Saiu mais uma lista dos candidatos do ano ao Oscar! Para quem curte cinema, bate aquela fissura de assistir a tudo que for possível antes da cerimônia de premiação. A equipe cinematográfica do Clyblog, no entanto, já vem se empenhando nisso conferindo alguns dos títulos até então pré-indicados, caso, por exemplo, do ótimo “Coringa”, que lidera a lista, com 11 indicações, o “O Irlandês”, de Martin Scorsese, que não ficou muito atrás, com 10, e “Star Wars – A Ascensão Skywalter”, com três técnicas. Mas embora “Coringa” saia na frente e provavelmente leve algumas estatuetas, entre elas, a de Melhor Ator para Joaquim Phoenix, os adversários para Melhor Filme e Diretor, os mais cobiçados da noite, são bem valiosos. A começar pelo primeiro filme sul-coreano a disputar a categoria, o Palma de Ouro “Parasita”, que concorre também a Filme Estrangeiro. O vencedor do recente Globo de Ouro, “1917”, de Sam Mendes, vem com a pompa dos filmes de guerra, temática bem vista pela Academia, assim como “Jojo Rabbit”. E tem também os elogiados “Histórias de um Casamento”, “Adoráveis Mulheres”, “Era uma Vez em... Hollywood”... Há categorias, aliás, que chega a assombrar tamanho o peso, como Ator Coadjuvante, só com já vencedores ou já nomeados várias vezes: Tom Hanks, Anthony Hopkins, Al Pacino, Joe Pesci e Brad Pitt. Destaque também para o documentário “Democracia em Vertigem”, de Petra Costa, que, após muitos anos, põe um filme brasileiro novamente na disputa de um Oscar. Enfim, uma boa disputa, mas que tem os seus favoritos, claro. E nós do blog vamos continuar trazendo nossas impressões de filmes que figuram no Oscar 2020. Então, confira a listagem completa:
▪ MELHOR FILME Ford vs Ferrari O Irlandês Jojo Rabbit Coringa Adoráveis Mulheres História de um Casamento 1917 Era Uma Vez Em... Hollywood Parasita ▪ MELHOR DIREÇÃO Martin Scorsese - O Irlandês Todd Phillips - Coringa Sam Mendes - 1917 Quentin Tarantino - Era Uma Vez Em... Hollywood Bong Joon Hoo - Parasita ▪ MELHOR ATRIZ Cynthia Erivo - Harriet Scarlett Johansson - História de um Casamento Saoirse Ronan - Adoráveis Mulheres Renée Zellweger - Judy - Muito Além do Arco-Íris Charlize Theron - O Escândalo ▪ MELHOR ATOR Antonio Banderas - Dor e Glória Leonardo DiCaprio - Era Uma Vez Em... Hollywood Adam Driver - História de um Casamento Joaquin Phoenix - Coringa Jonathan Pryce - Dois Papas ▪ MELHOR ATRIZ COADJUVANTE Kathy Bates - O Caso Richard Jewell Laura Dern - História de um Casamento Scarlett Johansson - Jojo Rabbit Florence Pugh - Adoráveis Mulheres Margot Robbie - O Escândalo ▪ MELHOR ATOR COADJUVANTE Tom Hanks - Um Lindo Dia na Vizinhança Anthony Hopkins - Dois Papas Al Pacino - O Irlandês Joe Pesci - O Irlandês Brad Pitt - Era Uma Vez Em... Hollywood ▪ MELHOR ROTEIRO ORIGINAL Entre Facas e Segredos História de um Casamento 1917 Era Uma Vez Em... Hollywood Parasita ▪ MELHOR ROTEIRO ADAPTADO O Irlandês Jojo Rabbit Coringa Adoráveis Mulheres Dois Papas ▪ MELHOR FILME INTERNACIONAL Corpus Christi (Polônia) Honeyland (Macedônia do Norte) Os Miseráveis (França) Dor e Glória (Espanha) Parasita (Coreia do Sul) ▪ MELHOR ANIMAÇÃO Como Treinar o Seu Dragão 3 I Lost My Body Klaus Link Perdido Toy Story 4 ▪ MELHOR FOTOGRAFIA O Irlandês Coringa O Farol 1917 Era Uma Vez Em... Hollywood ▪ MELHOR MONTAGEM Ford vs Ferrari O Irlandês Jojo Rabbit Coringa Parasita ▪ MELHOR DIREÇÃO DE ARTE O Irlandês Jojo Rabbit 1917 Parasita Era Uma Vez Em... Hollywood ▪ MELHOR FIGURINO O Irlandês Jojo Rabbit Coringa Adoráveis Mulheres Era Uma Vez Em... Hollywood ▪ MELHOR MAQUIAGEM O Escândalo Coringa Judy - Muito Além do Arco-Íris Malévola - Dona do Mal 1917 ▪ MELHORES EFEITOS VISUAIS Vingadores: Ultimato O Irlandês O Rei Leão 1917 Star Wars: A Ascensão Skywalker ▪ MELHOR EDIÇÃO DE SOM Ford vs Ferrari Coringa 1917 Era Uma Vez Em... Hollywood Star Wars: A Ascensão Skywalker ▪ MELHOR MIXAGEM DE SOM Ad Astra Ford vs Ferrari Coringa 1917 Era Uma Vez Em... Hollywood ▪ MELHOR CANÇÃO ORIGINAL "I Can’t Let You Throw Yourself Away" - Toy Story 4 "I’m Gonna Love Me Again" - Rocketman "I’m Standing With You" - Superação - O Milagre da Fé "Into the Unknown" - Frozen 2 "Stand Up" - Harriet ▪ MELHOR TRILHA SONORA Coringa Adoráveis Mulheres História de Um Casamento 1917 Star Wars: A Ascensão Skywalker ▪ MELHOR DOCUMENTÁRIO Indústria Americana Democracia em Vertigem The Cave Honeyland For Sama ▪ MELHOR DOCUMENTÁRIO EM CURTA METRAGEM In the Absence Learning to Skateborad in a War Zone (If You're a Girl) A Vida em Mim St. Louis Superman Walk Run Cha-Cha ▪ MELHOR CURTA METRAGEM Brotherhood Nefta Footbal Club A Sister The Neighbor's Window Saria ▪ MELHOR ANIMAÇÃO EM CURTA METRAGEM Dcera (Daughter) Hair Love Kitbull Memorable Sister
Mais uma lista daquelas de melhores filmes de todos os tempos...
Esta da revista inglesa Empire escolhida por leitores e cineastas.
Chama a atenção a inclusão do recentíssimo "O Cavaleiro das Trevas" e a posição curiosa de 28° para "Cidadão Kane", quase sempre colocado nas listas como o número 1, ou senão entre os 5, pelo menos.
