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segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Moacir Santos - "Coisas" (1965)


"Moacir Santos é um jedi."
Ed Motta

"Eu sou o 'Ouro Negro' do Brasil."
Moacir Santos

A música popular brasileira, mesmo com sua trajetória centenária, demorou a se reconhecer negra. O samba, ritmo mais característico do Brasil, embora a gênese africana, com elementos oriundos das nações Banto, Iorubá, Jeje, Mina, Bornu, Gurunsi e outras, sofreu, ao longo do tempo, com diversas intervenções que, às vezes propositalmente, o distanciaram da origem. Caso do "boleramento" do samba da Rádio Nacional, nos anos 40 e 50, e da própria bossa-nova, demasiado jazz para ouvidos mais ortodoxos. O morro, mesmo, não aparecia no cenário. Ambas as ondas propunham características tão estrangeiras, que só faziam reduzir o espaço simbólico da verdadeira raiz da música brasileira, fosse por modismo, entreguismo ou, pior, vergonha.

Jorge Ben, com o emblemático “Samba Esquema Novo”, de 1963, foi o primeiro sopro de resgate deste africanismo na MPB. Instintivo, pop e moderno, levava a raiz afro-brasileira a outro nível ancorado na tradição violeira. Mas ainda era pouco. Se se olhar para uma das pinturas de Heitor dos Prazeres (aliás, também um grande sambista), que tematizam a gente do samba dos morros e das ruas, fica claro que havia uma série de outros instrumentos – e, portanto, outras texturas e tonalidades – nas rodas e cordões cariocas do início do século 20, que iam além do pandeiro e tarol. Como descreve José Ramos Tinhorão em seu “Os Sons Negros no Brasil”, cabia no samba toda a influência ibérica trazida da Europa pelos portugueses, como o fado e a fofa, mais as diversas culturas diaspóricas vindas da África, tal o batuque, o calundu, o folguedo e a umbigada.

Alguma coisa haveria de salvar a africanidade na música brasileira, e isso veio das mãos de Moacir Santos. Compositor, arranjador, saxofonista e vocalista, este pernambucano lança seu primeiro e absolutamente marcante álbum de estreia com base nas lições que ensinava a seus alunos, as despretensiosamente chamadas “coisas”. Acontece que essas "coisas" eram preciosidades, assim como os seus seguidores. Seus discípulos – entre eles, nada menos que Baden Powell, João Donato, Paulo Moura, Sérgio Mendes, Nara Leão, Eumir Deodato, Carlos Lyra e Roberto Menescal – aprenderam estes valiosos ensinamentos de harmonia e composição com um já maduro e experiente músico capaz de sinterizar mundos. Ex-integrante de orquestras de circo e bandas militares de diversas cidades do Nordeste, nos anos 40, Moacir, após trabalhar como instrumentista e arranjador da orquestra da Rádio Nacional, em 1951, já no Rio de Janeiro, aperfeiçoou seus estudos eruditos com os maestros alemães Ernest Krenek (que o introduz na técnica dodecafônica) e o célebre Hans-Joachim Koellreuter, de quem se tornou assistente, além de estudar também com Claudio Santoro e Cesar Guerra-Peixe.

Lançado há 60 anos pelo cultuado selo Forma – responsável por obras icônicas da música brasileira dos anos 60 como “Os Afro-Sambas”, de Vinicius de Moraes e Baden, e a trilha sonora de Sérgio Ricardo para “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, o filme de Glauber Rocha“Coisas” é justamente o nome dado ao disco que resume as avançadas ideias musicais de Moacir Santos. O trabalho revitaliza a bossa-nova sob a aura das matrizes africanas, ao passo de que também engendra harmonias jazzísticas e ritmos da cultura nordestina, como o frevo, o samba-de-roda, o maracatu e as bandas marciais. A valorização da cultura negra é perceptível tanto na atenção dispensada pelo compositor à percussão, com a incorporação de instrumentos pouco usuais (como berimbau, kalimba, atabaque, agogô e afoxé), como na invenção de uma base rítmica original, ligada a esse matiz. Coisa de gênio. 

