“Quando não genocidam as nossas crianças elas crescem e têm grandes chances de se tornar, no futuro, um Xande de Pilares, por exemplo. Que estupendo cantor ele se confirma neste álbum que não me canso de ouvir”.
Ricardo Aleixo, poeta, músico e ativista negro
"Canto e imagino que todo o povo, toda 'gente quer ser feliz, gente quer respirar ar pelo nariz' e levar a paz."
Xande de Pilares, em carta aberta sobre “Xande canta Caetano”
O povo preto não pode nunca deixar de estar alerta. Mãe Bernadete, Moa, Amarildo, Júlio César, Genivaldo, Moïse, Sandro. Marielle Franco. Seja pela força do Estado, seja pelo braço armado do Estado, seja pela conivência do Estado, seja pela incompetência do Estado. No Brasil, o genocídio negro vem de séculos, desde os navios tumbeiros. E quando crias negras nem sequer têm a chance de conhecerem a vida? João Pedro, Heloísa, Miguel, Eloá, Thiago, Ágatha, Maria Eduarda, Kauã, Alice, Emilly, Rebecca. Chacinados da Candelária.
Acontece que, há séculos também, este mesmo povo preto massacrado e açoitado, embora submetido à pior das condições humanas, a escravidão e o aniquilamento, resiste. Resiste e dança, tal como um personagem essencial para esta análise um dia disse: "com uma graça cujo segredo nem eu mesmo sei".
Alexandre Silva de Assis, ou Xande de Pilares, nascido no suburbano Morro da Chacrinha e que leva no nome outro bairro pobre da Zona Norte do Rio de Janeiro, é fruto deste milagre da resistência. Criado nas rodas de samba de Ramos, Cachambi, Madureira, Pilares – o Pagode do Boleiro, o da Beira do Rio, o Pagofone, o da Geci, o Compasso da Vila, o Risco de Vida, a Adega do Sambola –, chegou ao estrelato aos 22 com o Grupo Revelação na onda pagodeira dos anos 90. Sobreviveu e se desenvolveu. Solo, lançou, entre outros, discos com títulos nada despropositados: “Esse Menino Sou Eu” e “Perseverança”. Aos 53, então, Xande valeu-se da desatenção do sistema racista para cunhar um disco que já nasce, assim como ele e seus milhões de irmãos, valoroso e celebrável. “Xande Canta Caetano” é daquelas raras obras que não precisam da permissão do tempo para se tornarem essenciais. Já vem ao mundo assim.
Vários motivos levam o disco a ser especial. A começar pelo homenageado, cuja gigantesca e assombrosa obra em tamanho e importância garante um set-list de alta qualidade. Segundo: a ideia surgiu de um convite do próprio Caetano Veloso, aceita com certo temor pela responsabilidade por parte de Xande, mas assumida com reverência, respeito e entrega pelo mesmo. Terceiro, a ousadia de trazer para o seu chão, o samba, até mesmo aquilo que não é samba na roupagem original. E quarto e principal: o primoroso resultado final. São apenas 10 faixas, que levam o canto emocionado e gabaritado de Xande para canções do baiano – muitas delas, clássicos do cancioneiro brasileiro – em versões personalíssimas e inspiradas.
Xande demonstra ser um grande fã de Caetano já na escalação do repertório. Uma seleção de quem conhece a fundo aquilo a que está se dedicando. Mas sobretudo e artisticamente falando, um entendimento do que se conecta com ele como intérprete. Fora o fato de ser um disco de duração curta e exata – como os da MPB dos velhos tempos do long player, incluindo os de Caetano –, o repertório torna-se um dos diferenciais do disco. Xande optou por músicas não óbvias do farto cancioneiro caetaneno, mesmo podendo recorrer a uma maior facilidade. Não seria nenhum crime, por exemplo, aproveitar sambas consagrados como “Desde que o Samba é Samba”, "Saudosismo", “Sampa” ou “Sem Samba não Dá”. Ou, quem sabe, sambas convictos do compositor: "Festa Imodesta", "A Voz do Morto", "Samba em Paz", "Força de Imaginação", esta parceria com a "dona do samba" D. Ivone Lara? Diminuiria a margem de erro. Mas não. Xande ousou – e acertou. A se ver pela surpreendente escolha de “Muito Romântico”, que abre o disco numa tocante versão da canção feita para a voz perfeita de Roberto Carlos em 1977 e gravada pelo autor apenas posteriormente. Samba puxado no cavaquinho, instrumento-base de Xande aprendido naquelas tais rodas de samba de outrora, nos botequins da vida. No talento trazido acorrentado da África pelos ancestrais, dos batuques sincréticos na senzala.
