É uma alegria quando se vai ao cinema – coisa que não tenho conseguido fazer com a frequência que gostaria – e o filme supera todas as expectativas. E quando isso acontece com o cinema do meu país, mais ainda. Foi assim com “Meu Nome não é Johnny” (2008), “Castanha” (2014) e “Aquarius” (2015), três dos principais representantes do cinema brasileiro do século XXI. A mesma sensação experimentei ao assistir recentemente “Bingo: O Rei das Manhãs”. O longa é uma história muito bem contada e atenta a todos os aspectos fílmicos que as grandes obras contêm. Além disso, traz outras duas características marcantes dos filmes que vêm para marcar época: cenas inesquecíveis e a possibilidade de leituras subliminares.
A começar pelo argumento, rico e, literalmente, apimentado. O longa narra as desventuras de um artista que sonha em encontrar a fama e que se depara com sua grande chance ao se tornar Bingo, um palhaço apresentador de um programa de TV. Essa é a sinopse sem a luz correta. Virando o holofote para a direção certa, temos a verdadeira história: uma comédia dramática e biográfica inspirada na vida de Arlindo Barreto, ator que foi um dos primeiros intérpretes do palhaço Bozo, sucesso da TV americana que Silvio Santos importou, no começo dos anos 80, para comandar no SBT um programa idêntico. Claro, não tão igual assim, pois, como o filme mostra, precisou de uma boa dose de “brasilidade”, ou seja, ousadia, subversão e até picardia – como, por exemplo, trazer das boates noturnas a cantora Gretchen para sensualizar a milhões de crianças. Resultado: o programa atingiu o primeiro lugar na audiência das pueris manhãs da TV brasileira. Afinal, o que a Globo fazia com Xuxa e Cia. não era nenhum pouco diferente. O que valia mesmo era a guerra pelo Ibope.
Bingo e Gretchen: cenas quentes para crianças na TV brasileira dos anos 80
O diretor Daniel Rezende, requisitado montador de clássicos recentes da cinematografia nacional (“Cidade de Deus”, “Diários de Motocicleta”, “Tropa de Elite 1 e 2”) e internacional (“A Árvore da Vida”, do norte-americano Terrence Malick), soube mexer esse caldeirão de referências e equilibrar os elementos narrativos, a loucura da vida do protagonista com doses certeiras de comédia, dramaticidade, documentarismo e poesia.
O “vida loka” Augusto Mendes é um arquétipo do Narciso: abençoado mas confuso. Brilhantemente protagonizado por Vladimir Brichta, Augusto é um ator frustrado a quem restou apenas as pornochanchadas para atuar. Além disso, é separado da esposa (uma atriz de sucesso na “Globo” que não perde a chance de lhe rebaixar), pai de um menino que o tem como exemplo e filho de uma desvalorizada atriz de uma velha guarda, situação que o magoa por idolatrar a mãe. No entanto, corajoso, amante de sua profissão e convicto de suas habilidades cênicas, ele encontra na figura tão lúdica quanto assustadora do palhaço a máscara ideal para ascender, mas também para buscar a si próprio. Uma metáfora disso está numa das tais cenas inesquecíveis a que me referi: a do hilário e até desconcertante teste de Augusto para o papel de Bingo, momento em que o até então pouco aproveitado ator se transforma. É um lance especial do longa, quando se tem as visões da câmera da TV – objeto de observação do âmbito interno da obra – e a do próprio filme – externa, pela qual o espectador é quem enxerga o que está sendo contado. Esse conjunto/choque de ações interna e externa dá amplitude à obra, haja vista a pegada “documental” e o jogo metalinguístico que isso resulta.
O personagem Augusto diante da imagem idolatrada da mãe: espelho
De fato, Rezende constrói uma narrativa que alia o entretenimento com uma abordagem mais profunda. O elemento “espelho” é referenciado em vários momentos, como o do camarim, que presencia a fusão ator/personagem; o evidente quadro com a imagem de sua mãe, pessoa a quem Augusto se espelha; e a própria tela da televisão, que, algoz, reproduz uma imagem distorcida da realidade. Como o Narciso, Augusto, a quem a beleza do mito grego é representada pelo brilho do talento, tenta buscar incessantemente o seu autoadmirado reflexo imergindo nas águas, mas acaba por (quase) se matar. O fundo do poço em que Augusto chega, bem como a retomada para um novo momento de vida que ocorre no transcorrer da trama, são, enfim, símbolos de morte e renascimento.
O palco, igualmente, é outra referência-chave no filme, seja o estúdio de TV, o picadeiro, o púlpito da igreja ou qualquer lugar que lhe oferecesse olhares, simbolizando o ator que quer incansavelmente os aplausos para, de alguma forma, sublimar o insucesso da mãe. Desse modo, um dos elementos básicos do cinema, a luz, ganha total importância, seja para, de forma prática, iluminá-lo no palco da vida, seja para, metaforicamente, trazer à luz aquilo que está escondido – caso dos loucos bastidores da TV brasileira daquela época e da própria personalidade autodestrutiva de Augusto, que afunda em drogas e sexo sob a capa de uma figura divertida e alegre. Não à toa, um ponto fundamental da trama é o anonimato do ator por trás do palhaço por conta de uma exigência contratual, o que se torna insuportável com o passar do tempo para Augusto e, principalmente, para seu filho, que, com os olhos descomplicados de criança, enxerga nisso uma mentira injustificável.
