimento (Milton Nascimento, Ronaldo Bastos) - 2:45
3. "O Trem Azul" - Lô Borges (Lô Borges, Ronaldo Bastos) - 4:05
4. "Saídas e Bandeiras nº 1" - Beto Guedes e Milton Nascimento (Milton Nascimento, Fernando Brant) - 0:45
5. "Nuvem Cigana" - Milton Nascimento (Lô Borges, Ronaldo Bastos) - 3:00
6. "Cravo e Canela" - Lô Borges e Milton Nascimento (Milton Nascimento, Ronaldo Bastos) - 2:32
7. "Dos Cruces"  - Milton Nascimento (Carmelo Larrea) - 5:22
8. "Um Girassol da Cor do Seu Cabelo" - Lô Borges (Lô Borges, Márcio Borges) - 4:13
9. "San Vicente" - Milton Nascimento (Milton Nascimento, Fernando Brant) - 2:47
10. "Estrelas" - Lô Borges (Lô Borges, Márcio Borges) - 0:29
11. "Clube da Esquina nº 2" - Milton Nascimento (Milton Nascimento, Lô Borges, Márcio Borges) - 3:39

Disco 2 
12. "Paisagem da Janela" - Lô Borges (Lô Borges, Fernando Brant) - 2:58
13. "Me Deixa em Paz" - Alaíde Costa e Milton Nascimento (Monsueto, Ayrton Amorim) - 3:06
14. "Os Povos" - Milton Nascimento (Milton Nascimento, Márcio Borges) - 4:31
15. "Saídas e Bandeiras nº 2" - Beto Guedes e Milton Nascimento (Milton Nascimento, Fernando Brant) - 1:31
16. "Um Gosto de Sol" - Milton Nascimento (Milton Nascimento, Ronaldo Bastos) - 4:21
17. "Pelo Amor de Deus" - Milton Nascimento (Milton Nascimento, Fernando Brant ) - 2:06
18. "Lilia" - Milton Nascimento (Milton Nascimento) - 2:34
19. "Trem de Doido" - Lô Borges (Lô Borges, Márcio Borges) - 3:58
20. "Nada Será Como Antes" - Beto Guedes e Milton Nascimento (Milton Nascimento, Ronaldo Bastos) - 3:24
21. "Ao Que Vai Nascer" - Milton Nascimento (Milton Nascimento, Fernando Brant) - 3:21


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OUÇA O DISCO

terça-feira, 15 de julho de 2025

Guinga e Lívia Nestrovski - show “Ramo de Delírios” - Bona Casa de Música - São Paulo/SP (18/06/2025)

 

“Um cara como esse só aparece a cada cem anos”.
Hermeto Pascoal, sobre Guinga

"Tranquilamente, uma das maiores vozes de sua geração”.
Arrigo Barnabé, sobre Lívia Nestrovski

A arte, como a vida, é ao mesmo tempo simples e complexa. Poderia enumerar diversas obras-de-arte ao longo da história que transitam entre estes dois polos, seja na literatura, nas artes visuais, no cinema, na dança ou na música. Fato é que, quando a gente se depara com esse aparente inconciliável e o presencia sendo realizado, sendo possível, sentimos que estamos diante de uma rara sublimação. De que estamos vivendo.

Numa aconchegante Bona Casa de Música, um improvável porão encravado numa zona residencial de São Paulo, não é exagero dizer que o show “Ramo de Delírios”, de Guinga e Lívia Nestrovski, aparentemente simples (violão e duas vozes, quando não apenas uma), palco com iluminação básica, sem aparatos de efeitos, foi, sim, um momento de encontro com a verdadeira arte. Assim como não é exagero nenhum dizer também que foi um dos melhores shows que já assisti, dessas belas surpresas que a arte (a vida) nos guarda.

Montado a partir de um repertório especialmente selecionado pela própria Lívia no cancioneiro de Guinga, a dupla não executou apenas: eles entregaram (como está na moda dizer) um espetáculo ao mesmo tempo vindo do coração de cada um, mas também do altíssimo nível profissional de ambos. Guinga dispensa apresentações: um dos gênios da MPB, violonista virtuoso, compositor raro, harmonista como poucos na música mundial. E ainda um excelente intérprete/cantor de suas músicas, assim como um letrista, que não deixa a dever em nada para seus clássicos parceiros Aldir Blanc e Paulo César Pinheiro que, claro, foram invocados durante o show.

