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quarta-feira, 26 de abril de 2023

Música da Cabeça - Programa #316

 

Diferentemente do outro, a gente está autorizado a sujar um pouquinho o prêmio do Chico. Afinal, é por um bom motivo, como veem. Laureado de sons e letras, o MDC de hoje se escreve com L7, Cocteau Twins, Sepultura, Dr. Feelgood, Gil Scott-Heron, Led Zeppelin e mais. No Cabeção, uma homenagem a Ivan Conti Mamão, as baquetas mágicas da Azymuth e da MPB. Em desagravo à estupidez e ao obscurantismo, o programa às 21h, na camoniana Rádio Elétrica. Produção, apresentação e rara fineza: Daniel Rodrigues


www.radioeletrica.com

sábado, 3 de dezembro de 2022

“Racionais - Das Ruas de São Paulo Pro Mundo”, de Juliana Vicente (2022)


“Ai o cara assiste o show do Dr. Dre, vê os caras saindo de um telão tridimensional, fica inspirado e pensa o seguinte: ‘Vou fazer um Rap, porque rap é o que liga!’ E então o cara acorda!”
Mano Brown

Eu poderia começar esse texto com um milhão de relatos iguais a esse, inclusive o meu, e de outros tantos pretos periféricos que um dia ouviram e sentiram o peso da batida rap e a sensação de ser protagonista de alguma coisa relevante pelo menos uma vez!

Mas estou aqui sentado teclando no meu notebook para falar a história de quatro negros periféricos que foram salvos pelo rap: os Racionais MC’s simplesmente o maior grupo de rap do País, que ultimamente estrearam com um documentário maravilhoso na Netflix, “Racionais - Das Ruas de São Paulo Pro Mundo”, de Juliana Vicente. Lógico, eu assisti e tenho certeza que como os outros tantos pretos que citei antes, eu me identifiquei... mas logo mais eu explico.

Verão de 1988, Vila Jardim, Porto Alegre. Tenho claro em minha memória o dia que ouvi a primeira vez as palavras RAP FUNK SOUL saindo da boca de um falecido primo, o Sandro, Lembro de estarmos nos preparando para ir até a Mariland, uma rua próxima ao Centro Histórico, para ajudar o Sérgio, seu irmão mais velho, a guardar uns carros e fazer uns trocos para ir curtir um baile no Jara Musisom. Naquele momento eu senti a onda funk, o movimento vivo, a mobilização da massa black para ter um momento de diversão, uma folga do sofrimento cotidiano.

Cena do filme com a banda reunida lembrando e
refletindo sobre o passado, o presente e o futuro
Os bailes black eram como templos sagrados. Os irmãos vestiam a melhor roupa, erguiam seus black powers e celebravam a vida... Por que estou contando isso?

Porque aconteceu em todo o País, como contam os Racionais no documentário. As equipes de som eram quem faziam os eventos. Elas tinham a máquina nas mãos. Comigo foi a JS Musisom que tive o primeiro contato com o rap sendo feito ao vivo e nós, pretos, às vezes tínhamos uma oportunidade de mostrar na dança ou na expressão falada do rap algum tipo de talento. Nessa época, ainda não conhecíamos Racionais. As rimas eram toscas e feitas basicamente para animar o público. O show era do DJ, Nessa época, conheci o Nego Jay e montamos os Donos da Noite, que veio a ser um embrião da Código Penal.

Lá em São Paulo, os integrantes da Racionais (Mano Brown, Ice Blue, KL Jay e Edi Rock) se encontravam na São Bento, na região central. Aqui, era na Rua dos Andradas, Centro de Porto Alegre, e assim como lá, aqui as equipes davam essa abertura com festivais de música e tudo acontecia. Essa revolução aconteceu meio que simultaneamente em todo mundo, um levante negro como eu vejo acontecendo hoje, em 2022, desde o movimento #Blackslivesmetter até os festivais Afropunk por aí afora.

Mas voltando aos Racionais MCs, vejo organização, vejo atitude, vejo uma revolução necessária para um país recém saído de uma ditadura onde o jovem negro sempre foi visto como marginal, padrão e, mesmo parecendo redundante, não tem como escrever sem comparar a história deles com a minha. Os caras mudaram a forma do Brasil fazer rap, mudaram a linguagem e tiveram a coragem que muitos até hoje não têm. 

“Racionais - Das Ruas de São Paulo Pro Mundo”, no Netflix. Imperdível!

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trailer de “Racionais - Das Ruas de São Paulo Pro Mundo”


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Algumas referências: 

“Fear of a Black Planet, da Public Enemy

“The Revolution Will not be Televised”, de Gil Scott-Heron

“Power”, de Ice T

Lucio Agacê


segunda-feira, 5 de setembro de 2022

V.S.O.P. - “Five Stars” (1979)


"Eu pensei que seria impossível colocar pessoas como Tony Williams ou Ron Carter ou Wayne Shorter ou Freddie Hubbard na mesma sala ao mesmo tempo, porque muitos deles são líderes de bandas."
 
"A ideia era atualizar o passado. Eu não tinha a intenção de tentar tocar como toquei, mas pegar a música que tocamos no início e meados dos anos 70 e deixar a música acontecer a partir de nossos estados de espírito do momento."
Herbie Hancock 

É compreensível o folclore em torno dos chamados “times dos sonhos”. Seja no esporte ou nas artes, os “dream teams” criam uma verdadeira aura de fascínio. Na música, embora algumas bandas sejam consideradas excelentes, elencar uma seleção dos melhores entre os melhores é quase um sonho para os fãs. Imagine-se, por exemplo, se o rock tivesse conseguido promover o encontro de Jimi Hendrix, na guitarra; John Bonham, na bateria; Keith Emerson, nos teclados; e John Entwistle, no baixo? Impossível. 

No jazz? Tão improvável quanto. Para formar um timaço de melhores, só se fosse no Japão! E não é que este milagre aconteceu? E, pasme-se: não foi nos Estados Unidos, berço do jazz, mas, sim, na Terra do Sol Nascente. O feito raro tem um responsável: Herbie Hancock. Além de ser um dos integrantes deste “dream team”, foi ele quem catalisou as intenções e teve a ideia de, junto com o empresário David Rubinson, formar a “The Quintet”. Mas uma reunião tão especial não poderia chamar-se de outro jeito que não de algo que transmitisse bem essa ideia. A criativa solução foi dar o nome ao grupo de V.S.O.P., sigla que significa, na linguagem etilista, "Very Special One Time Performance", ou seja, a classificação dada à bebida conhaque envelhecida de alta qualidade.

Para isso, Hancock chamou, claro, só os melhores. Amigos músicos tão brilhantes quanto ele: Ron Carter, para o baixo; Tony Williams, para a bateria; Wayne Shorter, no sax; e Freddie Hubbard, ao trompete. Todos “all stars”, todos band leaders, todos lendas do jazz, que tocaram com outras lendas como Charlie Parker, Dizzie Gillespie, Miles Davis, Tom Jobim e Art Blakey. Todos senhores de obras que revolucionaram o jazz e a música moderna. Estavam todos ali, milagrosamente juntos. Seja por currículo ou por talento, a V.S.O.P. era o verdadeiro “dream team” do jazz.

Para materializar essa conjugação tão estelar, Rubinson promoveu um histórico show em San Diego, em 1977, que foi registrado no álbum “The Quintet”. O projeto deu tão certo, que deu vontade de também produzirem algo em estúdio. Foi aí que a turma foi parar no Japão, onde já eram individualmente aclamados. Foi a conexão que faltava: além de realizarem um novo disco ao vivo naquele mesmo ano, “Tempest in the Colosseum”, que encerrava a turnê, a turma, principalmente Hancock, acabou ficando lá pelo outro lado do mundo. Somente em 1979, dos seis discos que o pianista lança naquele ano, entre projetos solo ou acompanhados, quatro são gravados em Tóquio e lançados pelo selo Sony Japan. Um deles é justamente o colossal “Five Stars”, da V.S.O.P., único trabalho de estúdio da banda e cujo título não poderia ser mais adequado.

Coube ao engenheiro japonês Tomoo Suzuki comandar as mágicas gravações de 29 de julho daquele ano, nos estúdios CBS/Sony, em Tóquio. Mesmo experiente e calejado, por incrível que pareça o que o quinteto traz é de um frescor surpreendente e até tocante, não fosse, principalmente e acima de tudo, empolgante. Donos dos melhores currículos do jazz, eles tocam com a graça de jovens iniciantes. É surpreendente e comovente o misto coração e habilidade que estes cinco amigos, senhores do mais alto nível da música internacional, entregam na exuberante faixa de abertura, “Skagly”. São 10 minutos que é fácil duvidar que qualquer criatura que goste de música queira que em algum momento acabe. 

