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segunda-feira, 14 de agosto de 2023

Exposições “Todos iguais, todos diferentes?” e “Orixás”, de Pierre Verger - Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS) - Porto Alegre/RS


 

"Verger era um africano nascido na França”. 
Nondichao Bacalou, assistente de Pierre Verger

"Verger é a pessoa que historicamente vem se dedicando mais a essas relações com a África”.
Gilberto Gil

Quando estivemos em Salvador, em 2015, uma das certezas as quais saímos levamos na mala era a de que queríamos ver a obra de Pierre Verger. Tanto quanto a casa de Jorge Amado e Zélia Gattai, o Pelourinho, o Elevador Lacerda, a Sorveteria da Ribeira, o Mercado Modelo, a praia de Itapuã e outros elementos turísticos e culturais da capital baiana, ter contato com o estrangeiro que melhor entendeu e melhor se hibridizou àquela cidade era um desejo alentado por Leocádia e por mim. Conseguimos visitar uma loja da Fundação Pierre Verger com um pequeno acervo próxima ao Pelourinho, onde ficamos hospedados. Saímos com alguns souvenires e roupas temáticas, que até hoje nos fazem lembrar de lá. Porém, considerando os menos de cinco dias que pudemos ficar, e que naquela época qualquer movimento maior numa cidade que não se conhece podia ser realizada apenas de táxi, pois não existiam ainda os aplicativos de transporte, a matriz da fundação, no longínquo bairro Engenho Velho de Brotas, infelizmente, não deu para irmos.

A frustração de não conseguirmos nos estender na obra de Verger, acalentada por um remoto retorno a Salvador, foi parcialmente superada com uma dupla exposição do icônico trabalho do fotográfico do etnólogo, antropólogo e escritor francês em Porto Alegre. “Todos iguais, todos diferentes?” e “Orixás” trazem o olhar de Pierre Fatumbi Verger sobre a diversidade cultural e a influência recíproca da religiosidade nas culturas africanas e afro-brasileiras. Fez-nos sentir ainda mais em Salvador o fato de que mostra é uma parceria com a Fundação Pierre Verger e as obras selecionadas pelo curador de Alex Baradel, especialista responsável pelo acervo fotográfico da Fundação.

“Todos iguais, todos diferentes?” traz um recorte dos retratos feitos por Verger a partir de seus encontros nas viagens que realizou pelo mundo durante mais de 40 anos. São imagens que, a partir de seu olhar, ressaltam os aspectos da diversidade cultural e do respeito ao outro. Vietnã, Espanha, Congo, Oceano Índico, Senegal, Bolívia, México, Togo, Peru, Mauritânia e, claro, Brasil, são alguns dos países e feições literalmente retratados no trabalho de Verger, que explora imagens em primeiro plano de indivíduos, que se tornam, mais do que apenas retratos de pessoas, mas uma intenção sociopolítica democrática e libertária típica da Antropologia Social da geração a qual ele pertenceu. Não errado dizer “de esquerda”.

Visão geral do primeiro salão de “Todos iguais, todos diferentes?”

Já “Orixás”... Nossa, “Orixás”! Este traz nada mais, nada menos do que uma seleção de fotografias ampliadas em grande formato que constam no livro homônimo de Pierre Verger, lançado pela primeira vez em 1981 e considerado como um dos 200 livros mais importantes para se entender o Brasil A exposição compila, de forma plástica e poética, as pesquisas de Verger sobre a história e mitologia dos orixás nas religiões afro-brasileiras, sobretudo em Salvador e Bahia, além de destacar a origem desses rituais na cultura e nos mitos iorubás africanos em países como Nigéria, Daomé (atual Benin) e Togo. Ao realizar esses estudos em suas viagens desde a Bahia e Recife e até a região do Golfo de Benin, entre os anos 1948 e 1978, Verger se tornou pioneiro na pesquisa quanto às influências culturais e religiosas recíprocas entre África e América, tal como passaram a se dar a partir do século XVI, com a diáspora africana ocorrida em função do tráfico de negros escravizados. As fotos são algo simplesmente arrebatador.

A sensação de penetrar no mundo de Verger ganha força a cada fotografia que se passa, a cada olhar de outra pessoa captada por ele, a cada detalhe enquadrado, a cada realidade dita em apenas um click de segundos. Ainda mais na exposição “Orixás”, que nos fez voltar àquela atmosfera da Bahia da qual nos despedimos com sentimento de incompletude. Adensa ainda mais esta percepção o fato de que a mostra é, justamente, resultado de uma parceria do Margs com a Fundação Pierre Verger e que as obras selecionadas pelo curador de Alex Baradel, especialista responsável pelo acervo fotográfico da Fundação. Só podíamos mesmo voltar à mágica Bahia de Todos os Santos, e isso sem precisar sair ali, na beira do Guaíba, abençoada por Yemanjá.

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Iguais e, sim, diferentes


Senhora típica espanhola e um belo jovem vietnamita, em fotos dos anos 30


Trabalhadores do povo daqui e de lá


Mulher africana e Leon Trotsky no exílio México


Vista geral da mostra “Todos iguais, todos diferentes?”