Lívia e Guinga: simplicidade e grandiosidade no elegante palco do Bona

Já Lívia é daquelas cantoras completas. Sem medo de repetir o que Guinga falou durante o show: Lívia está na prateleira das grandes cantoras do Brasil, assim como Elis Regina. A comparação, que num primeiro momento pode parecer exagerada, vai se confirmando à medida que cada música é executada pelos dois: ele, ao violão e/ou voz de apoio; ela, em interpretações arrasadoras, de tirar o fôlego de qualquer um que a escute. Afinação exímia, timbre bonito, trânsito entre estilos, alcance de alturas pouco comuns e, o principal: ela é integrada à música assim como a música é integrada a ela. São, ambas, música e cantora, a mesma coisa. Como Elis.

Provas disso? O set-list inteiro. O começo não poderia ser mais emblemático com “Delírio Carioca”, parceria Guinga/Aldir que dá nome ao primeiro e temporão disco do compositor, dentista por mais de 30 anos e que somente no início dos anos 90 fez-nos o favor de voltar-se somente para a música. “No Rio: mar/ Ouço Newton assoviar/ Um Gershwin Clara Nunes/ Que faz vibrar feito flauta/ Os túneis”, dizem os versos iniciais da canção. O delírio é todo nosso no duo Guinga/Lívia, que transmitem ao público uma sintonia musical e espiritual, que só mesmo a arte maior pode proporcionar.

“Paulistana Sabiá”, que na versão original Guinga divide vocais com Mônica Salmaso, não perde em nada com Lívia. Ela, como diz Zé Miguel Wisnik, “que dá triplos saltos carpados na voz sem perder a naturalidade entoativa”. Mas o próprio Guinga impressiona com seu vocal marcadamente rouco numa melodia complexa, dessas difíceis de cantar. Aliás, essa característica, embora seja uma constante na obra de Guinga, não é problema nenhum para Lívia, como ficou claro noutras duas incríveis, misteriosas, dramáticas, delirantes: “Tangará”, em que os dois criam um verdadeiro encanto/canto em duo, e “Suçuarana”, parceria com PC Pinheiro (“Ela se enrodilha ao pé da cama/ Até parece a taturana/ Que quando se toca, queima e dana a arder/ Morde minha pele com a gana/ Que nem abelha africana”).

Trechinho da incrível "Tangará", 
letra e música de Guinga

“Neblinas e Flâmulas”, de Guinga e Aldir e originalmente feita para Leila Pinheiro, em 1996, ganha ainda mais intensidade na voz de Lívia. Que lindos versos! “Vivemos de olhares em todos os lugares/ e a gentileza em nós nos faz heróis covardes”. Deles também, outro destaque do repertório e da performance de Lívia, que usa toda a sensualidade/sexualidade feminina para interpretar a saborosamente abusada “O Coco do Coco”, rara canção sobre o prazer (e o direito ao prazer) sexual da mulher: “Moça donzela não arrenega um bom coco/ Nem a mãe dela, nem as tia, nem a madrinha/ Num coco tô com quem faz muito e acha pouco/ Em rala-rala é que se educa a molhadinha”. Ainda dos dois parceiros de composição, mais uma preciosidade: “Nem Cais Nem Barco” (“O meu amor não é o cais/ Não é o barco/ É o arco da espuma/ Que, desfeito, eu sou”), que Leny Andrade canta para Guinga em 1991. Lívia, no entanto, não deixa nada a desejar nessa melodia de estrutura inventiva e densa, que exige da intérprete.