Pois outro jovem preto que driblou o sistema genocida é corresponsável por este feito: Ângelo Vitor Simplício da Silva, mais conhecido como Pretinho da Serrinha. Igualmente rebento dos pagodes da vida, das quadras de escola de samba, do ouvido absoluto e do talento nato. Pretinho é quem, além de produzir o disco com a mais alta competência e tocar nada menos que 24 instrumentos nas gravações, assina todos os arranjos, estes capazes de operar o milagre de fazer com que músicas de estruturas rítmicas variadas soem naturalmente sambas tal tivessem sido assim desde sempre. “Luz do Sol”, o emocionante tema escrito por Caetano para a trilha sonora do filme “Índia, A Filha do Sol”, de 1982, de uma balada melancólica vira, simplesmente, um samba-canção de muito bom gosto na tradição de Cartola e Paulinho da Viola.
E o que dizer de “Qualquer Coisa”, que, de portenha, passa a ganhar ares de sambolero com direito a bandolim de Hamilton de Holanda? Até mesmo o hit “Tigresa”, outro não-samba originalmente, é vestido por uma elegante roupagem em que Xande desfila extensão vocal e fraseados num samba lânguido e sensual. Palmas, aliás, para outro preto: Diogo Gomes – mais uma de história linda de superação e perseverança –, que capricha no arranjo de metais.
videoclipe de"Tigresa", da Araguaia Filmes
Assim como “Tigresa”, “Alegria, Alegria” é outro clássico inconteste de Caetano relido no álbum. Porém, ainda mais improvável achar samba naquela marchinha psicodélica. Pois Xande/Pretinho conseguiram, e com louvor. Das melhores do álbum, um dos hinos do movimento tropicalista, defendida pelo autor no memorável Festival da Canção de 1967, transforma-se em um misto de samba rural e afoxé em que o violão do craque Carlinhos 7 Cordas prevalece. Xande, cuja memória ainda preserva da infância as festas da Folia de Reis nas comunidades em que viveu, evidencia neste samba raiz uma atmosfera que talvez até Caetano nem percebera que sua música continha.
Outra nada óbvia – e mostra do quanto Xande caprichou na pesquisa interna à música do homenageado – é “Diamante Verdadeiro”, composta por Caetano para a mana Maria Bethânia e que abre o disco de maior sucesso da carreira dela, “Álibi”, de 1978. Como se encarnasse Moreira da Silva, Xande faz o diamante reluzir verdadeiramente como um samba-de-breque. Na sequência, para uma das mais pessoais e bonitas de todo o repertório de Caetano, “Trilhos Urbanos”, o que poderia ser equivocado se torna ainda mais assertivo. Resgatando no marcante som dos atabaques e do cavaquinho o xirê de candomblé e o samba-de-roda do Recôncavo Baiano, terra-natal de Caetano, a dupla Xande e Pretinho constrói uma das mais belas músicas de todo o disco e, quiçá, da década no Brasil. O bom-senso não recomendaria que o incomum “refrão de assovio” da original de Caetano fosse reproduzido. A solução? Um coro feminino cantarolando a melodia de “Retirantes”, de Caymmi, que faz remeter imediatamente à célebre canção-tema da novela “Escrava Isaura”, presente na memória afetiva de todo brasileiro. Sacada de mestres, astúcia de uma raça que sobrevive com graça para além das desgraças.