Na ponta aparece o "...Chefão 1", que eu não concordo, mas compreendo e já vi nesta condição em outras listas, mas o 2° lugar pro "Indiana..." é muita areia pro caminhãozinho do Sr. Jones.
Confiram aí os 30 primeiros e a lista completa no site da revista no link logo abaixo:
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1. "O Podereso Chefão", de Francis Ford Coppola (1972)
2. "Indiana Jones Os caçadores da arca perdida", de Steven Spielberg (1981)
3. "Star Wars: O Império contra-ataca", de Irvin Kershner (1980)
4. "Um sonho de Liberdade", de Frank Darabont (1994)
5. "Tubarão", de Steven Spielberg (1975)
6. "Os Bons Companheiros", de Martin Scorsese (1990)
7. "Apocalipse Now", de Francis Ford Coppola (1979)
8. "Cantando na chuva", de Stanley Donen e Gene Kelly (1952)
9. "Pulp Fiction", de Quentin Tarantino (1994)
10. "Clube da Luta", de David Fincher (1999)
11. "Touro Indomável", de Martin Scorsese (1980)
12. "Se meu Apartamento Falasse", de Billy Wilder (1960)
13. "Chinatown", de Roman Polanski (1974)
14. "Era uma vez no Oeste", de Sergio Leone (1968)
15. "O cavaleiro das trevas", de Christopher Nolan (2007)
16. "2001: Uma Odisséia no Espaço", Stanley Kubrick (1968)
17. "Taxi Driver", de Martin Scorsese (1976)
18. "Casablanca", de Michael Curtiz (1942)
19. "O Poderoso Chefão - Parte II", de Francis Ford Coppola (1974)
20. "Blade Runner", de Ridley Scott (1982)
21. "O Terceiro Homem", de Carol Reed (1949)
22. "Star Wars: Uma Nova Esperança", de George Lucas (1977)
23. "De volta para o futuro", de Robert Zemeckis (1985)
24. "O Senhor dos Anéis: A sociedade do anel", Peter Jackson (2001)
25. "Três Homens em Conflito", de Sergio Leone (1967)
26. "Dr. Fantástico", Stanley Kubrick (1964)
27. "Quanto mais quente melhor", de Billy Wilder (1959)
Acima, a capa original, de 1999, e, abaixo, com os sapos, da reedição de 2018.
“Aimee Mann é uma cantora e compositora maravilhosa. Provavelmente devo a ela uma tonelada de dinheiro pela inspiração que ela teve neste filme.”
Paul Thomas Anderson
Esta resenha bem que podia ser sobre o filme. De certa forma é, haja vista que é impossível dissociar, neste caso, filme e trilha. Embora comum a associação entre imagem e música no cinema, nem sempre um resultado tão afinado como este acontece. Tem, claro, as trilhas clássicas, aquelas que basta ouvir meio acorde para lembrar do filme, caso do que John Williams fez com “Tubarão” e a saga “Star Wars” ou Nino Rota para com a trilogia “Chefão”. Igualmente, “Koyaanisqatsi”, dirigido por Godfrey Reggio e musicado por Philip Glass, é assim, mas num nível diferente, haja vista que, para tal, a criação da imagem depende da música para tomar forma e vice-versa. Com “Magnolia”, cuja trilha é escrita pela cantora e compositora norte-americana Aimee Mann, entretanto, essa relação é diferente. A ligação da canção com as imagens do filme se dá num estágio mais sensível de entendimento, tornando-se, por esta via, parte essencial da obra de uma maneira bastante subjetiva e profunda.
Assisti “Magnolia” no ano de lançamento, 1999, cujos 20 anos decorridos só o engrandeceram. O então jovem diretor Paul Thomas Anderson, grande revelação do cinema alternativo dos Estados Unidos dos anos 90 junto com Quentin Tarantino, vinha do ótimo “Jogada de Risco” e da obra-prima “Boogie Nights”. O aguardado “Magnolia”, cujas notícias a respeito davam conta de que trazia um elenco estelar, como Tom Cruise numa atuação elogiadíssima, Juliane Moore, idem, Philip Seymour Hoffman afirmando-se como um dos maiores de sua geração, entre outros destaques, carregava a expectativa de que o cineasta se superasse. E foi o que aconteceu. A trama coral ao estilo Robert Altman, que amarra como sensibilidade a vida de vários personagens, nos deixava boquiabertos e cientes de que estávamos presenciando um novo marco do cinema.
Mas o que aumentava ainda mais essa sensação era a trilha sonora de Aimee, a qual concorreu ao Oscar daquele ano na categoria Canção Original. Responsável por pontuar toda a narrativa, a música composta por ela cumpre o papel de atar a história, contando-a através de sons e poesia. Mas isso não é tudo, visto que a música é tão presente e embrenhada com a história que acaba sendo mais um personagem. São nove preciosidades de um pop cristalino entre o folk e o indie que, além de cumprir a função de banda sonora, funciona perfeitamente como um disco independente do filme que o inspirou. Dá para ouvir “Magnolia” e se deliciar tão somente com a qualidade musical que contém. Contribui para isso também o fato de todas as músicas terem cada uma sua melodia e universo, sem valer-se da comum prática de trilhas sonoras de se desenvolverem variações sobre um ou dois temas musicais centrais para várias faixas.
Mesmo que a audição do disco possa ser aproveitada a qualquer momento, é impossível a apaixonados pelo filme como eu dissociar sua música da memória imagética, pois a trilha faz se transportar para as cenas a cada faixa. Exemplo disso é o tema de abertura tanto do disco quanto do filme: a precisamente intitulada “One”. A quem, como eu, não vem à mente a imagem da flor se abrindo em alta velocidade e os letterings do título aparecendo na tela com a voz de Aimee cantando: “One is the loneliest number/ that you'll ever do/ Two can be as bad as one/ it's the loneliest number/ since the number one”? (“Um é o mais solitário número/ Que você irá encontrar/ Dois pode ser pior que um/ É um número solitário/ depois do número um”).
Após o arrebatador começo, Aimee não dá trégua, emendando uma canção tocante atrás da outra. “Momentum” inicia desconcertada e dissonante para, em seguida, tomar a forma de um country-rock embalado e com um refrão comovente em que a voz de Aimee expressa docilidade mas, igualmente, a força do feminino – elemento narrativo que o filme traz de forma central em vários níveis e aspectos. “Build That Wall”, um pop delicado sobre a sofrida e viciada personagem Claudia (Melora Walters), traz um belo arranjo com flautas Piccolo e a capacidade da compositora de criar melodias e refrões tocantes (“How could anyone ever fight it/ Who could ever expect to fight it when she/ Builds that wall”: “Como alguém pode combatê-la/ Quem poderia esperar para combatê-la quando ela/ Constrói esta parede”).