A vitalidade de jovens do Vietnam e de Cuba


Detalhe do preciso sorriso de um pequeno mexicano


Composições semelhantes em Tarabuco, Bolívia (cima) e em Ocongate, no Peru


Detalhe no foco, que está no rosto da jovem em segundo plano


Expressivo retrato de um idoso no Brasil dos anos 50, interior de SP


Outra marcante foto desta linda cubana (1957)


Entre os vários amigos ilustres, Dorival Caymmi, Diego Rivera e Walt Disney, ao centro, de "gaucho"


Foto da impressionante exposição "Orixás" (anos 50)


Trabalho etnológico de Verger, que rendeu fotos históricas da religiosidade africana e brasileira


Divindades do candomblé representadas


A plasticidade própria dos cultos africanos 


Yemanjá (Salvador, 1946)


Um 360° de "Orixás"


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“Todos iguais, todos diferentes?” e “Orixás”
Visitação até 08 de outubro, de  terça-feira a domingo, das 10h às 19h
Local: Museu de Arte do Rio Grande do Sul - MARGS - 1º andar expositivo do MARGS (Pinacotecas e sala Aldo Locatelli)
Praça da Alfândega, s/n°, no Centro Histórico de Porto Alegre - RS
Ingresso: gratuito


Daniel Rodrigues

terça-feira, 2 de maio de 2023

Coleção "Os Melhores Filmes de Todos os Tempos - Terror", coordenação de Paulo Basso Jr. - ed. Europa (2020)



 

Filmes de terror
Ganhei de aniversário - a meu pedido - o livro  de Terror da coleção "Os Melhores Filmes de Todos os Tempos".
Meio decepcionante.
Uma breve coletânea de posters de grandes clássicos do gênero com algumas informações, observações e curiosidades. A verdade é que deveria ter me interado melhor do que se tratava a publicação antes de querer tê-la em minha biblioteca. Tem as obviedades, como "O Bebê de Rosemary", "A Noite dos Mortos-vivos", algumas boas surpresas, como o assustador "O Babadook", justiças, como o inovador "A Bruxa de Blair", e novos clássicos como o impressionante "A Bruxa".
Esperava uma vasta lista, com dicas improváveis, coisas pouco conhecidas, informações que me fizessem querer ver algum filme que nunca me interessara etc., mas o que ganhei foi apenas uma publicação bem básica para iniciantes no assunto.
Para ser justo, algumas das curiosidades são realmente muito interessantes e algumas delas eu sequer tinha conhecimento, como o fato de Jamie Lee Curtis só ter sido a escolhida para "Halloween" por ser filha de Janeth Leigh, a estrela do clássico "Psicose"; de Christopher Lee ter feito "O Homem de Palha" de graça e colocar o filme como o ponto alto de sua carreira; ou da Disney ter manifestado a intenção de comprar o roteiro de "A Hora do Pesadelo', com a intenção de suavizá-lo para crianças e adolescentes. Mas só seria bom mesmo se tivesse uns duzentos ou trezentos filmes, como no número anual especial da antiga revista Set, que trazia um guia com os melhores filmes de todos os tempos em cada gênero e uma publicação especial dedicada ao terror. Aquilo lá, sim, muito me serviu de base e orientação.
Quem sabe uma hora dessas encontro algo assim. 
Mas não foi dessa vez.



Cly Reis

terça-feira, 7 de março de 2023

"Pinóquio" ou "Pinóquio por Guillermo Del Toro", de Guillermo Del Toro e Mark Gustafson (2022)

VENCEDOR DO OSCAR
MELHOR ANIMAÇÃO



O lar da sabedoria
por Cly Reis


Guillermo Del Toro é daqueles diretores que já consolidou de tal forma uma identidade cinematográfica, uma série de marcas registradas, características estéticas, que sua obra é facilmente identificável pelos admiradores de seu trabalho. "Pinóquio", embora seja uma animação com um argumento originalmente infantil, traz consigo o melhor das características de Del Toro. A adaptação do mexicano, vencedor do Oscar com "A Forma da Água (2018), em colaboração com o norte-americano Mark Gustafson, para a consagrada obra do escritor italiano Carlo Collodi, acrescenta seu tradicional tom sombrio e um olhar crítico e engajado, à singeleza do conto infantil.

O diretore se utiliza da magia da história do velho marceneiro que cria um boneco de madeira que ganha vida, para denunciar o fascismo e as sociedades conservadoras, situando sua adaptação entre as duas grandes guerras, especialmente no início da Segunda, quando a Itália encontra-se sob o governo totalitário direitista de Mussolini. Mais uma marca registrada, uma vez que não é a primeira vez que isso acontece na obra de Del Toro: ele já havia contextualizado outros filmes seus em períodos de guerra, pós ou sob regimes fascistas, como em "Labirinto do Fauno" e "A Espinha do Diabo" e mesmo quando não ambienta nessas circunstâncias, aborda situações que se assemelham ao fascismo e cerceamento de liberdade, individualidade e identidade.

No "Pinóquio por Guillermo Del Toro", depois de perder o filho Carlo, de 10 anos, num bombardeio no final da primeira guerra, o marceneiro Gepetto, depressivo e nunca totalmente conformado pela morte do garoto, dez anos depois, embriagado, num acesso de fúria, corta o pinheiro vizinho ao túmulo do filho e resolve dele fazer um boneco para 'substituir' o filho. Compadecida por tamanha dor de um pai, uma Fada da Floresta concede vida ao pedaço de madeira, no qual, por acidente, residia, antes da marcenaria, um grilo escritor e intelectual que, recusando-se a sair, assume o papel de conselheiro do boneco-menino.

E pode crer que ele precisa de um conselheiro! O boneco é  completamente espirocado. É agitado, tagarela, curioso, teimoso e incontrolável... É lógico que nem o grilo, Sebastião, com toda sua sabedoria, nem o pai, com seu zelo, conseguem pôr o guri na linha, o que resulta em inúmeros problemas para o velho. Pinóquio é um daqueles espírito livres, independentes, aquele tipo de 'gente' que não se submete, não aceita um  'não porque não', e isso incomoda a sociedade, incomoda os conservadores, os conformistas, e incomoda o poder. Assim que se apresenta ao mundo, o menino de madeira é considerado uma aberração, algo satânico aos olhos dos católicos, que insistem em não enxergar nada além da Criação Divina. Mais do que sua aparência, sua procedência, o garoto, contestador e crítico, choca por desafiar a ordem e os bons costumes. Na cena da igreja, quando todos da cidadezinha tomam conhecimento de sua existência e suas habilidades humanas, e manifestam seu espanto, desaprovação e condenação a seu convívio com os demais, Pinóquio aponta, no fundo do altar, para uma enorme imagem de Cristo crucificado, esculpido pelo mesmo marceneiro que o criara, e questiona por que gostam tanto daquela imagem da madeira e dele não. "Blasfêmia!"