Sob a energia funk que todos conhecem e dominam, a faixa é um verdadeiro show de cada um dos participantes. Trata-se de um tema tão rico, que merece uma apreciação pormenorizada. A começar pelo autor, Hubbard. É ele quem dá as costuras altamente sofisticadas de fusion e hard bop do chorus. É ele quem estica as notas para os tons agudos, bem a seu estilo. É ele quem, com mérito, começa solando com a técnica invejável de quem tem seu nome gravado em álbuns como “Empyrean Isles”, de Hancock, “Free Jazz”, de Ornette Coleman, ou “Out to Lunch”, de Eric Dolphy. Carter: o único que não “sola”. Mas para quê? Afinal, o que o maior baixista da história do jazz faz é milagre. Quem conseguiria extrair tanta sonoridade, tanta personalidade do baixo acústico? Carter, que dispensara o baixo elétrico fazia tempo, prova por A mais B o porquê de sua escolha. Em “Skagly”, suas deliciosas ondulações e sua timbrística característica, aquela do quinteto mágico de Miles Davis e da sonoridade de Gil Scott-Heron, estão mais do que palpáveis: são uma caixa de ritmo. Só podia vir de quem já fez samba-jazz com Tom, Hermeto Pascoal e Airto Moreira.

Hancock: sabem aquelas notas que saltitam do piano em “Cantaloupe Island” e “Blid Man, Blind Man”? E a noção de ritmo repleta de groove e blues de quem contribuiu para a construção da sonoridade de gente como Miles, Shorter, Milton Nascimento, Lee Morgan e Joni Mitchell? De quem faz a improvável ligação entre Gershwin a hip hop? Pois é: Hancock em “Skagly” é tudo isso. Falemos, então, de Shorter. Bem, o que dizer de Shorter? A genialidade em forma de saxofone, a estirpe de Coltrane, a mente fusion da Weather Report, o buda do jazz, o solista incansavelmente criativo e hábil, o autor das obras-primas “Juju”, “Night Dreamer”, “Speak no Evil”? Pouco tem a se dizer e muito a aplaudir. Por fim, Williams. Este não ficou por último à toa, pois sua performance na faixa de abertura (nossa, isso, ainda é “apenas” a abertura do disco!) é, mesmo para os que sabem se tratar do, provavelmente, mais influente baterista da história do jazz, assombrosa. O que é I-S-S-O? Williams dá, literalmente, um show do início ao fim do tema, sem que isso, porém, se torne maçante ou confuso. Pelo contrário! É ele quem segura no punho o ritmo funk de cabo a rabo, mas não deixa de esmerilhar nas quebras e descidas. Quantas variações de rolos, polirritmia, mudanças de timbres! Conhecido por sua categoria nas baquetas, como as que executa em clássicos como “Maiden Voyage”, de Hancock, “Refuge”, de Andrew Hill, ou “Shhh”, de Miles, e inúmeros outros, aqui ele não economiza na explosão.

Bastaria falar apenas sobre a faixa de abertura, mas esses cinco jovens tarimbados não deixariam o ânimo cair jamais. Tanto que, na sequência, vem o sofisticado jazz bluesy “Finger Painting”, com lances modais e bopers fluindo naturalmente entre si, coisa de quem toca jazz de olhos fechados. O baixo de Carter escalona sons ondulados enquanto Shorter e Hubbard se encarregam de lançar frases em colorações medianas, Williams privilegia o tintilar dos pratos e chipô e Hancock mantém o clima onírico em notas claras e prolongadas. Em “Mutants On The Beach”, a terceira, hard-bop mais clássico e não menos gracioso, Carter novamente “carrega” no baixo, dando agora aos sopros maior amplitude para voaram com apoio do ritmo embalado marcado por Williams e Hancock. O pianista, aliás, confere dissonâncias perfeitas em seu improviso, ligando o anterior, de Hubbard, com o seguinte, de Shorter. Mas Williams estava chispando fogo como um dragão japonês, e manda ver num magnífico solo para terminar a música.

Sabe o gol de Carlos Aberto para a Seleção Brasileira sobre a Itália na final da Copa de 70? Ou a trinca “Golden Slumbers/Carry That Weight/The End” para encerrar o último disco dos Beatles, “Abbey Road”? É esta sensação que deixa “Circle”, a que finaliza o disco do “dream team” V.S.O.P. Quanta perfeição! Enigmática, é um misto de “In a Silent Way”, de Miles, com “Maiden Voyage”, com “Psalm”, de Coltrane, e mantra oriental. A melodia espiral, cadenciada pelo baixo já tradicionalmente assim de Carter, dá literalmente uma sensação de circularidade, absorvendo quem escuta numa atmosfera de vertigem. Ainda bem que se trata da menor faixa das quatro, pois se não os ouvintes entrariam em transe – se é que não entram.

Depois deste álbum japonês, a V.S.O.P. lançaria ainda apenas mais um disco também ao vivo como os dois primeiros antes de se dissolver ou transformar-se em outros projetos, visto que os integrantes seguiram contribuindo uns para os outros em vários momentos. Porém, embora a formação do grupo tenha se dado ainda nos Estados Unidos para um show quase comemorativo de músicos “envelhecidos de alta qualidade”, foi no Japão que este prosseguiu e onde se concretizou o histórico registro do quinteto em estúdio – feito que, infelizmente, nunca mais se repetirá uma vez que Hubbard faleceu em 2008. Contudo, é normal que “times dos sonhos” não permaneçam por muito tempo mesmo. A conjunção de fatores para que esse milagre ocorra é tão improvável que os deuses podem resolver que ela ocorra quando e onde menos se espera. No Japão, por exemplo. 

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FAIXAS:
1. "Skagly" (Hubbard) - 9:56
2. "Finger Painting" (Hancock) - 6:44
3. "Mutants On The Beach" (Williams) - 11:04
4. "Circe" (Shorter) - 4:30

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues


quarta-feira, 29 de junho de 2022

Música da Cabeça - Programa #273

 

Sentimos orgulho. E que orgulho de ver essas cores emoldurando o nosso homenageado do MDC de hoje! Na Semana do Orgulho LGBTQIA+, além de celebrar os 80 anos de Gilberto Gil em letras, quadros e músicas, teremos também Towa Tei, Lee Morgan, Tom Zé, Gil Scott-Heron e mais. Aproveitando a vazante da infomaré, o programa parte direto de Bonsucesso às 21h na baiana e imortal Rádio Elétrica. Produção, apresentação e alma cheirando a talco: Daniel Rodrigues

#orgulholgbtqia
#SomosDiversos
#lgbtqiamais
#respeitoasdiferenças

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

“Summer Of Soul (...ou, Quando a Revolução Não Pôde Ser Televisionada)”, de Ahmir "Questlove" Thompson (2021)

 

Não parece aceitável que seja apenas o aperfeiçoamento dos recursos técnicos, capazes de recuperar com tecnologia digital filmes antigos, o motivo que explique porque estejam vindo somente agora a público certos registros do passado cujos espinhosos temas são necessários e urgentes para se entender a sociedade do hoje. O racismo, seja estrutural, velado ou institucionalizado, de alguma forma colabora para essa justificativa. Por que, então, não fosse por isso, somente após 60 anos de carreira, Tina Turner sentira-se à vontade para divulgar questões até então sujeitas à crítica de sua vida pessoal no documentário “Tina”? Igualmente, por que apenas dos últimos anos para cá tenham fervilhado docs  abordando abertamente este tema como "Os Panteras Negras: Vanguardas da Revolução" (2015), "What Happened, Miss Simone?" (2015), "Eu Não Sou Seu Negro" (2016), "A 13ª Emenda" (2016) e "Libertem Angela Davis" (2012)?

Esse esquecimento perverso quase fez o mundo perder de conhecer uma história praticamente apagada das mentes, mas que, salva pelas mãos do cineasta Ahmir "Questlove" Thompson, foi resgatada para a eternidade. “Summer Of Soul (...ou, Quando a Revolução Não Pôde Ser Televisionada)”, o magnífico e arrebatador documentário que concorre, com todo merecimento, ao Oscar nesta categoria, explora o Harlem Cultural Festival de 1969, evento que reuniu multidões de pessoas negras pela primeira vez em um acontecimento público e ao ar livre nos Estados Unidos e grandes nomes da música negra para celebrar a cultura afro-americana. Apesar da magnitude do festival, as imagens recuperadas pelo filme ficaram guardadas por décadas – acredite-se – numa cave. A referência no título à música de Gil Scott-Heron, escrita originalmente naquele mesmo explosivo ano de 1969, deixa claro o tom de denúncia que choca e encanta ao mesmo tempo. Como essa história tão rica nunca havia sido contada?