No palco e sob todos os holofotes
A direção de arte, a fotografia e a trilha sonora, tanto de canções incidentais (de Tokyo a Echo & the Bunnymen, Dr Silvana & Cia.) quanto compostas (Beto Villares), são trunfos de “Bingo”. Porém, muito do acerto do filme está, acima de tudo, nas atuações, em especial de Brichta. É ele quem protagoniza as melhores – e memoráveis – cenas, como as de interação com os “baixinhos” durante o programa, a da incrível “dança de regozijo” – quando atinge a liderança de audiência e é carregado nos braços da plateia de crianças – e a já referida do teste para o papel. Ator de formação em teatro e bastante tarimbado em tevê e cinema, Brichta consegue entrar no personagem de uma forma visceral. Seu êxito tem todos os méritos não só pelo tempo da comédia e pela carga certa de drama exigida mas, mais do que isso, pela interpretação do clown, coisa que qualquer ator sabe o quanto é difícil internalizar.
Criador e criatura se fundem diante do espelho
Brichta, ao encarnar o palhaço mais "sexo, drogas e rock'n' roll" da história, sustenta com muita habilidade a dicotomia principal do filme, que é a amoralidade da vida adulta e a inocência da fase infantil. Fica claro que, quando as questões da infância não são devidamente resolvidas, o adulto recorre a perigosos brinquedos para submergi-las. Como a beleza de Narciso conduzida por Liriope, sua mãe, pelo meio da mentira. Novamente, luz e sombra, o que é e o que não é. Se o público via um palhaço sorridente, na realidade ele carregava por trás da máscara um homem infeliz e perdido no próprio ego.
Pode haver quem critique o desfecho, que em parte credita à conversão do ator à Igreja Evangélica sua recuperação como pessoa. A meu ver, isso passa batido, até por que de muito se sabe que isso realmente ocorrera com Arlindo Barreto, o verdadeiro Bozo. O fato é que estas lendas em torno do Bozoca Nariz de Pipoca que, quando criança, eu e outras milhares assistíamos (sempre o preferi à Xuxa), são trazidas no filme. prestando um serviço documental de uma fase gloriosa – e agora, um pouco menos obscura – da TV brasileira. Agora dá pra entender o que me foi uma decepção na época: quando o Bozo "de verdade" sumiu de repente para entrar o sem graça do Luis Ricardo.
É curioso constatar que é mais comum fazermos aqui retrospectivas de festivais de cinema de fora, como Oscar e Cannes, do que de algum de dentro do Brasil, caso o Festival de Cinema de Gramado, que ocorre aqui no nosso pátio sulista. Embora um adorador do festival há muito tempo – como não poderia deixar de ser a qualquer cinéfilo do Brasil, que guarda um sentimento especial pelo maior e mais tradicional evento de cinema brasileiro –, nunca, porém, estive durante sua realização. Mesmo com os anos de crítica, Gramado sempre esteve, mesmo que perto geograficamente, muito longe em termos práticos, visto que a vida cotidiana com suas obrigações e afazeres sempre me impossibilitou de subir a Serra para passar uma semana imerso somente em filmes.
Acontece que, com a pandemia, não apenas eu como milhares de outros espectadores pude ter essa maior proximidade que a exigência de exclusividade do festival sempre afastou. Desde o ano passado, os filmes concorrentes passaram a ser exibidos não no icônico Palácio dos Festivais para poucos afortunados e com pessoas se acotovelando para conseguir uma poltrona, mas, sim, dada a necessidade de distanciamento social, através de sessões pelo Canal Brasil. No conforto da poltrona de casa. Aí, foi um abraço. Se em 2020 já havia conseguido assistir a alguns títulos como espectador, este ano, convidado pela organização do festival, tive a honra de compor, como membro da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul o Júri da Crítica, na qual tive como colegas Ela Bittencourt, Pedro Butcher, André Bozetti e Joyce Pais. A missão: escolher os melhores filmes nas categorias de Curta-Metragem Brasileiro, Longa-Metragem Brasileiro e Longa-Metragem Estrangeiro, 24 títulos no total.
A maratona, embora um pouco cansativa, foi extremamente prazerosa, bem como o processo de seleção junto aos colegas de júri, com quem pude aprender mais sobre o papel do crítico, principalmente para situações como a de um corpo julgador a qual nos cabia. Com temas e abordagens variadas, tanto a seleção de curtas quanto a de longas trouxeram obras bem interessantes, algumas empolgantes. Particularmente, destaco dois títulos de duas das categorias que pude ter maior aprofundamento – Curta-metragem Brasileiro e Longa-Metragem Brasileiro – sem deixar, contudo, de abordar outros filmes juntamente:
"Entre Nós e o Mundo", de Fábio Rodrigo (2019) Curta-metragem que já havia assistido, primeiramente na mostra competitiva do 1º Festival Cinema Negro em Ação, do qual participei também como jurado justamente para esta categoria, e, posteriormente, quando fui mediador de debates do 14º Cine Esquema Novo, em abril deste ano, ocasião em que tive a oportunidade de conversar diretamente com o cineasta e discutir mais sobre este pequeno documentário gigante em profundidade e sensibilidade. O filme relata a história de Erika, prima de Rodrigo e moradora da comunidade de Vila Ede, na periferia São Paulo. Ela sofre por ter perdido seu filho mais novo durante uma abordagem policial, ao mesmo tempo que teme pela vida de seu outro filho e da nova que está trazendo ao mundo, a pequena e resistente Alicia.
Impressiona em “Entre...”, escolhido por nós da crítica e também ganhador como Melhor Filme pelo Júri, é a abordagem não óbvia para um problema crônico da sociedade brasileira, que é a violência urbana e o racismo. Denunciativo sem ser escancarado, consciente sem ser agressivo, o curta deixa ao espectador, em sua montagem peculiar (aliás, vencedora nesta categoria em Gramado também) – que formula um “work in progress” cuja bússola é o processo emocional do diretor, também personagem da história – o sentimento raro em um momento de revolta da beleza e da continuidade da vida. Competente, bem à frente de seus concorrentes, “Entre...” ainda rendeu a Rodrigo Melhor Direção e Montagem.
