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segunda-feira, 5 de setembro de 2022

V.S.O.P. - “Five Stars” (1979)


"Eu pensei que seria impossível colocar pessoas como Tony Williams ou Ron Carter ou Wayne Shorter ou Freddie Hubbard na mesma sala ao mesmo tempo, porque muitos deles são líderes de bandas."
 
"A ideia era atualizar o passado. Eu não tinha a intenção de tentar tocar como toquei, mas pegar a música que tocamos no início e meados dos anos 70 e deixar a música acontecer a partir de nossos estados de espírito do momento."
Herbie Hancock 

É compreensível o folclore em torno dos chamados “times dos sonhos”. Seja no esporte ou nas artes, os “dream teams” criam uma verdadeira aura de fascínio. Na música, embora algumas bandas sejam consideradas excelentes, elencar uma seleção dos melhores entre os melhores é quase um sonho para os fãs. Imagine-se, por exemplo, se o rock tivesse conseguido promover o encontro de Jimi Hendrix, na guitarra; John Bonham, na bateria; Keith Emerson, nos teclados; e John Entwistle, no baixo? Impossível. 

No jazz? Tão improvável quanto. Para formar um timaço de melhores, só se fosse no Japão! E não é que este milagre aconteceu? E, pasme-se: não foi nos Estados Unidos, berço do jazz, mas, sim, na Terra do Sol Nascente. O feito raro tem um responsável: Herbie Hancock. Além de ser um dos integrantes deste “dream team”, foi ele quem catalisou as intenções e teve a ideia de, junto com o empresário David Rubinson, formar a “The Quintet”. Mas uma reunião tão especial não poderia chamar-se de outro jeito que não de algo que transmitisse bem essa ideia. A criativa solução foi dar o nome ao grupo de V.S.O.P., sigla que significa, na linguagem etilista, "Very Special One Time Performance", ou seja, a classificação dada à bebida conhaque envelhecida de alta qualidade.

Para isso, Hancock chamou, claro, só os melhores. Amigos músicos tão brilhantes quanto ele: Ron Carter, para o baixo; Tony Williams, para a bateria; Wayne Shorter, no sax; e Freddie Hubbard, ao trompete. Todos “all stars”, todos band leaders, todos lendas do jazz, que tocaram com outras lendas como Charlie Parker, Dizzie Gillespie, Miles Davis, Tom Jobim e Art Blakey. Todos senhores de obras que revolucionaram o jazz e a música moderna. Estavam todos ali, milagrosamente juntos. Seja por currículo ou por talento, a V.S.O.P. era o verdadeiro “dream team” do jazz.

Para materializar essa conjugação tão estelar, Rubinson promoveu um histórico show em San Diego, em 1977, que foi registrado no álbum “The Quintet”. O projeto deu tão certo, que deu vontade de também produzirem algo em estúdio. Foi aí que a turma foi parar no Japão, onde já eram individualmente aclamados. Foi a conexão que faltava: além de realizarem um novo disco ao vivo naquele mesmo ano, “Tempest in the Colosseum”, que encerrava a turnê, a turma, principalmente Hancock, acabou ficando lá pelo outro lado do mundo. Somente em 1979, dos seis discos que o pianista lança naquele ano, entre projetos solo ou acompanhados, quatro são gravados em Tóquio e lançados pelo selo Sony Japan. Um deles é justamente o colossal “Five Stars”, da V.S.O.P., único trabalho de estúdio da banda e cujo título não poderia ser mais adequado.

Coube ao engenheiro japonês Tomoo Suzuki comandar as mágicas gravações de 29 de julho daquele ano, nos estúdios CBS/Sony, em Tóquio. Mesmo experiente e calejado, por incrível que pareça o que o quinteto traz é de um frescor surpreendente e até tocante, não fosse, principalmente e acima de tudo, empolgante. Donos dos melhores currículos do jazz, eles tocam com a graça de jovens iniciantes. É surpreendente e comovente o misto coração e habilidade que estes cinco amigos, senhores do mais alto nível da música internacional, entregam na exuberante faixa de abertura, “Skagly”. São 10 minutos que é fácil duvidar que qualquer criatura que goste de música queira que em algum momento acabe. 

Sob a energia funk que todos conhecem e dominam, a faixa é um verdadeiro show de cada um dos participantes. Trata-se de um tema tão rico, que merece uma apreciação pormenorizada. A começar pelo autor, Hubbard. É ele quem dá as costuras altamente sofisticadas de fusion e hard bop do chorus. É ele quem estica as notas para os tons agudos, bem a seu estilo. É ele quem, com mérito, começa solando com a técnica invejável de quem tem seu nome gravado em álbuns como “Empyrean Isles”, de Hancock, “Free Jazz”, de Ornette Coleman, ou “Out to Lunch”, de Eric Dolphy. Carter: o único que não “sola”. Mas para quê? Afinal, o que o maior baixista da história do jazz faz é milagre. Quem conseguiria extrair tanta sonoridade, tanta personalidade do baixo acústico? Carter, que dispensara o baixo elétrico fazia tempo, prova por A mais B o porquê de sua escolha. Em “Skagly”, suas deliciosas ondulações e sua timbrística característica, aquela do quinteto mágico de Miles Davis e da sonoridade de Gil Scott-Heron, estão mais do que palpáveis: são uma caixa de ritmo. Só podia vir de quem já fez samba-jazz com Tom, Hermeto Pascoal e Airto Moreira.

Hancock: sabem aquelas notas que saltitam do piano em “Cantaloupe Island” e “Blid Man, Blind Man”? E a noção de ritmo repleta de groove e blues de quem contribuiu para a construção da sonoridade de gente como Miles, Shorter, Milton Nascimento, Lee Morgan e Joni Mitchell? De quem faz a improvável ligação entre Gershwin a hip hop? Pois é: Hancock em “Skagly” é tudo isso. Falemos, então, de Shorter. Bem, o que dizer de Shorter? A genialidade em forma de saxofone, a estirpe de Coltrane, a mente fusion da Weather Report, o buda do jazz, o solista incansavelmente criativo e hábil, o autor das obras-primas “Juju”, “Night Dreamer”, “Speak no Evil”? Pouco tem a se dizer e muito a aplaudir. Por fim, Williams. Este não ficou por último à toa, pois sua performance na faixa de abertura (nossa, isso, ainda é “apenas” a abertura do disco!) é, mesmo para os que sabem se tratar do, provavelmente, mais influente baterista da história do jazz, assombrosa. O que é I-S-S-O? Williams dá, literalmente, um show do início ao fim do tema, sem que isso, porém, se torne maçante ou confuso. Pelo contrário! É ele quem segura no punho o ritmo funk de cabo a rabo, mas não deixa de esmerilhar nas quebras e descidas. Quantas variações de rolos, polirritmia, mudanças de timbres! Conhecido por sua categoria nas baquetas, como as que executa em clássicos como “Maiden Voyage”, de Hancock, “Refuge”, de Andrew Hill, ou “Shhh”, de Miles, e inúmeros outros, aqui ele não economiza na explosão.

Bastaria falar apenas sobre a faixa de abertura, mas esses cinco jovens tarimbados não deixariam o ânimo cair jamais. Tanto que, na sequência, vem o sofisticado jazz bluesy “Finger Painting”, com lances modais e bopers fluindo naturalmente entre si, coisa de quem toca jazz de olhos fechados. O baixo de Carter escalona sons ondulados enquanto Shorter e Hubbard se encarregam de lançar frases em colorações medianas, Williams privilegia o tintilar dos pratos e chipô e Hancock mantém o clima onírico em notas claras e prolongadas. Em “Mutants On The Beach”, a terceira, hard-bop mais clássico e não menos gracioso, Carter novamente “carrega” no baixo, dando agora aos sopros maior amplitude para voaram com apoio do ritmo embalado marcado por Williams e Hancock. O pianista, aliás, confere dissonâncias perfeitas em seu improviso, ligando o anterior, de Hubbard, com o seguinte, de Shorter. Mas Williams estava chispando fogo como um dragão japonês, e manda ver num magnífico solo para terminar a música.