Formando a tríade com os maiores cantores da MPB presenteados por Caetano com sua criatividade ímpar, Xande, que passara por Roberto e Bethânia, agora chega a vez de Gal Costa, mencionada na faixa anterior por seu canto de "Balancê". E fazendo jus a um repertório pinçado com sensibilidade, ele versa ainda “O Amor”, que Caetano, sobre a poesia revolucionária do poeta russo Maiakovski, deu para a voz cristalina de Gal em 1981. A mais samba, mas nem por isso menos desafiadora, é “Lua de São Jorge”, uma reverência a ao guerreiro Ogum em ritmo de pagode. Salgueirense, Xande celebra também a escola a qual pertence, devota do mesmo santo, tão vermelha e branca quanto ele. Não à toa os metais e o agogô desenham toda a melodia, afinal, está se falando do “senhor da metalurgia”.
Mas ainda mais revolucionária é a que encerra: “Gente”, o grito humanista mais pungente de Caetano. Difícil escutá-la e não ir às lágrimas, como ocorreu com o próprio Caetano ao ouvi-la pela primeira vez. Xande, com sua história pessoal e representatividade, cantando em clima de samba-enredo essa ode às pessoas simples, apropriando-se dela, reverbera em muitas dimensões do tecido social brasileiro. “Gente pobre arrancando a vida com a mão”. Quanto potência e significado versos como estes ganham ao saírem de sua boca: “Não, meu nêgo, não traia nunca essa força, não/ Essa força que mora em seu coração”.
“Xande Canta Caetano” é, sem pestanejar, o melhor álbum lançado no Brasil em 2023, um presente aos brasileiros para um festivo ano em que o país se livrou do fascismo e vislumbrou novamente a esperança na democracia, no respeito ao outro e no amor. Brasileiros como Ricardo Aleixo, Jorge Furtado, Pena Schmidt, Martha Medeiros, Nizan Guanaes e Moysés Mendes pensam o mesmo. Na mesma lógica de enumerar nomes como na música "Gente", podem-se adicionar tranquilamente a Francisco, Zezé, Gildásio, Renata, Agripino, Dolores ou João, como a poética sugere, outros nomes, tal Pretinho, tal Diogo. Tal Xande. Foi deixarem o negro existir, deu nisso: amor e arte, as armas contra a iniquidade capazes de transformar o mundo. Afinal, gente é pra brilhar como brilha Alexandre Silva de Assis. Não pra morrer de fome, de bala ou pela invisibilidade.
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videoclipe de "Gente", da Araguaia Filmes
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FAIXAS:
1. “Muito Romântico” - 3:16 2. “Luz do Sol” - 3:44 3. “Qualquer Coisa” (participação: Hamilton de Holanda) - 3:00 4. “Tigresa” - 3:59 5. “Alegria, Alegria” - 2:56 6. “Diamante Verdadeiro” - 3:14 7. “Trilhos Urbanos” (Música incidental: “Retirantes”, Dorival Caymmi) - 3:22 8. “Lua de São Jorge” - 3:01 9. “O Amor” (Caetano Veloso / Ney Costa Santos / Vladimir Maiakovski) - 3:37 10. “Gente” - 3:55
Todas as composições de autoria de Caetano Veloso, exceto indicadas
sinéad o'connor não nos ensinou só a admirar a beleza de sua arte, mas a levar a música literalmente na cabeça. o programa hoje terá ela e muito mais coisas, como beck, dona ivone lara, the stranglers, vitor ramil e mais. tem, claro, a própria sinéad no quadro sete-list. combatendo o poder, o mdc entra na briga às 21h na aguerrida rádio elétrica. produção e apresentação sem comparação: daniel rodrigues
“Paulinho na verdade é uma ponte, não uma ruptura. É um craque (vascaíno) de ligação entre a tradição e o novo, o lado de lá e o de cá, o samba de morro e o do asfalto, as raízes e as antenas. Paulinho criou suas influências e seus precursores. Sua obra modificou nossa concepção do que se fez antes em matéria de samba.”