Wonder dando adeus ao sufixo "Little"
e ganhando maturidade
no Harlem Cultural Festival


Montado com sensibilidade e perspicácia, “Summer...” une em sua narrativa didática jornalística com arqueologia urbana. Focado nos vários números musicais que se apresentaram no palco montado em pleno Mount Morris Park, as apresentações são entrecortadas por breves mas extremamente precisas informações documentais sobre aspectos sociais, políticos e biográficos que sustentam o objeto do filme, fazendo com que não seja apenas um amontoado de músicas seguidas umas das outras (o que, neste caso, já seria interessante). Minitelejornais sobre determinado artista, imagens de fatos sociais recentes como manifestações contra o racismo, ou contextualizações históricas necessárias, como a coincidência do festival com o dia da chegada do homem à Lua, 20 de julho, dão ainda mais peso àquelas performances que se veem no palco, agigantando-as de significado e importância.

Afora isso, a variedade de estilos (R&B, funk, gospel, blues, jazz) e o nível de qualidade do cast é de encantar qualquer admirador da música feita nos últimos 60 anos. B.B. King, Nina Simone, Mahalia Jackson, Stevie Wonder, Sly & Family Stone, Gladys Knight & the Pips, The 5th Dimension, Max Roach e outros desfilam à frente dos olhos dos espectadores, dando a impressão de quase não se acreditar que aquilo um dia aconteceu. Mas está ali, vivo novamente. Afortunados que estavam na plateia e alguns daqueles artistas, como Marilyn McCoo e Ronald Townson, da The 5th Dimension, juntam-se aos espectadores comuns nesse assombro. Noutro grande mérito do filme de Thompson, pessoas que presenciaram o festival, seja assistindo ou se apresentando, são convidadas a reverem as imagens até então perdidas. Profundamente tocados, pois a revivência lhes retraz alegrias e dores, é impressionante perceber o quanto todos demonstram surpresa com o que veem, não só por somente agora terem a oportunidade disso, mas porque, não fosse a força intrínseca da imagem, do mistério divino que o cinema guarda, as memórias tendem a irem se apagando até, um dia, desaparecerem por completo. É o cinema documental exercendo suas duas primordiais funções: revelar e eternizar.

trailer de "Summer of Soul"

Além de um retrato do momento sociocultural de final dos conturbados anos 60, o filme serve também para se entender o próprio estágio em que se encontravam àquela época os artistas participantes, visto que, para alguns, o festival foi crucial para a carreira. Wonder, então com 19 anos, por exemplo, sobe ao palco do Harlem Cultural Festival exatamente no ínterim entre sua tutela artística pela Motown, iniciada quando ainda era uma criança, e o começo da maturidade criativa, que o levaria a se tornar um dos mais consagrados artistas de todos os tempos a partir de então. A Sly & Family Stone, igualmente. É impressionante perceber que “Stand!”, revolucionário disco de estreia da banda que mesclava o funk negro ao psicodelismo do rock com o grito contra as desigualdades, havia sido lançado apenas um mês antes da realização do festival e, mesmo assim, já era uma febre junto ao público. E o que dizer da apresentação explosiva de Nina?! Ou da homenagem a Martin Luther King, protagonizada por Mavis Staples e Mahalia!? De arrepiar. Se o assassinato do pastor e líder político ainda hoje não é totalmente assimilado pela comunidade negra, imagine-se à época, pouco mais de um ano anos após o trágico ocorrido e em que as feridas estavam abertas.

Mavis e Mahalia protagonizando
um dos momentos mais
emocionantes do filme
O paralelismo com fatos históricos daquele efervescente período está presente a cada minuto do longa, como a onipresença dos Black Panthers (responsáveis pela segurança do evento), a presença de figuras emblemáticas para a causa negra como o ativista Jesse Jackson e o protagonismo de Tony Lawrence, agitador cultural e organizador do festival. Somente assistindo-se o filme se entende com mais clareza, por exemplo, o porquê das críticas que sempre pairaram em relação à política de financiamento da corrida especial, intensificada pelos Estudos Unidos naquela década de 60 de Guerra Fria e disputa de poder com a União Soviética. Num dos momentos do filme, mostram-se reportagens da época com pessoas sendo entrevistadas durante o festival dizendo ser um absurdo o governo gastar bilhões de dólares para ir à Lua enquanto a população, ali, pobre e em sua maioria negra, passa por tanta dificuldade. Noutro ponto, mais um aspecto elucidativo de “Summer...”: o festival foi realizado, curiosamente, durante o mesmo verão que outro megaevento, o de Woodstock, o qual levantava não a perigosa bandeira da luta contra o racismo e dos direitos civis, mas a utópica máxima hippie de “paz e amor”. Não é difícil de saber qual festival entrou para a história e qual foi esquecido num porão...

“Summer...” não é só provavelmente o melhor documentário deste ano e forte candidato à estatueta da Academia, como um dos mais brilhantes sobre música da história do cinema, tranquilamente equiparável a clássicos do gênero como “O Último Concerto de Rock”, “Gimme Shelter” e “Amazing Grace”. Sua narrativa, que casa metalinguística e documentação histórica, é tão eficiente que lhe potencializa o caráter de espetáculo e de denúncia social num só tempo. A realização milagrosa de “Summer...” é, por si, reveladora, visto que funciona como uma metáfora da vida da América escravagista: preso num calabouço, o negro, até então fadado ao apagamento social, sai da condição subumana para forjar, com talento ímpar e força interior ainda mais admirável, toda a arte musical moderna como se conhece hoje.


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 7 de junho de 2021

Ron Carter - "Third Plane" (1977)

 

"A frase 'The Sound of Jazz' é cogitada às vezes. Bem, para mim, 'The Sound of Jazz' é Ron Carter tocando quatro compassos em sequência."
Ethan Iverson, pianista de jazz

É inegável a magia dos trios de jazz. The Lester Young & Buddy Rich Trio, The Oscar Peterson Trio e Keith Jarrett Trio fizeram história ao longo das décadas, destacando-se invariavelmente pela união de três músicos afiados e entrosados entre si. Casando a proximidade pessoal e artística com a habilidade instrumental, outro estelar trio juntou-se, em 1977, para um célebre (re)encontro. Ron Carter, um dos baixistas mais aclamados e requisitados tanto do jazz quanto da música moderna – tendo gravado com centenas de músicos de primeira linha, como Miles Davis, Tom Jobim, Thelonius Monk, Gil Scott-Heron e Alice Coltrane – projetava seu nono álbum como band leader. Para tanto, convidou dois velhos conhecidos, ambos lendas da música assim como ele próprio: Herbie Hancock, piano, e Tony Williams, bateria. Acostumado com todos os tipos de formação, Carter havia experimentado de grandes bandas a duo em seus álbuns solo anteriores, mas, por incrível que pareça, ainda não com apenas outros dois acompanhando-o. Não deu outra: a mística do power trio se fez presente e o resultado é um dos mais emblemáticos discos de sua carreira: “Third Plane”.

A influência do Brasil mostra-se tão inegável quanto legítima para quem gravara discos históricos da MPB como “Wave”, de Tom (1967), “Hermeto” (1972), com Hermeto Pascoal, e “Seeds of the Ground”, de Airto Moreira (1971), dentre outros. Hancock e Williams, entretanto, não ficam para trás, haja vista a versatilidade de ambos e, principalmente, a proximidade de Hancock com a música brasileira. Desde 1968, ele já convivia de perto com Milton Nascimento, com quem, um ano antes de "Third...", inclusive, gravara o clássico “Raça”. Com essas influências, a faixa-título inicia o disco, que tem o contrabaixo de Carter comandando as ações. Williams engendra um ritmo sambado elegante, bossa novístico e bluesy ao mesmo tempo. De seu lado, Hancock é capaz de realçar linhas harmônicas que se põem no limite do erudito e da tradição pianística do jazz. Genial. Carter, por sua vez, justifica toda a herança do samba que tão bem aprendeu a carregar. Seu estilo único e expressivo de tocar enche a música de personalidade, o que, para ouvidos minimamente atentos, é impossível não perceber que é o baixista quem está tocando aquele que pode ser considerado um dos sons mais característicos do jazz mundial. 

A classe permanece, mas agora para uma balada romântica vaporosa e, literalmente, aquietadora. A atmosfera sensual de “Quiet Times”, um convite a uma noite de amor ao som de um jazz que parece bater ao ritmo dos corações, ganha ainda mais intensidade no dedilhado ondulante de Carter, que faz o ouvinte sentir cada nota, cada deslizar dos dedos pelo corpo do instrumento. O piano, inebriado, pontua notas e acordes ora dissonantes, ora extremamente oníricos. Tudo isso, enquanto Williams se esmera no acompanhamento das escovinhas sobre a caixa e os pratos.