Outra das mais emocionantes, “Deathly”, sobre suicídio, abre com a voz de Aimee rasgando em uma balada sofrida e realista: “Agora que te encontrei /Você se incomodaria/ Se não nos víssemos mais?/ Pois eu não posso me permitir/ Subir sobre você/ Ninguém tem tamanho ego a gastar“. A letra fala também da dificuldade emocional da personagem Claudia (um reflexo de vários outros personagens, como o arrogante Frank, de Cruise, e o abusador astro da TV Jimmy Gator, vivido por Phillip Baker Hall) de aceitar o amor do oficial Jim (John C. Reilly), que pelas coincidências da vida, encontrou-a e se apaixona: “Nem comece/ Pois eu já tenho problemas demais/ Não me importune/ Quando um simples ato de bondade pode ser/ Mortal/ Definitivamente”.
“Driving Sideways”, linda, repete a fineza comovida das composições, Já a instrumental “Nothing Is Good Enough” dá uma ligeira trégua para, na sequência, mandar outra bomba sentimental: “You Do”, em que novamente Aimee solta a voz com tamanho trato e verdade que é impossível ficar alheio ao ouvir. A também bela “Nothing Is Good Enough” toca num ponto basal do longa, que são as relações familiares: “Era uma vez/ Esta é a maneira como tudo começa/ Mas eu serei breve/ O que começou com tal excitação/ Agora eu felizmente termino com alívio/ No que agora se tornou um motivo familiar”.
Se a carga emotiva já era grande, Aimee, acompanhando o desenrolar do filme, também a intensifica mais para o final. “Wise Up”, tema que marca a sequência logo após a célebre cena da chuva de sapos sobre Los Angeles, revela uma série de tomadas de consciência dos personagens, todos com suas aflições, dificuldades, culpas e medos. O contexto de vícios, desentendimentos, suicídio, incesto, fugas emocionais e rancores, que os personagens trazem cada um a seu grau, ganha a redenção depois daquele fenômeno surreal, o que lhes oportuniza um momento de autoesclarecimento e arrependimentos. Isso, por sua vez, é brilhantemente desenhado pelos acordes de “Wise Up”, que inicia com um leve toque de piano simulando o som da batida de um coração. Figura nada mais adequada. Quando a voz de Aimee surge, é como se aquela vida ainda existisse. Ainda há esperança! Aimee, aliás, mais uma vez, esbanja sensibilidade na melodia e no canto. E o refrão, inesquecível, diz: ”It's not going to stop/ It's not going to stop/ Till you wise up” (“Isso não vai parar/ Isso não vai parar/ Até você se tocar”).
Um desavisado que estivesse escutando apenas o disco poderia achar “Wise...” um final falso. No entanto, quem conhece o filme sabe que, além desta, ainda vem outra para desmanchar em lágrimas de vez qualquer um: “Save Me”. Literalmente, a “salvação” final. Como se a redenção divina expressa naquela sequência de acontecimento recaísse sobre os homens. Misto de country e balada pop, num de seus trechos, diz assim: “Você me pareceu tão banal como radium/ Como Peter Pan ou como o Super-Homem/ Você aparecerá para me salvar/ Venha e me salve/ Se você puder, salve-me/ Deste bando de loucos/ Que suspeitam que nunca irão amar ninguém”. A música, além de marcar a cena de encerramento do filme, representa, na figura da personagem Claudia, a tentativa humana de superar suas dificuldades e dar espaço para o amor. É o arrebatamento final que Aimee dá ao genial filme de P.T. Anderson.
Duas músicas da Supertramp, uma de Gabrielle e um tema orquestrado por Jon Brion ainda desfecham o álbum, mas é evidente que a trilha de “Magnolia” é, de fato, a parte de Aimee Mann. Num momento muito inspirado da carreira, ela consegue imprimir personalidade ao filme através da música e, ao mesmo tempo, compor um disco de igual personalidade quando ouvido separadamente da obra cinematográfica. As músicas dela, através de uma sintonia muito profunda com o filme, se adéquam às cenas muito menos por sua representação narrativa do que por uma afinação que apenas o sentimento imagem/som proporciona. Talvez seja isso que distinga “Magnolia” de outros soundtracks, mesmo os mais clássicos: a música faz remeter ao sentimento que o filme traz, e não à obra a qual está ligada. Pode parecer um detalhe, mas faz toda a diferença. A música de "Magnolia" é como mais um personagem, mas onipresente, imbricado dentro de todos eles: homens e mulheres como nós.
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Lançado em 2018, a versão intitulada "Magnolia - Original Motion Picture Soundtrack" traz, além de um disco com as músicas de Aimee Mann, outros dois com o Original Score composto pelo maestro Jon Brion.
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FAIXAS:
1. “One” (Harry Nilsson) - 02:53
2. “Momentum” - 03:27
3. “Build That Wall” (Jon Brion/Aimee Mann) - 04:25
Semanas atrás Leocádia e eu fomos a uma sessão de pré-estreia
no GNC Cinemas do Praia de Belas Shopping do novo sucesso de bilheteria da DC Films, “Adão Negro”, com o astro Dwayne "The Rock" Johnson. Legal? Impossível dizer que
não. Cenas de aventura empolgantes, efeitos visuais de alto nível, desenho de
som impecável, roteiro eficiente, astros consagrados, trilhas com músicas
pop... Tudo embalado para que a coisa funcione. Mas será que
"funciona" mesmo? Talvez sim, e talvez seja exatamente este o termo
mais adequado: cumprimento de função.
Spin-off de "Shazam!" (2019) e "Shazam!: Fúria dos Deuses" (2022), o filme conta a história se passa após quase cinco mil anos de prisão
de Adão Negro, um anti-herói da antiga cidade de Kahndaq, no que seria o Oriente
Médio, que é libertado nos tempos modernos. Suas táticas brutais e seu modo de
justiça atraem a atenção da Sociedade da Justiça da América (JSA), que tenta impedir
sua fúria e ensiná-lo a ser mais um herói. Além disso, Senhor Destino (Pierce
Brosnan), Gavião Negro (Aldis Hodge), Esmaga-Átomo (Noah Centineo) e Cyclone
(Quintessa Swindell) se unem para impedir uma força maligna mais poderosa que a
do próprio Adão.
Filmes de super-heróis são uma verdadeira galinha dos ovos
de ouro para o cinema comercial do século XXI. Após mais uma crise da indústria
cinematográfica nos anos 90, quando o envelhecimento dos realizadores
consagrados do cinema comercial como Spielberg, Lucas e Zemeckis se deparou com a falta
de agentes capazes de trazer um novo produto para a permanente necessidade de
novidade da sociedade de consumo, o avanço técnico da era digital permitiu que
o cinema pudesse concretizar algo que vinha ensaiando há décadas: a transposição
dos quadrinhos de heróis para as telas. E a considerar a riqueza
temático-simbólica dos HQs, bem como a amazônica quantidade de histórias e
personagens a serem explorados, este se tornou o caminho certo para a
construção do novo blockbuster.