Zuenir Ventura
Paulinho da Viola tem uma relação com o tempo distinta de todo o resto da humanidade. Primeiro, porque é evidente que ele não pertence a uma mera sucessão de instantes que se passam um depois do outro. Seria muito reducionista em se tratando de Paulo César Batista de Faria que, dizem, está completando 80 anos de vida. Mas duvide-se um pouco disso. Ele mesmo admite que é um ser do século 19 nascido quase que por engano no século 20. Engano, no entanto, não é. Se sua existência não responde à cronologia dos mortais, sua vinda ao mundo significa algo muito representativo. Este “dândi do morro” é, sob nenhuma suspeita, o grande modernizador do ritmo mais brasileiro de todos os tempos (e um dos mais latinos também): o samba. Irokô, orixá do tempo, sabe das coisas: não teria seu filho emprestado vindo com sua classe, originalidade e elegância se não fosse para decretar que o novo samba lhe pertence. Nele, a estética e a sofisticação da classe média da zona sul do Rio de Janeiro dos anos 50 e 60 se encontraram com a vibração dos subúrbios cariocas, resultando numa nova forma que atravessa o tempo sem alterar sua essência e abraçando a modernidade.
A carreira de Paulinho, marcada pela observância acurada da música de Cartola, Zé Ketti, Dª Ivone Lara e Nelson Cavaquinho, iniciou ao lado dos bambas do passado e do presente no conjunto Rosa de Ouro, e 1965. Mas a música está desde sempre na sua vida. Vem de casa, das rodas de choro em Botafogo promovidas pelo pai, o violonista César Faria, onde recebia de Pixinguinha, Jacob do Bandolim e Dilermando Reis sob os olhos do pequeno Paulo. Depois, nos pagodes e feijoadas na quadra da Portela, sua Escola, onde aprendeu com os gênios anônimos Manacéa, Ventura, Paulo da Portela, Santana, Monarco, Carlos Cachaça, Candeia. Fora isso, na juventude, o convívio de perto com os mestres no Zicartola, de Nelson Sargento a Clementina de Jesus, passando por Elton Medeiros, Hermínio Bello de Carvalho, Ciro Monteiro e outros, que deram combustível ao coração sensível e à mente altamente inteligente de Paulinho. Eis, então, um autor original e intimista, que consegue juntar a tradição do samba, a voz do morro e a modernidade aludida pela bossa nova.
Dono de uma obra de apenas 21 álbuns solo em quase 60 anos de carreira, sendo alguns ao vivo ou de regravações, Paulinho tem um cancioneiro diminuto. Sabiamente descompassado do restante do mercado fonográfico, desde 1996 não lança um trabalho de estúdio novo. Isso tudo obriga o ouvinte a, diante de sua obra, ser tão contemplativo quanto suas letras sugerem, fazendo com que cada disco seu seja um verdadeiro tesouro artesanal onde guardam-se preciosidades como choros, toadas, sambas-enredo, partidos-altos e mais e mais brasilidades. Tudo encapsulado por um estilo marcadamente sofisticado e por uma poética que remete ao parnasianismo, ao simbolismo, ao romantismo e às vezes à poesia moderna (a se ver pela ousada “Sinal Fechado”, de 1971). Por isso, escolher “Prisma Luminoso” para representar sua discografia é tarefa fácil. Nele se encontra toda esta conjunção de qualidades amalgamadas a um estilo tomado de originalidade e fineza.
Quase como um lema, “O Tempo não Apagou” começa um dos discos preferidos do próprio Paulinho em ritmo de batucada, a qual encerra com uma batida única que não se encontra mais em lugar nenhum, nem mesmo nas escolas de samba há bastante desviadas do som dos blocos carnavalescos de antigamente. Logo depois, de arranjo impecável de Cristóvão Bastos, o samba romântico “Retiro” apontaria o caminho em timbrística e clima para a retomada da carreira de Emílio Santiago alguns anos dali nas “Aquarelas Brasileiras”. Já “Cadê a Razão”, João Bosco, Djavan e Gilberto Gil na veia (não à toa dedicada aos três, aliás) traz uma saborosa mistura de samba-de-breque com funk. Na medida certa, sem pesar a mão, bem ao estilo do seu autor.
