Cavaquinhos envenenados, frevos rasgados, guitarras distorcidas, batucadas explosivas, sambas ácidos... Com estes elementos, letras bem sacadas, composições complexas, crítica social e irreverência, o Mundo Livre S/A no seu mix de cultura brasileira e elementos pop e eletrônicos nos apresentava um dos discos mais legais e interessantes que a música brasileira já viu.
Em "Samba Esquema Noise" (1994) tem lugar para tudo: um frevo invade naturalmente um ska ("Manguebit"); uma levada de cavaquinho de repente dá lugar a uma explosão de guitarra distorcida ("Livre Iniciativa"); um berimbau se confunde com a guitarra num reggae sinuoso e serpenteante como em "Rios (Smart Drugs), Pontes e Overdrives"; ou ainda simplesmente predominam experimentações eletrônicas, samples e efeitos como no caso de "Sob o Calçamento (Se Espumar é Gente)".
O disco é cheio de tiradas inteligentes e antenadas com referências tecnológicas, filosóficas e literárias que vão de Kafka a Homero, sem contudo, ficar chato ou pedante, sem falar das inúmeras referências a Jorge Ben, uma espécie de mentor espiritual da banda. A começar pelo nome do álbum inspirado no "Samba Esquema Novo" primeiro trabalho de Jorge Ben, as referências passam, por exemplo, pelo samba alucinado "O Rapaz do B... Preto", aludindo à canção "O Homem da Gravata Florida" do disco "A Tábua de Esmeraldas"; ou mesmo meramente pela sonoridade dominante em toda a obra que vai completamente ao encontro do conceito que o inspirador já desenvolvia lá em 1963.
Uma das minhas prediletas, "Musa da Ilha Grande", é uma samba-rock de primeira, também bem ao estilo Babulina, com uma participação vocal mínima de Malu Mader, mas que é suficiente para conferir todo um toque de sensualidade. Gosto muito também de "Terra Escura", um samba chapado cantado quase sem forças acompanhado por um surdo alto e vibrado; "Cidade Estuário", muito soul e cheia de metais, também é das mais bacanas; "Rios (Smart Drugs), Pontes e Overdrives" traz a percussão preciosa de Naná Vasconcelos; "Sob o Calçamento" vem com a participação do vocal poderoso de Sérgio Boneka; e o álbum encerra com a faixa que lhe dá nome, ainda que a expressão "Samba Esquema Noise" não seja cantada nela e sim na faixa "Livre Iniciativa" , e que esta curiosamente não tenha barulho algum, tratando-se de um lamento acústico lento e pessimista sobre as oportunidades na vida.
Disco notável da banda que divide com a Nação Zumbi de Chico Science, a honra de terem promovido, como já falei no post sobre o "Da Lama ao Caos", o último grande movimento musical relevante no Brasil.
************************** FAIXAS: 1.Manguebit 2.A Bola do Jogo 3.Livre Iniciativa 4.Terra Escura 5.Saldo de Aratú 6.Uma Mulher com W... Maiúsculo 7.Homero, o Junkie 8.Rios (Smart Dugs), Pontes & Overdrives 9.Musa da Ilha Grande 10.Cidade Estuário 11.O Rapaz do B... Preto 12.Sob o Calçamento (se Espumar é Gente) 13.Samba Esquema Noise
Eu não vou sair daqui sem ver ela sair da água Eu não vou sair daqui sem ver ela sair da água Eu não vou sair daqui sem ver você sair, não vou gostosa... Ela entrou de biquíni branco Deixou a blusinha na areia Jogou um sorriso pra trás Me deixou com a cabeça cheia... De ideia Lá em casa tão chiando, onde é que o mané se meteu? Disse que voltava logo Será que o burro se perdeu? O almoço ta esfriando, sei que já perdi a hora Mas hoje eu não saio daqui antes de ela ir embora Mas nem fudendo... Eu não vou sair daqui... Eu não vou sair daqui... Ela entrou de biquíni branco Deixou a blusinha na areia Jogou um sorriso pra trás Me deixou com a cabeça cheia... Não saio não... De biquíni branco... Eu não vou sair daqui sem ver ela sair da água Eu não vou sair daqui sem ver ela sair da água Não saio não... Não saio não... Não saio não... Eu não vou sair daqui Eu não vou sair daqui
Olha, olha, olha Olha, meu olhar mais fundo Entra, entra, entra Senta, bem vinda ao novo mundo
Minhas pernas são bastantes fortes Como de todo trabalhador Os meu braços são de aço Como os de todo operário
Mas como já dizia um velho casca A merda dos trabalhadores é sua alma inútil Eu tenho uma alma que é feita de sonhos Mas como já dizia um velho casca A alma de um trabalhador É como um carro velho só dá trabalho