O Adão Negro do HQ original da DC
Pujante, a lógica de oferta e procura se estabeleceu. A
produção é tamanha que, após duas décadas de produções milionárias e geralmente
exitosas em bilheteria, Hollywood criou, claro, um padrão. “Adão Negro”, com
todos os seus elementos inerentes à obra original da DC Comics, não foge à
regra. Tem as características da história original, mas, de resto é tudo o
mesmo formato repetido em novas condições narrativas. E isso é escalonado de
forma exemplar, que vai do conceitual - como a prevalência do maniqueísmo e as
simplificações morais - aos arranjos narrativos, como as piadas, o impacto de
uma música retrô e até o tempo de duração das falas. Pois há, claramente, por
mais que a dinâmica do filme amortize essa constatação racional com tantos
tiros, estrondos, movimentos rápidos, edição agilíssima e luzes, muitas luzes,
percentuais para a quantidade de falas e de não-falas. Por melhor que seja, por
mais que funcione, que empolgue o público e cumpra a função de entreter,
impossível não sair com a impressão de que não se está vendo imagens, mas
estatísticas.
Nada contra a ideia de blockbusters e nem de exploração do
filão graphic novel em audiovisual. O que questiono é: será que esta fórmula
funciona de verdade a ponto de se sustentar por mais anos sem desagaste? Continuarão
avançando na tática de, igual a Globo aplicava ao humorístico Zorra Total, misturar
personagens incansável e indistintamente até nem se saber mais de onde cada um
veio? Quentin Tarantino recentemente disse que jamais rodaria para a Marvel,
pois considera que filmes deste tipo sejam fruto de uma prática de mercado
produtivista a qual ele, ligado ao cinema de autor, não se enquadra. Martin Scorsese,
tempo atrás também se manifestou contrário ao declarar que o universo
cinematográfico da Marvel está "mais próximo dos parques de diversão do
que do cinema". Vindo de dois autores que revolucionaram e mudaram a história
do cinema é, no mínimo, de considerar a interrogação quanto ao que se esperar
no futuro do “grande cinema”.
The Rock e os atores que fazem os super-heróis da JSA
Ao final, se sai do cinema cativado, pois se fez tudo
psicosinestesicamente para que isso aconteça, mas muito mais amortecido do que
outra coisa. É tanta superexposição a estímulos sensoriais, que não há como
absorver. O script não tem erro, e isso é um defeito: não há espaço para
apreciação e nem elaboração. O filme é tão consumível e embalado quanto a
pipoca e o refrigerante que se come assistindo.
Não digo que tudo isso seja ruim, e nem que filmes da DC ou
Marvel devessem parecer uma obra de Bergman constituída basicamente em diálogos.
Mas para poder dizer com segurança que filmes assim como "Adão Negro" convencem,
ainda falta algo mais do que simplesmente cumprir uma função. Por mais que a
intenção seja ao de tentar me alegrar.
Certos marcos temporais não se completam à toa. Em cinema, fenômeno com pouco mais de um século de existência e menos ainda de indústria, décadas contam muito em ternos de significado, ainda mais numa nação jovem como a brasileira. Por isso, diz muito o fato de, há 40 anos, o cinema brasileiro ter perdido Glauber Rocha, principal artífice do Cinema Novo e autor de obras essenciais para a formação do cinema nacional, entre os quais “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de 1964. Primeiro grande marco do Cinema Novo, esta obra divisional é o produto mais pungente de uma rica leva da produção cinematográfica brasileira motivada por um contexto histórico-social e político implosivo nutrido por abissais contradições. Entre a modernidade nacionalista dos tempos pós-Vargas e a embrionária globalização, havia, em mesma proporção, o alarme pelo alto índice de desigualdade social e a forte tensão de forças políticas que resultaria no Golpe Civil-Militar daquele mesmo fatídico ano de lançamento de “Deus e o Diabo...”.
Incandescentes como o sol que assola a terra destas duas forças, a materialização destas motivações em aspectos fílmicos e narrativos dão à obra de Glauber, seguidamente considerada difícil e cerebral, uma representação estética possível de ser revisitada à luz de produções atuais do cinema nacional. A perspectiva pop que traz “Jesus Kid”, de Aly Muritiba, recentemente exibido – e premiado – no Festival de Cinema de Gramado, entreabre, quase 60 anos depois, portas escancaradas com fúria e poesia por Glauber e sua geração. O filme de Muritiba busca explorar artifícios pop já experimentados com êxito anteriormente, numa tentativa digna de estabelecer diálogo com um público aberto a esta abordagem e, principalmente, com condições de transmissão/replicação das propostas discursivas de “vanguarda” na sociedade, a fatia jovem-adulta dos chamados “formadores de opinião”.
Antes mesmo de rodar “Deus e o Diabo...”, Glauber, um iniciante cineasta e ativo crítico de cinema, exaltava em seu “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro”, editado em 1963, o potencial “popular” do Cinema Novo. A ideia dos jovens realizadores do movimento era engendrar um cinema de autor que refletisse a alma de um povo, fosse econômica ou esteticamente. Para isso, vestiam suas obras de características ora muito próprias, mas também de natureza “pop” comuns na acepção mais abrangente do termo. A exemplo do que observava com entusiasmo no cinema de colegas como Paulo César Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade e Nelson Pereira dos Santos, Glauber trazia para seu olhar elementos “pop” dentro de seu contexto cultural, histórico e social, como o cinemão norte-americano, a fragmentação sequencial dos quadrinhos a e correlação entre erudito e folclórico – visto, por exemplo, na trilha sonora de “Deus e o Diabo...” dotada de Villa-Lobos e dos cantos de violeiro de Sérgio Ricardo. Igualmente, estão-lhe presentes o cinema de Sergei Eisenstein, Humberto Mauro, John Ford, Luis Buñuel e Roberto Rosselini, todos, à exceção do primeiro, vivos e ativos à época. Elementos que faziam sentido num contexto de “popficação” nos anos 60. Glauber e seus correligionários entendiam que cabia aos autores do cinema uma visão formativa desta inserção de propostas cultas no tecido social. Transformar a alta cultura em hits deglutíveis.
filme"Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha
O uso de elementos “pop” no cinema brasileiro maturou-se ao longo das décadas juntamente com a produção audiovisual nacional. Porém, embora tenha ganho em experiência e até em condições econômicas, alguns ensinamentos parecem ter se dispersado. Em “Jesus Kid”, justamente por seus méritos técnicos, essa inconsistência fica bem evidente. De caprichadas fotografia e direção de arte, o filme de Muritiba se esvazia, por outro lado, naquilo que, certamente, mais almejou realizar, que é uma narrativa de apelo pop. Fugindo do padrão comum, mas também sem recair na proposta alternativa, este formato tenta criar um espaço simbólico que comporta ideias modernas capazes de gerar identificação com o público, sendo um destes recursos a alusão a produtos “do mercado”. Estética e formalmente, “Jesus Kid” apropria-se de referências diretas dos filmes “Barton Fink - Delírios de Hollywood”, de Joen e Ethan Coen (1991), “Cidade dos Sonhos”, de David Lynch (2002) e bastante de Quentin Tarantino, desde os westerns “Os Oito Odiados” (2015) e “Django Livre” (2013) ao episódio de “Grande Hotel” (1995).