Outra joia do disco é “Mas Quem Disse que Eu te Esqueço”, de autoria de Dª Ivone em parceria com Hermínio. Certamente uma das mais belas melodias e letras do samba de todos os tempos: “Tristeza rolou dos meus olhos/ De um jeito que eu não queria/ E manchou meu coração/ Que tamanha covardia”. Ainda mais quando cantada pela voz principesca de Paulinho! O samba triste “Mais que a Lei da Gravidade” tem no piano de Cristóvão a cama perfeita para a parceria com Capinan, com quem Paulinho também divide a autoria da faixa-título, um clássico samba de breque com astral pra cima, amoroso e sensível. Nela, se vê claramente a poética de Paulinho, que faz alusão às metáforas com os elementos naturais e suas simbologias, como o mar, o vento, o olhar, o sal e o cristal. Elementos da passagem do tempo.
A ótima “Documento”, de Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro, abre a segunda parte do disco, que tem na sequência outra coautoria de Paulinho, esta com o antigo parceiro Elton: “Quem Sabe”. Com um distinto riff puxado no cavaquinho, faz jus ao legado de Cartola a que tanto os dois dignificam. “Quem sabe/ Retomando a velha estrada/ Eu encontro em outros braços/ Aquela ternura que um dia perdi/ Dentro dos olhos teus”. A modernidade de Cartola, aliás, a qual Paulinho tanto exalta, é novamente reverenciada na versão de “Não Posso Viver sem Ela”, música de 1942 gravada originalmente por Ataulfo Alves e pelo seu autor em 1976. Para encerrar, o impecável “Prisma...” traz ainda a bela “Cisma”, a onírica “Só Ilusão” e a sertaneja “Toada”, mostrando a maturidade de um artista que se experimenta em vários gêneros.
Acontecimentos únicos como Paulinho da Viola revestem-se, no entanto, de certa normalidade. Veja-se só agora, com os 80 anos deste artista, celebrados país e mundo afora. Mas é só parar um pouco e observar o que está tácito: 80 anos, que nada! Paulinho tem 80 e mais, 80 e todos. 80 e tudo. Muita sabedoria, poesia, elegância, beleza para caber em meros anos somados uns anos outros. Ele pensa que engana quando canta os versos de Wilson Batista: “meu tempo é hoje”. Pura humildade: o tempo de Paulinho não é só hoje: é sempre. Paulinho é o tempo do infinito, o tempo dos mares que tanto lhe cabem na poesia. O tempo do vento, que lhe faz articular essa voz límpida e cheia de coração. O tempo do amor, sentimento sem tempo. Não é ele quem se navega: quem lhe navega é o mar.
Irokô definitivamente sabe das coisas.
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FAIXAS:
1. "O Tempo Não Apagou" - 3:18
2. "Retiro" - 2:50
3. "Cadê A Razão" - 3:08
4. "Mas Quem Disse Que Eu Te Esqueço" (Dona Ivone Lara, Hermínio Bello De Carvalho) - 3:20
5. "Mais Que A Lei Da Gravidade" Capinan, Paulinho Da Viola) - 3:25
6. "Prisma Luminoso" (Capinan, Paulinho Da Viola) - 3:09
7. "Documento (Eduardo Gudin, Paulo César Pinheiro) - 3:05
8. "Quem Sabe" (Elton Medeiros, Paulinho Da Viola) - 3:05
9. "Cisma" - 3:05
10. "Não Posso Viver Sem Ela" (Bide, Cartola) - 2:48
11. "Só Ilusão" - 4:15
12. "Toada" - 1:50
Todas as composições de autoria de Paulinho da Viola, exceto indicadas
“Compadre Monarco, se não confeitarem tua voz com clarinadas, violinadas e gastas dissonâncias violonísticas, o pessoal vai sentir o que é samba.”
Juarez Barroso, escritor, poeta e produtor musical
“Monarco foi mais do que um grande sambista: trata-se de um grande brasileiro.”
Sérgio Cabral, crítico e escritor
Posso dizer que estive muito próximo de Monarco desde
bastante tempo. Certamente não tanto quanto os amigos, parceiros, moradores da
comunidade de Madureira ou Oswaldo Cruz, dos portelenses que tinham o
privilégio de conviver com ele. Mas meu contato com o mestre, que nos deixou no
último dezembro, certamente foi muito maior do que para com muitos artistas que
admiro mas que, como acontece na maioria dos casos, uma admiração somente à
distância. Por isso, arrisco em afirmar que estive, pelo menos três vezes, quando não a metros, por um fio de distância de Monarco. Tão próximo que seria possível ouvir-lhe, como um bumbo de samba, a batida do coração.