Sabe o gol de Carlos Aberto para a Seleção Brasileira sobre a Itália na final da Copa de 70? Ou a trinca “Golden Slumbers/Carry That Weight/The End” para encerrar o último disco dos Beatles, “Abbey Road”? É esta sensação que deixa “Circle”, a que finaliza o disco do “dream team” V.S.O.P. Quanta perfeição! Enigmática, é um misto de “In a Silent Way”, de Miles, com “Maiden Voyage”, com “Psalm”, de Coltrane, e mantra oriental. A melodia espiral, cadenciada pelo baixo já tradicionalmente assim de Carter, dá literalmente uma sensação de circularidade, absorvendo quem escuta numa atmosfera de vertigem. Ainda bem que se trata da menor faixa das quatro, pois se não os ouvintes entrariam em transe – se é que não entram.

Depois deste álbum japonês, a V.S.O.P. lançaria ainda apenas mais um disco também ao vivo como os dois primeiros antes de se dissolver ou transformar-se em outros projetos, visto que os integrantes seguiram contribuindo uns para os outros em vários momentos. Porém, embora a formação do grupo tenha se dado ainda nos Estados Unidos para um show quase comemorativo de músicos “envelhecidos de alta qualidade”, foi no Japão que este prosseguiu e onde se concretizou o histórico registro do quinteto em estúdio – feito que, infelizmente, nunca mais se repetirá uma vez que Hubbard faleceu em 2008. Contudo, é normal que “times dos sonhos” não permaneçam por muito tempo mesmo. A conjunção de fatores para que esse milagre ocorra é tão improvável que os deuses podem resolver que ela ocorra quando e onde menos se espera. No Japão, por exemplo. 

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FAIXAS:
1. "Skagly" (Hubbard) - 9:56
2. "Finger Painting" (Hancock) - 6:44
3. "Mutants On The Beach" (Williams) - 11:04
4. "Circe" (Shorter) - 4:30

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues


sábado, 8 de janeiro de 2022

83 anos da Blue Note - Os 10 discos preferidos

Entre as gravadoras, o nome Blue Note é certamente o mais mencionado entre todos aqui no blog quando falamos de música. Mais do que qualquer outro selo do jazz, como Atlantic, Impulse!, Columbia ou ECM, ou mesmo da música pop, como Motown, Chess, Factory e DefJam, a Blue Note Records já foi destacada em nossas postagens em pelo menos um cem número de vezes, aparecendo em diversos de nossos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS como informação essencial para, inclusive, a essencialidade das próprias obras. Não à toa. O selo nova-iorquino, que completou 83 anos de fundação esta semana, feito encabeçado pelos produtores musicais Alfred Lion e Max Margulis nos idos de 1939, transformou-se, no transcorrer das décadas, num sinônimo de jazz moderno de alta qualidade e bom gosto.

O conceito, aliás, já está impregnado nas caprichadas e conceituais artes dos discos, como nas capas emblemáticas de Reid Miles, as fotos de Francis Wolff e, por vezes, a participação de designers convidados, como Burt Goldblatt, Jerome Kuhl e, nos anos 50, um então jovem artista visual de Pittsburgh chamado Andy Wahrol. Tudo encapsulado pela mais fina qualidade sonora e técnica, geralmente gerenciada pelas hábeis mãos do engenheiro de som Rudy Van Gelder em seus mágicos estúdios Englewood Cliffs, em New Jersey, outro emblema de qualidade associado à marca Blue Noite.

Mas, claro, o principal é a música em si. Musicalmente falando, a gravadora em diferentes épocas reuniu em seu elenco nomes como Horace Silver, Herbie Nichols, Lou Donaldson, Clifford Brown, Jimmy Smith, Kenny Burrell, Jackie McLean, Freddie Hubbard, Donald Byrd, Wynton Marsalis, Andrew Hill, Eric Dolphy, Cecil Taylor, Hank Mobley, Lee Morgan, Sonny Clark, Kenny Dorham, Sonny Rollins e tantos outros. Há, inclusive, os que lhe tiveram passagem rápida, mas que, mesmo assim, não passaram despercebidos, como Miles Davis, nos primeiros anos de vida do selo, ou Cannonball Adderley e John Coltrane, que em seus únicos exemplares Blue Note, no final dos anos 50, deixaram marcas indeléveis na história do jazz.

Pode-se dizer sem medo que pela Blue Note passaram bem dizer todos os maiores músicos do jazz. Se escapou um que outro – Charles Mingus, Chet Baker, Albert Ayler, Ahmad Jamal – é muito. Outros, mesmo que tenham andando por outras editoras musicais, tiveram, inegavelmente, alguns de seus melhores anos sob essa assinatura, tal Wayne Shorter, Dexter Gordon e McCoyTyner.

Tanta riqueza que a gente não poderia deixar passar a data sem, ao menos, destacar alguma lista como gostamos de fazer aqui. Melhor, então: destacamos cinco delas! Para isso, chamamos nossos amigos jornalistas – e profundos conhecedores de jazz – Márcio Pinheiro e Paulo Moreira, contumazes colaboradores do blog, para darem, juntamente conosco, Cly e eu, suas listagens de 10 discos preferidos da Blue Note Records. Ainda, para completar, puxamos uma seleção feita pelo site de música britânico JazzFuel, em matéria escrita pelo jornalista especializado em jazz Charles Waring no ano passado. A recomendação, então, é a seguinte: não compare uma lista com outra e, sim, aproveite para ouvir ou reouvir o máximo possível de tudo que cada uma traz. Garantia de que as mais harmoniosas notas azuis vão entrar em sua cabeça.


Márcio Pinheiro
Jornalista

2 - Eric Dolphy - "Out to Lunch" (1964)
3 - Grant Green - "The Latin Bit" (1962)
4 - Herbie Hancock - "Takin' Off" (1962)
6 - Joe Henderson - "Mode for Joe" (1966)
7 - John Coltrane - "Blue Train" (1958)
9 - Ron Carter - "The Golden Striker" (2002)
10 - Sonny Rollins - "Newk's Time" (1959)



Paulo Moreira
Jornalista

1 - Thelonious Monk - "Genius Of Modern Music Vols. 1 e 2" (1951/52) 
3 - Eric Dolphy - "Out to Lunch"
4 - John Coltrane - "Blue Train"
5 - Bud Powell - "The Amazing Bud Powell Vol. 1 e 2" (1949/51)
6 - Art Blakey And The Jazz Messengers - "Moanin'" (1959)
8 - Sonny Clark - "Cool Struttin'" (1958)
10 - Grant Green - "The Complete Quartets With Sonny Clark" (1997)
Mais Três Discos Bônus: 
11 - Freddie Hubbard & Woody Shaw - "The Freddie Hubbard And Woody Shaw Sessions" (1995)
12 - Hank Mobley - "The Turnaround" (1965)
13 - James Newton - "The African Flower" (1985)


Cly Reis
Arquiteto, cartunista e blogueiro

1. Cannonball Aderley - "Sonethin' Else"
3. Horace Silver - "Song for My Father"
4. Lee Morgan - "The Sidewinder"
8. Wayne Shorter - "Speak No Evil"
9. Herbie Hancock - "Maiden Voyage" 


Daniel Rodrigues
Jornalista, radialista e blogueiro

1 - Herbie Hancock – "Maiden Voyage" (foto)
2 - Cannonball Adderley - "Somethin Else"
3 - Lee Morgan - "The Sidewinder"
4 - Wayne Shorter - "Night Dreamer"
5 - Grant Green - "Matador"
6 - McCoy Tyner - "Extensions"
7 - Horace Silver - "Song for my Father"
8 - John Coltrane - "Blue Train"
9 - Dexter Gordon - "Go"
10 - Cecil Taylor - "Unit Structures" (1965)