São apenas 10 coisas, ou melhor: 10 lições instrumentais, que inventam esse Brasil profundo e sofisticado de Moa. "Coisa n° 4" não à toa passa à frente de suas três companheiras ordinárias para abrir o disco, visto que escolhida para provocar o impacto necessário ao florescer da obra. E o cumpre com louvor: um ritmo de ponto de candomblé se funde a uma base de metais em tom baixo, como o de uma banda marcial em dia de quermesse. É quando entra o trombone solo de Edmundo Maciel desenhando o riff, que serpenteia com elegância o ritmado carregado do culto de orixá. Depois, juntam-se trombone, metais e madeira, num desenvolvimento melódico airoso.

Moacir, revolucionário e mestre dos mestres
da música brasileira 
Dá tempo de recuperar o fôlego – talvez nem tanto assim – com a “nº 10”, uma bossa-nova com traços caribenhos com uma das melodias mais bonitas já escritas por Moacir. Samba-jazz puro, seja no toque sincopado do piano, seja na insinuante linha do trompete. Tudo muito apurado e com clara referência aos mestres Tom Jobim, Johnny Alf, João Donato e Antônio Maria.

Recuperando o tema escrito dois anos antes para a trilha sonora de “Ganga Zumba”, o primeiro filme de Cacá Diegues, “Tema de Nanã” vira agora a “Coisa nº 5”. Novamente, como na abertura do disco, o toque percussivo prevalece, mas logo se transforma numa marcha, que dignifica o gênio militar do herói quilombola. O arranjo de Moacir é espantosamente bem arquitetado, conjugando todos os metais e madeiras (sax alto, sax barítono, sax tenor, trompete, trombone, trombone baixo e flauta). Um ano antes, Nara, com arranjos do próprio autor, a incluiria em seu celebrado álbum de estreia cantando-a apenas em melismas. Somente em 1972 a música ganharia letra – e em inglês – no LP “Maestro”, que Moacir gravaria já nos Estados Unidos, para onde se mudou em 1967 para lecionar e exercer trabalhos free-lancer para cinema.

Enquanto o tema “3” é quase o estudo de um samba minimalista escrito sobre a combinação de três acordes, a “segunda coisa”, que vêm na sequência, esmera num jazz sensual e enigmático conduzido pela bateria de Wilson das Neves e o vibrafone do seu irmão, o também percussionista Cláudio das Neves. Desfilam solos da flauta de Copinha e o trombone baixo de Armando Pallas sobre uma base arranjada no tom médio dos metais. Nesta fica clara a habilidade melódico-harmônica de Moacir, que emprega escalas modais e ambíguas no uso das terças (ora maiores, ora menores), gesto que que torna o número ainda mais negro.

Outra estonteante é a de “nº 9”, subtitulada "Senzala", um lamento nagô com ares jazzísticos cujo toque do sax alto sustenta uma das melodias mais bonitas da música brasileira pós bossa-nova. Há algo arábico nessa melodia em permanente mistério, como uma saudade da mãe-África, como um banzo. Não se nota exaltação: apenas o sofrimento calado das correntes prendendo a pele escrava na escaldante noite no engenho. Já a “Coisa nº 6” acelera o compasso para um samba gafieira em que a volumosa instrumentalização dignifica Severino Araújo e a Orquestra Tabajara. Ritmada, suingada e lindamente melodiosa.

Não menos brilhante, a “sétima lição” é um samba-jazz exemplar, das melhores desse primeiro e referencial repertório de Moacir. Já a “Coisa nº 1”, não menos elegante, forja-se sobre uma sutil percussão de bongôs, um violão sincopado e a dança dos metais, que esculpem este samba cadenciado, que capta as lições da bossa nova e as ressignifica ao deslocar rítmicos e métricos, característica do compositor pernambucano.

Intitulada de “Navegação” em 2001, quando ganhou letra de Nei Lopes e vocal de Milton Nascimento para o álbum-tributo “Ouro Negro”, produzido por Zé Nogueira e Mário Adnet, e um dos mais cultuados temas do cancioneiro de Moa, a “Coisa nº 8” é a escolhida para fechar essa pequena ópera preta. E no mais alto nível de musicalidade e sofisticação. Mesmo sem o vocal, é possível embarcar neste navio moaciriano e intuir os versos: “Da proa desta embarcação/ Consigo interpretar, enfim/ A carta de navegação/ Que o mar traçou dentro de mim”.