"Animais na Pista", um dos destaques entre os curtas
Não posso deixar de mencionar, no entanto, outro filme que me surpreendeu bastante entre os curtas, que foi “A Fome de Lázaro”. Também documental, o filme do paraibano Diego Benevides traz um olhar antropológico e despido de crítica de um ritual de promessa à São Lázaro em uma pequena comunidade do interior da Paraíba, lembrando em certa medida filmes de “cinema direto” do cineasta e antropólogo francês Jean Rouch. Fotografia e enquadramentos precisos em um roteiro em que não se escuta um diálogo sequer, mas que o espectador o entende em sua completude. Embora não consensual entre nós jurados da crítica, posso dizer que minha percepção não estava de um todo equivocada, visto que o filme recebeu o prêmio de Melhor Filme de Curta-Metragem, premiação máxima para esta categoria no festival, além de também merecidamente o de Direção de Arte.
Menciono também outra produção paraibana: “Animais na Pista”, de Otto Cabral (vencedor de Melhor Trilha Musical e Melhor Fotografia), um ousado e difícil exercício de plano-sequência para um drama que faz uma crítica dura à sociedade e a raça humana; o paulista “Fotos Privadas”, de Marcelo Grabowsky (Melhor Ator para Lucas Galvino e Melhor Roteiro), de personagens e situações muito bem construídas; e o ousado doc-denúncia “O Que Há em Ti”, do igualmente paulista Carlos Adriano, que quebra os limites entre Brasil e Haiti – se é que ele “não é aqui”.
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“O Novelo”, de Cláudia Pinheiro (2020)
Talvez o que mais tenha me impactado de todo o Festival, este longa é uma preciosidade. Drama humano e com carga emocional bastante bem conduzida no roteiro, traz, mesmo que numa narrativa mais regular, paralelos entre passado e presente sempre adequados à trama. Os diálogos são tão bem escritos, que parecem se dar em situações reais cotidianas. Contudo, principalmente, o forte do filme está, como poucas vezes se vê com tamanha qualidade no cinema nacional, na direção de atores.
Cinco irmãos acabam sendo criados pelo irmão mais velho, após o desaparecimento do pai e, posteriormente, a morte da mãe. Um dia, já adultos, eles recebem a notícia de que um homem em coma em uma UTI pode ser seu pai. Na sala de espera do hospital os irmãos mergulham em seus conflitos e memórias através do tricô aprendido na infância. Além de retratar uma família de negros de classe média, contrariando a pecha brancocêntrica de “senzala” em relação ao lugar do negro no audiovisual brasileiro, o longa de Cláudia questiona também outros tabus, como os papeis sociais de homens e mulheres, a identidade e a essência das relações familiares, representadas todas na ideia de continuidade e de origem do novelo de lã.
As atuações, portanto, não se restringem a uma ou outra de destaque – principalmente se comparado com outros filmes da mostra competitiva, os bons “Homem Onça”, conduzido pelo personagem principal vivido por Chico Diaz, ou “A Suspeita”, protagonizado por Glória Pires, vencedora, inclusive do prêmio de Melhor Atriz – mas a pelo menos 16 atores, a excelente Isabél Zuaa o os irmãos, apresentados na história em três momentos temporais ao longo de três décadas. O feito de “O Novelo” neste sentido é, justamente, o de equalizar tantas atuações intensas que, por sua vez, entregaram o que lhes foi exigido.
trailer de "O Novelo"
Ajuda para este resultado cênico a construção muito sensível e precisa de cada personagem, principalmente os cinco irmãos, cada um com suas características pessoais/emocionais complementares entre si. Filme que vem para se somar a grandes produções brasileiras dos últimos anos, como “Três Verões”, “Pacarrete” e “Aos Olhos de Ernesto”, mas que não obteve o prêmio máximo do Festival de Gramado, dado ao pernambucano “Carro Rei”. Entretanto, o Júri Popular fez-lhe justiça entregando-lhe o Kikito de Melhor Filme, além dos de Melhor Ator (Nando Cunha) e as menções honrosas para Isabél Zuaa e para os jovens Fernando Lufer, Michel Gomes, Victor Alves, Kaike Pereira, Pedro Guilherme e Caio Patricio.
Carro Rei: vitória contestada de Gramado 2021
Afora “O Novelo”, merece apreciação “A Primeira Morte de Joana”, da gaúcha Cristiane Oliveira, vencedor, aliás, do prêmio do Júri da Crítica. Embora tenha me encantado mais por “O Novelo”, a premiação ao filme de Cristiane, além do consenso entre nós, jurados, justifica-se plenamente pela proposta bastante mais “cinematográfica”, por assim dizer, em relação não apenas a “O Novelo”, mas talvez a todos os outros ao explorar aspectos gramaticais do cinema com maior profundidade. Isso porque “A Primeira...” é ao mesmo tempo uma investigação factual, pessoal e cinematográfica, capaz de traduzir o ponto de vista de uma adolescente com um trabalho de câmera sensível, atento aos elementos táteis, às texturas e aos silêncios.
Curiosamente, nem “O Novelo” e nem “A Primeira...” – quanto menos outro forte concorrente, “Homem Onça” – ficaram perto em termos de realce do errático “Carro Rei”, o grande vencedor da noite, uma ficção futurista com seus méritos (venceu, entre seus 4 Kikitos, os de melhor Trilha Musical, Direção de Arte e Desenho de Som), mas que não se situa nem entre o filosofal e nem no pop. Até mesmo “Jesus Kid” obteve, no pesar das premiações, mais destaque. Comédia boa em direção de arte e fotografia, mas que se consagrou justamente naquilo mais peca: a direção, apressada e destoada do curitibano Aly Muritiba (muito em razão da fraca atuação do seu ator principal, Paulo Miklos), e o roteiro, que, embora baseada na obra do celebrado escritor Lourenço Mutarelli, é o responsável pelo resultado desigual do filme. Vai entender.