Charles Waring
Jornalista da JazzFuel

1 - Bud Powell – "The Amazing Bud Powell (Vol 1)" (1949)
2 - Clifford Brown – "Memorial Album" (1956)
3 - Sonny Rollins – "A Night At The Village Vanguard" (1957)
4 - John Coltrane – "Blue Train"
5 - Art Blakey and The Jazz Massangers – "Moanin’" 
6 - Kenny Burrell – "Midnight Blue" (1963)
7 - Horace Silver – "Song For My Father" 
8 - Lee Morgan – "The Sidewinder" 
9 - Eric Dolphy – "Out to Lunch"
10 - Herbie Hancock – "Maiden Voyage" 

 Daniel Rodrigues

segunda-feira, 7 de junho de 2021

Ron Carter - "Third Plane" (1977)

 

"A frase 'The Sound of Jazz' é cogitada às vezes. Bem, para mim, 'The Sound of Jazz' é Ron Carter tocando quatro compassos em sequência."
Ethan Iverson, pianista de jazz

É inegável a magia dos trios de jazz. The Lester Young & Buddy Rich Trio, The Oscar Peterson Trio e Keith Jarrett Trio fizeram história ao longo das décadas, destacando-se invariavelmente pela união de três músicos afiados e entrosados entre si. Casando a proximidade pessoal e artística com a habilidade instrumental, outro estelar trio juntou-se, em 1977, para um célebre (re)encontro. Ron Carter, um dos baixistas mais aclamados e requisitados tanto do jazz quanto da música moderna – tendo gravado com centenas de músicos de primeira linha, como Miles Davis, Tom Jobim, Thelonius Monk, Gil Scott-Heron e Alice Coltrane – projetava seu nono álbum como band leader. Para tanto, convidou dois velhos conhecidos, ambos lendas da música assim como ele próprio: Herbie Hancock, piano, e Tony Williams, bateria. Acostumado com todos os tipos de formação, Carter havia experimentado de grandes bandas a duo em seus álbuns solo anteriores, mas, por incrível que pareça, ainda não com apenas outros dois acompanhando-o. Não deu outra: a mística do power trio se fez presente e o resultado é um dos mais emblemáticos discos de sua carreira: “Third Plane”.

A influência do Brasil mostra-se tão inegável quanto legítima para quem gravara discos históricos da MPB como “Wave”, de Tom (1967), “Hermeto” (1972), com Hermeto Pascoal, e “Seeds of the Ground”, de Airto Moreira (1971), dentre outros. Hancock e Williams, entretanto, não ficam para trás, haja vista a versatilidade de ambos e, principalmente, a proximidade de Hancock com a música brasileira. Desde 1968, ele já convivia de perto com Milton Nascimento, com quem, um ano antes de "Third...", inclusive, gravara o clássico “Raça”. Com essas influências, a faixa-título inicia o disco, que tem o contrabaixo de Carter comandando as ações. Williams engendra um ritmo sambado elegante, bossa novístico e bluesy ao mesmo tempo. De seu lado, Hancock é capaz de realçar linhas harmônicas que se põem no limite do erudito e da tradição pianística do jazz. Genial. Carter, por sua vez, justifica toda a herança do samba que tão bem aprendeu a carregar. Seu estilo único e expressivo de tocar enche a música de personalidade, o que, para ouvidos minimamente atentos, é impossível não perceber que é o baixista quem está tocando aquele que pode ser considerado um dos sons mais característicos do jazz mundial. 

A classe permanece, mas agora para uma balada romântica vaporosa e, literalmente, aquietadora. A atmosfera sensual de “Quiet Times”, um convite a uma noite de amor ao som de um jazz que parece bater ao ritmo dos corações, ganha ainda mais intensidade no dedilhado ondulante de Carter, que faz o ouvinte sentir cada nota, cada deslizar dos dedos pelo corpo do instrumento. O piano, inebriado, pontua notas e acordes ora dissonantes, ora extremamente oníricos. Tudo isso, enquanto Williams se esmera no acompanhamento das escovinhas sobre a caixa e os pratos.

O entrosamento entre Carter e sua pequena banda é visível e vinha de muito tempo. Eles já haviam se topado quase 15 anos antes, em 1963, quando integraram a banda de Miles Davis que excursionou com o trompetista e o saxofonista George Coleman pelos Estados Unidos e pela Europa. Com Miles, aliás, formariam, com a adição de Wayne Shorter ao sax, aquele que é considerado o melhor grupo de quatro músicos de jazz depois do "quarteto clássico" de Coltrane, responsável por obras memoráveis da segunda metade dos anos 60 como “Smiles”, “E.S.P.” e “Miles in the Sky”. Mais ou menos nesta época protagonizariam, ao lado de mais um craque, Freddie Hubbard, à corneta, outro ícone do jazz: “Empyrean Isles”, de Hancock. Tal química é o que se vê muito bem resolvida no bop moderno “Lawra” e em "United Blues", quando os três aproveitam o tema para lançar sua verve groove.

Novamente a alma brasileira de Carter surge, agora numa bossa nova romântica e classuda no melhor estilo Tom Jobim. É uma original versão para o standart “Stella by Starlight”. Não à toa, o piano de Hancock é que se destaca, reverenciando o "maestro soberano" como ele e Carter fariam em solo brasileiro juntamente com outros vários músicos no show “Tribute to Jobim” do Free Jazz Festival de 1993. Notam-se reminiscências das melodias de “Lígia” e “Ana Luiza”, emblemas da bossa nova jobiniana, mas agora para tematizar outra musa: tom melancólico e lírico e harmonia complexa num tema de paixão desenfreada. Areias de Copacabana na baía de San Francisco. 

O final é tão assertivo quanto juntar em um trio Carter, Hancock e Williams: “Dolphin Dance”, clássico do repertório de Hancock em que repetem o feito de “Maiden Voyage”, de 1965, quando a tocaram acompanhados de Coleman e Hubbard. A escolha do tema passa longe de soar como uma garantia de um bom encerramento, visto que se dedicam a interpretá-la com uma energia e paixão tão tocantes, que a diferenciam da original ou de qualquer outra versão que o tema tenha recebido. Blues, modal, cool, hard. Transformações rítmicas, conjunções harmônicas criativas... tudo se escuta na faixa derradeira de “Third...”, o qual tem como último acorde o sinuoso toque do tão referencial baixo de Carter. Um final perfeito para um disco igualmente irretocável.

Uma das qualidades dos trios de jazz está na superação de uma suposta deficiência: a ausência de um solista. Sem pelo menos um quarto membro, que equilibraria a formação com as três bases mais comuns – piano, baixo e bateria – mais um solo, a banda, com somente três integrantes, geralmente restringe-se apenas a estes instrumentos-base. Quando muito, um sopro, o que implicará, necessariamente, na supressão de algum daqueles três. Ou seja: é mais difícil de se compor a arquitetura sonora. Dessa “dificuldade”, entretanto, sai o trunfo dos grandes trios, que é justamente aproveitar-se desta composição mínima, atribuindo a todos a liberdade de preenchimento do espaço harmônico e solístico. Carter e seus parceiros mostram o quanto isso é possível quando se tem talento e paixão. A seis mãos, o que se escuta é mais do que três músicos dividindo o estúdio: é o atingimento de algo maior, imaterial. Um terceiro plano.