Tira, tira, tira Deixa, não apaga o meu fogo Suba, suba, suba Gira, gira linda É a bola do jogo
A bola do jogo Sou um trabalhador sou sim, Eu tenho uma alma que dseja e sonha Deseja e sonha
O talentoso Chico Science no palco: única vinda a Porto Alegre
Os anos 1990 foi uma década encantada para Porto Alegre. Várias capitais sentiam os primeiros sabores da democracia após mais de 20 anos de ditadura, e a minha cidade aproveitou bem isso. Um ainda embrionário Partido dos Trabalhadores conquistava sua primeira prefeitura no Brasil em 1989 através Olívio Dutra, cujo revolucionário mandato estenderia seus efeitos benéficos nas administrações de Tarso Genro (1993 a 1997) e Raul Pont (1997 a 2001). Os ares de modernidade e de administração pública pensada para o cidadão diferia de tudo o que estávamos acostumados em política (mal-acostumados, na verdade). Não se administrava para o povo e nem com o povo até então, mas a prefeitura do PT trazia, entre outras novidades, o Orçamento Participativo, o Fórum Social Mundial, a Bienal do Mercosul e diversas outras atividades que, não raro, privilegiavam a cultura. Foi assim que assisti, entre outras atrações, shows antológicos de Gilberto Gil, Paulinho da Viola e Jorge Ben Jor em praça pública. E de graça.
Contando assim hoje, em que o país vem de anos de crises econômica, política e social e massacre à cultura, parece até mentira que se teve coisas assim numa Porto Alegre não muito distante. Tanto é que para alguns é difícil acreditar quando digo que assisti, em 1994, a Chico Science & Nação Zumbi com a formação original. Sim, com Chico à frente e o como ele falecido Gira. Em plena Usina do Gasômetro, em praça pública, e de graça. E isso quando a banda ainda não era ainda idolatrada mundo afora. Os não muitos dos presentes como eu que estiveram na apresentação daquele sábado à noite certamente conheciam a banda muito por conta da Rádio Ipanema, que desde cedo identificava o mangue beat como a nova revolução da música pop brasileira.
A Nação, que cedo ganhou este apelido, já era reconhecida no centro do país e, principalmente, em sua Recife, onde reinavam na cena musical de então, a qual contava com vários outros talentos, como os coirmãos mundo livre s/a, a Devotos do Ódio, a Querosene Jacaré, a Sheik Tosado, a Mestre Ambrósio, entre outros. Mas no Rio Grande do Sul as coisas funcionavam ainda sem a velocidade que a internet ainda passaria a impor, e as informações demoravam ainda para chegar por estes pagos. O que talvez explique o porquê do público fiel mas acanhado que presenciou aquele show histórico, que registrava o primeiro disco da banda, “Da Lama ao Caos”, lançado aquele ano e que tinha produção do craque Liminha. Era o começo da carreira deles, e Porto Alegre era uma das primeiras cidades a presenciar aquele som revolucionário que mesclava rock, funk, rap, reggae, eletrônica e afro beat com maracatu, embolada, samba de roda e baião. Tudo com muita psicodelia e originalidade.
Antes da entrada dos pernambucanos no palco, teve pelo menos uma apresentação que me lembro com vivacidade: a célebre De Falla. Show bem rock ‘n’ roll com cara de anos 50/60, quando Edu K já havia passado pela fase funk-rock de “Kingzobullshitbackinfulleffect92”. Showzaço, aliás. Mas estava lá para ver mesmo a CS&NZ. A iniciante banda trouxe no repertório basicamente as faixas do seu disco de estreia, o que foi suficiente para uma apresentação memorável. Praticamente na sequência do álbum, começaram com "Monólogo ao Pé do Ouvido", em que os três tambores de maracatu, Gira, Bola 8 e o ainda percussionista Jorge Du Peixe, postavam-se à frente do palco enfileirados marcando o ritmo forte. Chico entra com o magistral texto-manifesto: Modernizar o passado é uma evolução musical Cadê as notas que estavam aqui? Não preciso delas, basta deixar tudo soando bem aos ouvidos O medo da origem é o mal O homem coletivo sente a necessidade de mudar O orgulho, a arrogância, a glória enchem a imaginação de domínio São demônios os que destroem o poder bravio da humanidade Viiva Zapata! Viva Sandino! Viva Zumbi! Antônio Conselheiro! Todos os Panteras Negras! Lampião, sua imagem e semelhança Eu tenho certeza: eles também cantaram um dia!