Rejeitado pela sociedade por não se enquadrar nos padrões, cobiçado pelo exército do Duce por suas propriedades metafísicas, e contestado pelo próprio pai-criador por conta de seu comportamento, o garoto, em busca de aceitação, de encontrar seu lugar no mundo, iludido por um um dono de circo, abandona a escola, a cidade e o pai, e segue com a trupe em turnê, sendo exibido pelo país afora como grande atração. Aí, a partir dessa rebeldia, se desencadeiam uma série de fatos, aventuras e perigos, sendo alguns deles fatais. Sim, fatais! O garoto morre mas descobre, em meio a esse turbilhão de acontecimentos, que sempre voltará a viver, o que poderá vir a representar um fardo em sua vida, uma vez que todos que ele ama, partirão e ele, eterno, terá que lidar com essas perdas. Bom menino, amoroso, bem intencionado mas confuso, talvez tenha nesse ponto seu grande desafio enquanto ser não-humano e imortal: entender o valor da vida e de cada momento.

Obra repleta de sutilezas, questionamentos, mensagens, "Pinóquio, por Guillermo Del Toro" é mais que somente uma animação ou uma adaptação de um clássico infantil. É uma utilização de uma linguagem mais acessível, lúdica, fantástica, para transmitir uma série de pequenos recadinhos, que servem, perfeitamente, tanto para os pequenos como para os crescidinhos.

Há uma série de detalhes importantes como as mudanças na parede do vilarejo, perto da igreja, que no início do filme, enquanto Carlo ainda vivia, tinha um anúncio de produtos da região; depois, quando surge Pinóquio, passa a ter uma convocação para o exercito com a inscrição "Crer-Obedecer-Combater"; e mais tarde, quando o boneco resolve fugir, um anúncio do circo, ou seja, três maneiras de manipulação do indivíduo (capitalismo, poder e entretenimento); o fato do livro que Gepetto dá ao filho (tanto o humano quanto o de madeira), ser de História, sugerindo que quem tem conhecimento, quem sabe o que se passou, torna-se menos suscetível a ser enganado; a própria declaração do boneco, que afirma não gostar de ser chamado de marionete, rebatendo a argumentação do dono do circo, "Adoramos marionetes. São  o melhor que há"; ou mesmo a ordem de Mussolini para queimar o teatro e matar a todos, depois de desacatado pela estrela principal do espetáculo, nosso intrépido Pinóquio, só comprovando que a arte só serve para o fascista se for ao encontro de seus propósitos.

Mesmo com tantas mensagens sérias, tanta carga dramática, "Pinóquio..." é divertido e tem doses de humor na medida certa. A cena de seu "despertar", de quando ganha vida, descobrindo as coisas e perguntando a utilidade de tudo, é hilária, suas idas e retornos do mundo da morte são, ao mesmo tempo soturnas, engraçadas e graciosas; e sua inocência, sua pureza, são absolutamente cativantes.

Além de tudo, o diretor brinda os cinéfilos e amantes de filmes com diversos easter-eggs e referências a outras obras como "Moby Dick", "Nascido Para Matar", "Hellraiser III" e, "Trainspotting", até porque a voz do grilo Sebastião, é de ninguém menos que Ewan McGregor, o eterno Renton do filme de Danny Boyle. E aí, pescou todas?

Quando acabei de assistir o Pinóquio de Guillermo Del Toro já projetei que o filme não somente seria indicado ao Oscar de melhor animação como também para melhor filme na categoria principal. Me enganei... A Academia preferiu indicar coisas como o comum "Nada de Novo no Front" e o blockbuster banal "Top Gun: Maverick". Pior que, diante dos tradicionais bambambans badalados da Disney/Pixar e da DreamWorks, mesmo com todas suas qualidade e méritos, periga sair de mãos vazias. Fazer o quê? Mas certamente, independente do prêmio, seu Pinóquio terá lugar garantido em muitos corações, que, como nos ensina o filme, é onde mora a sabedoria.

O dono do circo engambelando o menino de madeira.
Sempre vai ter algum "esperto', algum explorador, 
pronto para se aproveitar da inocência.


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De peito aberto
por Vagner Rodrigues


Sabe quando você pega uma receita na internet, que é muito boa, e na hora de fazer você altera algo, coloca um tempero que você gosta muito e a receita se transforma e algo fabuloso? Isso é "Pinóquio por Guillermo Del Toro".

Conto de fadas clássico de um boneco de madeira que se transforma em um menino real, situada na Itália dos anos 30, quando o fascismo estava em ascensão e Benito Mussolini estava tomando controle do país.

O longa diferente da nova versão da Disney, até consegue mostrar melhor seus personagens coadjuvantes mas ainda assim, esse foi um ponto que não me agradou muito. O grilo até tem um enredo bem bacana, mas o restante dos personagens são muito rasos e só fazem a história evoluir por conveniências do roteiro.

No entanto, o que essa versão faz com o cenário em que a história se passa é algo fantástico! Todo cenário é incrível e o fato da história se passar na Itália fascista é um detalhe que só faz o longa crescer. Apesar de se tratar de uma fantasia, esse fato histórico conseguiu trazer um peso real para a obra.