Acontece que “Jesus Kid”, mesmo que tenha atingido sua assimilação junto a quem intenta dirigir-se, apresenta duas grandes travas que o impedem de alçar: uma estrutural e outra formal. A começar, o roteiro. Baseado num romance do celebrado escritor Lourenço Mutarelli, o que se verteu das páginas para a construção audiovisual parece ter se descompassado, haja vista, principalmente, o ritmo apressado dos acontecimentos e encadeamentos do filme. Saliente-se: ritmo frenético numa narrativa não pressupõe falta de respiros, visto que a psique do espectador comum – inclusive, o de simpatia ao dito “pop” – carece da tradicional alternância de estados psicológicos da dramaturgia clássica. Subverter isso é optar pelo caminho alternativo, o que está longe de ser-lhe a intenção.
Enquadramento e tonalidades semelhantes de "Jesus Kid" com "Barton Fink": referências diretas
Tanto Tarantino quanto os Coen, os cineastas cujas obras são as mais referidas em “Jesus Kid”, sabem bem disso, pois são conhecidos pelo apreço ao exercício de extensão-distensão da narrativa. O primeiro, com seus longos diálogos preparativos para clímaces; já os irmãos Coen, pelo consciente uso dos espaços vazios visual e narrativamente. Por que, então, pegar-lhes emprestado justo o mais superficial, a estética? Impossível não entender isso como um subterfúgio (pouco assertivo) de atração quase publicitária para a obra. A tarantinesca resolução do filme brasileiro, igualmente, não peca pelo tom satírico ou pela bizarrice – aceitáveis dentro da trama – mas pela falta de preparo a um momento tão importante para a história, visto que o espectador é colocado até ali constantemente num indistinto frenesi de imagens e ações.
Miklos: atuação que enfraquece o filme
Este mesmo raciocínio pode ser aplicado ao outro aspecto analisável de “Jesus Kid”, que é ligado à sua forma: a escolha de Paulo Miklos como protagonista para o papel do escritor Eugênio. Não é difícil perceber que, já no primeiro diálogo, fica evidente o despreparo técnico deste para com os recursos cênicos, visto que recai sobre ele a responsabilidade de sustentar um papel cômico, trágico e cheio de nuanças, difícil até para um ator profissional. Resposta a qual Miklos, ator não-profissional, fatalmente não dá. Mesmo espirituoso e carismático, falta-lhe olhar, falta-lhe tempo de articulação, falta-lhe consciência de movimentos. Se a estratégia era se valer, como na publicidade e seus “garotos-propaganda”, da figura pop de um conhecido astro da música, havia de se avaliar que, como ator, este desempenhou bem no cinema apenas 20 anos atrás em “O Invasor”, de Beto Brant (1997), justo quando teve, conceitualmente, liberdade de uma atuação naturalista dentro da “marginalmente” que o papel exigia, o que supunha desvencilhar-se de balizamentos técnicos. Para “Jesus Kid”, no entanto, a opção por Miklos prejudica sobremaneira todo o andamento, visto que a história se centra no escritor ao qual ele interpreta. Não é difícil imaginar algum ator profissional assistindo o filme e lamentando pelo desperdício de um roteiro promissor.
Há de se entender, contudo, que a caminhada para um cinema de apelo “pop-cult” no Brasil, a exemplo do que outros polos mundiais produzem, principalmente os Estados Unidos, está em pleno curso. Desde que “Deus e o Diabo....” iluminou este caminho, títulos importantes para essa viragem como “O Bandido da Luz Vermelha” (Rogério Sganzerla, 1969), “A Rainha Diaba” (Antonio Carlos da Fontoura, 1974) e “Faca de Dois Gumes” (Murilo Salles, 1989) evoluíram em linguagem e aproximaram os conceitos “brutos” da vanguarda para a massa. Mais proximamente, o cinema pós-retomada dos últimos 30 anos captou bem este espírito a exemplo de “Cidade de Deus” (Fernando Meirelles e Katia Lund, 2002), a franquia “Tropa de Elite” (José Padilha, 2007 e 2010), “Fim de Festa” (Hilton Lacerda, 2019) e o talvez mais bem-sucedido de todos nesta linha: “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho (2019). Todos entenderam o que Glauber avaliava como essencial a uma obra de cinema que se pretende popular: cada um à sua medida, dosa discurso e poesia. Equilíbrio difícil, porém, o que talvez explique a inconstância de obras desta potência e natureza no Brasil. Linguagem em cinema também é continuidade da prática.
Se custou a Glauber e ao Cinema Novo o preço muitas vezes da incompreensão, é curioso perceber como o movimento serviu para emancipar o cinema nacional justamente no aspecto que teve menos êxito, que foi o de representar e dialogar com o público – ou o mais amplo possível deste. Como acontece em processo semelhante na música erudita para com a música pop, as bases lançadas pela primeira passam por tamanho burilo que, quando chegam aos ouvidos da massa, pouco se identifica de seus arrojados acordes geradores. A Glauber, especialmente, homem de poucas concessões e cujo cinema intensificou-se em complexidades alegóricas cada vez mais ao longo dos anos, ficou a pecha de alguém genial, mas de ínfima aceitação e entendimento popular. Independentemente disso, faz quatro décadas que Glauber Rocha deixou, dentre outros legados, as bases de um “cinema pop” para o Brasil sob uma perspectiva doméstica. É justo e genuíno, então, buscá-lo e aperfeiçoá-lo. Talvez, contudo, seja preciso ainda que bata muito sol sobre esta terra para que o diabo da inovação e o deus do gosto popular se harmonizem.
Um dos trunfos do cinema moderno é o da subversão. Mais do que somente
a criatividade estética trazida pelos cinemas novos ou da reelaboração
narrativa proposta pelos “rebeldes” da Hollywood nos anos 70, o elemento que de
alguma maneira transforma o status quo,
que contraria o esperado pelo inconsciente coletivo, é o que determina com
maior eficiência a ponte entre moderno e clássico em cinema. Afinal, por que
até hoje é tão impactante o pastor assassino de “O Mensageiro do Diabo” ou a
brincadeira com a dualidade de gênero de “Quanto Mais Quente Melhor”, mesmo
ambos os filmes contados em narrativa tradicional? Em “Aquarius”
(2016), o diretor Kleber Mendonça Filho,
diferente do que fizera em seu filme anterior, o ótimo “O Som ao Redor”,
vale-se desta premissa com sucesso ao reelaborar, hibridizando ambas as formas,
significados muito peculiares do universo da história que se propôs a contar,
construindo uma narrativa impregnada desses elementos não raro surpreendendo o
espectador.