Aí, como no disco, que eu já tinha e ouvia direto, entra "Banditismo por Uma Questão de Classe", a direta crítica social que fez a galera enlouquecer com as guitarreiras de Lúcio Maia, que soavam pela primeira na atmosfera de Porto Alegre, cidade a qual a banda voltaria outras vezes, sendo nenhuma mais com Chico, que morreria precocemente num acidente de carro, em fevereiro de 1997.
Seguiram-se "Rios, Pontes & Overdrives" e o sucesso “A Cidade”, que incendiou o público, assim como “A Praieira”, a qual tocava direto na Ipanema e era já adorada pelos fãs. O peso do heavy-maracatu “Da Lama ao Caos” dava a certeza àqueles gatos pingados indies como eu que estávamos diante da maior revolução do rock desde o grunge. Os batuques nordestinos de alfaia, que carregam toda uma cultura regional dos caboclos-de-lança e dos ritos folclóricos, misturavam-se, como jamais se havia ousado (ou pensado) com o rock pesado e os samplers herdados do rap. E o jeito de cantar único de Chico, um verdadeiro mangue boy com “Pernambuco embaixo dos pés” e a “mente na imensidão” - como diz a letra de "Mateus Enter", do disco seguinte deles, "Afrociberdelia".
Na sequência, entre outras, tocam a impressionante instrumental “Lixo do Mangue”, que ganharia um registro ao vivo no póstumo a Chico “CZNZ”, de 1998, dando a ideia do que foi ouvi-la sendo tocada naquela ocasião. Também, "Computadores Fazem Arte", de autoria do parceiro de mangue beat Fred Zero Quatro, foram outras que movimentaram o público, formado essencialmente de fãs daquela que foi a grande banda da geração 90 – o que, aliás, já identificávamos sem que a mídia precisasse nos dizer.
Após a psicodélica “Coco Dub”, última faixa do disco que dava origem ao show, Chico Science e seus caranguejos musicais tocariam o que no bis? Novamente, “A Cidade”! Bem coisa de grupo iniciante ainda sem repertório além do próprio primeiro disco. Mas foi muito legal, pois a turma curtiu uma vez que sintonizada com aquele clima de banda ainda “não-profissional”. Eles, visivelmente em casa, pareciam estar num Abril Pro Rock em Recife, pois sabiam que tocavam para uma galera que os curtia. O bis teve ainda uma surpresa: Jorge Du Peixe cantando “Rise”, da Public Image Ltd. Ele, que se tornaria o vocalista da banda após, prenunciava, ali, naquela apresentação despretensiosa mas muito empolgada, o que viria a acontecer na história da banda depois que Chico deixou-a por motivos de força maior.
Haja vista que se trata de um resgate da época pré-internet no Brasil, esses registros são basicamente fruto da minha memória. Buscando em arquivos históricos físicos certamente encontraria, mas seria desnecessariamente trabalhoso para uma singela matéria como esta e até inviável neste momento de pandemia. O que me impressiona, na verdade, é que não se encontre nada sobre esta apresentação em sites e afins, nem na imprensa, nem em blogs, nem em lembranças de possíveis fãs. Nada. Sequer em matérias de veículos locais que registraram, sim, vindas mais recentes da Nação Zumbi à capital. Ou seja: ninguém se prestou, nestes anos todos transcorridos de 1994 para cá, a perguntar aos atuais integrantes sobre a ligação deles com Porto Alegre. Sobre aquele histórico show na capital numa fase romântica da carreira da banda e que marcou a única performance de Chico no Rio Grande do Sul. Se se tivessem dado conta de questionar, bairrista como se é por aqui, certamente estaria escrito em algum lugar.