Quanto ao protagonista, o que temos é mais uma versão inocente de Pinóquio, só que esta é tão exageradamente inocente que chega a nos fazer perder a paciência com o personagem, em muitos momentos. O que muito bom! Só mostra como estamos imersivos e nos envolvemos com ele e com a história. E essa ingenuidade essa pureza, é muito bem utilizada pelo diretor, deixando patente toda a evolução da aprendizagem do personagem, aumentando a sua forma de relacionar tanto com o mundo quanto com seu pai, Gepetto, cuja profundidade do personagem merece destaque, uma vez que as cenas mais comoventes e emocionantes do longa vem dele.

Essa nova versão de Pinóquio, consegue ser tão mágica e impactante quanto a primeira, preservando a magia, o encanto, mas ganhando em humanização e verdade dos personagens principais. Seus dramas se tornam mais profundos uma vez que acompanhamos com bastante clareza sua evolução emocional, o que é muito bom. 

"Pinóquio" mostra mais uma vez porque e um dos melhores diretores da atualidade consegue andar pelo drama profundo e a pureza da magia infantil, como um mestre.  Apesar de todo o esplendor visual que o longa mostra em um trabalho perfeito de stop-motion, acredito que a maior beleza esteja mesmo na sua narrativa, na mensagem sobre a vida. Como ela é compartilhada e como pegamos um pouquinho de cada pessoa com quem nos relacionamos, para o bem e para o mal, além da importância de saber lidar com tisso, de modo a construímos, a partir dessas experiências e convívios, nossa própria jornada. Recomendo muito! Vá assistir ao filme de peito aberto, assim como faria Pinóquio.

Não é todo mundo que tem o "privilégio" de voltar a viver
várias vezes até aprender algumas lições, né Pinóquio...



quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

"Pinóquio", de Ben Sharpsteen e Hamilton Luske (1940) vs. "Pinóquio", de Robert Zemeckis (2022)

 


Uma partida que já começa com um favorito disparado: "Pinóquio" de 1940 tem mais talento, criatividade e um futebol mais vistoso, o famoso futebol arte. Já o longa recente do competente Robert Zemeckis, entra com um esquema defensivo defensiva, recuado, só espelhando a tática do adversário. Ambos começam lindamente e delicados, mas a originalidade e a delicadeza dos detalhes da animação original, se destacam muito.

Na história, que todo mundo conhece, um velho carpinteiro que faz um boneco de madeira que por meio de uma fada ganha vida e, um tanto rebelde, um tanto inocente e curioso, acaba saindo de casa e se metendo em uma série de apuros.

Os primeiros minutos são de futebol de alto nível, para frente, os dois com vontade de ganhar. "Pinóquio" de 2022 tenta inovar e mostrar que tem talento, apresentando a repaginada que deu em seus atletas e nisso bate um bolão, mas não o suficiente para superar o encanto do futebol do time de 1940, que, por sua vez, mostra que tem estrela. E é por aí que sai o 1x0. Cruzamento de Fada Azul, Gepeto escora para trás com a cabeça, e Pinóquio, mostrando que não é perna de pau, afunda a rede. 

As cenas inicias são bem parecidas, todo encanto que surge no início dos dois longas é bem impactante em ambos, mas como falei anteriormente, o primeiro, por ser original, se torna algo único e não tem como competir com a cena de Pinóquio ganhando vida, o grilo sendo introduzido como sua consciência, e uma apresentação de personagens linda e lúdica, ao passo que a nova versão apenas emula isso.

O jogo segue ainda igual, com momentos belos, mas termina o primeiro tempo bem morno. Segundo tempo se inicia sem novidades, apenas com uma certa acelerada que o jogo ganha. A equipe de 2022 coloca uma jogadora que parece que vai brilhar, a gaivota Sofia, personagem nova introduzida nessa nova versão, porém pouca coisa acontece e só vai mesmo acontecer lá pelo final do segundo tempo. Chegamos, então, aos minutos finais com cada time tentando surpreender da sua forma: o time de 2022, exagera nos ataques e fica exposto, toma o contra-ataque e... buuum!, leva o segundo gol. Acaba aprendendo que é melhor jogar simples de vez em quando. 2x0 para Pinóquio '40.


"Pinóquio" (1940) - trailer



"Pinóquio" (2022) - trailer


O novo longa tem um dos seus acertos ao nos apresentar a nova personagem que dá um sopro de originalidade ao filme e que até serve para fazer a história ir para frente, mas o roteiro faz questão de tirá-la da história e não entendi o motivo pelo qual, assim como aparece, ela some de tela. O lance da baleia ser substituída por uma fera do mar, desculpe, pode ser coisa minha, mas, particularmente, não gostei.

O quarto árbitro levanta a placa de +2 minutos e, aos 47 do segundo tempo o time de 2022 faz um gol de falta, mas já é tarde e o jogo chega ao fim. 

Por mais que eu tenha gostado do final do remake, que deixa a história muito aberta, o longa no geral não consegue ter a mesma magia do original que, desde do início já traz uma beleza, uma pureza, um encanto singulares. Devido a toda essa magia, bem característica da era de Ouro da Disney e que vale muito, o longa de 1940 sai vitorioso, e jogando muito melhor que seu adversário.

Mas esse torneio não acaba aqui! Logo logo, o time de Ben Sharpsteen e Hamilton Luske vai enfrentar um novo adversário treinado por ninguém menos que o fabuloso Guillermo Del Toro.

Continua...  

No alto, criador e criatura, o velho Gepetto e Pinóquio, à esquerda a animação e à direita o live-action;
na segunda linha, a Fada Azul das duas versões dando vida ao garoto de madeira;
e, abaixo, o que acontece quando se mente,
elemento clássico na história de Pinóquio mas que tem bem menos importância e destaque na nova versão.
 