Não é exagero dizer que, se não existisse “Coisas”, não existiriam “Os Afro-Sambas” de Vinicius e Baden, nem a África universal do Milton de “Minas"/"Geraes”, nem a “Maria Fumaça” soul-funk da Black Rio, nem o samba enraizado do Martinho da Vila de “Origens”, nem a “Refavela” de Gilberto Gil, nem a musicalidade colorida da Europa moura de Djavan. Não haveria lastro para tudo isso não fosse Moacir Santos e o salvamento que ele promoveu à música brasileira negra. Tal uma nova abolição. Como disse Ed Motta, Moacir é “essa mão de proteção sobre as nossas criações e de tudo que a gente tem pra fazer daqui pra frente”. O que quer dizer muita, mas muita coisa.

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FAIXAS:
1. "Coisa Nº 4" - 4:01
2. "Coisa Nº 10" (Moacir Santos, Mário Telles) - 3:06
3. "Coisa Nº 5 (Nanã)" (Santos, Telles) - 2:45
4. "Coisa Nº 3" - 3:00
5. "Coisa Nº 2" - 4:55
6. "Coisa Nº 9 (Senzala)" (Santos, Regina Werneck) - 3:08
7. "!Coisa Nº 6" - 3:22
8. "Coisa Nº 7 (Quem É Que Não Chora?)" (Santos, Telles) - 2:25
9. "Coisa Nº 1" (Santos, Clovis Mello) - 2:41
10. "Coisa Nº 8 (Navegação)" (Santos, Werneck) - 2:19
Todas as composições de autoria de Moacir Santos, exceto indicadas

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Daniel Rodrigues

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Parque do Ibirapuera - São Paulo/SP


Um dos símbolos do Ibirapuera:
o Auditório Oscar Niemeyer
O Ibirapuera continua lindo. Faziam 15 anos que não o visitava, o que pude fazer desta vez na companhia de Leocádia. O parque mais democrático de São Paulo, misto da porto-alegrense Redenção com a mineira Inhotim e a carioca Quinta da Boa Vista, é um verdadeiro refúgio para os paulistanos, diariamente rodeados de concreto por todos os lados. Lá se encontra natureza - e natureza antiga, haja vista que "ibirapuera" significa, em tupi-guarani, "árvore velha" -, esporte, saúde e arte, muita arte.

O tempo, extremamente favorável do final de junho, oportunizou que pudéssemos pegar uma manhã ensolarada e de um feriado no meio da semana. Ou seja: muita gente aproveitando para se exercitar, fazer esporte, andar com a família ou visitar exposições. Porque, afinal, o Ibirapuera conta com alguns dos principais aparelhos culturais da cidade, vários deles projetados por ninguém menos que Oscar Niemeyer, como o Auditório, a Oca e o Pavilhão da Bienal de São Paulo, os quais são por si só obras de arte.

Além de curtir a natureza e os passeios ao ar livre, também visitamos outro desses importantes e belos espaços culturais assinados pelo génio da arquitetura: o Museu AfroBrasil Emanoel Araújo. Com diversas exposições, rendeu a nós um bom tempo do passeio ao parque. Entre as mostras, a permanente e talvez a que mais impressionou - e se demorou para ver. Dotada de obras da cultura africana e afro-brasileira de diversas épocas e artistas, a exposição toma todo o terceiro pavimento do Museu AfroBrasil. É impactante ver, por exemplo, as representações dos santos do candomblé, todos muito bem expostos e explicados em legendas. Igualmente, as máscaras e estátuas de madeira de diversos países africanos, as obras de Carybé, Rubem Valentim, Heitor dos Prazeres, Maria Lídia Magliani, Aleijadinho e do próprio Araújo.

Obras do baiano Rubem Valentin compõem a mostra permanente do Museu AfroBrasil

E também Carybé: "Oxóssi", madeira e couro, de 1990

Mas impacto mesmo causa a réplica da estrutura em madeira de um navio negreiro preservado transformado em obra de arte por Araújo, símbolo de resistência, história e memória do povo preto. Aliás, o Museu em si reflete, em suas diversas mostras, permanentes ou temporárias, a riqueza dos universos culturais africanos e afro-brasileiros, destacando temas como religiosidade, arte e história e dando ênfase às contribuições da população negra para a formação da sociedade e cultura brasileira.