Talvez, como disse no início do texto, isso seja reflexo da tal depreciação a que a cidade de Porto Alegre vem sofrendo há aproximadamente duas décadas para cá. Não se assistem mais programações artísticas como este show da CS&NZ e outros aos quais citei faz muito tempo em Porto Alegre, seja por falta de grana, iniciativa, capacidade e até bom gosto. Se naquela noite no Gasômetro já não éramos muitos, hoje parece que existimos apenas nas memórias.
E lá se foi mais um ano, ouvintes radioelétricos! Posso dizer, no entanto, o contrário: já se veio mais um ano. Afinal, são quase sete no ar de Música da Cabeça, o programa que comando com muita satisfação na Rádio Elétrica. E como todas as quartas-feiras tem programa novo, tornou-se habitual desde o início que a cada edição houvesse também uma arte. E é aí que a gente entra. Tal no ano passado, quando começamos a fazer essa retrospectiva específica do MDC a exemplo do "A arte do Clyblog", recorrente há mais tempo por aqui, selecionamos algumas das artes criadas para anunciar o programa em 2023, ano dos 15 do blog.
O aviso foi dado anteriormente, mas não custa repetir: não se esperem obras-primas do design gráfico, pois as ferramentas e as habilidades são, se não parcas, básicas. Sei que peco pelo acabamento (um designer profissional deve querer se enforcar a cada vez que vê). Mas não é por mal. Assim como o programa em si, a arte é fruto da vontade de fazer. Até porque, isso dá pra afirmar, busca-se sempre a criatividade, algo que instigue que vê/lê, e até que a coisa sai legal por vezes. Amparadas pelo texto, no qual também invariavelmente tento puxar por algo interessante, as artes se baseiam em acontecimentos da vida cotidiana do Brasil e do mundo que só podem resultar em algo, no mínimo, legal graficamente falando.
Houve a favor, no decorrer de 2023, um caldeirão de eventos para que isso acontecesse. Guerra na Croácia e na Faixa de Gaza, perdas de gente como Rita Lee, Ryuichi Sakamoto, João Donato e Zé Celso Martinez Corrêa, Camões de Chico Buarque, urso em Marte, submarino perdido, 8 de janeiro... É, entre fatos bons e não tão bons, a gente vai contando, quase como uma crônica semanal e musical, aquilo que nos cerca e nos interessa. As artes do MDC são um espelho disso. Então, fique aí com essa seleção do que mais de legal teve em 2023.
**************
Iniciamos o ano com nada mais, nada menos, que a edição especial de nº 200, que teve a participação à altura: o músico e jornalista pernambucano Fred Zero Quatro, líder da Mundo Livre S/A
Mas nesse Brasil, a festa demora pouco. Uma semana depois da posse do Presidente Lula,
a barbárie do 8/1, que nos motivou a esta arte para o MDC 301
Enxergaram urso em Marte? A gente enxergou no MDC 304
Em março, ferviam as investigações sobre o "caso das joias" apreendidas com a comitiva de Bolsonaro, mote pro MDC 311
Ainda em março, a edição 310 teve entrevista especial com meu primo-brother Lucio Agacê, figura lendária do rock alternativo (e preto) gaúcho
Ramadã, em abril, e o programa também se inspirou pro 314. Ficou bonito
Chico finalmente pôs a mão no certificado do Camões, que, na verdade, era o MDC 316
Em maio, para o especial de nº 320, entrevistamos a psicóloga, musicista e ativista preta gaúcha Caroline Rodrigues
Em junho, a abertura do texto da chamada do programa 321 foi assim: "A gente fotografa a floresta assim, neste ângulo, só pra que seu olhar se direcione para aquilo que deve". Cara de pau
Lembram daqueles ricaços excêntricos (e sem noção) que se meteram num submarino sem socorro e não voltaram mais?
Foi uma reprise, mas nem por isso deixamos de comemorar com uma arte especial a primeira edição de julho com o anúncio (quase "ilegígel") da ilegibilidade do Bozo. Só de lembrar, dá vontade de gritar de novo: I-NELEGÍVEEEEL!!