E o filme novo ainda teve a ousadia
de tentar superar um verdadeiro clássico...
Que cara de pau!




por Vagner Rodrigues

domingo, 14 de agosto de 2022

"Procurando Nemo", de Andrew Stanton e Lee Unkrich (2003)




O cinema tem, ao longo de sua história, tantos pais marcantes, de todos os estilos, bons, maus, amorosos, relapsos, loucos, autoritários, passivos..., mas, por incrível que pareça, dentre tantos homens, o meu pai preferido do cinema, o que mais me emociona, não é um humano. Nem toda a ascendência de um Vito Corleone em "O Poderosos Chefão", o empenho de melhora como pai, de um Ted Kramer em "Kramer vs. Kramer", uma dedicação com sentimento de impotência de um Chris Gardner em "À Procura da Felicidade", fúrias vingativas como a de um Bryan Mills em "Fúria Implacável", ou uma inconformidade transformada em criatividade de um Daniel Hillard em "Uma Babá Quase Perfeita", se igualam à figura paterna de Marlin, de "Procurando Nemo". Um peixe, num filme de animação simboliza mais do que qualquer outro a condição de pai. 
Marlin, um peixe-palhaço, é um pai solteiro, e aí entra a habilidade da Disney/Pixar em lidar com tragédias dando-lhes a devida relevância no âmbito geral da história, sem contudo, deixar o filme pesado. A mãe de seu filho morre, tragicamente, quando seu ninho com as ovas que ela pusera, é atacado por uma barracuda. Apenas um ovo se salva e este será Nemo. Nemo nasce com uma nadadeira menor que a outra, mais um ponto sensível da trama que lida com deficiências físicas de uma maneira muito natural e bonita, mas até por isso e por ser o filho único de uma ninhada quase totalmente exterminada, é tratado por seu pai com um cuidado excessivo. Merlin não permite que Nemo faça nada minimamente arriscado, que se afaste alguns metros a mais, que tente alguma coisa diferente do rotineiro, que explore possibilidades, que descubra coisas novas. Essa restrição toda faz com que Nemo, que é um bom "menino", na verdade, meio que se rebele e desobedeça o pai em uma orientação importante. Só que essa teimosia pontual, em especial, é determinante para o destino do peixinho, que acaba sendo apanhado por mergulhadores que o levarão para ser peixe decorativo em algum aquário, em algum lugar, sabe-se lá onde.
Tudo perdido! Não há como encontrar alguém assim... Pode ter ido parar em qualquer lugar do mundo. Impossível! Não para o Marlin.
Com uma determinação comovente, juntando o mínimo de pistas que vai conseguindo, a partir de uma máscara perdida de um dos mergulhadores, ele vai seguindo o rastro do filho numa contagem regressiva antes que aquele seja vendido, descartado ou comido, num destino que ele desconhece mas que sabe que precisa impedir que aconteça. Para isso ele rompe mares com uma coragem que nem ele mesmo conhecia em si mesmo, enfrentando seus piores medos e passando por cima de suas próprias regras e restrições, tudo isso contando com a "ajuda" da atrapalhada mas simpaticíssima e cativante Dory, uma peixinha cirurgiã-patela com problemas de memória que, por mais que muitas vezes ponha o amigo em enrascadas, é decisiva para que o peixe-palhaço encontre o filho. 

Cena em que um pelicano conta para Nemo
 as peripécias do pai à sua procura


Ele passa do limite que estabelecera para que o próprio filho nunca passasse, ele enfrenta tubarões famintos, ele nada entre águas-vivas, pega correntes perigosas, conhece tartarugas centenárias, pega carona numa baleia, escapa de gaivotas e, por todas essas façanhas, praticamente se torna uma lenda: a história do pai que atravessou oceanos enfrentando a tudo e a todos para encontrar o filho é contada pelos sete mares. Predadores, moluscos, crustáceos, cardumes e até pássaros conhecem a lenda e a contam, exaltando os feitos do pai-herói. E, exatamente, pelo fato da lenda ter ido tão longe e chegar até de outras espécies, um desses pássaros, um pelicano acaba tornando possível o tão improvável reencontro entre pai e filho.
Marlin é um pai exemplar, um pai que faz a gente chegar a se perguntar se iria a tal ponto, tão longe como ele foi (e a reposta acaba sendo sim). Um pai para o qual nada importa mais no mundo do que o filho. Mas Marlin é, sobretudo, um pai que aprende a lição de que é importante ser zeloso, sim, cuidadoso mas que, na verdade, não se cria um filho para si mesmo, se cria um filho para o mundo. E essa condição, a de pai, é uma condição na qual se está sempre aprendendo. e o mais importante nela é, exatamente, ficar atento às lições.
Sejamos, nós pais, todos, um pouco como Marlin, e aprendamos todos os dias mais um pouco sobre essa coisa mágica mas desafiadora que é ser pai.



Cly Reis

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Oscar 2022 - Os Indicados


"Ataque dos Cães" e "Duna" vislumbrando o Oscar no horizonte.

Depois de muita especulação acerca de quem já ganhara Globo de Ouro, BAFTA e outros prêmios indicativos, saiu a tão esperada lista do Oscar que, a bem da verdade, confirmou a maioria das expectativas. "Ataque dos Cães", de Jane Campion, como era esperado, por suas inúmeras qualidades, leva um monte de indicações, "Duna" se impõe nos prêmios técnicos, embora também figure em outras categorias, a encantadora animação da Disney, "Encanto" disputa o prêmio em sua categoria, tem tema de James Bond disputando para trilha original, e "Belfast" e "Amor Sublime Amor" pintam como aqueles que podem roubar a cena. 