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FAIXAS:
1. "Third Plane" – 5:53
2. "Quiet Times" – 7:52
3. "Lawra" (Tony Williams) - 6:08
4. "Stella By Starlight" (Victor Young/Ned Washington) – 8:26
5. "United Blues" – 3:01
6. "Dolphin Dance" (Herbie Hancock) – 8:20
Todas as composições de autoria de Ron Carter, exceto indicadas


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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Ornette Coleman – “Free Jazz - A Collective Imprevisation by the Ornette Coleman Double Quartet” (1961)



“Quero expressar meus sentimentos em vez de ilustrá-los. Todo bom artista pinta o que é.“
Jackson Pollock

Dois takes. Puro improviso. Mas muito mais do que isso. Há 50 anos, o compositor de jazz (e de qualquer outro gênero intergaláctico que se queira classificar) norte-americano Ornette Coleman mudava os paradigmas do jazz e da música. E pela segunda vez. E em apenas um ano! “Free Jazz - A Collective Imprevisation by the Ornette Coleman Double Quartet”, ou simplesmente "Free Jazz", o livre e coletivo improviso produzido por ele e seus súditos, tinha na banda músicos que o acompanhavam desde o primeiro sinal desta revolução: “The Shape of Jazz to Come”, de 1959. Ali, Coleman já propunha uma revisão do blues através da reelaboração do tempo e do tom em harmonias imprevisíveis e pouco usuais, algo que apontava para outro extremo daquilo que Miles Davis trazia naquele mesmo último ano dos 50 com o jazz modal de “Kind of Blue”. Coleman provava que cabia, sim, novos olhares (e ouvidos) para o jazz, menos ilustrativos e muito mais subjetivos.

Porém, em “Free Jazz”, ia além. Afora o trompetista Don Cherry, o baterista Billy Higgins e o baixista Charlie Haden, Coleman subvertia os preceitos de toda a tradição do jazz e dobrava todos os instrumentos, mas de forma orgânica, visceral. Afinal, colocava junto a este time também Freddie Hubbard, no outro trompete; Eric Dolphy no clarinete baixo; e Scott LaFaro no segundo contrabaixo; além de Ed Blackwell, que intercala a bateria com Higgins. Nunca ninguém havia entrado em um estúdio para performar daquela maneira, nem na "música aleatória" de Cage, nem nos dodecafônicos, nem o mais radical dos dadaístas.

Lançado quase um ano depois de sua gravação pelo selo Atlantic, “Free Jazz” traz uma experiência sem igual até então. Intensa e delimitadora, numa simbiose total entre criador e criatura. Coleman, que começou como autodidata no saxofone alto aos 14 anos, vinha de um tempo em busca dessa abordagem própria que os ditos “não eruditos” têm. Depois das primeiras experiências de apresentação com bandas de rhythm-and-blues na sua cidade-natal, Forth Worth, no Texas, estabeleceu-se em Los Angeles no início dos anos 50 e concentrou nessa arqueologia sonora diferente. Era um meio de escapar dos padrões e progressões de acordes tradicionais do be-bop, o que levou músicos e críticos a lhe rejeitaram, alguns até sugerindo que ele não soubesse tocar seu instrumento. 

Genialidade irrefreável: Coleman revolucionava
o jazz e a música há 60 anos
Mas o gênio Coleman era irrefreável. Tanto foi, que ele seguiu em frente até encontrar a sua turma. Eles também entraram na onda de perscrutar o que o jazz ainda não havia explorado, fronteiras que os levaram a aproximarem-se da vanguarda e do atonalismo. O certo é que compraram a ideia das “harmonias melódicas” de Coleman, em que um elemento não prescinde do outro e se interdependem. Horizontes inexistem a um “astronauta da música”, como classificou Wayne Shorter a Coleman. Pronto: depois do swing, do be-bop e do cool, vinha uma nova forma de enxergar e entender o jazz. Uma nova tábua começava a ser escrita. E agora com total liberdade.

Essa caminhada em direção ao espaço infinito se reflete em “Free Jazz”. Como os traços de “White Light”, a linda pintura a óleo do expressionista norte-americano Jackson Pollack, que ilustra a capa do disco, o que está dentro é dotado de igual abstração. O próprio método de concepção lembra em certo aspecto o ritual caótico de produção de uma tela do artista visual símbolo de uma geração: dois quartetos tocando isolados um em cada um dos dois canais do estúdio. Isto permitia que se produzissem passagens extraordinárias de improvisação coletiva de todos os oito músicos sem que um quarteto influísse na “liberdade” do outro. 

Assim como em raros momentos na história da Arte, a música incorpora tanto o espírito de seu tempo que acaba por confundir-se com outras formas de manifestação artística. Foi assim no século XVIII na Europa quando da literatura ao teatro, passando pela poesia, pintura, escultura e, claro, a música, beberam do Romantismo para forjar os novos padrões da arte ocidental. Os quase 40 minutos de total transgressão dos padrões tornaram-se instantaneamente também  um dos mais controversos do artista e do gênero. Muitos, seja por ignorância ou inveja, torceram-lhe o nariz. Caso de Miles e Roy Eldridge. Entretanto, houve também os entusiastas que não se intimidaram diante de tanta provocação, como a Modern Jazz Quartet, Leonard Bernstein e Lionel Hampton. No entanto, amando ou odiando, o fato é que em “Free Jazz”, Ornette engendra uma nova visão para o jazz e para a música do século XX, no mesmo peso do que Schöenberg, Stravisnky, Charlie Parker ou Beatles promoveriam. Tanto que, além de redefinir os conceitos de avant-garde, como poucas obras na história da música virou mais do que um título, mas a representação de um gênero. E isso não diz pouco.

Dispersão, ordem, fúria, corrosão, poesia, figuração, expansão, anarquia, traços, paixão, introspecção... Inúmeros adjetivos podem ser usados para adjetivar “Free Jazz”. Mas nenhum consegue classificá-lo. Melhor mesmo é ouvi-lo. Afinal, cinco décadas depois de ser concebida, a obra máxima de Ornette Coleman segue desafiadora mas apaixonante. Mais dois adjetivos totalmente ineficientes diante de tamanha elevação. Afinal, só mesmo quem passeia por outros planetas para saber pintar a si mesmo.

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FAIXAS:
1. “Free Jazz” (Part 1) - 19:55
2. “Free Jazz” (Part 2) - 16:28
Todas as composições de autoria de Ornette Coleman



Daniel Rodrigues


quarta-feira, 30 de março de 2016

Wayne Shorter - “Speak no Evil” (1965)



“Wayne Shorter continua e evoluir
para explicar tudo aquilo
que as pessoas levam dentro de si.”
Herbie Hancock




Já escrevi sobre o saxofonista Wayne Shorter e o pianista e tecladista Herbie Hancock para a seção ÁLBUNS FUNDAMENTAIS mais de uma vez. De Shorter, sobre o hipnotizante "Night Dreamer", afora "The Sidewinder", no qual integra a banda de Lee Morgan. De Hancock, falei do suingado "Empyrean Isles" e do esplendoroso "Maiden Voyage", além de outras menções invariavelmente merecedoras. Porém, tanto um artista quanto outro tem, principalmente nos anos 60, vários discos (se não todos dessa época) que podem figurar numa lista de essenciais. Suas produções, seja como band leaders ou em participações, são extremamente ricas e fecundas. Outro trabalho dessa leva e de suma importância tanto quanto estes ou até mais em certo aspecto é o por mim já citado neste blog "Speak No Evil", de 1965. Aqui, com Shorter à frente, o amigo Hancock assume o piano junto com o primoroso acompanhamento de outros três mestres: o do baixo acústico, Ron Carter, o do trompete, Freddie Hubbard, e o da bateria, Elvin Jones. Às vésperas de finalmente assisti-los ao vivo pela primeira vez – e os dois numa vez só! –, acho digno relembrar uma das icônicas parcerias entre essas duas lendas vivas do jazz.