Mas o que é o desafio de cantar Leny ou Leila para quem não teme encarar Elis? É o que Lívia faz ao trazer “Bolero de Satã” com o acompanhamento do próprio autor, canção que a Pimentinha gravou em 1979, no disco “Elis, Essa Mulher”, em duo com Cauby Peixoto. Lívia, com segurança, pega sozinha e sem precisar do apoio vocal do parceiro de palco. Única nova canção no repertório, a tocante “Rua do Pecado” – que Guinga escreveu para a mãe já falecida, uma mulher sofrida que teve que frustrar o desejo de ser cantora por causa da família e da sociedade machista – emocionou o público, principalmente após o próprio Guinga, conversador e descomplicado, revelar os sentimentos muito pessoais que motivaram a canção.

A emocionante "Rua do Pecado", 
confissão de Guinga sobre sua mãe

No encerramento, duas parcerias de Guinga com o jovem compositor carioca Thiago Amud, em especial a estonteante “Contenda”, uma “capoeira”, como definiu Guinga, que faz os sons dançaram ao gingado místico e bravio dos escravos. “Sou a dobra de mim sobre mim mesmo/ Nesse afã de ganhar de quem me ganha/ Tento andar no meu passo e vou a esmo/ Tento pegar meu pulso e ele me apanha”. Muita, mas muita poesia em forma de melodia e canto! 

A sensação de sublimação, quando há esse misterioso encontro da simplicidade com a grandiosidade, ainda perdura nos ouvidos. Ouvir Guinga pela primeira vez, e justamente ao lado desta jovem cantora tão talentosa que é Lívia, foi um dos acontecimentos mais especiais que poderiam acontecer na nossa curta temporada paulistana. Vê-los no palco nos faz acreditar que existe arte, que existe beleza, que é possível viver, mas viver MESMO, sendo artista. Ouvir Lívia cantando faz com que, facilmente, se relativize cantoras celebradas da MPB atual como Céu, Roberta da Matta ou Marina Sena, muito mais midiáticas e MUITO menos íntegras como artistas. E Guinga... bom: Guinga, como falei de início, dispensa superlativos. Ele já o é. Como diz o título de outra música dele próprio com Aldir (aliás, mais uma especial do show), a arte, como a vida, é feita de “Simples e Absurdo”. Foi, sim, absurdo o que vimos. Simples – e complexo – assim.


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A dupla começando o show


Lívia e Guinga em total sintonia musical e espiritual

"Simples e Absurdo". Guinga e Aldir. Guinga e Lívia


Guinga ao violão. Parem tudo


Lívia solta a voz


Encerrando o show. Estado de graça


Lívia e Guinga se despedem da plateia


E nós curtindo essa noite especial em Sampa




texto: Daniel Rodrigues
vídeos e fotos: Daniel Rodrigues e Leocádia Costa

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Ivan Lins - "Modo Livre" (1974)

 

"Mas elas [as músicas] começaram a ficar mais políticas a partir de 1973, por aí, quando a gente sentiu mesmo a barra pesar com o Médici, e aí elas realmente assumiram o aspecto político. Até por uma questão pessoal mesmo, eu tive problemas, tive que fazer terapia, me revoltei contra a família, contra o governo, contra TV Globo e editoras, gravadoras." 
Ivan Lins

Há motivos para que a grandeza de Ivan Lins não seja ainda totalmente reconhecida ainda hoje. Isso remonta aos tempos da Ditadura Militar no Brasil, período não só crucial para o artista como aquele em que este melhor desenvolveu a sua música. O pivô desse dissabor? A esquerda. Assim como calhou recair sobre as cabeças de gente como Elis Regina e Wilson Simonal julgamentos pesados de que estariam favorecendo os milicos em razão de episódios até hoje mal explicados, com Ivan Lins a patrulha política também não perdoou. Nem a convivência constante com "malditos" como Gonzaguinha e Aldir Blanc, jovens universitários dos tempos da faculdade de Engenharia Química na Federal do Rio de Janeiro, aliviaram-lhe a pecha de alienado ou entreguista quando sua ufanista "Meu Amor É Meu País" conquistara o segundo lugar no Festival Internacional da Canção, em 1970 - música que integraria seu disco de estreia, "Agora", de um ano depois. 