O fato é que, diferentemente de outros anos, em que o principal premiado condizia com o tamanho de Gramado, este ano, mesmo que "Carro Rei" não seja desprezível, parece não estar-lhe à altura. Mas tudo bem. O que ficou foi o sentimento de resistência do único festival de cinema brasileiro ininterrupto a tantas edições e que, em 2022, se prepara para o cinquentenário. Todos torcendo para que a pandemia já tenha amenizado.
Conheça os vencedores do 49º Festival de Cinema de Gramado:
CURTAS-METRAGENS BRASILEIROS
·Melhor Filme – “A Fome de Lázaro”, de Diego
Benevides
·Melhor Direção – Fabio Rodrigo, por “Entre Nós e
o Mundo”
·Melhor Ator – Lucas Galvino em “Fotos Privadas”
·Melhor Atriz – Tieta Macau em “Quanto Pesa”
·Melhor Roteiro – Marcelo Grabowsky, Aline
Portugal e Manoela Sawitzki, por “Fotos Privadas”
·Melhor Fotografia – Rodolpho Barros, por
“Animais na Pista”
·Melhor Montagem – Caroline Neves, por “Entre nós
e o Mundo”
·Melhor Trilha Musical – Eli-Eri Moura, por
“Animais na Pista”
·Melhor Direção de Arte – Torquato Joel, por “A
Fome de Lázaro”
·Melhor Desenho de Som – Breno Nina, por “Quanto
Pesa”
·Melhor Filme pelo Júri Popular – “Desvirtude”,
de Gautier Lee
·Melhor Filme pelo Júri da Crítica – “Entre Nós e
o Mundo”, de Fábio Rodrigo
·Prêmio Especial do Júri – Fabio Rodrigo, por
“Entre Nós e o Mundo” por responder de forma consciente em termos estéticos,
afetivos e narrativos a pergunta “Como falar da dor da perda e ainda ter
esperança?”.
·Menção honrosa da Comissão Julgadora para os
curtas brasileiros vai para o filme “A Beleza de Rose”, de Natal Portela, por
fazer um delicado recorte da vida de muitas mulheres negras no nordeste do
Brasil.
·Prêmio Canal Brasil de Curtas – “A Beleza de
Rose”, de Natal Portela
LONGAS-METRAGENS ESTRANGEIRO
·Melhor Filme – “La Teoría De Los Vidrios Rotos”,
de Diego Fernández Pujol
·Melhor Filme Júri Popular – “La Teoría De Los
Vidrios Rotos”, de Diego Fernández Pujol
·Melhor Filme pelo Júri da Crítica – “Planta
Permanente”, Ezequiel Radusky
·Prêmio Especial do Júri – Pela abordagem de
temas tão presentes em nossa sociedade, que refletem as consequências de um
sistema corrompido e afetam diretamente os valores humanos; e pelas
interpretações das protagonistas femininas que representam a força das mulheres
latinas em nosso cinema. O Júri de Longas-metragens estrangeiros do 49º
Festival de Cinema de Gramado decidiu conceder o Prêmio Especial do Júri ao
filme “Planta Permanente”, de Ezequiel Radusky.
LONGAS-METRAGENS GAÚCHOS
·Melhor Filme – “Cavalo de Santo”, de Carlos
Eduardo Caramez e Mirian Fichtner
·Melhor Direção – Gilson Vargas, por “A Colmeia”
·Melhor Ator – João Pedro Prates, por “A Colmeia”
·Melhor Atriz – Luciana Renatha, Alexia Kobayashi
e Veronica Challfom, por “Extermínio”
·Melhor Roteiro – Carlos Eduardo Caramez, por
“Cavalo de Santo”
·Melhor Fotografia – Bruno Polidoro, por “A
Colmeia”
·Melhor Direção de Arte – Gilka Vargas e Iara
Noemi, por “A Colmeia”
·Melhor Montagem – Joana Bernardes e Mirela
Kruel, por “Extermínio”
·Melhor Desenho de Som – Gabriela Bervian, por “A
Colmeia”
·Melhor Trilha Musical – Cânticos Sagrados dos
Orixás preservados pelos Terreiros gaúchos e Alabê Oni, por “Cavalo de Santo”
·Melhor Filme pelo Júri Popular – “Cavalo de
Santo”, de Carlos Eduardo Caramez e Mirian Fichtner
LONGAS-METRAGENS BRASILEIROS
·Melhor Filme – “Carro Rei”, de Renata Pinheiro
·Melhor Direção – Aly Muritiba, por “Jesus Kid”
·Melhor Ator – Nando Cunha, em “O Novelo”
·Melhor Atriz – Glória Pires, em “A Suspeita”
·Melhor Roteiro – Aly Muritiba, por “Jesus Kid”
·Melhor Fotografia – Bruno Polidoro, por “A
Primeira Morte de Joana”
·Melhor Montagem – Tula Anagnostopoulos, por “A
Primeira Morte de Joana”
·Melhor Trilha Musical – Dj Dolores, por “Carro
Rei”
·Melhor Direção de Arte – Karen Araújo, por
“Carro Rei”
·Melhor Atriz Coadjuvante – Bianca Byington, por
“Homem Onça”
·Melhor Ator Coadjuvante – Leandro Daniel
Colombo, por “Jesus Kid”
·Melhor Desenho de Som – Guile Martins, por
“Carro Rei”
·Melhor Filme pelo Júri Popular – “O Novelo”, de
Claudia Pinheiro
·Melhor Filme pelo Júri da Crítica – “A Primeira
Morte de Joana”, de Cristiane Oliveira
·Prêmio Especial do Júri para Matheus
Nachtergaele, em “Carro Rei”, pela construção e domínio do personagem e pela
brilhante capacidade de se reinventar.