A começar pela enigmática capa de Reid Miles (para mim a melhor arte de todos os tempos da discografia jazz norte-americana),“Speak no Evil”é puro refinamento. Seja nas composições, nos arranjos, nas harmonias, nos estilos de tocar. E é um dos mais felizes momentos de comunhão entre esses músicos, todos filhos musicais de Miles Davis, porém, ainda mais, no que se refere a Shorter e Hancock, duas figuras basais para o jazz contemporâneo que seguiriam mudando em vários momentos a cara da música moderna. Aqui, a revolução já estava em plena combustão. As seis composições de Shorter presentes no disco ajudaram a definir um novo estilo dentro do jazz naqueles meados de anos 60, numa fusão da força muscular concentrada do hard bop com os intervalos surpreendentes e melodias muitas vezes suspensas sobre o compasso. O resultado disso foi a cunhagem de um novo ”Birth of the Cool", uma mistura ímpar de contenção e liberdade que criou um contraste marcante entre temas arejados e outros de uma tensão calculadamente equilibrada.

“Witch Hunt”, com o início marcante do duo entre Shorter e Hubbard, começa na melhor atmosfera cool, algo sinalizado pelo piano de Hancock, que se mantém num tom moderado. O sax dá a largada exercitando um solo de pura consciência de ritmo e variações. Equilíbrio nas tensões e distensões. Sua exatidão remete ao piano de Thelonious Monk. Seu som é tão amplo e perfeitamente pronunciado que mal se percebe quando o trompete entra. Sensação que, no entanto, logo se corrige: é Hubbard quem está no solando agora. Acelerando e intensificando, ele imprime um leve desnorteio àquele cosmos mas, igualmente inteligente, não deixa escapar o tema. A emoção é captada com ainda mais astúcia por Hancock, que desmancha os dedos sobre o piano. Claro e denso ao mesmo tempo. Tudo isso desenhado pelo dedilhado trasteado de Carter. Ao final, no último chorus, Shorter estoura com parcimônia o agudo do sax enquanto o restante se mantém, demonstrando mais uma vez o controle conceitual do álbum em seu casamento de leveza e energia.

Agora é Hancock quem dá os primeiros acordes, mostrando que, mesmo num projeto de Shorter, parceiros como ele têm participação fundamental. O pianista determina o andamento lento e elegante de ”Fee-Fi-Fo-Fum”. Carter segura um blues de alta capacidade de leitura melódica. Que tema charmoso! O riff, em chorus, é repetido uma vez e, quando parece que vai se diluir, um rolo em crescendo de Jones sinaliza para Hubbard, que já salta em uma nota aguda para depois compor um solo emotivo. Shorter acata a mesma ideia, ora repetindo o tema, ora injetando mais respiros entre uma frase e outra. Porém, tomado pela emotividade, há o momento em que a acentua a seu modo, gerando ostinati típicos de seu estilo. Após uma breve participação de quem começou tudo aquilo, Hancock, o chorus é repetido com a mais alta precisão, desfechando com o tradicional titilar nos pratos de ataque.

A cadência leve de ”Fee-Fi-Fo-Fum” é pega emprestada para o tema seguinte, “Dance Cadaverous”. No entanto, não em um clima ameno mas, sim, num muito mais denso e etéreo, trazendo ao cool uma nova dimensão de sobriedade. Hancock dispara acordes que se dispersam dos sopros, acima deles, enevoando o ambiente. Jones, de pura sensibilidade, usa baquetas de madeira quase apenas nos pratos e o chipô; quando muito, na caixa. Já Carter entrega ao ar ressonâncias estendidas. Mas é Hancock quem norteia a melodia. Nada mais natural, então, do que ele mesmo começar solando. É de seu dedilhar e da textura do piano que se constitui a essência fantasiosa da canção, o que Hancock elabora em variadas cores, seja remetendo ao classicismo de um Gershwin, dando pinceladas do atonalismo de vanguarda europeia ou se apropriando da sutiliza romântica de Chopin. A personalidade lírica e ao mesmo tempo “cadavérica” do tema dá a Shorter argumento suficiente para este transitar entre dissonâncias e relevos no improviso. Música levemente perturbadora – ou seria instigantemente deliciosa?

Mais emblemática ainda é a faixa-título, em que Shorter e Hubbard já largam arrebatados e impecavelmente sintonizados. Eles executam um riff em tempo 4/4 no qual ainda brincam com a extensão do acorde e o perfil sonoro, mantendo e variando a intensidade do corpo do som até sua queda e iniciarem um novo ataque. Como se não bastasse, o restante da banda também se esmera. Jones, bluesy por demais; Carter, preciso, preenchendo os espaços; e Hancock: ah, Hancock! Que maestria! Se em ”Fee-Fi-Fo-Fum” e “Dance Cadaverous” sua contribuição é claramente notada, em “Speak No Evil” ele voa. Figuras soltas, oníricas, encadeamentos, glissandos, quase à parte do restante dos companheiros. Nos improvisos, os solistas expandem a coloração sobre a base modal, cada um a seu jeito: Shorter, buscando a pureza dos sons, pautado por uma brandura inquieta; Hubbard, criativo como sempre, repetindo frases de seus mestres; e, por fim, Hancock, ágil e impermanente, delicadamente impiedoso.

Mais uma balada doce e sensível, “Infant Eyes” se constrói a partir dos primeiros acordes do piano, o qual chama o sax para fazer-se conhecer a melodia. Sopros extensos e sentidos, como deve ser um bom tema romântico. Shorter o conduz sem pressa por quase 5 min dos 6’54 da faixa, entre riff e improviso, os quais, difusos, se diluem. Única sem solo de Hubbard, nela cabe a Hancock quebrar a fala enfeitiçada de Shorter, o que não dura muito tempo, pois o líder, sedento por expor o sentimento de seu sax, volta para dar os últimos acordes. “Wild Flower”, com algo de oriental como sugere a capa, desfecha na mesma atmosfera elegante de todo o álbum: sobriedade e coração. Repetindo a ordem, primeiro Shorter, depois, Hubbard e, por último, Hancock, todos sob a base rítmica e harmônica cunhada por Carter e Jones. Terminava ali a sessão registrada no Natal de 1964 nos estúdios Van Gelder, em Nova York, e posta em acetado meses depois.

A fase era tão boa que somente aquele ano de 1965 contaria com outros três discos igualmente antológicos de Wayne Shorter: “The Soothsayer”, “Et Cetera” e “The All Seeing Eye”. Hancock, igualmente, estava voando baixo, compondo discos solo, trilhas, fundindo a música pop ao jazz de maneira inseparável. A dupla voltaria a se encontrar em vários outros projetos, fosse nos sessentistas “Adam’s Apple” e “Schizophrenia”, de Shorter, fosse compondo a banda de Miles (“Smiles”, "In a Silent Way", “Big Fun”, “Water Babies”, entre outros), nos discos da V.S.O.P. ou nos trabalhos de Milton Nascimento (“Native Dancer”, “Courage”, “Raça”). A última vez que entraram juntos num estúdio foi para o disco-duo “1 + 1”, de 1997 e, agora, afinados como são há meio século, retomam a parceria para uma turnê que passa pelo Brasil. Nada mais pertinente, portanto, que ouvir – ou reouvir, àqueles que conhecem – uma das obras-primas em que ambos trabalharam juntos. Speak no evil: only, listen.
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FAIXAS:
1. Witch Hunt - 8:11
2. Fee-Fi-Fo-Fum - 5:54               
3. Dance Cadaverous - 6:45
4. Speak No Evil - 8:23
5. Infant Eyes - 6:54       
6. Wild Flower - 6:06

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sexta-feira, 27 de novembro de 2015

John Coltrane – “Ascension” (1965)




“[‘Ascension’] foi a tocha que acendeu o free-jazz.
Quero dizer, ele começa com Cecil (Taylor) e Ornette (Coleman) em 1959,
mas ‘Ascension’ foi como um santo padroeiro que dizia:
‘está bem – isso é válido’.
Acho que teve um efeito muito maior
sobre todo mundo do que ‘A Love Supreme’”.
Dave Liebman

“Trabalhei feito um condenado.
Não consegui sentir prazer na sessão.
Se não fosse uma gravação, eu teria me divertido.
Sabe, estava de olho no relógio e tudo mais.
Quanto a ouvir o disco, disso eu gostei;
gostei de todas as contribuições individuais”.
John Coltrane



Ao mesmo tempo é uma tarefa fácil e difícil falar de “Ascension”, de John Coltrane. Fácil pelo motivo óbvio: a inegável qualidade superior que o músico imprimia em tudo que fazia, ainda mais em seus trabalhos mais maduros, como neste caso, sua última gravação em estúdio. Além do fato de ser apenas instrumental, também ajuda na apreciação o formato, pois, ao invés de se explanar sobre várias faixas, como num disco pop, ou mesmo 4 ou 5 delas, comum a um álbum de jazz, “Ascension” tem apenas um tema monotemático. Um extenso e único número contínuo. E é aí que saltamos da facilidade para a complexidade – e, curiosamente, todos os motivos que talvez lhe facultassem facilidade passam a ser vistos de outro ângulo.