Para piorar: a mesma música foi adotada pela Varig, àquela época um orgulho nacional do mesmo patamar que Petrobras, como tema oficial dos voos internacionais da companhia. Mas tudo que é ruim pode piorar. A coisa azedava de vez quando se olhava para a genealogia de Ivan, que era filho de Geraldo Lins. Almirante Geraldo Lins. Se havia ranço, isso fazia com que os pelos dos detratores se ouriçassem.

Acontece que, assim como vaiaram a velada canção de exílio "Sabiá" no FIC de 1968 por esperarem de Chico Buarque, um de seus autores junto com Tom Jobim, uma canção tirada direto do Livro Vermelho de Mao, "Meu Amor É Meu País" também passou longe de ser compreendida. Nacionalista? Sim, mas com certa melancolia, como que captando a maravilha de pertencer àquela nação recentemente tricampeã mundial, mas de uma sociedade profundamente dividida e infeliz. Metáforas como: "Não importa qual seja a dor/ Nem as pedras que eu vou pisar" soaram deveras fracas para demonstrar que aquilo não se tratava de propaganda para o governo linha-dura de Médici e, sim, um ensaio para os inúmeros versos contundentes contra a Ditadura que Ivan musicaria pouco tempo dali. 

O “cancelamento” por parte da esquerda, compreensível dado o contexto sufocante da Ditadura, funcionou. Mesmo com o sucesso de sua de "Madalena" na voz de Elis, parceria com Ronaldo Monteiro de Souza, em 1971, Ivan precisou, naquele momento, recolher-se para se reinventar. "Quem Sou Eu?" perguntava a si mesmo no disco de 1972. O questionamento veio com ação: rompeu o contrato com a gravadora Phillips e assinou com a RCA Victor, brigou com a Globo, onde apresentou por um tempo com Elis o programa Som Livre Exportação, e se desentendeu até em casa. Chutou o (necessário) balde. A auto-resposta veio dois anos depois e, parafraseando outro título de álbum seu, acionando o "Modo Livre". Como uma autoproclamação. Liberto tanto da esquerda quanto da direita, Ivan encontra na rebuscada musicalidade, no elaborado arranjo de Arthur Verocai e nas letras políticas o caminho que era seu. 

Ivan achou, depois do autoexílio existencial, o discurso e a forma de dizê-lo em letra e música, formando aquele que é certamente o mais corajoso e desafiador cancioneiro de toda a MPB a favor da liberdade de seu país, liberdade que havia sido sequestrada há exatamente 10 anos desde o Golpe Militar de 1964. Ninguém na música popular brasileira ousou dizer tantas verdades ao regime e de forma tão incisiva, seja em palavras tristes e desesperadas, seja em figuras de linguagem repletas de duplos sentidos que, às vezes, de tão inteligentemente invocadas, pareciam literais. Talvez por isso passavam ilesas do carimbo da censura. "Nunca tive problemas com a censura, sou um privilegiado. Só lamento que ela ainda exista", disse em entrevista à revista da USP em 1978. Enquanto Chico, o amigo Gonzaguinha, Milton Nascimento e até Odair José enfrentavam dificuldades com o SCDP, Ivan aproveitava a descendência familiar para lançar mais do que um disco, mas um projeto modulado pela liberdade de expressão que duraria anos. 

Parceiro de outras canções e autor de outros gritos contra a Ditadura (como “Pesadelo”, “Minha Missão” e “Aviso aos Navegantes”), Paulo César Pinheiro assina com Ivan o samba de abertura: "Rei do Carnaval". Óbvio que o “rei” a que se referiam não era o momo e que o “carnaval” se revestia de cinismo para denunciar o cenário nada festivo de então. “O rei chegou/ Mas pra nosso desespero/ O rei mandou/ E era a voz do rei guerreiro”. Que começo! Um marco da “virada de chave” na vida e na obra de Ivan. Até mesmo o jeito de cantar é influenciado pelo “projeto Modo Livre”, uma vez que havia ficado pra trás a impostação da voz dos primeiros trabalhos para um canto mais natural e, sendo redundante, livre. Ivan percebera que sua voz afinada e de timbre doce estava menos para Toni Tornado e mais para Caetano Veloso.