Além deste espaço, o Museu de Arte Moderna e a adorável marquise sinuosa que se estende por aprazíveis 27 mil metros quadrados onde circula toda tipo de visitante, não foi possível acessar, pois estavam em reforma. O mesmo no caso da Oca, desocupada no momento, e o Pavilhão da Bienal, fechado para a montagem de nova edição.

Nada que tenha feito falta, no entanto. Aliás, é um bom motivo pra se voltar mais vezes e aproveitar o que não deu desta vez. Para falar a verdade, é tão grande o parque, que nem dá para percorrê-lo todo numa vez só. Sempre fica algo pra outra ocasião.

Fiquem, então, com algumas imagens de nosso agradável passeio pelo Ibirapuera, o qual nos rende sempre diversão e lindas fotos de paisagens, mas também cultura e reflexão.

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Chegando e já dando de cara com Niemeyer

Manhã de sol no Ibirapuera

Pessoal aproveitando o feriado

Selfie da pontezinha sobre o lago japonês

Costeando a Oca

Oca de frente sob a sombra das árvores

Sentado no banco-sonoro Raízes Negras, pátio do Museu AfroBrasil

Eu perqueno diante da grande arquitetura de Niemeyer, hoje Museu AfroBrasil

As esbeltas colunas inclinadas do prédio do Museu

Mais do lindo desenho do prédio, antigo Palácio das Nações

Adentrando a exposição, máscaras africanas

Este que vos escreve observando de perto as representações dos orixás

Estátuas em madeira

A riqueza de detalhes de outra das máscaras africanas

Vista para o pátio pelos janelões em vidro do prédio 

Duas visões da impactante reprodução do navio negreiro

E o próprio Emanuel Araújo se faz presente com um díptico em madeira pintada

Heitor dos Prazeres. Só prazer

Outro gênio preto: Aleijadinho

Iemanjá e Nossa Senhora congraçadas 

Leocádia circulando entre as obras do parque próximos ao MAM

Um Amilcar de Castro é sempre bem-vindo

Os lindos contornos do prédio do MAM. Pena que esteva fechado

Achem a borboleta para fechar esse passeio pelo Ibirapuera




texto: Daniel Rodrigues
fotos: Daniel Rodrigues e Leocádia Costa


segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Cartola - "Cartola" (1974)


“Por incrível que pareça, esse disco que só a perspectiva histórica permitirá compreender, no futuro, é o primeiro long-play de um dos poucos verdadeiros gênios da música popular brasileira”. 
José Ramos Tinhorão

“Alguns, como Cartola, são trigo de qualidade especial. Servem de alimento constante. O nobre, o simples, não direi o divino, mas o humano Cartola, que se apaixonou pelo samba e fez do samba o mensageiro de sua alma delicada". 
Carlos Drummond de Andrade

Há 50 anos o Brasil corrigia um erro crasso de, pelo menos, outro meio século anterior. Um dos maiores autores da música popular brasileira, finalmente, registrava sua obra pela própria voz: Angenor de Oliveira, o Cartola. Assim como ocorreu com outros sambistas prejudicados pela disfunção anacrônica da indústria fonográfica de um país desleixado com sua própria cultura (leia-se Nelson Sargento, Dª Ivone Lara, Clementina de Jesus, Adoniran Barbosa e outros velhos bambas desafortunados), Cartola, à exceção de uma rara gravação de 1965 junto ao coro da Escola de Samba do compositor Almeidinha, só pode realizar esse feito na terceira idade, aos 65 anos de uma vida sofrida e batalhada. Como a de todo brasileiro pobre, mas que, por mérito, deveria ser poupada a gênios como ele.