Se fosse uma trilha de simples deglutição, ainda vá. Só que o fato de ser altamente ruidoso e intrincado já refuta qualquer amenidade na análise. Como um filme de Bergman ou um quadro de Bacon, em que, mesmo se gostando, se é desafiado a apreciar, ouvir “Ascension” exige sensibilidade e retidão. Se for considerar os adjetivos costumeiramente usados ao longo dos anos para definir “Ascension” aí sim se verá que realmente o buraco é mais embaixo. Classificado como “visceral”, “rebelde”, “complexo”, “urgente”, “provocativo”, “cerebral” e “catártico”, para ficar em apenas alguns exemplos, trata-se do célebre canto-do-cisne do genial Coltrane, o que somente por isso já valeria um registro nos anais. Porém, além de tudo, é o sucessor da obra-prima "A Love Supreme" e o disco simboliza o ápice de um artista cuja carreira foi de total devoção à sua arte, pautada pelo constante amadurecimento e que paulatinamente voltou-se a uma busca espiritual de seu autor. Estava ali ele exposto, inteiro e indivisível.

Mas se o resultado final de “Ascension” aparenta ser sucinto, os meios pelos quais Coltrane chegou a tal não são nada simplórios. Além de sua banda de fé, que o acompanhava havia quatro anos – os gigantes McCoy Tyner, ao piano, Elvin Jones, na bateria, e Jimmy Garrison, contrabaixo –, Trane, incansável perscrutador de novos horizontes sonoros e metafísicos, surpreendeu a todos ao adicionar à aparentemente imexível formação novos integrantes. Primeiro, mais um baixo, o de Art Davis. Ainda, nada menos que outros seis sopros além do dele: dois trompetes, a cargo de Freddie Hubbard e Dewey Johnson; dois saxofones alto, Marion Brown e John Tchicai, e mais dois sax tenor para somarem-se ao seu, recrutando os então jovens admiradores Pharoah Sanders e Archie Shepp. Para quem vinha de um bom tempo desenvolvendo trabalhos autorais em quarteto (e não era qualquer um: era O quarteto de jazz!), colocar 11 músicos – sendo 7 deles, de sopros – e de diferentes origens (dos oriundos dos conservatórios a rapazes da nova geração passando pelos tarimbados do be-bop) era, no mínimo, desafiador. Por mais habilidoso que o engenheiro de som Rudy Van Gelder fosse. Mas Coltrane já era o grande nome do jazz moderno àquela altura, e tanto músicos como técnicos tinham essa noção. Por isso entendiam que, fosse como fosse, estavam prestes a preencher mais um capítulo da história do jazz naquela noite de 28 de junho de 1965.

O que se revelaria, enfim, dessa inusitada reunião? Nem quem estava acostumado com as experiências de Coltrane – sua banda, o produtor Bob Thiele e Van Gelder – imaginava o que ele propunha. Afinal, o conceito guardava realmente um arrojo inigualado até então. Coltrane já havia experimentado performances contínuas e longas tanto ao vivo quanto em estúdio. Mas não com tamanha complexidade, o que lhe deu um bocado de dor de cabeça. Mas, como se sabe, a obsessão e o perfeccionismo são proporcionais à genialidade. Referenciando-se no free-jazz de Ornette Coleman e Cecil Taylor, nos arranjos engenhosos de Charles Mingus para grandes bandas com vários tipos de sopros, bem como nas pesquisas das culturas oriental e africana e nas inovações tonais/atonais da vanguarda erudita (Messiaen, Bártok, Ives), Coltrane juntou tudo isso a seu gigantesco cabedal musical e engendrou uma ideia a qual já praticamente consolidara no seu celebrado álbum anterior: a da construção de uma peça una cuja “alma” conduzisse a “técnica”. Pautados pela ideia-base de “ascensão”, era o coração dos músicos, conectados com seus deuses interiores, que, a partir do conhecimento e experiências de cada um, constituiria o âmago de “Ascension”. Assim, ainda mais que “A Love...”, esta obra soa como uma suíte altamente coesa – no caso, uma improvável sinfonia para 5 saxofones e 2 trompetes.

Tal alquimia é arranjada com maestria no cadinho mental de Coltrane. A canção-tema se constitui de ensembles intercalados com solos de todos os instrumentistas em uma ordem preestabelecida. Uma semipartitura elaborada por ele institui quem entra, quando e quanto tempo tem para desenvolver-se considerando o arranjo e o tempo máximo de duração que cada lado do LP suportaria. Nos momentos conjuntos, a liberdade é total. Há uma quase imperceptível melodia-base de 3 acordes, mas, inspirado no exemplo de “Free Jazz”, de Coleman (1960), o que dá o direcionamento é a sensação momentânea do músico, e não um tempo ou escala predeterminados que o motivem. E é assim que já inicia e peça: sob uma tempestade de solos. Rajadas, gritos, ataques violentos, espasmos, glissandos, rubatos, fluxos densos, clusters, dissonâncias mil. Uma impressionante parede sonora que remete à politonalidade de Darius Milhaud e às camadas inter-relacionadas de Elliot Carter. Impacto é o termo certo.

A divisão dos solos é minuciosamente organizada, bem como impressionantemente sutil em meio a todo o caos: naquela avalanche de sons, o encadeamento entre estes e os ensembles, seja nos começos ou nos finais de cada um, é perfeito. A abertura do tema é longa, de mais de 4 minutos de extravaso. Emendando, de modo a começar as sequências individuais, o próprio Coltrane faz as boas-vindas em exatos 2 minutos de absoluta entrega. No auge de sua maturidade musical, sente-se um Coltrane sendo Coltrane mais do que nunca. Jogando a escala lá no alto de cara, ele começa em repetições lancinantes, sustentando o clima, a partir dali, com sua alta técnica e emotividade. Os saltos de modulação, a multitonalidade, os vibratos potentes e os double stops, característicos de seu estilo, estão todos ali, cristalinos. Os arroubos roucos, bem como a escalada emotiva, também: presentes. Termina, como não poderia ser diferente, explorando os limites do instrumento.  Fúria e paixão.

O fato de os músicos terem seus espaços predefinidos dentro da melodia não significava que, nos próprios intervalos, quando todos executam juntos, também não houvesse improvisos, às vezes tão significativos quanto os lances reservados. Na verdade, é como se ninguém parasse de solar do início ao fim. O trompete de Johnson, por exemplo, começa a soar mesmo antes de ele entrar sozinho. Mas quando é seu momento, o trompetista não deixa por menos: força a que se crie uma atmosfera de blues acelerado, lançando frases curtas e ligeiras em dissonâncias. Parece querer dar ainda mais significado ao solo anterior proposto por Coltrane, explicando-o em outras “palavras”, cuspidas e sem paciência. Já Sanders, dos mais felizes pupilos de Coltrane e igualmente instigado pelas questões da espiritualidade, aproveita a oportunidade para disparar de seu tenor um rascante e intenso solo, cheio de agudez e desespero, deixando evidente o estilo que o marcaria como band-leader a parir de então.
Hubbard, o solista seguinte, ao contrário de Sanders, já calejado e mais cerebral, em contrapartida à intensidade anterior, prefere dar um refinamento diferente à música. Ele, que nunca havia tocado com Coltrane, demonstra sua gratidão por ser chamado àquela sessão sabidamente histórica e explora seu inigualável bom gosto hard-bop e assertividade nas escolhas das notas – sem, contudo, sair do clima ardoroso. Impecável o mestre Hubbard.