O longa conta a história de Clara (Sônia Braga, magnífica), uma
jornalista e crítica de música aposentada. Viúva, mãe de três filhos adultos e
moradora de um apartamento repleto de livros e discos na beira da praia da Boa
Viagem, em Recife, ela se vê ameaçada pela especulação imobiliária quando a
empresa detentora do seu edifício – o emblemático Aquarius – tenta a todo custo
tirá-la de lá para demolir o prédio e construir um empreendimento gigante e pretensamente
moderno. Fiel a suas convicções e sabedora de seus direitos, Clara resiste, não
sem consequências e retaliações.
As praias de Recife, elemento presente nos filmes
de Kleber Mendonça Filho.
Antes de qualquer coisa, impossível dissociar a história de Clara do
momento do Brasil. O embate entre o poder estabelecido do capitalismo e a
resistência do pensamento humanístico, à luz do maniqueísmo ideológico que
tomou o País nos últimos anos, fazem de “Aquarius” um símbolo do cinema
brasileiro da atualidade, o que, em parte, explica o sucesso de bilheteria (mais
de 55 mil pessoas já assistiram). Entretanto, é a forma com que Mendonça Filho
escolha para contar que faz de “Aquarius” uma obra marcante e, talvez, tão
apreciada. Ele vale-se de elementos da cultura de sua terra natal, Pernambuco,
e principalmente da Recife enquanto símbolo de metrópole brasileira, com seus
medos, violências, angústias e neuroses, mas também as benesses: a ligação com
o mar e o mangue, o desenho da cidade, sua rica cultura e suas memórias. Aliás,
memória é o substrato do filme. Contrapondo permanentemente passado e presente,
o diretor suscita a crítica ao perpassar questões imbricadas à sociedade, como
a desigualdade socioeconômica, a “commoditização” dos relacionamentos, a
relação entre gerações e os preconceitos, sejam estes raciais, sociais, de
gênero ou condição física.
É com base nesta visão muito pessoal, a qual não esconde o inimigo nem
exclui o belo, que “Aquarius” se monta. Muitos dos significados vão ganhando
forma à medida que o filme transcorre, às vezes quase uma suspeita inconscientemente
desconsiderada assim que o enigma se dissolve. Como a relação de Clara com seu
sobrinho, a qual, num primeiro momento, pode parecer ao espectador, que ainda
não teve informações suficientes sobre ela (ou melhor: tem informações
suficientemente superficiais para desconfiar do mais vulgar e aparente),
tratar-se de um caso amoroso liberal e promíscuo. A explicação vem sutil, sem
alarde, mas dizendo muito sobre a personagem e a história.
A personagem, aliás, carrega em si outro símbolo: o da mulher
emancipada e independente. De pronto percebe-se que Clara é reconhecida como
profissional. Porém, à medida que se entende melhor, revela-se que ela, no
passado, optou em deixar os filhos ainda pequenos com o pai para não perder a
oportunidade de ganhar a vida no centro do País. De certa forma, um pouco da
própria Sônia Braga, que, de modo a dar a natural continuidade internacional à
sua trajetória já restringida no deficiente Brasil pré-democracia, precisou dar
as costas às críticas “vira-latas” e rumar para a indústria norte-americana –
sem, ao contrário do que lhe acusavam, perder identidade e raízes.
Sônia Braga, magnífica, à frente do famigerado ed. Aquarius"
Estes dois exemplos mostram bem o jogo de ressignificações proposto por
Mendonça Filho. Largamente empregadas por cineastas maduros do cinema moderno,
como os irmãos Coen e Quentin Tarantino, a ressignificação tem o poder de
desfazer mitos e quebrar expectativas, muitas vezes a custa de anticlímaces e
desconstruções do imaginário sociocultural. “Aquarius” mostra não o
relacionamento de uma “tiazona” com um rapazote como propositadamente dá a
entender, mas, sim, uma possível, afetuosa e saudável relação entre tia e
sobrinho. O filme mostra não um estereótipo de heroína vencedora e invencível –
e, por isso, desumanizada e reforçadora da ótica sexista –, mas uma mulher com
suas qualidades e defeitos, com inquietudes e paixões tentando fazer o melhor
na vida.
Maior evidência dessa ressignificação é a cena do nu parcial da
personagem. A mensagem imediata que se transmite, ao vê-la começando a se
despir para tomar banho, é o de que se verá a antiga musa e símbolo sexual
despida agora com idade avançada. “Como estará o corpo de Sônia Braga aos 66
anos? Será que está uma velha gostosa?” Mendonça Filho quebra a lógica rala não
ao confirmar o que se suspeitava no que diz respeito às marcas da idade terem
chegado à Dona Flor. Fazendo emergir outro nível de mensagem, mais profundo e
agudo, mostrando-a com um dos seios amputados, consequência de um câncer da
personagem Clara. Em milésimos de segundo, entremeiam-se o preconceito com o
deficiente físico – algo explorado ainda mais e sem rodeios no decorrer –, com
a mulher “não-jovem”, com a mulher em si.
Interessante notar que, a título de narrativa, o cineasta dá um passo
atrás no que se refere à modernidade na comparação com seu filme anterior.
Enquanto “O Som ao Redor” é uma trama coral ao estilo das de Robert Altman e
Paul Thomas Anderson, “Aquarius”, por se concentrar numa personagem, torna-se
mais linear e anedótico. O que não é nenhum demérito, pelo contrário. Assim
como o cineasta mexicano Alejandro González Iñárritu, que depois de uma
trilogia de sucesso de tramas corais (“Amores Perros”, “21 Gramas” e “Babel”) e
de passar pelo radicalismo de "Birdman" optou acertadamente pelo formato
clássico para realizar "O Regresso", seu grande filme. Mendonça Filho parece de
certa forma e em noutra realidade repetir o recente feito de Iñárritu: iniciar
a carreira explorando uma linha intrincada de narrar para, em seguida,
aperfeiçoar seu estilo e simplificar a narrativa voltando as atenções a um herói/heroína.
Em “Aquarius”, contado em capítulos tal qual a construção literária de Stanley Kubrick e Tarantino – inclusive, com um prólogo, com Clara ainda jovem, em 1980
–, Mendonça Filho equilibra com assertividade a forma tradicional e a moderna
de contar a história.