O ano foi 1974 e Sérgio Cabral, no texto da contracapa do LP, celebrava que, finalmente, havia um disco do grande Cartola. A realização deste feito, no entanto, se deve em grande parte ao destino e ao sentimento de dívida para com Cartola alimentado por algumas personalidades importantes da cultura carioca. O primeiro ė Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, jornalista e cronista que, em 1956, certa noite, descobriu que o já histórico compositor e fundador da Mangueira, dado por ele como morto, estava num subemprego de lavador de carros, ajudando-o, por fim, a retornar à carreira musical. Anos depois, nos anos 60, preterido pelos sambas-canções bolerizados e, principalmente, pela bossa-nova, Cartola se desilude, mas volta aos holofotes quando, em plena Ditatura Militar os jovens ligados ao CPC/UNE passam a valorizar artistas da velha-guarda do samba como ele. É quando participa, por iniciativa de Hermínio Bello de Carvalho, do memorável projeto "Fala, Mangueira" ao lado de outros bambas de seu calibre: Nelson Cavaquinho, Clementina, Carlos Cachaça e Odete Amaral

Impossível não citar ainda outro ardoroso venerador de Cartola dos que lhe ajudaram em vida e que foi responsável por, enfim, colocá-lo num estúdio: João Carlos Botezelli. Produtor musical e fã, Pelão levou a ideia ao selo Marcus Pereira de gravar um LP da lenda viva do samba. As sessões ocorreram entre os dias 20 e 21 de fevereiro e 16 e 17 de março daquele ano, contando com as participações de exímios músicos, como o percussionista Mestre Marçal, o violonista e arranjador Dino 7 Cordas, o flautista Copinha e o trombonista Raul de Barros. Não havia músico no Rio que quisesse perder aquela oportunidade de participar de um momento histórico: Cartola lançaria seu primeiro álbum solo, que já nascia clássico.

Basta ouvir os primeiros acordes da faixa inicial, “Disfarça e Chora”, para perceber que se inaugurava ali uma era na música brasileira – ou melhor, se resgatava o tempo perdido. Samba elegante, letra exata, melodia engenhosa, poesia romântico-parnasiana. Que acordes bonitos e criativos! Nunca o samba, nem com Paulo da Portela, com Dª Ivone, com Candeia, com Wilson Batista, com Batatinha, havia sido tão lírico. Lirismo e perfeição, aliás, caminham juntos durante todo o álbum. O que dizer de cânones da MPB como “O Sol Nascerá (A Sorrir)”, dele e de Elton Medeiros, e seus versos infalíveis em melodia, harmonia e poesia? “Finda a tempestade/ O Sol nascerá/ Finda esta saudade/ Hei de ter outro alguém para amar”.

Ou “Alvorada”? “Alvorada lá no morro/ Que beleza/ Ninguém chora/ Não há tristeza/ Ninguém sente dissabor/ O sol colorindo é tão lindo/ É tão lindo/ E a natureza sorrindo/ Tingindo, tingindo”. Parceria com Carlos Cachaça e Hermínio Bello de Carvalho, remete, em sua repetição harmoniosa de palavras e na economia harmônica de seus acordes, a simplicidade universal de outro sambista contemporâneo seu, o baiano Dorival Caymmi. É muita maestria.

E os clássicos só vão se avolumando. “Tive Sim”, uma das mais singelas declarações de amor da música brasileira e que pode ser considerada irmã de outra composição de Cartola, “Nós Dois”, de seu terceiro disco, “Verde que te Quero Rosa”, de 1977, pois conta sobre a felicidade de se ter um amor (Dª Zica, companheira do segundo casamento até sua morte) sem esconder que teve, sim, “um outro amor antes" daquele. Composta em 1968, a música participou da Primeira Bienal do Samba, defendida por Cyro Monteiro, e ficou em quinto lugar. Outra irreparável é “Corre e Olha o Céu”, com a bela introdução em que Copinha e Raul de Souza dão a deixa com seus sopros para Cartola entoar com a elegância de sempre os versos. “Linda!/ Te sinto mais bela/ Te fico na espera/ Me sinto tão só”. 

Porém, há os clássicos entre os clássicos. Isso é a mais certeira afirmação, pois trata-se da música chamada “Sim”. Samba de 1962, gravado originalmente por Gilberto Alves, é a exatidão da palavra cantada no ritmo mais afro-brasileiro por excelência. “Para ter uma companheira/ Até promessas fiz/ Consegui um grande amor/ Mas eu não fui feliz/ E com raiva para os céus/ Os braços levantei/ Blasfemei/ Hoje todos são contra mim”. Não são dignos de um Álvares de Azevedo estes versos?