No mais, uma certa surpresa pela não indicação de Lady Gaga a melhor atriz, da mesma forma que surpreende um pouco a indicação de Kirsten Stewart, ignorada em outras premiações. Havia uma expectativa sobre como a Academia lidaria com o badalado e discutido "Não Olhe Para Cima" e, felizmente ele não foi ignorado, sendo nomeado para quatro prêmios, inclusive o de melhor filme e também para aquele que é seu maior mérito, o roteiro. Destaque também para a animação dinamarquesa "Flee" que disputa em três categorias, sendo elas, curiosamente, animação, filme estrangeiro e documentário, coisas aparentemente um tanto distantes uma da outra.

Como hoje em dia, com o streaming e as coisas chegando muito mais rápido às nossas casa, está mais fácil de ver os concorrentes, o negócio agora é preparar a pipoca, zapear os canais de filmes e aplicativos e começar a maratona de filmes. 

O Oscar é logo ali. A cerimônia está marcada para o dia 27 de março.


Confira, abaixo, todos os indicados em todas as categorias:


  • Melhor filme

"Belfast"

"Não olhe para cima"

"Duna"

"Licorice pizza"

"Ataque dos cães"

"No ritmo do coração"

"Drive my car"

"King Richard: criando campeãs"

"O beco do pesadelo"

"Amor, sublime amor"


  • Melhor direção

Kenneth Branagh - "Belfast"

Ryusuke Hamaguchi - "Drive my car"

Jane Campion - "Ataque dos cães"

Steven Spielberg - "Amor, sublime amor"

Paul Thomas Anderson - "Licorice Pizza"


  • Melhor atriz

Jessica Chastain - "Os olhos de Tammy Faye"

Olivia Colman - "A filha perdida"

Penélope Cruz - "Mães paralelas"

Nicole Kidman - "Apresentando os Ricardos"

Kirsten Stewart - "Spencer"


  • Melhor ator

Javier Bardem - "Apresentando os Ricardos"

Benedict Cumberbatch - "Ataque dos cães"

Andrew Garfield - "Tick, tick... Boom!"

Will Smith - "King Richard: criando campeãs"

Denzel Washington - "A tragédia de Macbeth"


  • Melhor atriz coadjuvante

Jessie Buckley - "A filha perdida"

Ariana DeBose - "Amor, sublime amor"

Judi Dench - "Belfast"

Kirsten Dunst - "Ataque dos cães"

Aunjanue Ellis - "King Richard: criando campeãs"


  • Melhor ator coadjuvante

Ciarán Hinds - "Belfast"

Troy Kotsur - "No ritmo do coração"

Jesse Plemons - "Ataque dos cães"

J.K. Simmons - "Apresentando os Ricardos"

Kodi Smit-McPhee - "Ataque dos cães"


  • Melhor filme internacional

"Drive my car" - Japão

"Flee" - Dinamarca

"A Mão de Deus" - Itália

"A Felicidade das Pequenas Coisas" - Butão

"A Pior Pessoa do Mundo" - Noruega


  • Melhor roteiro adaptado

"No ritmo do coração"

"Drive my car"

"Duna"

"A filha perdida"

"Ataque dos cães"


  • Melhor roteiro original

"Belfast"

"Não olhe para cima"

"King Richard: criando campeãs"

"Licorice pizza"

"A pior pessoa do mundo"


  • Melhor figurino

"Cruella"

"Cyrano"

"Duna"

"O beco do pesadelo"

"Amor, sublime amor"


  • Melhor trilha sonora

"Não olhe para cima"

"Duna"

"Encanto"

"Mães paralelas"

"Ataque dos cães"


  • Melhor animação

"Encanto"

"Flee"

"Luca"

""A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas"

"Raya e o último dragão"


  • Melhor curta de animação

"Affairs of the art"

"Bestia"

"Boxballet"

"A Sabiá Sabiazinha"

"The windshield wiper"


  • Melhor curta-metragem em live action

"Ala kachuu - Take and run"

"The long goodbye"

"The dress"

"On my mind"

"Please hold"


  • Melhor documentário

"Acension"

"Attica"

"Flee"

""Summer of Soul (...ou Quando A Revolução Não Pôde Ser Televisionada)"

"Writing with fire"


  • Melhor documentário de curta-metragem

"Audible"

"The queen of basketball"

"Lead me home"

"Três canções para Benazir"

"When we were bullies"


  • Melhor som

"Belfast"

"Duna"

"Sem tempo para morrer"

"Ataque dos cães"

"Amor, sublime amor"


  • Melhor Canção original

"Be Alive" - "King Richard: criando campeãs"

"Dos Oruguitas" - "Encanto"

"Down To Joy" - "Belfast"

"No time to die" - "Sem tempo para morrer"

"Somehow you do" -"Four good days"


  • Melhor Maquiagem e cabelo

"Um Príncipe em Nova York 2"

"Cruella"

"Duna"

"Os olhos de Tammy Faye"

"Casa Gucci"


  • Melhores Efeitos visuais

"Duna"

"Free guy"

"Sem tempo para morrer"

"Shang-Chi e a lenda dos dez anéis"

"Homem-Aranha: Sem volta para casa"


  • Melhor fotografia

"Duna"

"Ataque dos cães"

"Beco do pesadelo"

"A tragédia de Macbeth"

"Amor, sublime amor"


  • Melhor edição

"Não olhe para cima"

"Duna

"King Richard: criando campeãs"

"Ataque dos cães"

"Tick, tick... boom!"