Outros elementos de ressignificado são compostos de maneira muito
segura pelo diretor, que conduz o filme num ritmo cadenciado, por vezes
poeticamente contemplativo, como um ir e vir da onda do mar da praia. Igual a
“O Som ao Redor”, em “Aquarius” o mar é um olho divino que a tudo enxerga. O
som, inclusive, faz-se presente novamente e, agora, é demarcado pela música. De
Queen a Gilberto Gil, passando por Roberto Carlos e Taiguara, as canções pontuam
o filme do início ao fim, ajudando a construir a narrativa e dando-lhe uma
dimensão tanto documental quanto lúdica. Novamente, Mendonça Filho reelaborando
o passado para trazer luzes ao presente. Na guerra indigna que Clara tem de
deflagrar contra a construtora que quer tomar o prédio sob a égide monetária e
desfazendo o real valor sentimental e simbólico, fica clara a mensagem que o
autor que transmitir: o mundo precisa de mais poesia. Se Cazuza integrasse a
trilha com estes versos de “Burguesia”, não seria nenhum absurdo: “Enquanto houver burguesia não vai haver
poesia”.
Para além da discussão partidária e da polêmica em torno da afronta
direta ao Governo no episódio da classificação etária e da não escolha pelo
título à concorrência ao Oscar de Filme Estrangeiro, o objeto do filme é por si
saudavelmente revolucionário, o que o torna, por esse viés, sim, bastante
político. Como um “Sem Destino” ou “Um Estranho no Ninho”, marcos de uma era logo
ao serem lançados, “Aquarius” está igualmente no lugar e na hora certa, tornando-se
de imediato importante como registro do Brasil do início do século XXI
polarizado ideologicamente. Polarização largamente mais desfavorável do que
proveitosa. A ideia do que Clara representa, “minoria empoderada” e não sujeita
aos preceitos verticais da sociedade machista e ditada pelo dinheiro, celebra
uma verdadeira liberdade de pensamento e conduta cidadã a que tanto se aspira
entre os tantos tabus que hão de serem quebrados. Os novos significados, uma
maneira de pensar despida de pré-concepções e amarras sociais, é o que intentam
aqueles que acreditam em igualdade e fraternidade. Se isso concorda ou discorda
do pensamento de esquerda ou de direita, é outra questão. “Aquarius” é, isso
sim, um libelo da necessária subversão em tempos de intolerância.
Deve ter sido delicioso aos que, pelo menos por algum período, puderam acompanhar
just-in-time a filmografia de algum
grande diretor do passado. No caso de Alfred Hitchcock, por exemplo: o mestre
do suspense superava-se a cada produção que lançava, reelaborando às vezes a
mesma ideia ao longo do tempo, desde a fase inglesa (anos 20 e 30), passando
pelos primeiros anos nos Estados Unidos (década de 40) até chegar às
obras-primas definitivas (50 e 60). É perceptível que a confusão no teatro
lotado de “Os 39 Degraus” (1935) se repetira em “Cortina Rasgada” (1962), ou o
mesmo tenha ocorrido com a cena da escada de “Suspeita” (1941) e, depois, na
clássica de “Psicose” (1960), a que Norman Bates mata o detetive. Dois exemplos
de um realizador que soube como poucos reciclar suas próprias ideias e
progredir constantemente.
Dadas as devidas dimensões, os espectadores e cinéfilos de hoje podem gozar
dessa sensação quanto ao cinema de Alejandro González Iñárritu. Ele, que começara em alto nível com a trilogia “Amores
Perros” (2000), “21 Gramas” (2003) e “Babel” (2006), resvalou um pouco no
hiperbólico “Biutiful” (2010) mas logo retomou-se com o labiríntico "Birdman" (2014), Oscar de melhor filme do ano passado. Agora, o cineasta mexicano,
aproveitando com parcimônia elementos de todas as suas realizações anteriores,
avança em estilo e estética e lança o filme que certamente é sua obra-prima até
então: “O Regresso”. Dos favoritos
para levar o mesmo prêmio que “Birdman”, é a produção de mais indicações este
ano, 11 no total, tendo ainda grandes chances à estatueta em Melhor Ator, com Leonardo DiCaprio, e em Direção, com o próprio Iñárritu.
O filme, baseado numa história verídica (sobre o romance de Michael
Punke) situa-se na primeira metade do século XIX e conta a história de Hugh
Glass (DiCaprio), um forasteiro que parte com seu filho para o oeste americano
disposto a ganhar dinheiro caçando. Atacado por um urso na floresta, fica
seriamente ferido e é abandonado à própria sorte por um dos parceiros, John
Fitzgerald (Tom Hardy, digno de Oscar também), o qual ainda mata seu filho.
Entretanto, mesmo com toda adversidade, Glass consegue sobreviver e inicia uma
árdua jornada em busca de vingança. Dado a personagens fortes, o talentoso
DiCaprio, provavelmente o melhor ator de sua geração, se esbalda no papel. É
impressionante vê-lo na pele de Glass nas cenas de solidão desafiando a
natureza opressiva e ainda doente, com dor, fome e dilacerado por dentro pela
brutal perda do filho.
Com a ajuda de um elenco afinado e de uma fotografia acachapante (de Emmanuel
Lubezki, impecável tanto nos grandes planos quanto nos fechados), Iñárritu
compõe um filme extremamente intenso, porém rigoroso. Nada está fora do lugar,
nem mesmo a intensidade. Do roteiro (Iñarritu e Mark L. Smith) ao figurino, da
cenografia à edição de som, da trilha sonora – do mestre Ruiychi Sakamoto – à montagem (Stephen Mirrione). Tudo é muito exato, porém, sem recair no artificial, comum
ao tecnicista cinema norte-americano. Afinal, está se falando de um esteta do
cinema da atualidade. Estão preservados vários elementos estilísticos que já se
tornaram marcas de Iñárritu: sua câmara andante, contemplativa e participativa,
o estreitamento entre civilização e barbárie, o limite entre vida e morte, o
contato com o etéreo e, mais do que tudo, o animalesco instinto de
sobrevivência do bicho homem.
Com esse suco, o diretor cria um western
estilizado em que a carga emocional é permanente, mas muito bem conduzida.
Diferentemente de outros filmes seus, em “O Regresso” Iñárritu, tão louvado
pela linguagem inovadora, vale-se sem embaraço de uma narrativa clássica. E não
poderia ter sido a melhor escolha, pois o enredo se presta a isso. Neste caso,
a estrutura tradicional do cinema preenche o enredo, prescindindo da
dificultação intrínseca à linguagem moderna. Com uma trama em que os
personagens são apresentados de início e partindo de um problema, gera-se uma
“crise” na história que faz com que os caminhos se diluam e se dificultem. Esse
problema de resolução complicada é vencido pouco a pouco pelo personagem
principal, gerando tensão à história, até que este chegue a seu objetivo. Não
muito diferente de milhares de filmes nesta linha, o clímax é uma vingança. A
construção dos personagens também respeita isso: há o herói com mais qualidades
que defeitos e que, embora bruto, é movido por sentimentos genuínos. Em
contrapartida, o vilão é tomado de inveja e maldade, enquanto há aqueles que,
por não penderem nem a um nem a outro, cumprem a função de dar o contrapeso. Como
na vida. Entretanto, até nisso é dado um teor diferenciado. Seguindo a
abordagem realista que permeia toda a história, os índios não são nem os perversos
dos bang-bangs enlatados nem idiotas
indefesos. São, sim, mostrados como a História os deve ver: um bravo povo
dizimado pela gananciosa civilização do homem branco.