O entrosamento entre Carter e sua pequena banda é visível e vinha de muito tempo. Eles já haviam se topado quase 15 anos antes, em 1963, quando integraram a banda de Miles Davis que excursionou com o trompetista e o saxofonista George Coleman pelos Estados Unidos e pela Europa. Com Miles, aliás, formariam, com a adição de Wayne Shorter ao sax, aquele que é considerado o melhor grupo de quatro músicos de jazz depois do "quarteto clássico" de Coltrane, responsável por obras memoráveis da segunda metade dos anos 60 como “Smiles”, “E.S.P.” e “Miles in the Sky”. Mais ou menos nesta época protagonizariam, ao lado de mais um craque, Freddie Hubbard, à corneta, outro ícone do jazz: “Empyrean Isles”, de Hancock. Tal química é o que se vê muito bem resolvida no bop moderno “Lawra” e em "United Blues", quando os três aproveitam o tema para lançar sua verve groove.

Novamente a alma brasileira de Carter surge, agora numa bossa nova romântica e classuda no melhor estilo Tom Jobim. É uma original versão para o standart “Stella by Starlight”. Não à toa, o piano de Hancock é que se destaca, reverenciando o "maestro soberano" como ele e Carter fariam em solo brasileiro juntamente com outros vários músicos no show “Tribute to Jobim” do Free Jazz Festival de 1993. Notam-se reminiscências das melodias de “Lígia” e “Ana Luiza”, emblemas da bossa nova jobiniana, mas agora para tematizar outra musa: tom melancólico e lírico e harmonia complexa num tema de paixão desenfreada. Areias de Copacabana na baía de San Francisco. 

O final é tão assertivo quanto juntar em um trio Carter, Hancock e Williams: “Dolphin Dance”, clássico do repertório de Hancock em que repetem o feito de “Maiden Voyage”, de 1965, quando a tocaram acompanhados de Coleman e Hubbard. A escolha do tema passa longe de soar como uma garantia de um bom encerramento, visto que se dedicam a interpretá-la com uma energia e paixão tão tocantes, que a diferenciam da original ou de qualquer outra versão que o tema tenha recebido. Blues, modal, cool, hard. Transformações rítmicas, conjunções harmônicas criativas... tudo se escuta na faixa derradeira de “Third...”, o qual tem como último acorde o sinuoso toque do tão referencial baixo de Carter. Um final perfeito para um disco igualmente irretocável.

Uma das qualidades dos trios de jazz está na superação de uma suposta deficiência: a ausência de um solista. Sem pelo menos um quarto membro, que equilibraria a formação com as três bases mais comuns – piano, baixo e bateria – mais um solo, a banda, com somente três integrantes, geralmente restringe-se apenas a estes instrumentos-base. Quando muito, um sopro, o que implicará, necessariamente, na supressão de algum daqueles três. Ou seja: é mais difícil de se compor a arquitetura sonora. Dessa “dificuldade”, entretanto, sai o trunfo dos grandes trios, que é justamente aproveitar-se desta composição mínima, atribuindo a todos a liberdade de preenchimento do espaço harmônico e solístico. Carter e seus parceiros mostram o quanto isso é possível quando se tem talento e paixão. A seis mãos, o que se escuta é mais do que três músicos dividindo o estúdio: é o atingimento de algo maior, imaterial. Um terceiro plano.

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FAIXAS:
1. "Third Plane" – 5:53
2. "Quiet Times" – 7:52
3. "Lawra" (Tony Williams) - 6:08
4. "Stella By Starlight" (Victor Young/Ned Washington) – 8:26
5. "United Blues" – 3:01
6. "Dolphin Dance" (Herbie Hancock) – 8:20
Todas as composições de autoria de Ron Carter, exceto indicadas


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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Música da Cabeça - Programa #189

 

VAMOS PARA O SEGUNDO TURNO, ENTÃO, PESSOAL? O MDC DE HOJE TRAZ O TEMA DAS ELEIÇÕES MUNICIPAIS E MUITO MAIS. NAS MÚSICAS, TRIBALISTAS, DON MCLEAN, MILTONNASCIMENTO, TITÃS, GIL SCOTT-HERON E OUTROS. NOS QUADROS, "MÚSICA DE FATO", PALAVRA, LÊ" PARA PAULINHO DA VIOLA E "SETE-LIST", COM LISTA CURIOSA. O PROGRAMA DE HOJE ESTÁ ASSIM: SEM ATRASO NO RESULTADO, POIS COMEÇA PONTUALMENTE ÀS 21H, NA SEÇÃO DA RÁDIO ELÉTRICA. PRODUÇÃO, APRESENTAÇÃO URNAS CONFERIDAS: DANIEL RODRIGUES.


RÁDIO ELÉTRICA:
HTTP://WWW.RADIOELETRICA.COM/


segunda-feira, 22 de junho de 2020

Curtis Mayfield - "Curtis" (1970)



“Curtis escreveu um material que se tornou o exemplo clássico de como um negro inteligente, preocupado com a situação das pessoas, pode estabelecer novos objetivos e injetar orgulho na música. O talento único de Curtis combina uma melodia cativante, instrumentação interessante e comentários expressos que o levaram a um grande respeito na comunidade negra.”
Richard Robinson, para a revista Billboard

“Vidas negras importam”. 
Mensagem escrita em 
cartazes nas ruas norte-americanas 
durante as manifestações contra 
a morte de George Floyd

A história da música soul nos Estados Unidos é marcada pela revelação de talentos tão intensos que acaba sendo impossível de serem represados. O baterista contratado pela Motown estritamente para acompanhar bandas como Martha and the Vandellas e The Marvelettes no final dos anos 50 era também um cantor e compositor tão completo, que não demorou para a gravadora perceber que ele fazia jus em assinar sozinho os próprios trabalhos com o seu nome artístico: Marvin Gaye. Outro, o pianista da banda de Otis Redding nos anos 60, ganhou o protagonismo merecido antes mesmo daquela década terminar, tornando-se o genial “Black Mose” autor de “Shaft” e outras obras essenciais à música soul. Era um rapaz corpulento e de voz grave chamado Isaac Hayes.

Com Curtis Mayfield aconteceu algo semelhante. Um dos integrantes do grupo vocal de rhythm and blues de Chicago The Impressions, ele rapidamente destacou-se sobre seus companheiros, igualmente bons cantores como ele, mas não apenas pela afinadíssima voz tenor e, sim, pela incrível capacidade compositiva e de liderança que o diferia dos demais. Quem escuta os discos da banda, a qual pertenceu de 1963 a 1969, percebe que, desde a composição do primeiro sucesso, a clássica "Gypsy Woman", até o último disco como integrante, “The Young Mods' Forgotten Story”, todo escrito por ele, Curtis se tornara maior do que a Impressions. Ele não cabia mais num trio: precisava ser uno. Precisava alçar o voo solo.

Baldwin e Angela: referências
da luta racial nos anos 70
Vários fatores contribuíam para que a investida solitária de Curtis Mayfield fosse aguardada por público e crítica naquele início de anos 70. Aquele passo tinha tudo para representar uma guinada para alguém já experimentado como artista, pois acostumado com as paradas e com o showbizz, mas também de quem se esperava sintonia com o então efervescente momento de lutas raciais nos Estados Unidos. Fazia pouco que dr. King e Malcom X haviam sido assassinados, abrindo uma fenda emocional e de representatividade para a cultura negra. Em compensação, a ação dos Panteras Negras e o ativismo de figuras como Angela Davis e James Baldwin mantinham de pé as lutas pelos direitos civis. Mas dada a gravidade da situação, era preciso revoltar-se, e quanto mais (e qualificadas) vozes, melhor. A Sly & Family Stone já havia soltado o grito de resistência “Stand!”; Muhammed Ali defendia com punhos e verbos seu povo; James Brown versava as palavras do líder sul-africano Steve Biko: “Say it loud: I’m black and proud!” (“Diga alto: sou negro e orgulhoso!”); o movimento Black Power tomava as ruas exigindo “respect”. Porém, a comunidade negra precisava de mais, e Curtis, então com 28 anos, representava a ascensão e a afirmação de uma população segregada e violentada como cidadã. É nesse cenário que Curtis se lançava para um voo solo: carregando sobre suas asas a responsabilidade tanto artística quanto política da Black Music.