  • Melhor design de produção

"Duna"

"Ataque dos cães"

"O beco do pesadelo"

"A tragédia de Macbeth"

"Amor, sublime amor"


C.R.


quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Black Alien - “Abaixo de Zero: Hello Hell” (2019)

 

"Quem precisa de correntes de ouro pra ser Gustavo?/
Quem precisa de correntes de ferro pra ser escravo?"
Da letra de "Área 51"

“Eu sou o agora.”
Da letra de "Que nem o meu Cachorro"

Após os Racionais MC’s terem aberto a porteira para o novo rap brasileiro nos anos 90, uma questão se formou: identificar este gênero musical dentro do contexto da música brasileira. Por incrível que pareça, não foi aquele que lançou a principal interrogação pós-“Sobrevivendo no Inferno” quem matou a charada. Se Marcelo D2 foi quem propôs encontrar “a batida perfeita”, a qual pressupunha uma junção do estilo marginal e urbano norte-americano com o samba brasileiro, coube a outro ex-Planet Hemp ser o verdadeiro achador deste formato próprio de um hip hop que respondesse aos anseios de seus criadores e de um novo mercado fonográfico no Brasil: Black Alien. Não é de se estranhar, afinal Gustavo de Almeida Ribeiro sempre se diferenciou dentro da Planet. Enquanto os outros integrantes exauriam o discurso do “Legalize Já!”, este carioca de São Conrado mostrava-se conectado com uma infinidade de referências como jazz, literatura, psicanálise, pós-punk e cinema cult, visão “extrapunk/extrafunk” que lhe dava mais condições de perceber além, de ver que o grito libertário da geração pós-Ditadura deveria ser necessariamente mais amplo. Tanto foi coerente e certeiro que, em seu primeiro disco solo, “Babylon By Gus Vol. 1 – o Ano do Macaco”, de 2004, foi ele quem, na esteira de Sabotage e seu "Rap É Compromisso!", de três anos antes, encontrou a tal batida perfeita. Chegava-se, enfim, ao que se pode chamar de rap brasileiro.

Acontece que, se a batida é perfeita, as quebradas são tortas. O cara que abriu as portas para que viessem a público os novíssimos talentos do rap brasileiro, como Criolo, Emicida, Rincon Sapiência e Baco Exu do Blues, levou mais de uma década para lançar um segundo trabalho, o irregular “No Princípio Era o Verbo – Babylon by Gus, Vol. II”. Neste meio tempo, Criolo já havia colocado o gênero de ponta-cabeça com o revolucionário “Nó na Orelha”, em que abria um paradigma como há décadas não se via na música brasileira, Emicida reinventava o discurso da negritude, Rincon retornava às raízes da África para forjar uma nova poesia nagô e Baco elevava o estilo ao nível de art-rap como apenas ousaram MF Doom e Beastie Boys. Black Alien parecia haver perdido o passo, perdido o tempo da batida. Alguma coisa haveria de estar imperfeita – e estava. A dependência química, hábito da adolescência, tomava dimensões indesejáveis na vida do músico a ponto de lhe atrapalhar a carreira e a produção artística. A ponto de quase o deixar à sombra de seus discípulos.

Só que, como diz o próprio Black Alien: “Não ir pra frente é retrocesso, nada que vale a pena é fácil”. Precisou, então, descer abaixo do nível zero e dar um alô para o diabo para que ressurgisse. Limpo das drogas e de tudo que não lhe interessava, Black Alien, como a fênix, lança, 17 anos depois da estreia solo, seu terceiro e melhor álbum: o corajoso e autorreferencial “Abaixo de Zero: Hello Hell”. Coeso, tal grandes discos da MPB do passado tem curta duração, o suficiente para apresentar, em menos de 10 faixas, uma música altamente impactante e bem produzida feita basicamente a quatro mãos com o produtor carioca Papatinho nas composições, beats, samples e programações. Black Alien desfila, com uma poesia áspera e sofisticada, visto que rica em figuras de linguagem e rimas rebuscadas (dos tipos emparelhada, coroada, preciosa, entre outros), versos confessionais e conscientes sobre drogas, religiosidade, existência e política, mas sem cair no enfadonho. Pelo contrário. "Área 51", que abre o disco, manda ver em versos brilhantes como estes: “Invicto no fracasso, invicto no sucesso/ A gata mia, boemia aqui não me tens de regresso/ De boa aqui na minha, não foi sempre assim, confesso/ Levitei em excesso, neve tem em excesso/ A costela quebrada me avisa quando eu respiro/ A favela e a quebrada te avisam quando me inspiro”. E o refrão é impagável: “Vim pesadão ninguém vai me ‘dirrubá’/ E problema com pó quem tem é o dono do bar”.

Outra joia confessional, o charme-soul “Carta pra Amy” nem precisa mencionar a homenageada em sua letra para dar o recado. Versos doloridos e inspiradíssimos aprofundam a ideia central do disco, elevando a reflexão a questões existenciais e da religiosidade (“Jurei por Deus que ia acertar as contas/ E aí lembrei que é Deus quem acerta as contas/ Ele acerta no início, no meio, e no fim das contas”). Mas sempre com a visão catalisadora, como nesta passagem em que traz a banda de David Byrne como referência: “Vencer a mim mesmo é a questão/ Questão que não me vence/ Minha cabeça falante fala pra caralho/ E aí my talking head stop makin’ sense”. Usa este mesmo último verso, aliás, para criar outra analogia, numa rima indireta com o nome Byrne: "No confinamento as paredes são minhas páginas de cimento/ Babylon burn." Sem deixar, ainda, de alfinetar a demagogia dos ex-companheiros de grupo (“Quando legalizarem a planta/ Qual vai ser o seu assunto? Cara chato”), Black Alien guarda para o refrão o mais alto nível poético e literário em que conjuga Bob Marley, William Faulkner e C.J. Young num tempo: “Mostre-me um homem são e eu o curarei/ You’re runnin and you’re runnin’ and you’re runnin’ Away/ Não posso correr de mim mesmo/ Eu sei, nunca mais é tempo demais/ Baby, o tempo é rei/ Em febre constante e o dom da cura/ Nem mais um instante sem o som e a fúria”.