·Menção honrosa para Fernando Lufer, Michel
Gomes, Victor Alves, Kaike Pereira, Pedro Guilherme e Caio Patricio por seu
talento e potência em “O Novelo”
·Menção honrosa para Isabél Zuaa pela bela e
impactante atuação em “O Novelo”
Gotham City, 1981. Em meio a uma
onda de violência e a uma greve dos lixeiros, que deixou a cidade imunda, o
candidato Thomas Wayne (Brett Cullen) promete limpar a cidade na campanha para
ser o novo prefeito. É neste cenário que Arthur Fleck (Joaquin Phoenix)
trabalha como palhaço para uma agência de talentos, com um agente social o
acompanhando de perto, devido aos seus conhecidos problemas mentais.
Uma direção perfeita,
tecnicamente impecável, uma atuação espetacular, uma das melhores construções
de arco de personagem que já vi, fazem de “Coringa” uma obra de arte, que, no entanto, pode vir a se tornar extremamente perigosa se for interpretado de certas maneiras.
É, mas o fato de classificá-lo como perigoso, não deixa de ser também um mérito, uma vez que mostra o personagem principal como um homem que apenas está respondendo, tomando ações para
confrontar a forma com que pessoas e o sistema, o tratam, levando um cidadão a atitudes e ações extremamente violentas, que na
obra, dentro deste contexto, acabam mostrando-se justificadas. E digo que pode ser perigoso, no caso de qualquer um assistir ao filme e acabar se identificando com Arthur (o que é bem possível devido ao realismo da
trama) e tudo aquilo servir como inspiração e um gatilho para atitudes
parecidas. Então, cuidado! Procure conversar com alguém sobre o filme, ok?
Como obra cinematográfica, o
longa chega perto da perfeição. Desde de um roteiro bem escrito, uma fotografia
sublime, e uma direção que sabe o quequer, onde pretende chegar e nos levar. Mas o que torna o filme realmente
memorável é atuação de Joaquin Phoenix. O homem está possuído em cena! Tudo,
definitivamente TUDO, que ele faz no filme é ESPETACULAR! Uma atuação com o
corpo todo, uma fisicalidade assustadora e visceral. Seus olhares, suas falas, até
os momentos que está em silencio conseguem ser espetaculares. Me chamou muito
atenção a mudança de postura de Arthur quando se transforma em Coringa: deixa de
ser aquela pessoa com aparência fraca, corcunda para se tornar um homem poderoso,
intimidador.
Um dos melhores estudos e
construção de personagem dos últimos tempos no cinema. Um protagonista que sai do ponto
A e vai até o ponto B muito bem conduzido pelo roteiro e direção, o que é ótimo de observar. Ver que ao final da história,
não só o personagem mudou você também mudou. Isso é cinema e o seu melhor como
arte. Aquilo que instiga, faz refletir e ainda é delicioso de se assistir. E como se não bastasse tudo isso, "Coringa" é uma bela homenagem a Scorsese e seu cinema da nova Hollywood.
Vá
com calma, acompanhe toda jornada desse palhaço louco, tenha medo, mas não
deixe de acompanhá-lo pelas perigosas ruas deNova..ops.. , quero dizer... Gotham.
Pura genialidade! Uma aula de atuação.
Algo que não se esquece tão cedo.
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A descida ao inferno
por Daniel Rodrigues
Poucos filmes me geraram tamanha expectativa antes de assisti-lo como “Coringa”, de Todd Phillips. Mas neste caso, foi mais do que expectativa: foi medo mesmo. Medo de ficar decepcionado com a comum ideologização permeada de parcialidade do cinema comercial norte-americano, com a superficialidade com que tratam muitas vezes assuntos profundos ou, pior, com a recorrente banalização de temas ricos como se fossem apenas produtos de entretenimento. Geralmente tento estar com a mente aberta ao que o filme me trará, não raro sem ler nada a seu respeito antes. Mas com Coringa era impossível, pois tinha receio que o deturpassem, e isso me irritaria muito, uma vez que me é um personagem caro. Já não basta o que fizeram com o seu arquirrival, Batman, cuja DC Comics, sem controle de seu personagem mais icônico na transposição para o cinema – diferentemente da Marvel para com as suas marcas – deixou que o Homem-Morcego fosse mais inexpressivo que os vilões nas versões de Tim Burton, virasse um existencialista falastrão na trilogia de Christopher Nolan e alterasse totalmente o porquê de seu embate com Superman por pura falta de colhões em reproduzir a obra original dos quadrinhos.
Com o Coringa não podiam cometer o mesmo erro. Não podiam desperdiçar uma mitologia tão rica, a oportunidade e contar uma história inigualavelmente promissora como ainda não se tinha feito. Quem como eu acompanhou os HQ’s de Batman nos anos 80 e 90 sabe o quanto este personagem é especial e – mesmo com o fio condutor que monta a sua biografia desde que foi criado – complexo. E foi exatamente isso que o filme de Phillips conseguiu: construir um personagem denso e crível, não apenas respeitando a sua saga como amarrando aspectos sociológicos e psicológicos com surpreendente minúcia.