Ouvem-se, então, os primeiros acordes do disco: um som grave de baixo, que prenuncia um riff cheio de groove e inteligência musical. Talvez os “brothers and sisters” que a escutavam pela primeira vez naquele setembro de 1970 não percebessem que estavam diante de um dos mais célebres começos de disco de todos os tempos na música pop. Entram, na sequência, bongôs de matiz africano e vozes entrecruzadas levantando questões polêmicas, as quais são logo catalisadas pela do próprio Curtis, que anuncia com ecos retumbantes: “Não se preocupem: se houver um inferno abaixo de nós, para lá todos iremos!” É “(Don’t Worry”) If There's a Hell Below We're All Going to Go”, a arrebatadora faixa de abertura de um disco que não podia ter outro nome que não, simplesmente, “Curtis”. À exceção do tom pastel da capa, trata-se de um álbum negro em todas as dimensões possíveis: na sonoridade, no resgate da ancestralidade, na mensagem afirmativa e de denúncia e no comprometimento com o movimento negro.

Era a confirmação de que Curtis registrava sua emancipação como artista. A música conhecia pela primeira vez sua obra autoral, que abria com esse funk de reverências a James Brown e à africanidade. Curtis, consciente de seu papel, não fugia às discussões sérias, falando sobre preconceito, violência policial e repressão política: “Irmãs, irmãos e desfavorecidos/ negros e mulatos/ A polícia e os seus apoiadores/ Eles são todos os atores políticos”. “If There's...” antecipava outro trunfo da música soul daquele início de anos 70: a Blackexplotation. Quem escuta o primoroso arranjo de cordas, as percussões afro e o baixo marcado da faixa é impossível não associá-la às trilhas sonoras de filmes feitos com e para negros que “explodiriam” àquela época na indústria cinematográfica norte-americana – dentre as quais, a de “Superfly”, que Curtis assinaria poucos anos mais tarde.

Se o disco começa com algo que resume o estilo sofisticado de Curtis – as primorosas harmonias, os arranjos suntuosos, as cordas entusiasmadas, a levada groove da guitarra, o ritmo tão funky quanto fluido e, claro, o apurado falsete de sua voz –, agora ele, dono de seu rumo, queria mais. Queria tudo que lhe fosse de direito e de seus irmãos. “Other Side Of Town”, cuja abertura com harpas em cascata faz remeter à ideia de um sonho, é uma balada como as que se acostumara a escrever, mas com uma nova densidade tanto estilística quanto discursiva. O arranjo de metais dá-lhe um ar épico, como uma música triunfal da realeza africana, para, em contraste, fazer uma crítica ao apartheid a que os negros do gueto são submetidos socialmente. “Depressão faz parte da minha mente/ O sol nunca brilha/ Do outro lado da cidade/ A necessidade aqui é sempre de mais/ Não há nada de bom na loja/ Do outro lado da cidade/ (...) Minha irmãzinha, ela está com fome/ De um pão para comer/ O meu irmão me entrega sapatos/ Agora estão mostrando os pés”.

Curtis tocando ao vivo à época do disco:talento
confirmado como artista solo
"The Makings of You", novamente com o som da harpa bem presente, lembra bastante temas como “Keep On Pushing” e “For Your Precious Love” da Impressions, e comprova a incrível afinação de Curtis, que performa com sensibilidade e técnica tons agudos para cantar esta linda canção, que novamente traz as questões sociais. Porém, desta vez, relatando uma tocante cena: a de um rapaz que distribui doces para as crianças e as alegra por alguns instantes capazes de fazer com que o autor enxergue esperança “no amor da humanidade”.

A harmonia entre os homens, entretanto, está longe de se concretizar, e Curtis tinha consciência disso. Não à toa, vem, na sequência, a reflexiva “We People Who Are Darker Than Blue” (“Nós, pessoas que somos mais escuras que o azul”). Não por acaso também se trata de um lamentoso blues, o qual seu lindo canto cadencia versos como: “Nós, pessoas que somos mais escuras do que o azul/ Não há tempo para segregar/ Eu estou falando sobre marrom e amarelo também/ Garota tão amarela que você não pode contar/ Eu sou apenas a superfície do nosso poço profundo e escuro/ Se a sua mente puder realmente ver/ Você veria que sua cor é igual à minha”.

Outra preciosidade de "Curtis" é "Move on Up", grande sucesso da carreira solo do artista que prova o quanto ainda sabia escrever hits (a versão reduzida dos mais de 8 min originais passou 10 semanas no top 50 da parada de singles do Reino Unido em 1971, chegando ao 12º lugar, e se tornou um clássico da música soul ao longo dos anos). Esta empolgante soul, com exuberantes arranjos de cordas e metais, traz mais uma vez a intensa percussão afro e uma performance impecável de Curtis, responsável não apenas pela guitarra, mas por vários outros instrumentos. Aqui nota-se um músico totalmente dono de sua obra: ao mesmo tempo em que se vale de sua música para a crítica, também domina a arte de criar canções para as massas. Para os que acham que seu auge é "Superfly", "Move..." prova que este momento já estava em “Curtis”.

Curtis com a filha ainda criança,
nos anos 70
Na suingada e lúdica "Miss Black America", Curtis inicia dialogando com sua filha criança perguntando-lhe o que ela, em seus sonhos, se imagina quando crescer. A resposta induz a algo que, novamente, retraz as conquistas por direitos dos negros, uma vez que a recente vitória de uma mulher preta no concurso Miss Universo em 2019 (a sul-africana Zozibini Tunzi), ainda surpreende o mundo. "Wild and Free", com seus metais e cordas intensos, é mais um funk que reitera o discurso pelo respeito à causa racial e ao direito de ser "selvagem e livre". Agora, aliás, subindo o tom ao incrementar na letra a icônica mensagem anti-racismo "power to the people" ("Respeito por essas pessoas/ Poder para as pessoas/ Estabelecendo a velha geração/ Trazendo o novíssimo/ Selvagem e livre com a paz finalmente").

A suave "Give it Up" tem a primazia de fechar o brilhante debut de Curtis Mayfield, trabalho assustadoramente atual mesmo 50 anos após seu lançamento. A catarse mundial gerada pela revoltante morte do ex-segurança George Floyd, vitimado recentemente pela violência da polícia e da sociedade norte-americana, evidenciou o quanto as questões levantada neste disco, há cinco décadas, estão longe de serem resolvidas. Se o racismo ainda está aí, Curtis é morto desde 1999, quando, após complicações motivadas por um fatídico acidente que o deixara paraplégico, despedia-se prematuramente aos 57 anos. Só assim para frear o seu talento.

Embora não tenha feito o mesmo sucesso que seus contemporâneos de black music Marvin Gaye, Al Green, Stevie Wonder e Barry White, Curtis pode tranquilamente ser considerado integrante do.panteão dos grandes criadores da soul norte-americana. Ele é daqueles autores cuja obra demarca um “antes” e um “depois”, tanto pela beleza única de suas composições quanto pelo o que representou para o movimento negro e a luta pelos Direitos Civis norte-americanos naquele inicio de década de 70. O disco “Curtis” antecipa em um ano, inclusive, uma trinca de obras que se eternizaria, entre outras qualidades, justamente pelo teor de resistência: “What’s Going On”, de Gaye, “Pieces of a Man”, de Gil Scott-Heron, e “There’s a Riot Goin’ On”, da Sly. Curtis dizia que suas músicas sempre vieram de perguntas para as quais precisava de respostas. Vendo o quadro político-social de hoje ainda tão desigual, se estivesse vivo, 50 anos depois de ter levantado e respondido várias dessas questões, provavelmente voltaria numa delas e se indagaria: “o inferno, que eu pensava estar abaixo de nós, é aqui mesmo, então?”

Curtis Mayfield - "Move on Up"




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FAIXAS:
1. "(Don't Worry) If There's a Hell Below, We're All Going to Go" - 7:50
2. "The Other Side of Town" - 4:01
3. "The Makings of You" - 3:43
4. "We the People Who Are Darker Than Blue" - 6:05
5. "Move On Up" - 8:45
6. "Miss Black America" - 2:53
7. "Wild and Free" - 3:16
8. "Give It Up" - 3:49
Todas as composições de autoria de Curtis Mayfield

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OUÇA O DISCO
Curtis Mayfield - "Curtis"

Daniel Rodrigues

quarta-feira, 18 de abril de 2018

Música da Cabeça- Programa #54


Dona Yvone Lara foi sentar-se no trono que a esperava no céu dos sambistas, mas aqui a gente não deixa a batucada parar. Além de homenagear a Rainha do Samba, vamos ter também vários outros gêneros: o rock dos Ramones, o eletro-pop de Towa Tei, a bossa nova de João Gilberto e a soul de Gil Scott-Heron. Mas tem mais também! Para saber, só escutando o programa hoje, às 21h, na Rádio Elétrica. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues.