A dissonante “Vai Baby” literalmente descontrói o compasso para problematizar a questão do sexo neste novo contexto de vida longe das drogas. Mais uma vez, contudo, a veia poética faz com que Black Alien não recorra a um artifício óbvio, mencionando o filme “Mais e Melhores Blues”, de Spike Lee (1990), para representar, numa metonímia, a ideia do casamento entre erotismo e música negra. “Quero mais e melhores blues/ Com água sob os pés, sobre a cabeça, céus azuis/ Mais e melhores jazz, mais e melhores Gus/ Só de tá na busca, eu tô além do que eu supus”. Passo além dentro da própria obra de Black Alien, lembra em temática “Como eu te Quero”, sucesso de seu primeiro disco, porém noutro nível de maturidade.

Outra pungente, "Que Nem o Meu Cachorro", com um belo e circunspecto riff jazzístico de piano, fala da força de vontade para manter-se sóbrio, num esforço artístico e pessoal de autorreconhecimento. Black Alien diz a si mesmo: não esquecer para não reincidir. “Bem-vindo ao meu lar, cuidado pra não tropeçar, a mesa ainda tá aqui, porém mudei certezas de lugar”, alerta. A animalização causada pela dependência química (“Tô que nem o meu cachorro no domínio do latim”) é suplantada pela consciência do “só por hoje”, “pois”, como diz a letra, “a zona de conflito é minha zona de conforto, e a estrada pro inferno se desce de ponto morto, então parou com a zona”. E finaliza: "Não tô nem aí, nem lá, tô bem aqui, além do que se vê/ Se vêm baseado no passado, só há um resultado: 'Cê' vai se fuder.”

Referência direta ao cool jazz e a Dave Bruback, “Take Ten” adiciona ao relato pessoal a crítica ao sistema: “Quem me viu, mentiu, país das fake News/ Entre milhões de views e milhões de ninguém viu”. Além disso, estão num mesmo caldeirão John Coltrane, Disney, Dr. Jekyll Mr. Hyde e Jimi Hendrix e anáforas geniais como estas: “Hoje cedo no Muay Thai de manhã/ Outros tempos, só Deus sabe onde ia tá de manhã/ O cara vai ter pra adiantar de manhã/ Praticava o caratê de rá-tá-tá de manhã”. 

Sensual e picante como já havia trazido em “Vai Baby”, “Au Revoir”, no entanto, também reflexiona a relação amorosa imbricando-a com a passagem do tempo e, novamente, o sentimento de atenção ao presente: “Não tem como saber sem ir/ Aonde a gente vai chegar/ Au revoir/ Mais e melhores blues/ Assinado Guzzie”. Como diz Fernando Brant em naqueles versos clássicos: “O trem que chega é o mesmo trem da partida”. Já a tocante "Aniversário de Sobriedade" relembra com distanciamento o Gustavo “fundo do poço” para que o mesmo não seja esquecido. Que letra! Ao mesmo tempo forte, autocrítica e filosófica e na qual Black Alien cita até Nietsche. Metalinguística, referencia a sua própria obra “Babylon By Gus” para escancarar seu comportamento no passado e o quanto isso o fez desperdiçar oportunidades: “Vishh!!!/ Meu ‘cumpadi’ que fase/ Me olho no espelho ‘mas Gustavo, o que fazes?’/ Cadê as letras?/ Esqueceu da caneta/ Fica só cheirando em cima do CD de bases/ Os beatmakers, os melhores do país/ E eu só vou pra Jamaica pra acalmar o meu nariz/ Mete a venta e não produz/ Bye bye Gus, babylon by trevas volume zero, sem luz”. No estúdio com ele e Papatinho, ainda Julio Pacman nos teclados e o suingado solo de sax de Marcelo Cebukin.

Black Alien reserva para o fim de um disco irretocável aquilo que desde a Planet foi seu forte, que é a crítica social. Porém, “Jamais Serão” traz esta verve agora filtrada pelo "despertar temporão" do novo Gustavo, percorrendo uma lógica que vai do particular para o público. Tradução da era Temer, que havia se instaurado com o golpe político-jurídico à época da feitura de “Abaixo de Zero...”, a música astuciosamente prevê que o pior ainda viria no governo Bolsonaro. No entanto, alerta com esperança que "presidentes são temporários". E sentencia: "música boa é pra sempre/ esses otários jamais serão".

Rap, trap, reggae, funk, rock, charme, soul, jazz e R&B. Deu para perceber que não se fala de samba? Pois é: Black Alien não só achou a “batida perfeita” acalentada por D2 quanto, ainda, desmistificou que rap no Brasil precisa ser “tropicalizado”. A se ver por um estilo pós-moderno e de origem suburbana que é, não haveria de precisar abrasileirar-se para se tornar essencialmente brasileiro visto a semelhança socioantropológica que une as nações de diáspora negra. Com uma sonoridade quase doméstica e despida de rodeios – ao contrário do caminho tomado por D2, Emicida e, principalmente, Criolo, que evoluiu para um som além do próprio rap – o feito de Black Alien conquistou o Prêmio Multishow como Disco do Ano e foi eleito o Melhor Álbum pelo Prêmio APCA de Música Popular. “Abaixo de Zero...”, no entanto, mostrou muito mais do que um encontro classificatório para as prateleiras de lojas ou playlists de streaming. O principal achado não estava fora, mas dentro do próprio artista. Afinal, Black Alien entendeu que ele é “o agora”.

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FAIXAS:
1. "Área 51" - 2:46
2. "Carta pra Amy" - 4:23
3. "Vai Baby" - 2:57
4. "Que Nem o Meu Cachorro" - 3:31
5. "Take Ten" - 2:33
6. "Au Revoir" - 3:27
7. "Aniversário de Sobriedade" - 2:45
8. "Jamais Serão" - 2:59
9. "Capítulo Zero" - 1:27
Todas as composições de autoria de Black Alien e Papatinho

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OUÇA O DISCO:

Daniel Rodrigues