O ponto que mais me preocupava antes de assistir era o de se querer dar a um maníaco assassino como Coringa um caráter meramente vitimista para sustentar o clichê de que a sociedade moderna é a principal responsável por criar monstros como ele. Subterfúgio, claro, usado unicamente para imobilizar as consciências e manter tudo como está em favor daqueles que comandam o sistema. É quase isso, uma vez que a opressão social, política, ideológica e a consequente invisibilidade que esta condição subalterna dá aos desfavorecidos ou diferentes como ele é, sim, combustível para a formatação da persona Coringa a que o personagem Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) acaba por assumir em sua caminhada de loucura e dor. O problema é que Coringa é um velho conhecido, uma vez que não se trata de um personagem como os de vários filmes em que os elementos narrativos vão dando subsídios para que se construa do zero na cabeça do espectador o psicológico e a identidade dele. Trata-se, no caso do principal vilão dos quadrinhos do Batman – quiçá de toda a história dos HQ’s – de uma “pessoa” a quem já se sabe onde vai chegar e quais os traços essenciais o compõem enquanto sujeito. Ou seja: precisavam ser bastante críveis para me convencer.
Por isso, a questão é mais profunda quando se fala em Coringa. Entretanto, o roteiro do filme é muito feliz ao abarcar todos esses aspectos e ir ao cerne das coisas. Além da visível esquizofrenia e a propensão à psicopatia, controladas até certo ponto pelo sistema através não só de medicações como da opressão social, há nele uma motivação estritamente subjetiva e humana, que é a família. O histórico de maus tratos, o desajuste familiar e a condição de pobre, inadequado e fracassado poderiam até ser equalizadas se continuasse levando uma vida medíocre e sem visibilidade como de fato tinha.
Mas é a perda da figura central da mãe (a quem ele duplamente perde, simbólica e materialmente, uma vez que ele mesmo a mata) a chave para o desencadeamento do que lhe havia de pior, para que se concretizasse o Coringa que conhecemos. Representa a ruptura, a definitiva descida ao que estava represado, a qual o cenário da escadaria simboliza na trama o caminho: para cima, a redenção, para baixo, o inferno. A mãe, única pessoa a quem ele podia dedicar carinho, era a como o pino de uma granada: se fosse removida, a bomba explodiria. E foi. Uma justificativa altamente plausível que, aí sim, juntada aos fatores externos da igualmente violenta sociedade é um prato cheio para o surgimento de indivíduos perigosos como Coringa. Ele é vítima, sim, mas é também produto do descuido da sociedade para com o dessemelhante, o cidadão não-comum, que não se encaixa nos padrões estabelecidos. Fosse pelo talento de artista, a encarnação do dualístico e bufão clown, fosse pela loucura latente que lhe prejudicava a socialização, nunca lhe deram atenção. Ninguém. Sua resposta veio em forma de um empedramento doentio e de vingança. Agora teriam que lhe dar atenção, da pior maneira possível.
O ótimo resultado de “Coringa” é em grande parte fruto da atuação exuberante de Phoenix – o que, aliás, mesmo com a desconfiança do que o filme apresentaria, tinha certeza de que seria brilhante. A construção que Phoenix dá a Coringa considera a trajetória dos HQ’s, a literatura, o imaginário social e todos os outros que vestiram o personagem antes dele no audiovisual. É possível enxergar Jack Nicholson, Heath Ledger, Cesar Romero e Jared Leto, assim como estão ali o Coringa dos HQ’s “A Piada Mortal”, “Asilo Arkham” ou “O Cavaleiro das Trevas”. Porém, Phoenix, até por esta capacidade cênica muito sensível de síntese, consegue o feito de superar todos.
Mas fora o encanto que protagonista causa, tudo funciona em “Coringa”. A obra, mesmo que tenha na atuação justificadamente a sua maior força, é incrivelmente coesa, harmônica, forte e crítica. Um tapa na cara sem concessões ao modo de vida norte-americano e ao que a nação mais rica do mundo vende ao mundo como modelo de felicidade. Além disso, a fotografia suja e fantasmagórica, a trilha sonora econômica e muito bem escolhida, a direção de arte impecável e a edição, que faz questão de deixar subentendimentos em nome do foco da narrativa, são igualmente destaques.
Dentro da crítica aos modelos norte-americanos que o longa traz, a referência a dois filmes de Martin Scorsese – não à toa ambos estrelados por Robert De Niro, brilhante no papel do apresentador de tevê Murray Franklin – são sintomáticas. Primeiro, “Taxi Driver” (1976), quando Arthur, em seu mundo interno, aponta um revólver para a televisão e para os “inimigos imaginários” de sua sala. A condição de degradação mental a que o ex-combatente do Vietã vivido por De Niro e a de um rejeitado como Arthur são sujeitados expõe o quanto a política dos Estados Unidos é capaz de gerar indivíduos tão desassistidos e doentes. Igualmente, “Coringa” retraz, ao abordar o stend-up comedy e os programas de auditório em que as massas riem do que lhe é imposto como piada, o controvertido “O Rei da Comédia” (1983). Naquele, a piada sem/com graça é o sequestro do astro da televisão Jerry Langford (Jerry Lewis) pelo obsessivo e igualmente invisível Rupert Pupkin (De Niro) para que este apresentasse seu número no lugar do apresentador oficial. A reflexão que “Coringa” levanta, assim como o filme de Scorsese, é um questionamento do que é “felicidade” numa sociedade acrítica e controlada pela indústria do entretenimento como a atual.
“Coringa” não tem nada a ver com os filmes de super-heróis explosivos, frenéticos e plastificados como os que Hollywood vem fazendo às pencas. É um drama sobre uma pessoa inventada mas talvez tão mais real quanto um ser humano de carne e osso. Um drama sobre um triste arquétipo da doença e da violência as quais somos submetidos hoje. Um drama sobre alguém que bem que poderia existir. E será que não existe mesmo?