É interessante notar a maturidade adquirida por Iñárritu no transcorrer
de sua filmografia. Este começou com três filmes de tramas corais, quase novelas,
bastante alicerçadas no roteiro do conterrâneo Guillermo Arriaga. Em
“Biutiful”, quando tenta emancipar-se do parceiro de escrita, escorrega
principalmente neste quesito, exagerando na dose de dramaticidade. Não repete o
erro e, ainda por cima, realiza o inesperado e ousado “Birdman”, em que
apresenta uma narrativa totalmente contemporânea e igualmente distinta da
utilizada em seus primeiros filmes. Assim, em “O Regresso” Iñárritu pinça com
inteligência feições de todas as suas obras anteriores, porém, sem deixar com
que este perca personalidade. De “Biutiful”, está o aspecto espiritual do
protagonista, que mantém contato constante com a esposa morta e, depois, com o
filho. Até o enquadramento e o conceito fotográfico da tomada da copa de
pinheiros altos com fumaça e cinzar no ar sob a neve é parecida. De “Birdman”,
mesmo sendo o que mais se difere de “O Regresso” entre suas obras, é visível
que a câmera na mão, ligeira mas firme e de ritmo humano, é novamente um
personagem a mais na trama. Da trilogia
inicial, também: no segundo quadrante do filme criam-se quatro histórias
paralelas: Glass tentando voltar; os companheiros já chegados ao forte;
Fitzgerald e um comparsa a caminho; e o grupo de franceses trapaceando os
índios. De “Amores Perros”, em especial, a equiparação bicho x homem é ainda mais clara. Um pouco de cada um dos cinco
anteriores, mas principalmente do próprio “O Regresso”.
A impactante e real cena do ataque do urso.
Outro fator-base da história, também largamente usado no cinema
clássico – mas de fácil ocorrência de erros –, são os elementos da natureza simbolizando
os narrativos. A atmosfera selvagem não é apenas mostrada permanentemente
através da fotografia, inóspita e desafiadora, mas num conceito amplo em que o
homem é apenas mais um componente dentro daquele universo, assim como os animais
e as intensas intempéries. Os sentidos estão todos despertos. Do tato, a
umidade, o frio, o calor, a dor. Da audição, o zumbido do vento, o ofego do
respirar, o estrondo das quedas d’água, os ruídos da mata. Tudo se mistura e se
integra com muita propriedade à edição de som e à trilha sonora, igualmente
inserida com lucidez e sem excessos. Tudo é vivo, o que faz com que tudo seja também
morte. Dessa forma, Iñárritu se utiliza do ambiente natural e dos sentidos não
como adereço, mas numa constante construção dos personagens e da narrativa. Glass,
por exemplo, durante o seu regresso e ainda tentando se recuperar da surra do
urso, põe sobre os ombros uma pele justamente deste grande mamífero, como se
assumisse o papel do bicho. Antes mesmo, quando, muito debilitado, assiste a Fitzgerald
matar seu filho sem poder fazer nada e espuma saliva pela boca, a mesma que o
próprio urso deixa escorrer sobre seu rosto quando o ataca, pois o fazia pelo
mesmo motivo que movia Glass: proteger sua cria. Homem e animal: nenhuma
diferença.
DiCaprio, atuação para Oscar novamente.
Essa cena, aliás, é altamente impactante e merece destaque. Feita com
um urso de verdade, o mais impressionante é que o ator também é de verdade.
Sim, não é um dublê: é o próprio DiCaprio, inteiro dentro do personagem. Mesmo
contracenando com um animal adestrado, ele saiu bem machucado pelo que se tem
notícia. Valeu o esforço. Certamente é das cenas mais célebres dos últimos 20
anos, junto com a chuva de sapos de “Magnólia” ou o acidente no ringue com a
lutadora de “Menina de Ouro”. Daquelas que entra para a seleta lista de cenas
inesquecíveis do cinema mundial. Mas não apenas essa: o filme é uma sucessão de
grandes momentos e sequências, várias daqueles de tirar o espectador da
poltrona, como o ataque indígena do início, a fuga de Glass sobre o cavalo e,
obviamente, o duelo final, cujo requinte da montagem remete ao tempo fílmico de Sergio Leone e John Ford. Chega a ter parecença com o tradicional ritmo de Quentin Tarantino, que o próprio muito se valeu no seu último longa, "Os Oito Odiados", também um western eque guarda-lhe também semelhanças
estéticas. Diferentemente do filme de Tarantino, cujo proveito do máximo das
sequências e dos diálogos o tornam de fato por vezes arrastado, em “O Regresso”,
por conta da conjunção do tom realístico e da estrutura clássica da narrativa,
os tempos de tensão e distensão estão perfeitos. Simbolizam, em última
instância, a luta eterna entre o calor e o frio, entre o fogo e a água, entre o
som e o silêncio, entre o bem e o mal. Entre o espaço e o tempo.
É o próprio tempo que, já fora da tela, poderá aligeirar-se no que
tange a premiar Iñárritu dando-lhe a primazia jamais alcançada por ícones como
William Wyler, Elia Kazan e Billy Wilder: o de levar o Oscar de Diretor em dois
anos seguidos – feito obtido por apenas dois craques desde 1929: John Ford e Joseph
L. Mankiewicz. Ou, contrariamente, o mesmo tempo venha a reconhecer com atraso
DiCaprio, merecedor da estatueta há bastante tempo, seja em filmes que
concorreu (“O Aviador”, “Diamante de Sangue”, "O Lobo de Wall Street") ou não
(“Django Livre”, “J. Edgar”). Além destes, “O Regresso” desponta como favorito
para levar ainda Filme, Ator Coadjuvante, Fotografia e Edição de Som. O
reconhecimento no prêmio Bafta anteviu isso. Afinal, não se trata apenas da
melhor produção de 2016: é, sim, um dos grandes dos últimos 10 ou 15 anos. Pode-se
colocá-lo tranquilamente ao lado de títulos como “A Vida dos Outros”, "Guerra aoTerror" e “Ida”. Daqueles que vem para entrar para a lista dos essenciais do
cinema, porque o tempo (novamente ele) é quem o dignificará para a eternidade.
Ganhe o Oscar ou não.