E o que dizer, então, de “Acontece”? Um assombro a capacidade de Cartola de sintetizar em pouco mais de 1 min tamanha perfeição musical. Traços de Villa-Lobos emanam do morro. E que canto o de Cartola! Elegante, afinado, emotivo, seguro, dono da própria criação. "Esquece nosso amor, vê se esquece/ Por que tudo no mundo acontece". Sem dúvida nenhuma, top 10 entre as melodias mais bem construídas da música brasileira. Para um país que tem o privilégio de ter compositores do calibre de Caymmi, Gil, Edu, Garoto, Donato, Joyce, Chico, Tânia, Moacir, alguns destes, maestros formados, isso é bastante representativo. 

Mas tem mais. “Amor Proibido”, claramente uma forte inspiração para Paulinho da Viola em estilo melódico e cuja melodia é tão linda que ganhou, em 2008, uma versão apenas instrumental de Zé Paulo Becker, no disco-homenagem “Viva Cartola – 100 anos”. Ainda, outras preciosidades: “Quem Me Vê Sorrindo”, nova parceria com Carlos Cachaça, “Festa da Vinda”, um ano antes gravada por Elza Soares, e “Ordenes e Farei”, sua e de Aluísio Dias. Finalizando o disco, uma música de 1965 que, resgatada, traduzia o momento especial do velho bamba: “Alegria”. “Alegria/ Era o que faltava em mim”. Em depoimento a O Globo, o próprio falou sobre esse sentimento quando se deu conta de que era verdade o que vivia: “Me senti muito emocionado quando ouvi a minha voz no disco. Eu já tinha até pensado que ia morrer sem gravar um disco”. Cartola, mesmo com cerca de meio século de atraso, estava de volta.

Até debutar em estúdio, Cartola já havia fundado, nos anos 20, uma das mais tradicionais escolas de samba cariocas – a qual ele mesmo, com seu senso estético apurado, escolhera as cores verde e rosa como símbolo. Já havia composto sambas-enredo campeões de diversos carnavais nas décadas de 40 e 50. Já havia inventado um ritmo, o samba-canção. Já havia posto sucessos nas vozes de artistas como Carmen Miranda, Noel Rosa, Francisco Alves e Aracy de Almeida. Já havia sido aprendiz de tipografia, pedreiro, pintor, guardador e lavador de carros, vigia de edifícios e contínuo de repartição pública. Já havia enviuvado e casado novamente, sido pai, dono da casa noturna Zicartola e radialista junto com Paulo da Portela e Heitor dos Prazeres. Tudo isso, toda uma vida antes desta estreia como artista solo. 

Isso é muito sério e diz bastante sobre o Brasil: rico em cultura, mas paupérrimo em autoestima. É como se a genialidade prodigiosa de Mozart, desperta na infância, fosse enclausurada na Áustria por uma vida inteira até ser revelada só quando este tivesse branqueado os cabelos. Não é exagero essa comparação, pois Cartola é o Mozart do samba. O maestro de música erudita britânico Leopold Stokowski, em excursão ao Brasil nos anos 50, já havia ficado impressionado com a musicalidade de Cartola. Nada mais do que a sua obrigação como homem da música em reconhecer o talento do brasileiro, considerou outro brasileiro genial, Carlos Drummond de Andrade. Aliás, é do poeta mineiro a definição mais sintética do que o admirável poeta do morro representa: “Cartola é daquelas criaturas que a música habita nelas”.

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FAIXAS:
1. "Disfarça E Chora" (Cartola, Dalmo Castello) - 2:06
2. "Sim" (Cartola, Oswaldo Martins) - 3:38
3. "Corra E Olhe O Céu" (Cartola, Dalmo Castello) - 2:23
4. "Acontece" - 1:17
5. "Tive Sim" - 2:09
6. "O Sol Nascerá" (Cartola, Elton Medeiros) - 1:42
7. "Alvorada" (Carlos Cachaça, Cartola, Hermínio Bello de Carvalho) - 2:40
8. "Festa Da Vinda" (Cartola, Nuno Veloso) - 1:59
9. "Quem Me Vê Sorrindo" (Carlos Cachaça, Cartola) - 2:07
10. "Amor Proibido" - 2:37
11. "Ordenes E Farei" (Aluízio Dias, Cartola) - 2:21
12. "Alegria" (Cartola, Gradim)- 2:44
Todas as composições de autoria de Cartola, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:
Cartola - "Cartola"