Coringa na escadaria: a definitiva descida para o seu inferno interior
Pode parecer piegas, mas gosto de assistir filmes sobre a Paixão de Cristo na época da Páscoa. Confesso que sou daqueles espectadores que as emissoras, sem constrangimento de serem repetitivas e óbvias, conseguem atingir. Em país católico como o Brasil, no que entra a Semana Santa, começam a pipocar produções de diferentes épocas sobre a Via-Crucis.
Por mais óbvio que seja, contudo, muitos desses filmes são bastante interessantes, visto que motivam os realizadores, essencialmente cristãos em sua maioria, a produzirem algo que lhes faz muito sentido, que lhes é caro em termos de crença e visão de mundo. Por isso, invariavelmente saem realizações caprichadas, maiúsculas, quando não, superproduções que se destacam, inclusive, na filmografia de alguns grandes cineastas. Casos de John Huston, David Lean e Franco Zefirelli, para ficar em três.
Então, sem medo de soar enfadonho, vão aqui sete títulos sobre a saga bíblica que, mesmo não sendo-se católico, é, sem dúvida, uma grande história. Digna de filme (s).
“Paixão de Cristo”, de Mel Gibson (EUA, 2004)
Mesmo com pé atrás com relação a Mel Gibson em produções nas quais atua, tenho que admitir que os filmes dirigidos pelo ator australiano merecem respeito. Este, em especial, além de trazer uma abordagem realística das últimas horas de Cristo, com cenas de alta violência e crueldade – o que deve ter sido bem verdade – tem o rigor de ser inteiramente falado em aramaico e latim, línguas usadas na época de Jesus Cristo. Sem “estrelas”, é uma realização, por mais criticada que tenha sido à época de seu lançamento, bastante sóbria e circunspecta.
Ultraviolência na Via-Crucis: controverso filme de Gobson
“A Última Tentação de Cristo”, de Martin Scorsese (EUA/Canadá, 1988)
O filme que provocou o "cancelamento" de Scorsese, por parte do Vaticano, que fez uma séria marcação ao cineasta após realizar esta ousada adaptação da obra de Níkos Kazantzákis. Blasfema, diria a Igreja. Mas o filme é uma preciosidade. Além da história, que traz uma visão alternativa do que poderia ter sido a vida – e a morte – de Cristo, tem no papel do Messias o ótimo Willem Dafoe, mais Harvey Keitel, Harry Dean Stanton e David Bowie. A trilha, vencedora do Grammy de Melhor Álbum New Age e uma das mais emblemáticas do cinema, é de Peter Gabriel. Polêmico, este as TVs não passam muito, não...
cena de Cristo sendo tentado por Satã em “A Última Tentação de Cristo”
“A Idade da Terra”, de Glauber Rocha (Brasil, 1980)
Outro título não muito lembrado para a Páscoa, até por conta de sua visão extremamente pessoal, alegórica e crítica da vida de Jesus, da Igreja e das estruturas de poder. Aliás, não uma vida, mas quatro! Geraldo Del Rey, Tarcísio Meira, Jece Valadão e Antônio Pitanga vivem, cada um, a personificação de um Cristo em diferentes realidades sociais: um negro, um militar, um índio e um guerrilheiro. No Brasil, Cristo não precisa de Via-Crucís: ele é crucificado simbolicamente um pouco todo dia. Último filme do gênio do Cinema Novo, que, assim como quase ocorreu com Scorsese, foi seu calvário. Desiludido com a péssima recepção da obra, o cineasta morreria meses depois de seu lançamento.
As quatro personificações de Cristo na visão de Glauber
“A Maior História de Todos os Tempos”, de George Stevens, David Lean e Jean Negulesco (EUA, 1965)
O cara jogou xadrez com o Diabo e encarnou Jesus. Só mesmo um grande ator como Max Von Sydow para se prestar a esses dois extremos com tamanha entrega e competência. Traz ainda no elenco o “épico” Charlton Heston, além de Martin Landau e Telly Savalas. Épico com letra maiúscula codirigido por três feras da Hollywood clássica, George Stevens, David Lean e Jean Negulesco. Bem tradicional em abordagem, o que contrabalanceia as nossas sugestões anteriores.
Von Sydow: haja versatilidade para quem já deu um "plá" com o Tinhoso...
“A Vida de Brian”, de Terry Jones (Inglaterra, 1979)
Se é pra blasfemar, então vamos com tudo: “A Vida de Brian”, o hilariante longa da turma da Monthy Pyton, que desfaz a sempre penosa e triste história da Via Sacra de Jesus. Aliás, o filme não é exatamente sobre a vida do filho de Deus, e sim de um pobre coitado, sonso e azarado que é confundido com o Messias. O azar é tanto que o cara, mesmo tentando escapar de todas as maneiras, acaba por ser crucificado junto com o Salvador, numa das cenas mais “épicas” do cinema de comédia, quando cantam “Olhe Sempre o Lado Bom da Vida” ao final. Dando aqui uma letra, a cena, com sua ironia, traz uma mensagem positiva que muito falta ao catolicismo quando se refere ao tema.
a hilária cena da crucificação de "A Vida de Brian"
“O Evangelho Segundo São Mateus”, de Pier Paolo Pasolini (Itália, 1964)
Quando fizemos um adendo na abertura em que dissemos que nem todos os realizadores eram necessariamente católicos, a referência era tanto a Glauber Rocha quanto, especialmente, a Pasolini. Anarquista e gay, o genial diretor italiano realizou por vontade própria a vida do Salvador através do poético texto eclesial. Talvez, o distanciamento crítico de seu posicionamento político e a sua sensibilidade de poeta – e, claro, seu talento único como cineasta – tenham lhe habilitado a realizar aquele que é o mais fiel filme sobre Jesus e seus ensinamentos – indicado, inclusive, pela Biblioteca do Vaticano, que teve que se render à obra de um filho não-abençoado.
filme completo "O Evangelho Segundo São Mateus”
“Rei dos Reis”, de Nicholas Ray (EUA, 1961)
Quem não se lembra de filmes como este ou “A Bíblia” na Sessão da Tarde da Sexta-Feira Santa? Mais um típico épico bíblico norte-americano dos anos 60, assim como "A Maior História..." a superprodução de Nicholas Ray tem narração de Orson Welles e trilha de Miklós Rózsa e roteiro de Ray Bradbury. Remake do filme mudo de Cecil B. de Mille, de 1927, em suas mais de três horas de duração, traça a vida de Jesus Cristo, do nascimento até a ressurreição, baseando-se nos quatro evangelhos canônicos (Mateus, Marcos, Lucas e João), além dos escritos do historiador romano Tácito.