Se houve o que celebrar, também tiveram perdas. E grandes. Ryuichi Sakamoto (abril), Rita Lee (maio) e Zé Celso Martinez Corrêa (julho) foram três delas
As guerras também, infelizmente, mancharam o calendário, mas viraram arte de denúncia nas edições 324 (julho), 339 (outubro) e 346 (novembro). MDC NO WAR!
Mais perdas, algumas tristes, outras revoltantes: João Donato, em julho e, em agosto, Sinéad O'Connor, e Mãe Bernadete
Mais uma arte legal, esta pro cabalístico programa 333, último de agosto
É "O Pequeno Príncipe de Maquiavel"? Não, só o MDC tirando sarro da cara de gente ignorante, mas metida a sabe-tudo (setembro)
Mais uma vez, o 20 de novembro (que agora virou feriado) nos inspirando
Mais edição de data fechada, a de 340, que teve como convidado a lenda do rock gaúcho Frank Jorge
Adentrando o último mês de 2023, uma arte baseada em grafismos
Talvez a perda mais sentida: Paulo Moreira, nosso "Cabeção", que virou "capa Blue Note" a la Reid Miles para a nossa edição 349
Quem começa o ano com edição especial, acaba o ano com edição especial: MDC 350, que teve entrevista internacional com o produtor musical cabo-verdiano Djô da Silva (era pra ter sido um vídeo na época, mas deu problema no programa...)
Com estes versos, a vinheta de abertura "Monólogo ao Pé do Ouvido" se encarregava de anunciar que a partir dali uma pequena revolução na música popular brasileira se iniciava. Chico Science e a Nação Zumbi, depois de muito tempo de parcas novidades no cenário musical, apresentavam-nos um surpreendente e sedutor misto de música popular brasileira, regionalismos, música pop, rock pesado e tecnologia. Liderados pela cabeça aberta, antenada e privilegiada de Chico Science, a banda composta por uma inusitada formação de guitarra e baixo complementados por uma linha de percussão de tambores regionais incrementados por programações, samples, scratches e teclados, incorporava tecnologia, peso, distorção, rock, metal, pop, funk, rap, a ritmos nortistas, nordestinos, pernambucanos, brasileiros, enfim.
Em "Da Lama ao Caos" (1994), Chico, com acidez, com ironia, com bom-humor às vezes, desfilava sua criatividade e as mais amplas possibilidades musicais tendo como pano de fundo a pobreza, a criminalidade e o crescimento desordenado de Recife. "Banditismo por uma Questão de Classe" fala sobre os anti-heróis do submundo violento dos morros, favelas e sertão; o hit "A Cidade" aborda a desigualdade social; e "Antene-se" dá bem essa noção de que mesmo em "mocambos empilhados à beira do Capibaribe" podem sair cabeças privilegiadas.
O disco todo é impecável mas vale conferir com mais atenção o maracatu eletrônico de "Rios, Pontes e Overdrives" que tem um sampler bem legal de The Fallna introdução; a pesadíssima "Da Lama ao Caos" despejando toneladas de guitarra metal sobre uma base batucada; a ótima canção de amor, igualmente com guitarras pesadas, "Risoflora"; "Lixo do Mangue", uma pequena vinheta instrumental mas que talvez seja o que melhor sintetiza o som da banda num frevo-metal pesadíssimo com samples furiosos e extremamente bem montados; e o forró-psicodélico "Coco Dub (Afrociberdelia)", uma viagem multireferencial com samples que vão de Chacrinha a Kraftwerk.
Chico Science é uma daquelas figuras que não se pode deixar de lamentar que tenha ido tão cedo. Sua mente efervescente parecia estar apenas no estágio inicial de um grande processo artístico que certamente teria muito mais ainda a apresentar. Mas mesmo apenas com dois álbuns gravados até a morte deste artista, não é exagero algum afirmar que ele a sua Nação foram os representantes mais importantes, junto com o Mundo Livre S/A, do último movimento cultural representativo acontecido no país. Provavelmente desde a Tropicália uma manifestação artística coletiva não estabelecia novos parâmetros, abria novos horizontes, propunha novas possibilidades dentro da cultura brasileira valorizando suas raízes, costumes, folclores e tradições como foi o caso do MangueBeat, iniciado nas ruas de Recife e que a partir de lá ganhou o Brasil afora
Por isso, pela criatividade, qualidade e ousadia além da relevância musical e cultural, não furto-me em colocar Chico Science junto com Raul, Mutantes, Titãs e Legião Urbana entre os 5 mais importantes nomes do rock nacional de toda a história.