Primeira vez que o vi presencialmente foi em 2014 quando este,
juntamente com a Velha Guarda da Portela, presenteou Porto Alegre em uma
apresentação ao vivo – e de graça – em pleno parque da Redenção para a
celebração dos 80 da UFRGS. Já havia ficado um tanto frustrado em 2010 quando, com minha mãe, fui á quadra do bloco Cordão da Bola Preta, no Rio de Janeiro, para uma feijoada em que tocaria a Velha Guarda da Portela, mas ele foi um dos ausentes. Na Redenção, no entanto, a alegria foi completa. Que momento histórico aquele! Lembro que foi uma
sexta-feira, em que Leocádia e eu saímos de nossos compromissos e rumamos
direto para o local do show, próximo ao espelho d’água. Com seu barítono em
dia, mesmo com os mesmos 80 anos da universidade que o convidara, o baluarte,
acompanhado das pastoras e de uma competente banda, fez sua escola do coração tomar
conta do parque com sambas clássicos de sua autoria e de outros bambas como ele
tanto da Portela quanto de outras agremiações.
Aliás, abrindo um parêntese aqui: igual a ele, talvez não
tenha existido. Hildemar Diniz cruzou praticamente todos os momentos
importantes nos últimos 70 anos do samba carioca e da Portela, agremiação da qual
tinha apenas 10 anos menos. Monarco conviveu e cambiou com os principais nomes
da sua comunidade e do samba carioca: Paulo da Portela, Silas de Oliveira, Candeia,
Natal, Cartola, Manacéia, Nelson Sargento, Martinho da Vila, Beth Carvalho, Paulinho da Viola,
Tia Vicentina, Dona Ivone Lara, Casquinha, Áurea Maria, Surica entre tantos outros. Uma simbiose
que muitos não tiveram talento, nem perseverança e nem tempo de vida para
tanto. Presidente de Hora da escola, Monarco tinha mais do que somente um
título honorário mas sem propósito prático. Era quase como um cacique, um pai
de santo, um líder religioso, uma majestade cujo respeito foi conquistado durante a vida e a quem todos recorriam
para pedir-lhe a benção. A autoridade de um monarca do samba.
Mas voltando às minhas vezes com Monarco, a segunda em que o
vi bem de perto foi dois anos depois do show em Porto Alegre numa apresentação
no CCBB do Rio de Janeiro celebrando os 100 anos do samba, quando, além de
Leocádia, ainda tive o prazer da companhia de minha mãe, que, sempre antenada
na programação cultural carioca, nos levou àquele deleitoso momento que contava
também com a participação de Nei Lopes. O velho mas lúcido Monarco, então com apenas 18 anos menos que o próprio samba, não só
cantou como contou histórias, o que fazia com maestria tanto quanto seus
sambas, verdadeiras crônicas cotidianas.
Da discografia de Monarco, no entanto, “Terreiro”, seu segundo dos sete
solo, de 1980, é talvez o mais especial. Com os companheiros de Velha Guarda, mas
também outros craques como Mestre Marçal, Valdir 7 Cordas e o filho e parceiro
Mauro Diniz, o disco desfila em azul e branco sambas de todas as épocas invariavelmente
com a maestria de sua interpretação. Nas composições, as elegantes melodias de nuanças eruditas se
juntam às letras que namoram com a melhor poesia parnasiana de um “sambista-historiador”,
como definiu Sérgio Cabral. Dos temas do próprio Monarco tem “Homenagem À Velha
Guarda” (“Vi os sambistas de fato/ Manacéia e Lonato e outros mais/ Juro que
fiquei boquiaberto/ Nunca me senti tão perto/ Da Portela dos tempos atrás”), “Você
Pensa Que Eu Me Apaixonei” (com Alcides), “Proposta Amorosa” e a clássica “Passado
de Glória” (“A Mangueira de Cartola, velhos tempos do apogeu/ O Estácio de
Ismael, dizendo que o samba era seu/ Em Oswaldo Cruz, bem perto de Madureira/ Todos
só falavam Paulo Benjamin de Oliveira”), daquelas que não podem faltar em qualquer
apresentação da Velha Guarda.