Estava dada a mensagem inicial: Ivan não ia se calar. Havia decidido que diria o que precisava. Tanto é que, na sequência, emenda com um clássico do seu repertório, sucesso um ano antes na voz da cantora e compositora Claudya: “Deixa eu Dizer”. Bastante conhecida do público de hoje por conta do sample de Marcelo D2 para a sua “Desabafo”, de 2008, é outra parceria com Ronaldo Monteiro das seis que têm no disco. Quem não conhece os versos: “Deixa, deixa, deixa/ Eu dizer o que penso dessa vida/ Preciso demais desabafar”? Porém, na voz do seu autor, este samba-canção ganha outra potência, pois carregada de teor político. “E você não tem direito/ De calar a minha boca/ Afinal me dói no peito/ Uma dor que não é pouca”. Que coragem de dizer isso em plenos Anos de Chumbo!

Não somente nas letras, mas a própria sonoridade de Ivan se encorpa a partir de “Modo Livre”. Filho musical da bossa-nova, pianista harmônico como seu ídolo Tom, Ivan, experenciado na música desde a adolescência, une com talento único o samba, o jazz e a soul music, sempre com um refinamento próprio dos grandes. Tanto que sua música encontra semelhanças com a da turma do Clube da Esquina, em especial a de Toninho Horta e de seu outro ídolo, Milton. Com essa amplitude de referências Ivan musica a brejeira “Avarandado”, de Caetano, dando cores mais cintilantes à bossa-nova quase silenciosa que João Gilberto fizera no seu disco de um ano antes. 

“Tens no meu sorriso tua agonia.” Com uma sentença forte como esta, Ivan inicia "Tens (Calmaria)", aviso aos militares que eles podem ter “no quarto um cão vigia” e a “valentia”, mas que, resistente, “só na minha morte então terás tua calmaria”. Com o apoio luxuoso da MPB-4 a partir da segunda metade, esta fantasia se torna um samba-canção, cadenciado no ritmo de um bumbo triste. E isso, como diz a música seguinte, “Não tem Perdão”. Clara referência às torturas promovidas pela Ditadura, esta bossa-nova espelha a arte da capa do disco, em que o músico está com o corpo inteiramente submerso na água e só com a cabeça para fora e um olhar de soslaio que parece humilhado. “Não vou deixar/ Nem você nem ninguém/ Me envolver/ Me arrastar e me rasgar/ E espalhar/ Meus retalhos pelo mundo afora”. Quanto esforço de Ronaldo Monteiro para dar duplo sentido e fazer com que esses versos passem a ideia de se tratar apenas de um amor dissolvido.

“Modo Livre” representa ainda outro marco na carreira de Ivan e na história da música popular brasileira moderna, que é o seu encontro com Vitor Martins. Letrista da maioria de suas composições e com quem escreveria diversos clássicos da MPB a partir de então, como “Aos Nossos Filhos” (1978), “Começar de Novo” (1979) e “Novo Tempo” (1980), é deles, no disco, "Abre Alas". E nada melhor que começar uma parceria com um sucesso. Regravada por diversos artistas nacionais e internacionais, entre eles Sarah Vaughan, George Robert, Quarteto em Cy e Tânia Maria, este samba tem na força do refrão (“Abre alas pra minha folia/ Já está chegando a hora”) sua marca. Porém, nem por isso deixa de, assim como o repertório todo, cutucar os repressores: “A vida não era assim, não era assim/ Não corra o risco de ficar alegre/ Pra nunca chorar”.

O ritmo é de bossa-nova, mas a melodia vocal alta contrasta com a harmonia refinada, provocando uma verdadeira dissonância. Também pudera para uma música que se chama “Chega”. Novamente recorrendo a um suposto caso de amor para denunciar os crimes de tortura, Ivan canta versos como: “Chega/ Você não vê que eu estou sofrendo?/ Você não vê que eu já estou sabendo?/ Até onde vai esse seu desejo”. E continua de forma autoavaliativa, que responde tanto aos militares quanto ao Partidão: “Chega, preciso estar com pessoas/ Falar coisas ruins e coisas boas/ Botar meu coração na mesa/ As pessoas tem que gostar de mim/ Como eu sou e não como você quer que eu seja”.