Rádio Elétrica:

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Ornette Coleman – “The Shape of Jazz to Come” (1959)



"Ornette é um dos meus astronautas favoritos"
Wayne Shorter


“’Kind of Blue’ era um álbum bonito, delicado,
mas não lembro de ele ter realmente
virado minha cabeça na época.
 Então, quando Ornette surgiu,
 ele de fato soava como se
 pertencesse a uma outra era, 
a um outro planeta.
A novidade estava ali”.
Joe Zawinul



Chego ao meu 50° ÁLBUM FUNDAMENTAL por um motivo especial. Embora todos os discos sobre os quais escrevi sejam caros a mim, quando percebi que chegava a essa marca não queria que fosse apenas mais um texto. Tinha que ser por um motivo especial. Escreveria sobre os artistas brasileiros a quem ainda não resenhei: Chico BuarqueEdu LoboMilton NascimentoPaulinho da Viola? Ou das minhas queridas bandas britânicas, como The CureThe SmithsCocteau Twins, Echo and The Bunnymen? De algum dos gênios da soul, Gil Scott-Heron, Otis Reding, Curtis Mayfield, que tanto admiro? Do para mim formativo punk rock (Stranglers, Ratos de Porão, New York Dolls)? Obras consagradas de um Stravinsky ou alguma sinfonia de Beethoven? Outro de John Coltrane ou Miles Davis? Nenhum desses, no entanto, me pegava em cheio. A resposta me veio no último dia 11 de junho, quando o saxofonista norte-americano Ornette Coleman deu adeus a esse planeta. Aos 85 anos, Coleman morreu deixando não apenas o mérito da criação do free-jazz como uma das mais revolucionárias obras do jazz. A cristalização da proposta de inovação musical – e espiritual – de Coleman veio pronta já em seu primeiro disco, o memorável “The Shape of Jazz to Come”.

Gravado no mesmo ano de 1959 que pelo menos outros dois colossos do jazz moderno – "Kind of Blue", de Miles, arcabouço do jazz modal (agosto), e “Giant Steps”, de Coltrane, a cria mais madura do hard-bop (dezembro) –, “The Shape...”, vindo ao mundo a 22 de maio, não aponta para o lado de nenhum deles. Pelo contrário: engendra uma nova direção para a linha evolutiva do estilo. Nascido no Texas, em 1930, Coleman era daquelas mentes geniais que não conseguiam pensar “dentro da caixa”. No início dos anos 50, já em Nova York, nas contribuições que tivera na banda de seu mestre, o pistonista Don Cherry, ele, saudavelmente incapaz de seguir as progressões harmônicas do be-bop, já demonstrava um estilo livre de improvisar não sobre uma base em sequências de acordes, mas em fragmentos melódicos, tirando do seu sopro microtons e notas dissonantes, arremessadas contra às dos outros instrumentos, contra si próprias. Fúria e espírito. Carne e alma.

Seu processo era tão complexo que, exorcizando clichês, atinge um patamar até psicanalítico de livre associação e reconstrução do inconsciente coletivo, o que levou um dos pioneiros do cool jazz, John Lewis, a dizer: “Percebi que Coleman cunhou um novo tipo de música, mais semelhante ao ‘fluxo de consciência’ de James Joyce do que o entretenimento operado por Louis Armstrong com sua variação sobre uma melodia familiar”. Se na literatura este é seu melhor comparativo, faz sentido colocá-lo em igualdade também a um Pollock nas artes plásticas ou um Luis Buñuel no cinema. Na música, remete, claro, a Charlie Parker e Dizzie Gillespie, mas tanto quanto a compositores atonais da avant-garde como John Cage e György Ligeti.

Em “The Shape...”, a desconstrução conceitual já se dá na formação da banda. Traz o desconcertante sax alto de Coleman, a bateria ensandecida de Billy Higgins, o duplo baixo de outro craque, Charlie Haden (de apenas 22 anos à época), e o privilégio de se ter o próprio Cherry, com sua mágica e não menos desafiadora corneta. Nada de piano! Tal proposta, tão subversiva da timbrística natural do jazz a que Coleman convida o ouvinte a apreciar, assombra de pronto. “Lonely Woman”, faixa que abre o disco, é uma balada fúnebre e intempestiva. O free jazz, consolidado por Coleman um ano depois no LP que trazia o nome do novo estilo, dá seus primeiros acordes nesse brilhante tema. Dissonâncias na própria estrutura melódica, compasso discordante da bateria e um baixo inebriado que parece buscar um plano etéreo, longe dali. Algo já estava fora da ordem, anunciava-se. Coleman e Cherry, pupilo e mestre, equiparados e expondo uma nova construção composicional aberta, incerta, em que a música se cria no momento, numa exploração dramática conjunta.

Na revolução do free jazz, cada membro é tão solista quanto o outro. “Eventually”, um blues vanguardista em alta velocidade, e “Peace”, com seus 9 minutos de puro improviso solto, sem as amarras do encadeamento tradicional, são mostras disso. Cada músico está ligado ao outro primeiramente pelo estado de espírito, não apenas pela habilidade técnica. E eles perdem o apelo momentâneo? Jamais, apenas o centro melódico é outro. Os riffs e o tom estão lá como os do be-bop; a elegância do blues trazida do swing também. Mas o conceito e a dinâmica aplicados por Coleman e seu grupo fazem com que se desviem das formas tradicionais a as diluam, direcionando a uma tonalidade expandida como praticaram Debussy, Messiaen e Stravinsky.

Nessa linha, "Focus on Sanity" se lança no ar inquieta, mas logo freia para entrar o maravilhoso baixo de Haden, suingando, serenando-a. Não por muito tempo: por volta dos 2 minutos e meio, Coleman irrompe e o grupo retorna em ritmo acelerado para seu novo solo da mais alta habilidade de fúria lírica. O mesmo faz Cherry, que entra raspando com o pistão e forçando que o compasso reduza-se novamente. “Foco” e “sanidade”, literalmente. A inconstância desse número dá lugar ao blues ligeiro "Congeniality". Mais “comportada” das faixas, traz, entretanto, a fluência do quarteto dentro de um arranjo em que se prescinde da referência harmônica das cordas – o piano. Pode parecer um be-bop comum, mas, ditado pela intuição e não pelo arranjo pré-estabelecido (tom, escala, variação), definitivamente não é. Fechando o álbum, “Chronology” mais uma vez ataca na desconstrução da progressão acorde/escala. As explosões emocionais súbitas de Coleman e seu modo atritado e carregado de tocar estão inteiros neste tema.

Wayne Shorter, Anthony Braxton, Eric Dolphy, Albert Ayler, Pharoah Sanders e o próprio Coltrane, mesmo anterior a Coleman, não seriam os mesmos depois de “The Shape...”. O fusion e o pós-jazz nem existiriam. Coleman influenciou não apenas jazzistas posteriores como, para além disso, roqueiros do naipe de Jimi Hendrix, Don Van VlietFrank Zappa e Roky Erickson. Ele seguiu aprofundando esse alcance em vários momentos de sua trajetória. No ano seguinte ao de sua estreia, emenda uma trinca de discos, começando pelo já referido “Free Jazz” (dezembro) mais “Change of the Century” (outubro) e “This Is Our Music” (agosto). Em 1971, surpreende novamente com a sinfonia cageana “Skies of America”, para orquestra e saxofone. No meio da década de 70, ainda, adere ao fusion, quando lança o funk-rock “Body Meta” (1976), recriando-se com uma música dançante e suingada.

Além disso, Coleman teve a coragem de legar ao jazz um sobgênero, o que, juntamente com o contemporâneo “Kind of Blue”, referência inicial do jazz modal, ajudou a desafiar conceitos e padrões estabelecidos. O jornalista e escritor Ashley Kuhn, em “Kind of Blue: a história da obra de Miles Davis”, recorda a receptividade de “The Shape...” à época entre músicos e críticos, os quais vários deles (como um dos pioneiros do fusion, o pianista Joe Zawinul), colocavam os dois discos em polos opostos: free jazz versus modal. No entanto, como ressalta Kuhn: “No fim das contas, Coleman e Davis parecem mais filosoficamente compatíveis do que musicalmente opostos: ambos dedicaram suas carreiras a reescrever as regras do jazz”.