Sermão da Montanha encenado grandiosamente por Ray
Uma das observações mais profundas que li sobre o Natal
foi a de um célebre paleontologista e teólogo jesuíta, Pierre Teilhard de
Chardin (1881-1955), que cito de memória, parafraseando-a:
O Verbo de Deus, Filho de Deus, igual ao Pai
e ao Espírito Santo, entrou no mundo sem
rumor, formando-se no seio de uma virgem que vivia em Nazaré.
Sem rumor, também, nasceu o Menino, que
Manuel Bandeira chamou “o nosso Menino”, numa gruta, em Belém, a pequenina
cidade donde era originário o Rei David - do qual a Virgem descendia.
O
Menino foi colocado numa mangedoura, na qual sua mãe o aqueceu com os panos de
que dispunha, e pelo bafo de dois animais, que representavam os animais saídos da
Arca de Noé: um boi e um burro. O burro seria, talvez, o ancestral de outro
burro, o que carregaria Jesus na sua entrada triunfal em Jerusalém, quando o
Rabi foi aclamado pelos habitantes de Jerusalém, inclusive pelas crianças.
O
silêncio, com que o mundo acolheu a vinda do Criador à terra, foi acompanhado
de outro silêncio, o dos campos da Judéia onde pastores apascentavam seus rebanhos.
Os
únicos a terem falado foram os Anjos.
Falaram e cantaram, anunciando aos homens, amados por Deus, que o Salvador tinha
vindo à terra para trazer a paz.
Num
poema da Divina Comédia, Dante
celebrizou essa paz num incomparável verso:
-A sua vontade é a nossa paz.
É verdade que, no contexto poético de Dante, a paz era
uma espécie de tradução do termo hebraico shalom, que significa a felicidade.
As
estrelas permaneciam silenciosas no firmamento. Elas costumam transmitir umas às
outras suas mensagens misteriosas, sem nunca apelarem para as palavras.
O Salmo 19 adverte:
-Não há palavras para os dias que comunicam uns
a outros seu discurso. Deles não se ouve som algum, embora suas vozes se façam
ouvir por toda a terra”...
Apesar
de silenciosas, as estrelas do Oriente não permitiram que passasse inobservado
o fenômeno divino da Encarnação do Verbo,
que se inseriu na conturbada História da Humanidade. Uma das estrelas tomou a
si a iniciativa de guiar três Reis Magos, vindos do Irã, ao humilde Presépio,
que se situava numa cidade que ainda hoje existe, já agora num território
dilacerado por tensões étnico-religiosas.
Que maravilhoso
seria se, na comemoração do Natal, as nações cristãs, concordassem em instituir
um minuto de silêncio em homenagem a
tão grande Mistério!
Seria
preciso que não se ouvisse som algum em nosso mundo!
Seria preciso que a paz, silenciosa
como as estrelas (ao contrário de nossos ícones que, para serem ovacionados, inflamam
as multidões) entrasse nos corações na ponta dos pés, e aí fizesse adormecer as
almas ao som da Noite Feliz, traduzida
para o português por um frei franciscano de Petrópolis, o qual preferiu o
adjetivo feliz ao adjetivo original
alemão stille: Noite Silenciosa!
Não seria tão complicado fazer rimar Noite Silenciosa com SolitáriaRosa!
Existe,
em toda a parte uma, ou várias rosas solitárias. Aqui e acolá, descobre-se uma
mulher silenciosa, um homem silencioso, um cachorro silencioso, uma coisa silenciosa.
A
alegria tende a exceder seus limites. As dores e as tristezas são, por
temperamento, introvertidas. Profundamente silenciosas.
Podemos,
pois, orar:
Noite Silenciosa,
Noite Feliz:
ajuda-nos a encontrar a Deus,
ou antes,
a sermos encontrados por Ele!
Escritor,
teólogo, filósofo, ensaísta, crítico de arte, poeta e cronista gaúcho, Armindo Trevisan nasceu em Santa Maria,
em 1933. Doutor em Filosofia pela Universidade de Fribourg, Suíça. Bolsista da
Fundação Calouste Gulbenkian em 1969 e 1974. Professor de História da Arte e
Estética na UFRGS, de 1973 a 1986. Lecionou no Curso de Pós-Graduação em Artes
Visuais da UFRGS até 1999. Vencedor do Prêmio Nacional de Poesia Gonçalves Dias
(1964), pela União Brasileira de Escritores, com “A Surpresa de Ser” (comissão
julgadora composta por Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Cassiano
Ricardo). Em 1972, ganhou o Prêmio Nacional de Brasília para Poesia Inédita, por “O Abajur de
Píndaro”. Em 1997, venceu o Prêmio APLUB de Literatura pelo livro “A
Dança do Fogo”. Em 2001, foi Patrono da Feira do Livro de Porto Alegre. Já em
2004, recebeu o Prêmio Fato Literário, dado a personalidade ou instituições que
mais contribuíram com as letras gaúchas. Tem poemas e ensaios traduzidos em
alemão, italiano, espanhol e inglês.