****************
FAIXAS:
1. "Monólogo ao Pé do Ouvido"
2. "Banditismo por Uma Questão de Classe"
3. "Rios, Pontes e Overdrives" (Chico, Fred Zero Quatro)
4. "A Cidade (Boa Noite do Velho Faceta)"
5. "A Praieira"
6. "Samba Makossa"
7. "Da Lama ao Caos"
8. "Maracatu de Tiro Certeiro" (Jorge du Peixe, Chico Science)
9. "Salustiano Song" (Lúcio Maia, Chico Science)
10. "Antene-se"
11. "Risoflora"
12. "Lixo do Mangue" (Lúcio Maia)
13. "Computadores Fazem Arte" (Fred Zero Quatro)
14. "Côco Dub (Afrociberdelia)"
todas as faixas Chico Science, exceto as indicadas
Di Melo com todo seu gogó e suingue em Porto Alegre
foto: Daniel Rodrigues
"Dos deuses o final de semana em
Porto Alegre.
Mui-alegremente.
‘Unificando público e banda’, foi
resplandescente...
deu liga, deu encaixe, foi uma festa in-dis-crê-vente.
Uma
banda formada de mágicos músicos locais com a mesma proposta.
Nunca nos vimos e
tocamos como se estivéssemos tocando durante longos anos.
Fica provado que a
linguagem musical e a linguagem do amor são universais.
Que gratificante, meu
Deus!"
Di Melo
Banda afiada acompanhando
o craque pernambucano
foto: Daniel Rodrigues
Se como o próprio diz, “para o
imorrível, nada é impodível”, um acontecimento raro e inédito envolvendo
ele aconteceu na minha Porto Alegre. O “ele” a quem me refiro é o mestre do pop-soul brasileiro Di Melo, que aterrissou em terras gaúchas nunca d’antes por ele exploradas
com seus contagiantes suingue, simpatia e talento. Num memorável e descontraído
show na quadra da escola de samba Bambas da Orgia lotada dentro da festa
conjunta “Voodoo” e “Cadê Tereza?”, o cantor e compositor pernambucano mandou
ver em clássicos do seu mítico LP de 1975 (recentemente listado por mim entre
os ÁLBUNS FUNDAMENTAIS aqui no ClyBlog) e outras canções próprias que me impressionaram tanto quanto às que já conhecia.
Di Melo no palco e nós assistindo
ali, na primeira fila, ao centro do palco. (acharam?)
foto: Ariel Fagundes
Di Melo estava acompanhado da cozinha da banda gaúcha Ultraman mais
dois sopros, que, admiradores de sua obra, sabiam de cor todas as faixas a
ponto de nem precisarem ensaiar bastante para o conjunto soar super bem. No centro
do palco, o protagonista, um senhor de 66 anos com certa protuberância
abdominal e de feições tipicamente nordestinas que mantém o mesmo estilão, o
mesmo groove e o mesmo poder vocal de quando lançou seu primeiro álbum, 40 anos
atrás – até a boina de couro com a qual estampa a capa de “Di Melo”, quando ainda
magro e jovem, é igual. Exatamente na frente de seu microfone, na primeira
fileira, Leocádia e eu vimos com clareza todo o show, começando pela arrasadora
“Kilariô”, seu grande sucesso, que abriu a apresentação pondo todos para cantar
e dançar sob aquele fantástico jazz-funk
de ares caribenhos. Na sequência, outros dois funks clássicos e cheios de molho da mesma época: “Aceito Tudo” e
“Se o Mundo Acabasse em Mel”, esta última, bastante gostada pelo público.
Di Melo mandando ver
no funk
foto: Leocádia Costa
Entre os temas para mim inéditos (Di Melo tem outros nove CD’s
independentes), “Engano ou Castigo” foi a primeira apresentada. Um belo pop-rock romântico. Igualmente
brilhantes, “Milagre”, balada soul
belíssima que podia, como disse o próprio Di Melo, ser gravada por Tim Maia se
este estivesse vivo; e “Fator Temporal”, com a tradicional poesia afiada de Di
Melo, um funk sensual puxado no qual
faz um jogo com terminações de palavras ("Tudo
que me satisfaz é ter seu corpo desnudo/ Nudo/ Teus contornos iniguais me
enlouquecem, vou fundo/ Fundo..").