Desde que meu amigo Daniel Deiro, que mora em Nova York, disse-me anos atrás tê-lo assistido em um bar da Greenwich Village, fiquei esperançoso de também vê-lo no palco um dia. Não deu. O astronauta do jazz, capaz de fazer quem o ouve também flutuar sem gravidade, deixa como suficiente consolo uma obra gigantesca e densa a ser decifrada, sorvida, descoberta. Como a de um Joyce, Pollock ou Buñuel. Se a função do astronauta é desbravar o espaço, Ornette Coleman cumpriu o mesmo papel através da arte musical, que ele tão bem soube explorar em sua dinâmica atômica e imaterial através da propagação dos sons no ar, na atmosfera. E o fez de forma livre, como bem merece um free jazz. Agora, então, foi ele que se libertou para poder voar sobre outros planetas igual à sua própria música.

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FAIXAS:
1. "Lonely Woman" - 4:59
2. "Eventually" - 4:20
3. "Peace" - 9:04
5. "Focus on Sanity" - 6:50
5. "Congeniality" -  6:41
6. "Chronology" - 6:05

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OUÇA O DISCO:






quarta-feira, 1 de abril de 2015

John Coltrane - “A Love Supreme” (1965)




"Vi a Deus.”
Genesis 32:30





Alice Coltrane viu seu marido descer as escadas vindo da sala onde costumava trabalhar na casa em que viviam em Long Island, Nova York. Fazia cinco dias que mal saía de lá. Musicista e compositora como ele, Alice entendia muito bem a situação. Ele parecia cansado das obsessivas horas de trabalho, mas “inusitadamente sereno”, relatou Alice. “Parecia Moisés descendo a montanha. Foi lindo. Ele me disse: ‘Esta é a primeira em vez que me veio toda a música que quero gravar, como uma suíte. Pela primeira vez, tenho tudo, tudo pronto.’” O ano era 1964. Visivelmente, não se tratava de uma situação comum. O desgaste dele era justificável, visto que também altamente recompensador. Naquele dia de setembro, começo do outono nos Estados Unidos, John William Coltrane, depois de horas de concentração (e, ao que tudo indica, também contrição), havia composto integralmente todas as músicas daquela que se tornaria sua obra-prima e um marco da música em todos os tempos: “A Love Supreme”.

Gravado em apenas uma sessão, em 9 de dezembro de 1964, e lançado em fevereiro do ano seguinte, “A Love Supreme” logo se tornaria uma referência essencial não só para toda a geração posterior do jazz como Archie Sheep, Pharoah Sanders, Grant Green, Wynton e Brandford Marsalis, John McLaughlin e o próprio filho Ravi Coltrane, mas para músicos de outros estilos: a turma do rock clássico (Greatful Dead,Joni Mitchell, Santana, Jimi Hendrix), punks (Patti Smith, Tom Verlaine, Bono Vox), roqueiros mais atuais (Bob GillespieMobyPeter Buck), músicos da soul (Gil Scott-Heron, Marvin Gaye, Stevie Wonder) e da vanguarda (Steve Reich, Carla Bley, Lester Bowie, Frank Lowie). Porém, mais do que somente um espelho musical, “A Love Supreme” passou a dar também inspiração tanto política, visto que, na época, seu sucesso ajudou a inflamar o discurso racial de um grupo em formação chamado Black Panthers, quanto espiritual, como um manuscrito sagrado a ser decifrado. “Você entenderá a mensagem [de ‘A Love Supreme’] quando estiver pronto, como nos ensina a filosofia hindu. Se não estiver pronto, terá de recuar, se preparar e caminhar tudo de novo”, sentencia o baixista Reggie Workman, que tocara na banda de Coltrane em 1961, no livro “A Love Supreme: a criação do álbum clássico de John Coltrane”, do jornalista e pesquisador norte-americano Ashley Kuhn.

O livro do jornalista Ashley Kuhn
que disseca o grande álbum de Coltrane
De fato, para muitos Coltrane é um anjo que pousou por aqui com saxofone e asas e que, por apenas 41 anos, promoveu prodígios, deixando um lastro de beleza e amor. Nascido na Carolina do Norte em 1926 e criado na Filadélfia, o habilidoso instrumentista começou tocando clarinete, mas logo passou para o sax alto. Nos anos 40, integrou a bjg-band de Dizzie Gillespie, escola para a maioria dos jazzistas de alto nível, e a King Kolax Band ao lado de Charlie Parker, quando trocou o sax alto pelo tenor tendo em vista que o Bird já dominava o alto como ninguém. Nos anos 50, dado o seu reconhecível talento e estilo, é chamado para integrar o mágico quinteto de Miles Davis ao lado de Red Garland, Paul Chambers e Philly Joe Jones. Também com Miles, no final daquela década, compõe a banda que gravaria o mítico "Kind of Blue", considerado por muitos o melhor disco da história do jazz. O vício em heroína (comum aos músicos de jazz da época), no entanto, quase o faz abandonar a carreira. Mas após uma tortuosa recuperação, por volta de 1957, limpa-se das drogas e volta à ativa em alto nível e decidido a cumprir uma “missão musical”.

É justamente a trajetória de Coltrane como band leader que o impulsionaria ao status de um dos maiores músicos de sua época, formando a mística em torno de si e de sua obra. Se todas as experiências anteriores ajudaram a forjar o solista sui generis e o compositor criativo cunhado no be-bop, hard-bop, jazz modal e free-jazz, foi o contato com o pianista Thelonious Monk, no final dos anos 50, a chave para o encontro interior de Coltrane. Era a liga que faltava a este neto de bispo protestante com fortes raízes religiosas que tencionava transmitir em música algo transcendente e pessoal, numa concepção que incorporasse o hinduísmo, a astrologia, a filosofia ocidental, a cabala, a herança africana e, obviamente, um autorreconhecimento da presença de Deus.

Nas breves semanas que esteve com o didático e transgressor Monk, jazzista de fortes influências em Messiaen e Bártok que não se furtava em criar estranhas transições melódicas e mudanças rítmicas, Coltrane achou seu caminho. Foi quando vieram, por exemplo, obras autorais como “Blue Train”, "My Favourite Things", “Giant Steps”, “Africa/Brass” e “Olé”, todos essenciais a qualquer discoteca. É nesta época, também, que ele forma a banda que o acompanharia em várias gravações e shows e que comporia o time de “A Love...”: McCoy Tiner (piano), Elvin Jones (bateria) e Jimmy Garrison (baixo). Há três anos apoiado por esta formação, Coltrane caminhava firmemente para a música de vanguarda, espelhando-se nos trabalhos Charles Mingus, Ornette Coleman e Cecyl Taylor. Após o bem recebido “Crescent”, de 1963, “A Love...” era o sucessor aguardado pela crítica e público. “O que John Coltrane trará dessa vez?” “Em que ponto ele evoluirá com sua música?”, indagavam.

A resposta a essas perguntas não foi difícil de ser respondida. “A Love...” trazia o ápice da genialidade composicional, de arranjo e improvisação de John Coltrane. Além disso, carregava, do primeiro ao último acorde, todo um misticismo e espiritualidade que de pronto foram captados pelos fãs. E, ao invés de ser taxado como algo “menor” ou meramente “religioso”, este fator engrandeceu a obra. Não por acaso: “A Love...” consegue, em sua musicalidade vanguardista mas universal referenciar todo seu legado precedente, do jazz clássico de Count Basie e Dexter Gordon, o jazz moderno de Miles e Monk, passando pelo erudito de Messiaen e Stravinsky e pelos contemporâneos dele (Coleman, Herbie Hancock, Lee Morgan, Sonny Rollins, Wayne Shorter) sem suprimir sua subjetividade como indivíduo, como ser espiritual.

As quarto faixas de “A Love...” compõem uma “oferenda a Deus”, ideia que o próprio Coltrane deixaria clara no poema da contracapa original. “Vamos cantar todas as canções a Deus”, diz em um dos versos. E é isso que se sente na música. “Acknowledgement” acende os caminhos. Numa das mais marcantes aberturas de álbum da discografia jazz, um gongo rufa, como se soltasse cristais sonoros pelo ar. Surge a imagem de uma portada celeste abrindo-se sob uma radiante luz branca. É a elevação do espírito materializada em sons. No que o ressono oriental começa a apagar-se, vem o sax alto junto aos pratos, o piano e o baixo, que entram para manter de forma suave a seriedade da introdução. Um fraseado de sax é vigorosamente tocado, numa benção de boas-vindas. A invocação dura aproximadamente 35 segundos e, antes que a sensação de levitação se dissipe, Garrison entra com um acorde de quatro notas, que é o verdadeiro riff da canção, pois transforma em som as cadências do nome do álbum – afinal, como não intuir que naquele dedilhado está sendo dito: “A Love Supreme”? Tanto o é que, no final da faixa, depois de um verdadeiro show multitonal de Trane, de uma explosão polirrítmica de Jones e de um passeio pelos acordes de Tyner, Coltrane larga o bocal do instrumento e, com humildade e devoção, entoa com sua própria voz ao microfone: “a love supreme/ a love supreme...”, repetidas vezes.