Daniel Rodrigues

domingo, 17 de setembro de 2023

Exposição "Heitor dos Prazeres é meu nome", de Heitor dos Prazeres - Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) - Rio de Janeiro / RJ

 




"Eu sou Heitor dos Prazeres,
Heitor dos Prazeres é meu nome.
Este prazer que eu tenho no nome
é o prazer que eu divido com o povo.
Este povo com quem eu reparto este prazer.
Este povo que sofre, este povo que trabalha,
este povo alegre que eu compartilho a alegria desse povo.
A alegria deste povo,
o sofrimento deste povo
é o que me obriga a trabalhar.
É o que me faz transportar para a tela
o sofrimento do povo."
Heitor dos Prazeres


A gente vai protelando, deixando pra depois, pro próximo final de semana, pro próximo, pro próximo, e às vezes acaba perdendo uma exposição daquelas que valem muito a pena.
Nessas de empurrar pra depois, acabei quase perdendo a exposição de Heitor dos Prazeres, no CCBB, aqui no Rio.
Mas deu tempo.
Fui no penúltimo final de semana, mas deu.
Heitor dos Prazeres, um dos maiores nomes das artes no Brasil, retratava em sua obra cenas cotidianas, normalmente com a figura do negro em destaque. Tradições, folguedos, festas, trabalho, brincadeiras, tudo aparece nos quadros do pintor carioca, com muito movimento, muito ritmo e muita cor, numa técnica que, à primeira vista, pode parecer limitada, primária, ingênua, mas que revela uma noção de espaço  e dimensionalidade quase ímpar na pintura mundial.
Heitor, artista multitalentoso, além de pintor, era também escultor, designer, estilista, compositor, violonista e cantor, com igual brilho e talento em todas essas outras áreas. Mas, indiscutivelmente, foi a pintura a atividade que representou a parte mais significativa de seu trabalho e, indubitavelmente, a que lhe rendeu maior reconhecimento, sendo a que recebe maior destaque na exposição e a que apresenta o maior número de itens.
Uma exposição essencial de uma obra valiosíssima da arte brasileira. Uma arte que representa tanto a cultura negra que parece emitir som, suas imagens parecem produzir o ritmo do samba. 

Prazeres? O prazer é nosso por ter o privilégio de apreciar sua obra.


Confira, aí, abaixo, alguns momentos da exposição:

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A formação das favelas cariocas, na pintura de Heitor dos Prazeres

Heitor também retratava cenas rurais em sua obra.
Negros trabalhando na roça.

Mais uma situação de trabalho.
Aqui, uma lavadeira

O belíssimo "A mulher abstrata" (óleo sobre tela)

A feira, mais uma cena cotidiana

Aqui, a seção dedicada à música.
Danças, festas, carnaval...

"Os sambistas", óleo sobre tela de 1963

Brincadeiras, crianças se divertindo na rua.

Detalhe de um dos quadros que retrata as brincadeiras da infância


Carteado, sinuca... As jogatinas

Os nus também marcaram presença na obra do artista.
No quadro, uma modelo posando para um pintor


Já em sua fase final, alguns quadros apresentavam uma
perspectiva pessimista do artista.
Neste, a solidão, a vulnerabilidade, o mercado o consumindo.


Também de sua fase final, o belíssimo "Praça XV"

Alguns esboços do artista


As partituras para sambas e o envolvimento crucial com o carnaval
para a criação das escolas de samba

A parte musical de Heitor dos Prazeres é tão significativa quanto a plástica

Trabalhos de Heitor para cenografia de peças


Figurinos do artista para um musical

Em detalhe, uma peça de vestuário desenhada pelo artista

O lado escultor de Heitor dos Prazeres.
Escultura em madeira.

Uma geral de uma das salas da exposição


Este blogueiro tendo o prazer de
apreciar a obra de Heitor dos Prazeres



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exposição "Heitor dos Prazeres é meu nome", de Heitor dos Prazeres
local: CCBB Centro Cultural Banco do Brasil - Rio de Janeiro
endereço: Rua Primeiro de Março, 66, Rio de Janeiro / RJ
período: até 18 de setembro de 2023
visitação: de segundas, quartas, quintas, sextas e sábados, das 9h às 21h
e domingos das 9h às 20h
ingresso: gratuito




por Cly Reis