O bailarino que encantou a
plateia com seus passos
foto: Leocádia Costa
Ele volta no tempo novamente para trazer as suingadas “Minha Estrela” e
“Pernalonga”, incendiando a quadra. Com disco novo a ser lançado este ano, Di
Melo adiantou ao público porto-alegrense algumas faixas, entre estas
“Diuturno”, com versos que sintetizam várias ocasiões do dia a dia,
corriqueiras ou não, num encadeamento maravilhosamente literário. Ainda por
cima, este funk-rock traz brilhantes riff e arranjo, que a faz ir ganhando
volume até encerrar grandiosamente. Das melhores do show e que já dá uma noção
da maravilha que vem por aí no novo CD. Outra que conterá no próximo trabalho
também executada é o samba-rock “Barulho de Fafá”, que me lembrou bastante os
também pernambucanos Mundo Livre S/A. Esse momento foi especial no show pois,
além de ser mais uma ótima música, contou ainda com a repentina participação de
um lindo bailarino e cantor estilo black
rio, elegantemente trajado de fatiota de linho bege e um chapéu coco
vermelho, que subiu ao palco não apenas para encantar a plateia com seus passos
deslizantes e tomados de malemolência, mas, ainda, mandar um rap de improviso totalmente
dentro da harmonia. Di Melo e o público o aplaudiram.
O convidado articulando
um rap com Di Melo
foto: Leocádia Costa
Essa ponta foi mostra da interação entre Di Melo e o público. Ele
demonstrava felicidade por estar ali, cumprimentando e se reportando com a
galera, inclusive com este que vos fala mais de uma vez. Fez até poesia de
improviso, dizendo: “Porto Alegre, te amo
alegremente”. Acontece que ele sabe muito bem que essa fase lhe é especial,
uma vez que sua redescoberta, ocorrida anos atrás com mais de 30 anos de
defasagem, tem lhe proporcionado um novo estrelato junto ao público jovem. Mais
uma obra resultante do momento atual é a cortante “Navalha”, um soul-rock de letra igualmente bem
sacada. Nesta, a performance, tanto
dele quanto da Ultraman, foram ótimas. Já “Kiprocô de Patrono”, outro samba-rock,
este escrito em homenagem a Chico Buarque, está presente em um dos seus discos independentes (“Sons, sensações, sambas e tesões”) e no qual parafraseia inteligentemente o riff do clássico samba “Brasileirinho”.
Set list e a pulseira da festa
foto: Daniel Rodrigues
Seu outro grande sucesso, “A Vida em Seus Métodos Diz Calma”, ficou
guardada para o fim, contagiando todo mundo antes de “Kilariô” ser tocada
novamente como bis e finalizar o belo show. O primeiro de Di Melo em Porto
Alegre, quatro décadas depois de lançado seu disco de estreia e pelo qual ficou
mundialmente conhecido quando DJ’s ingleses e o selo norte-americano de jazz Blue Note recapturaram sua obra nos anos 90. O Brasil só fez ir atrás. Ainda
bem. Antes tarde do que nunca, pois, pelo visto, este retorno de Di Melo, gravando
disco novo em São Paulo – o que se presume estar sendo feito com a devida
estrutura –, está no nível que ele merece pelo artista referencial que é.
A noite continuou lá dentro da quadra dos Bambas, mas não havia mais
porque permanecermos. O show era o que queríamos ver. Antes de sair,
entretanto, pedi ao roadie
o papel com o set list. Ele pegou
para mim justo o que ficava no pé de Di Melo, o qual, junto com a
pulseirinha da festa (que traz a sábia frase da canção: “A Vida em seus métodos diz calma”), guardei como um amuleto. Com
tudo isso, fui para casa pensando: será que, por obra de alguma magia, quem ficou
com um registo físico do show, assistiu-o tão de perto e chegou até a apertar a
mão de um imorrível se torna imorrível também?
“Uma noite no Bottle’s Bar, ainda meio vazio, ouvi um mulato forte e bonito cantando e tocando um violão muito diferente(...) Ele não dedilhava o violão mas tocava-o com a mão inteira, rítmico e percussivo, à maneira dos bluesmen. Mas o que ele tocava era indiscutivelmente samba, mas um samba muito diferente...”