No disco tem também espaço para outras escolas que não só a
Portela: “Silenciar a Mangueira”, numa interpretação inédita do amigo Cartola que
morreria naquele mesmo ano, e “Estácio de Sá Glória do Samba”, em que Monarco,
como era de sua natureza, deixa o clubismo de lado e homenageia uma das
comunidades fundadoras do carnaval carioca. Prevalecem, no entanto, as
composições de portelenses como ele. A linda “Chuva” (Hortêncio Rocha), a lírica
“Conselho de Vadio” (Alvarenga) e a ufanista “Feliz Eu Vivo no Morro”
(Josias/Pernambuco/Chatim). Tão bom quanto, o pot-pourri “Temporal” (Tia Doca), “Mulher
Vai Procurar Teu Dono” (Rufino), “Caco Velho” (Caetano), e “Serei Teu Ioiô”
(Paulo da Portela/Monarco) é uma mostra mais do que perfeita da grandiosidade
poética e melódica da turma de Madureira.
Fora isso, as audições, tantas e tantas. “Tudo Azul”, da Velha Guarda da Portela, de 1999, furei de tanto ouvir. E quantos sambas, quantas joias da nossa cultura! “Lenço”, “O Quitandeiro”, “Coração em Desalinho”, "Obrigado pelas Flores", “Portela Desde Que Eu Nasci”, “Ingratidão”, “Agora é Tarde”, “De Paulo a Paulinho”, “Pobre Passarinho”... Ah, tanta beleza, que se for falar mais de Monarco, hoje eu não vou terminar.
Ah, mas faltou falar da terceira ocasião em que me vi junto a
Monarco. Pois bem: embora mais longe fisicamente, foi a vez em que, curiosamente, tive-lhe
mais perto. No início de 2019, minha irmã Kaká Reis, produtora cultural,
trabalhava com o velho bamba e, por ideia de meu outro irmão e coeditor do blog, Cly Reis, arranjou-me
para meu programa Música da Cabeça, na Rádio Elétrica, uma entrevista com Monarco,
com quem ela estaria em São Paulo para um show. Kaká não apenas viabilizou a
conversa e a gravação como mediou a entrevista a partir das questões que
cuidadosamente elaborei. No camarim, horas antes de subir ao palco, Monarco,
com toda sua simpatia e sabedoria, prestou-lhe(me) uma entrevista deliciosa,
que marcou a centésima edição do meu programa. A se considerar que irmãos são
nós mesmos em outro corpo, posso dizer que estive, sim, com Monarco. Bem próximo,
a seu lado, falando com ele. A centímetros do coração. E ele – como sempre fez
através de sua obra grandiosa – falando comigo.
**************
Monarco
(1933-2021)
************** FAIXAS:
1. "Homenagem À Velha Guarda" (Monarco)
2.a. "Temporal" (Tia Doca)
2.b. "Mulher, Vai Procurar Teu Dono" (Rufino)
2.c. "Caco Velho" (Antonio Caitano)
2.d. "Serei Teu Ioiô" (Paulo da Portela/Monarco)
3. "Sofres Por Querer Liberdade" (Mijinha/Monarco)
4. "Estácio De Sá, Glória Do Samba (Monarco)
5. "Conselho De Vadio" (Alvarenga)
6. "Feliz Eu Vivo No Morro" (Chatim/Josias/Pernambuco)
7. "Silenciar A Mangueira" (Cartola) - Participação: Argemiro
8. "Você Pensa Que Eu Me Apaixonei" (Alcides Lopes/Monarco)
Lembro que nas primeiras aulas de redação da faculdade de Jornalismo, meu professor Vitor Necchi nos ressaltou que a regra para se chamar pessoas num texto jornalístico era ou o nome completo ou, nas repetições do mesmo, o sobrenome para homens e o primeiro nome para mulheres. A exceção à regra eram personalidades especiais, cujo nome diferenciava-se dos outros por si. Casos em que o nome representava mais do que simplesmente uma certidão, mas, sim, um status, uma classificação, uma imposição daquilo que a pessoa se transformara e representara em vida.