Com lindo arranjo de Verocai, “Espero”, a qual contém na letra o termo que dá título ao disco (“E mergulhando em meu peito/ Um modo livre que foi desfeito/ Com o tempo”) não dá respiro no grito libertário e denunciativo a que o artista se propôs. Canta um tempo que aguarda ansiosamente que chegue, ou seja: que o pesadelo da Ditadura acabe. O fantástico samba-jazz “Essa Maré” (“Eu que queria e só queria/ Ser feliz, feliz um pouco/ E já não posso mais”) tem na flauta do trio Celso, Copinha e Jorginho um alívio para tanto padecer. O que não alivia é a jobiniana “Desejo”, de pura melancolia: ”Quando você/ Por ai me encontrar/ Esqueça do fim, venha/ E faça de mim desejo/ Seus risos, seus ais/ Nas noites, no cais”.

Ivan encerra o álbum como começou: com metáforas. Desta vez, ele pega sambas antigos e os ressignifica, trazendo-os para a realidade dura de então. Caso de “General da Banda”, clássico na voz de Blecaute, em 1949, “A Fonte Secou”, sucesso com Monsueto em 1954, e “Recordar”, esta, gravada por Gilberto Mendes em 1955. Versos como “Eu não sou água/ Pra me tratares assim”, ou “Chegou o general da banda”, aparamentes inocentes, ganham novos sentidos na sua voz. Ivan não precisa nem recorrer às próprias palavras para dizer o que estava implícito. 

Seja por desatenção ou ignorância dos censores, a música fortemente denunciadora de Ivan não se limitou apenas a este disco, mas a uma série irrepreensível produzida ao longo de 6 anos. Não se estranhe que "Chama Acesa", de 1976, "Somos Todos Iguais Nesta Noite", 1977, "Nos Dias De Hoje", 1978, e "A Noite", 1979, apareçam aqui como álbuns fundamentais à medida que, como “Modo Livre” em 2024, completem 50 anos de lançamento. Afinal, são obras marcantes em proposta e qualidade de um dos maiores nomes da música brasileira, reconhecido internacionalmente pela crítica e por gente do calibre de Ella Fitzgerald, George Benson, Ed Motta, Quincy Jones e Barbra Streisend, mesmo alguns que (ainda) lhe torçam o nariz em terras tupiniquins. 

O tempo se passou e Ivan, como não poderia deixar de acontecer, distendeu a corda a partir dos anos 80 de Diretas Já!. A tal "chama", que intitula o disco sucessor de "Modo Livre", havia, se não apagado, naturalmente diminuído. Porém, o que ele fez naquela segunda metade de anos 70, um dos períodos mais sombrios para o Brasil enquanto nação, está gravado na história da música brasileira como um ato guerrilheiro. Foi como se o artista, "entre espadas e rodas de fogo”, pegasse em armas e tomasse para si aquela batalha em nome do povo, de seus irmãos, a qual tivera em "Modo Livre" o primeiro tiro disparado. 

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FAIXAS:
1. "Rei do Carnaval" (Ivan Lins, Paulo César Pinheiro) - 2:31
2. "Deixa Eu Dizer" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 3:12
3. "Avarandado" (Caetano Veloso) - 3:15
4. "Tens (Calmaria)" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 3:03
5. "Não Tem Perdão" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 3:45
6. "Abre Alas" (Ivan Lins, Vitor Martins) - 3:12
7. "Chega" (Ivan Lins) - 3:27
8. "Espero" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 2:23
9. "Essa Maré" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 2:14
10. "Desejo" (Ivan Lins, Ronaldo Monteiro) - 2:19
11. Potpourri - 2:32
11a. "General Da Banda" (José Alcides, Sátiro de Melo, Tancredo Silva)
11b. "A Fonte Secou” (Marcléo, Monsueto Menezes, Tufic Lauar)
11c. "Recordar" (Adolfo Macedo, Aldacir Louro, Aluisio Marins)

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OUÇA O DISCO:
Ivan Lins - "Modo Livre"


Daniel Rodrigues