Trecho de “Noites Tropicais”, de Nélson Motta
Acabei de adquirir, há poucos dias, substituindo o meu “piratinha”, um dos mais importantes álbuns da discografia nacional; um daqueles discos revolucionários em linguagem, estilo e inovação. Trata-se do clássico “Samba Esquema Novo” disco de estréia de Jorge Ben, lançado em 1963 mas que permanece vanguardista e influente até hoje.
Toda essa onda de samba-rock; Seu Jorge, Otto, Lenine, Mundo Livre S/A; todos estes e muitos outros não seriam quem são nem teriam feito o que fazem sem a existência do “Samba Esquema Novo”. Diria mais: talvez de forma indireta, talvez por conexões desconhecidas, talvez pela própria expansão natural interfronteiras da música ou por correntes marinhas do Atlântico, mas vejo no pop rock inglês, principalmente do início dos ’90, muito da linguagem proposta neste álbum e que viria a se aprimorar e ficar mais clara nos discos seguintes, principalmente no grande "Tábua de Esmeraldas" de ‘74.
Sempre lembro da descrição de Nélson Motta, no seu ótimo “Noites Tropicais”, da primeira vez que ouviu Jorge Ben: “ele não dedilhava o violão, mas tocava com a mão inteira”. Tocava samba como se tocasse rock. E seria simplificar dizer que aquilo se resumisse a um dos dois estilos ou que fosse apenas uma conjugação dos dois. Era mais. Era jazz, funk, soul, blues, gafieira e um “misto de maracatu” como anunciava a letra da sua “Mas que Nada”. Jorge Ben talvez não soubesse o que estava fazendo ali, mas com “Samba Esquema Novo” ele revolucionava de novo a música brasileira, mesmo inserido num contexto absolutamente criativo e inovador como era a Bossa-Nova.
A já citada “Mas que Nada”, abrindo o disco, já dava o cartão de visitas, apresentando todo aquele misto inusitado até então. “Tim Don Don”, que a segue, é a única não composta por Jorge, mas se presta perfeitamente para esmiuçar a levada, com onomatopéias atribuídas ao som do violão que quase explicavam o som que o garoto estava fazendo ali.
“Rosa, Menina Rosa”, uma das melhores do disco, que acrescenta à mistura do cantor uma atmosfera meio espanhola por conta de seus metais, dá o recado de que aquele samba é capaz de passar muita gente pra trás. “Menina Bonita Não Chora” é outra das grandes do álbum, e as conhecidas “Chove Chuva” e “Balança Pema”, regravada depois por Marisa Monte, são outros grandes momentos do álbum. “Por Causa de Você, Menina”, que encerra a obra em grande estilo, traz aquele “voxê” que o cantor fazia em homenagem a uma pequena fã, e que muita gente na época acreditava ser um problema de dicção. Mesmo que fosse isso... Mesmo que fosse gago, não invalidaria o baita disco que é esse “Samba Esquema Novo”.
*************************
FAIXAS:
1. Mas que Nada (Jorge Ben)
2. Tim dom dom (João Mello - Clodoaldo Brito)
3. Balança Pema (Jorge Ben)
4. Vem Morena, Vem (Jorge Ben)
5. Chove Chuva (Jorge Ben)
6. É Só Sambar (Jorge Ben)
7. Rosa, Menina Rosa (Jorge Ben)
8. Quero Esquecer Você (Jorge Ben)
9. Uala Ualalá (Jorge Ben)
10. A Tamba (Jorge Ben)
11. Menina Bonita Não Chora (Jorge Ben)
12. Por Causa De Você, Menina (Jorge Ben)
“O samba de Jorge Ben, da batida de seu violão à linha melódica e letra de suas composições revela um novo caminho nos horizontes de nossa música popular. É o esquema novo do samba(…) Seu inato talento musical proporcionou-lhe descobrir uma nova puxada para o nosso samba, fazendo do violão um instrumento, sobretudo, de ritmo (…) Somente o violão de Jorge já da a necessária marcação dispensando, portanto, aquele instrumento de ritmo. O balanço do acompanhamento repousa quase sempre no seu violão”.
Trecho do texto da contracapa original de 1963, de Armando Pittiglianni