Antes, no entanto, “Acknowledgement” nos dá uma sensação de intensidade e paixão. Coltrane inicia seu solo com acordes suaves e firmes, tal um orador de igreja. À medida que a emoção toma conta, sua “fala” vai se tornando insistente, adicionando ao lirismo inicial altas cargas de solenidade, graça e pesar. Vêm, então, ondas de alegria, acompanhadas com sabedoria pela mão esquerda de sensibilidade astral de Tyner e pela batida 6/8 de Jones, a qual remete aos ritmos latinos e afro-caribenhos. O baterista ainda sustenta a condução rítmica nos pratos, como lhe é característico. Coltrane pula de tom para tom repetidamente, numa desconstrução melódica que normalmente soaria desconfortável aos ouvidos, mas que, no contexto, demonstra sua “profunda ressonância espiritual”, como diz o escritor e biógrafo Lewis Porter. No ápice, o saxofonista dá uma guinada que joga o tom lá para cima, elevando a emotividade. Até que a intensidade cai e, depois das impressionantemente simétricas 37 repetições do riff pelo sax, a voz entra para entoar o mantra. No final, a banda desce um tom inteiro, preparando a cama para a parte 2 da suíte.

Rudy Van Gelder, o técnico de som com mãos de cirurgião, faz a colagem perfeita para a entrada do outro take: “Resolution” – minha preferida do disco. Talvez a mais “tradicional” do álbum, visto que, a priori, trata-se de um hard-bop bluesy como os que todos ali eram profundamente conhecedores. Porém, parece que, mais uma vez, a carga incorpórea dada à música por Coltrane e a banda eleva o “material” a outro patamar. O baixo abre sozinho, engenhosamente quieto, num preâmbulo lento e carregado de blues. Isso antecipa uma virada ruidosa, quando a banda entra explodindo e Coltrane, principalmente, detonando o riff. Ele novamente exercita saltos de modulação, subindo e descendo as escalas e imputando drama com seu saxofone. Tyner, invariavelmente inteligente, providencia um acompanhamento de ambivalência harmônica, dando liberdade ao solista. Em seguida, o líder empurra todo o quarteto para uma série de clímaces marcados por gritos ríspidos de seu sax, instigados pelos rolos da bateria e os pratos nervosos de Jones. Garrison, por sua vez, destaca-se pela combinação de notas curtas e precisas com outras longas e ressonantes.

Cabe a Jones fechar “Resolution” com uma virada na caixa e uma batida no prato de condução, pois é o baterista quem, num solo exuberante – que celebra os mestres do instrumento do jazz (Jo Jones, Art Blakey, Max Roach) e os influenciados do rock (Ginger Baker, Keith Moon, Mitch Mitchell) –, inicia a terceira sequência de “A Love...”: “Pursuance”. Usando baquetas de madeira, retoma a polirritmia africana e o toque caribenho, estabelecendo um ritmo saltitante e gingado que se incorpora ao seu estilo democrático da bateria, o qual se vale dos timbres de todo o aparato: caixa, tan-tan, pratos, tambor e bumbo.

A “procura” pela iluminação de Coltrane atinge limites épicos nesta faixa – gravada de primeira num irrepreensível take. Na primeira parte, sobre o ainda improviso da bateria (Jones, na verdade, não para de solar até o fim de sua participação na faixa), apenas apresenta o tema, dando a deixa para a rica e engenhosa improvisação de Tyner. O pianista sai ordenando uma sucessão de frases livres de pura inventividade melódica, criando quase uma nova estrutura à música. Aparecem com clareza seus característicos voicings, saltos de três intervalos acima da tônica da melodia que fazem o ouvinte saltar do sofá. Pura energia, pura música.

Detalhe para ouvidos atentos: a “deixa” de Tyner para Coltrane acontece segundos antes do esperado, forçando o atento e novamente cirúrgico Van Gelder a aumentar o volume do microfone do sax (detalhe perceptível na amplitude do som dos pratos de Jones). É quando Coltrane entra para serpentear em vários motivos surgidos ali, no calor do momento, conduzindo frases frenéticas até as alturas. Erupções, dissonâncias, ruídos roucos, ideias cíclicas do tema original, citações do riff de “Acknowledgement”. Tudo isso condensado em apenas 2 minutos e meio. É o momento de maior expressividade de improviso de Trane, quando a minissinfonia que é “A Love...” atinge o que seria seu allegro vivace. Como diz Kahn: esta parte é “o coração do álbum”.

Mas não para por aí: Coltrane chama Jones para a prece. Extremamente cúmplices, o sax e a bateria de um e de outro, velhos parceiros, atingem um nível de diálogo telepático. Jones dispara uma fuzilaria de rolos, estrondos e batidas nos pratos. Coltrane responde com grunhidos tumultuosos do seu arco. Ambos se homogeneízam, sem definir quem comanda e quem acompanha. Para finalizar, Jones metralha viradas na caixa e Garrison, já em pleno improviso, tem sua vez de realce com um solo de três minutos. Idas e vindas, menções ao tema do primeiro número e, claro, da própria “Pursuance”, são ouvidas num improviso hábil e “intrigante” do contrabaixo, como classificou outro craque do instrumento, Ron Carter.

Depois da fúria de “Pursuance” e do balanço de “Resolution”, o clima meditativo do início do disco vem com força total para finalizá-lo na tocante “Psalm”. Tão distinta que parece isolar-se do restante, como um recolhimento ao altar para a oração. Sequência de “Pursuance” (foi gravada no mesmo histórico take), é nada mais nada menos do que a declamação quieta e etérea de Coltrane do seu poema da contracapa. Frase por frase, sem melodia cantarolável, sem centro tonal. Apenas acompanhado dos acordes atmosféricos do piano de Tyner e do baixo de Garrison, além dos pratos de Jones, que ainda surpreende ao operar inusitados tímpanos de orquestra, os quais dão um ar ao mesmo tempo introspectivo, solene e raveliano. E quem “declama” é o sax, e não a voz. Num movimento inverso ao de “Acknowledgement”, quando começa o disco indo da melodia para a palavra, aqui, no final dele, Coltrane vai da palavra para a melodia. Lê-se num dos versos a citação de um trecho dos salmos bíblicos do livro do Gênesis: “Vi a Deus face a face, e a minha alma foi salva”. Ninguém duvida que John Coltrane de fato tenha tocado o divino.

Em vida, ainda deu tempo de o músico gravar mais um trabalho fundamental do jazz, “Ascension”, de 1966, ponte determinante entre o free-jazz e a avant-garde. Se é coincidência que seus últimos dois discos se chamam “um amor supremo” e “ascensão”, não se tem certeza. O fato é que, acometido de um câncer (o qual se desconfia que ele já soubesse da existência antes de compor “A Love Supreme”) foi, um ano depois, levado por seus colegas alados para habitar, definitivamente, nos céus. E ao que tudo indica, em paz. Pelo menos é o que o seu testamento musical nos diz. A morte prematura; a aura espiritual de “A Love...”; a única apresentação ao vivo do repertório do disco (em Antibes, na França, show que compõe a edição especial do CD); a dimensão de sua influência ao longo dos tempos; tudo isso dá corpo à mitologia em torno de Coltrane e sua obra.

No entanto, mais do que qualquer atributo, o fato é que “A Love...” foi concebido com a alma, e é isso que emana do sulco toda vez que se põe o disco para tocar mesmo hoje em 2015, 50 anos depois de seu lançamento. Elvin Jones, talvez o músico que melhor tenha se entendido com Coltrane entre os diversos que tocaram com ele nos 28 anos de carreira do saxofonista, parece compreender com profundidade o porquê da passagem do colega e amigo por essas bandas terrenas e o legado de “A Love...”: “Quem quiser saber o que foi John Coltrane tem de conhecer ‘A Love Supreme’. É como o apogeu da vida de um homem, a história completa de uma vida inteira. Quando alguém quer se tornar um cidadão americano, deve fazer o juramento de fidelidade diante de Deus. ‘A Love Supreme’ é o juramento de John.”

Não tenho dúvida que a alma de John Coltrane foi salva.
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FAIXAS:
1. A Love Supreme, Pt. 1: “Acknowledgement” - 7:47
2. A Love Supreme, Pt. 2: “Resolution” - 7:25
3. A Love Supreme, Pt. 3: “Pursuance” – 10:43
5. A Love Supreme, Pt. 4: “Psalm” – 7:40

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