Outro ensandecido fã de Trane dá as graças. É Sheep, à época, também dos iniciantes da New Thing como Sanders. Ele já sai despejando notas raivosas e frases discordantes, potencializando a maneira de tocar do professor. Mais um “chorus” de alta habilidade antecipa a entrada de Tchcai, o qual, num solo expressivo, faz oscilar na maior parte do tempo entre duas escalas, como que num dueto consigo mesmo – quem sabe, não era este o meio encontrado por Tchcai, respondendo à instigação de Coltrane, para demonstrar sua “ascendência” pessoal? Outra brilhante participação. Mantendo o mesmo instrumento, é a vez de Brown revelar seu íntimo, o que o faz com densidade e potência. A permanente construção da melodia, que desfaz os limites do que é conjunto e o que é individual, leva a que a entrada de Brown funcione como um desdobramento, uma continuidade do que já vinha sendo desenvolvido. Estreante, Brown traz para dentro do furacão sonoro um misto do formalismo, adquirido nos conservatórios de Atlanta e Washington, e um natural lirismo inquieto, típico da avant-garde que ajudou a cunhar.

Tyner, cuja inteligência e sensibilidade ao piano o fazem manter-se presente a todo instante – seja demarcando, pontuando, mantendo ou ajudando a evidenciar os outros instrumentos –, tem a sua hora exclusiva. Mas nem o diferenciado timbre das teclas faz com que seu solo também não se homogeneíze ao restante (está tudo integrado enredado). Coltrane está ainda improvisando quando Tyner “avisa” que vai entrar. Uma, duas, três vezes. Até que, quando se vê, é o piano que já domina o campo. Seus peculiares acordes martelados enriquecem o drama da peça. Ele articula tempos diferentes com as duas mãos, parecendo claramente em alguns instantes serem dois pianistas (ou não seriam?...).

No que Tyner encerra, Jones larga rolos bem marcados para dividir o improviso do piano com o dos baixistas. Davis e Garrison, então, apresentarem o momento certamente mais erudito do tema. Com acompanhamento só da bateria, seu duo é curto mas repleto de nuanças que somente as cordas de um contrabaixo podem dar. Neste caso, dois baixos, sendo que, num deles, Davis puxa o arco e transforma seu instrumento num cello, enquanto Garrison segue dedilhando e tracejando, longe dali, elevado. Um minuto basta para ambos, pois, logo em seguida, Jones, ativo em toda condução rítmica e harmônica desde o primeiro segundo, presenteia os diletantes com um ainda mais sucinto solo (apenas 25 segundos), porém possível de identificar toda sua habilidade e pungência. Ele merecia essa distinção, mesmo que assim, no final, antecipando a nova torrente de sons que, em pouco menos de 3 minutos, vem à tona para encerrar a suíte.

Várias análises podem se tirar de “Ascension”, haja vista sua infindável e desafiadora complexidade como obra. Entretanto, antes de tudo, é muito bonito o resultado que Coltrane extraiu desse verdadeiro tour de force coletivo. A conjunção de estilos de cada integrante forma uma espécie de “teia de temperamentos”, rica em personalidades e pulsação. Viva, uma obra viva. Do material maciço que o tema se compõe é possível, com aceitação e dedicação, derivar uma comovente procura interior. Comprometido apenas consigo e com sua obra, Coltrane desdenhou o sucesso imediato de “A Love...” e não se escondeu atrás do mito. Pelo contrário: saiu em busca de novos entendimentos de si e de sua música, fosse provocando ou resignando, inquietando ou contristando. Séria e comprometida união dos polos de uma existência: deus e diabo, bem e mal, amor e ódio, leveza e cólera. Como um Messiaen, que enxergava Deus em todos os sons, das naturais consonâncias aos diabólicos trítonos, observadas em profusão em sua última peça intitulada “Flashes da vida após a morte”. Como um Glauber Rocha que, em seu derradeiro “A Idade da Terra”, fez encarnar no Brasil urbano um Jesus freudiano cheio de aflições e belezas. Todas obras de final de vida de artistas irrequietos, por mais fatalista ou sublime que isso signifique. Coltrane, no seu último suspiro, igualmente mirou essa providência por meio da linguagem pela qual mais conseguia essa aproximação com o elevado. Como numa ascensão aos céus, a qual – provavelmente não por coincidência – cumpriria dali a menos de 2 anos rumo à eternidade, deixando uma das obras mais ricas que o mundo da música já conheceu.

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“Soberba”, de Orson Welles, é ainda hoje considerado um dos melhores filmes da história do cinema, mesmo sua edição final tendo ficado a cargo dos estúdios e não do cineasta, a contragosto deste, claro. A primeira versão de “Ascension”, lançado com John Coltrane ainda vivo, trazia o primeiro take dos dois que gravara com a banda na fatídica noite de junho de 1965. Porém, Coltrane havia gostado mais da segunda sessão – e manifestara isso a gravadora Impulse! quando do lançamento. A queixa ficou guardada por 44 anos. Como fazer, então? Realizar o sonho do autor antes tarde do que nunca. Em 2009, uma edição em CD, hoje tida como definitiva, traz as duas editions de “Ascension”, priorizando a preferida de Trane, “Edition II”, de cerca de 40 minutos e sem o solo final de Elvin Jones, e, em seguida, a versão impressa originalmente, de 38 minutos e meio. Delícia tanto para puristas quanto desapegados.
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FAIXA:
1. "Ascension" – 38:31

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segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Herbie Hancock – “Maiden Voyage” (1965)



"O esplendor de um navio marítimo em sua viagem inaugural".
Hancock,
sobre o que lhe inspirou
a compor a música “Maiden Voyage”



Ano passado, quando escrevi sobre um dos discos de jazz que mais admiro, "Empyrean Isles", de Herbie Hancock, que completava 50 anos de seu lançamento, deixei subentendido que, em 2015, outro dele não só mereceria também uma resenha quanto, igualmente, chegava ao cinquentenário. Pois a dourada década 60 para o jazz norte-americano, quando centenas de músicos produziam às pencas e com qualidade jamais vista, obviamente, contaminavam este pianista, tecladista, compositor e arranjador, um dos maiores jazzistas de todos os tempos e importante artífice da cena ocorrida cinco décadas atrás. Prodígio (aos 11, já tocava Mozart ao piano), Hancock notabilizou-se cedo no mundo do jazz de modo que, desde sua estreia como band leader, em 1962, aos 22 anos, seus trabalhos passaram sempre a ser aguardados com atenção. Após “Empyrean Isles”, já maduro e consagrado, era normal que se esperasse dele algo inovador. É quando entra nos famosos estúdios Van Gelder, em Nova York, a 17 de março de 1965, para lapidar outra pedra rara: o álbum “Maiden Voyage”.

Mas para equiparar-se ou até superar o que já havia feito, mais do que qualquer expectativa externa o próprio Hancock certamente se impunha a não apenas repetir a fórmula. Se o LP anterior trazia a semente do chamado jazz-funk, influenciando artistas da soul music, do jazz fusion, do rock e da música internacional (a ver pela MPB de Edu Lobo e Artur Verocai, para ficar em dois apenas), o desafio seguinte seria articular outra novidade dentro de seu gigantesco cabedal de referências sonoras. O jazz modal, o be-bop, a música clássica, as inovações da vanguarda, os ritmos latinos: tudo passava pela inventiva cabeça de Hancock. O resultado? Mais uma revolução dentro do jazz. E a célula disso é a monumental faixa-título, composição magistralmente arranjada e harmonizada por ele junto à não menos competente banda: o mestre do baixo acústico Ron Carter; o saxofonista tenor com blues nas veias George Coleman;  Freddie Hubbard, no trompete, outro monstro; e Tony Williams – dispensa comentários –, na bateria. Tudo amalgamado pelos cirúrgicos dedos de Rudy Van Gelder na mesa de som – além de ter uma das mais bonitas capas da Blue Note, assinada por Reid Miles.

E o que, então, essa “viagem inaugural“ de Hancock – não à toa, a faixa de abertura – trouxe de diferente? A começar, um aprofundamento do chamado jazz modal, introduzido por Miles Davis, artista do qual Hancock é um dos discípulos, no memorável "Kind of Blue", de 1959. Isso por que o tema se vale duma configuração de modos musicais distintos, organizando esses campos harmônicos através de uma distribuição entre os instrumentos espantosa. O riff de quatro acordes do piano se forma por uma conjunção sensorial dicotômica: os três primeiros soam austeros, enquanto o quarto, quase dispare, transparece vivacidade. O baixo, impositivo, logo assume a função da manutenção da base, mas a seu jeito: ondulante na passagem de uma nota para outra, dando sinuosidade ao contexto. Junto a isso, os metais, noutro andamento mas dentro do mesmo tempo, registram dois tons acima. Perfil sonoro alongado, de corpo simétrico e queda nada brusca. Parecem, sax e trompete, estar num transe. Arrematando, a delicada bateria de Williams, que suspende a melodia tanto pela manutenção nos pratos e caixa, o que lhe reforça o caráter etéreo, quanto pelo estabelecimento de um compasso arrastado (e distinto dos mantidos pelo piano e pelos metais, diga-se), no qual imprime leves atrasos no tempo. E, por incrível que pareça (não tão incrível em se tratando de Hancock): tudo fecha perfeitamente. Resta uma canção cujo centro modal é uno mas expandido, fazendo com que os acordes soem livremente mas sempre reconduzidos a este.

Os solos de “Maiden Voyage” são um caso à parte. A primazia de abrir as sessões de improviso é dada a Coleman, novo integrante e único não remanescente da banda que gravara ”Empyrean Isles”. E ele faz jus ao privilégio. Que solo! O seu melhor de todo o disco. Potente, rigoroso e lúcido. Já no final da primeira frase, anuncia a conotação vertiginosa que não apenas ele quanto todos os outros assumirão. Dois arpejos sutis mas determinados bastam para dizer isso. Sons em espiral, autorreferências, ciclos. Solo curto, mas abundantemente expressivo. Tão perfeito e afim com a melodia que não parece ter sido tirado na hora, mas sim escrito em partitura. Carter, inteligente, segura com mãos de mágico toda essa química quase improvável, enquanto Williams, este sim, sai apenas da manutenção do compasso para, aproveitando-se do campo estendido do modal, quebrar o andamento, lançar rolos curtos e desenhar o ritmo do jeito que a harmonia lhe autoriza.

Aí vem a parte de Hubbard. Se em “Cantaloupe Island”, peça-chave do disco anterior de Hancock, seu trompete trazia um dos solos que se tornaria um dos mais pop do cancioneiro jazz, aqui, há quase que uma recriação daquele improviso, porém, agora, ainda mais tomado de conexões com a tradição do instrumento (Louis Armstrong, Coleman Hawkins, Miles) e com o clima astral desse passeio musical proposto por Hancock. Altíssima técnica e controle. Quase finalizando o solo, ele chama todos os instrumentos a um momento mergulho, como que submersos num redemoinho de sons no qual ele executa sons cíclicos e os companheiros reavaliam seus lugares: oscilam, tumultuam-se e se reencontram novamente na margem. Emendado, o momento do próprio Hancock desnuda ainda mais o âmago da canção: idas e vindas do inconsciente em dissonâncias e sustenidos. A ideia espiral, claro, é retomada, adicionando aí a onicidade fantástica que as teclas brancas agudas oferecem. Um colosso da música mundial e uma das maiores expressões da avant-garde dentro do jazz. Enigmática mas instigante. Hermética mas saborosa. Ousada mas cativante. Estruturalmente complexa mas hipnotizante. Melodia, harmonia, arranjo, timbres: tudo faz com que “Maiden Voyage” seja uma esfinge ainda a ser totalmente desvendada.

Na sequência, o espírito blues é o que comanda “The Eye of the Hurricane”, hard-bop efervescente, como o título sugere, e de pura habilidade e afinação entre os integrantes. A atmosfera onírica não demora a reaparecer, entretanto. “Little One”, lenta e contemplativa, abre com repetidos rolos na caixa da bateria. O baixo e o piano largam acordes soltos e os sopros estabelecem um chorus longo, para, por volta de 1min20, mudar o compasso e entrar o sax de Coleman num solo apaixonadamente carregado. A mesma linha segue Hubbard, que ora retoma as ideias centrais do próprio improviso, ora dá voos. Elegante (mas não menos comovido), Hancock revela um piano quase erudito. Então que chega a vez de Carter maravilhar com um solo extraído da alma, antes de repetirem o intrincado chorus da introdução no final.

A exemplo do álbum anterior (na faixa “The Egg”), esta obra traz também a sua de caráter abertamente vanguardista. Aqui, é “Survival of the Fittest”. Inconstante, arranca com os sopros lançando notas agudas, o que é logo interrompido por um breve solo de Williams. O ritmo que se põe é intenso, suingado, sobre o qual Coleman destrincha acordes às vezes beirando o estilo dissonante de John Coltrane, sua forte inspiração. O andamento é quebrado novamente por volta dos 3 minutos para um novo momento da bateria, o qual antecipa a entrada de Hubbard. Tabelinhas com o piano, intensificadas pelas batidas, dão às improvisações do trompetista uma dinâmica incrível. Hancock entra e, entre dedilhados rápidos ora atonais ora coloridos feito um recital romântico, retraz lances de “Maiden Voyage”. Williams, de papel fundamental na construção de “Survival...” a finaliza carregando na caixa, no ton-tons e nos pratos.

O desfecho não poderia ser mais saboroso, com “Dolphin Dance”, standart do repertório de Hancock regravada por gente como Ahmad Jamal, Chet Baker e Bill Evans. Que melodia bela! Das mais deliciosas do jazz. Os solistas deitam e rolam: Hubbard arrasa em mais de 2 minutos ininterruptos só dele; Coleman, intenso e amoroso, como um bom Dexter Gordon. Dono da canção, Hancock sublinha ainda mais a emotividade adicionando-lhe novos motivos, pondo os golfinhos para dançar juntinhos. Uma simbólica maneira de terminar a “viagem inaugural”.

O ano de 1965 foi de obras-primas do jazz como "A Love Supreme" e “Ascension”, de Coltrane, “The Gigolo”, de Lee Morgan, e “The Magic City”, de Sun Ra. E “Maiden Voyage” certamente figura entre estes, quando não entre os maiores da história, como no caso das listas de uDiscover e Jazz Resource, que o apontam entre os 50 melhores de todos os tempos. Independente de colocação, o que importa mesmo é a permanência e a perenidade dessa música sem igual alcançada por Hancock e seus músicos. O próprio Hancock, irrequieto, não retornaria mais a este ponto: depois de apenas mais um trabalho na linha modal (“Speak Like a Child”, de 1968), o músico se enfiou em projetos com Miles, produziu trilhas sonoras e, quando viu, já estava nadando pelos mares do pós-bop, do fusion e do funk para mudar novamente a cara da música do século XX. “Maiden Voyage”, assim, serviu como uma verdadeira passagem para novos caminhos. Uma esplendorosa viagem inaugural sem volta e com destino à eternidade.
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FAIXAS:
1. Maiden Voyage
2. The Eye of the Hurricane
3. Little One
4. Survival of the Fittest
5. Dolphin Dance

todas as canções de autoria de Herbie Hancock.

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