Alguns exemplos, rememoro, eram Mãe Menininha do Gantois, Dona Canô e Mestre Marçal. E Dona Yvone Lara. Aos 97 anos, recém completos no último 13, praticamente a mesma idade do gênero musical que ela ajudou a forjar e desenvolver harmônica e melodicamente, o samba, Dona Yvone parte. Corpo debilitado de quem, como todo preto do subúrbio da primeira metade do século XX (e ainda, mulher), precisou trabalhar duro a vida toda – no caso dela, a enfermagem e o serviço social, que exercera durante décadas até se aposentar, sem, contudo, nunca deixar a batucada de lado. Mas a mente lúcida, criativa, incansável. Diz que levou para o céu 40 composições novas.
Mesmo a idade avançada e a saúde fraca há anos não são suficientes para amenizar o vazio que se faz presente. Vazio que toma a quadra do Império Serrano, como uma cuíca chorosa que, de repente, para de chorar, substituída pelo silêncio. Ao menos hoje, é o que se sente. Ficam vagando, no lugar, as melodias elegantes de quem estudara com Heitor Villa-Lobos ,mas que, ao natural, instintivamente, já de antes das aulas com o maestro adicionava elementos bachianos ao samba. Quem haveria de contrariar ao ouvir “Mas Quem Disse Que Eu Te Esqueço”, “Confesso”, “A Sereia Guiomar”, “Aprendi a Sofrer”? Como ela, neste sentido, só Cartola.
Acordo sempre com alguma música na cabeça. Sei que havia uma das milhares que me ocorrem ao acordar hoje, mas não lembro mais qual. Ao saber da notícia da morte de D. Yvonne, imediatamente a esqueci, e minha mente (ou meu coração) escolheu para rodar “Força da Imaginação”, a luxuosa parceria dela com Caetano Veloso. Estão aqui seus acordes e seus versos, ainda agora, enquanto escrevo essas linhas de lamentação. Quero acreditar e acredito nos seus versos:
"Quando um poeta compõe mais um samba Ele funda outra cidade Lamentando a sua dor ele faz felicidade Força da imaginação Na forma da melodia Não escurece a razão E ilumina o dia-a-dia”
Parte, Dona Yvone, com a força da tua música, dos repiques
do samba, das melodias bachianas, da potência de fundar uma cidade. Parte com a
alcunha que poucos, pouquíssimos, tiveram e terão o merecimento de serem
redigidos fora do padrão. É pra quem pode.
Recebam-na com um pagode festivo aí, amigas Jovelina e
Clementina.
"Tristeza rolou dos meus olhos de um jeito que eu não queria".
Paciência.
Parte, Dona do Samba, com um sorriso e um abraço negro.
.........................
"Mas quem disse que eu te esqueço"- Dona Yvone Lara
Já é tradicional sempre que viemos ao Rio de Janeiro Leocádia e eu –
desta vez acompanhados por nossa hermana Carolina – assistirmos nos dois
primeiros dias de estada algum show musical com minha mãe, Iara. Ela, antenada
nas atividades culturais da cidade, invariavelmente nos leva a algum espetáculo
especial. Já foi assim com Jorge Ben Jor, em 2015, com Monarco e Nei Lopes, em
março deste ano, por exemplo. Desta feita, no dia em que pisamos os três na
Cidade Maravilhosa, minha mãe nos participa que Mart’nália se apresentaria de graça naquela tarde no Auditório do
BNDES, no Centro. Mesmo com chuva, fomos lá os quatro em busca de ingresso.
Oportunidade dessas em Porto Alegre é algo inimaginável, tanto pela qualidade
artística quanto pela gratuidade, uma vez que seria de 100 Reais para mais para
vermos a mesma coisa em nossa cidade.
Ingressos retirados, ajudamos a ocupar um lotado auditório, o qual
presenciou um show da mais alta qualidade técnica e artística. Som e iluminação
perfeitas e, o mais importante, uma apresentação digna dos maiores artistas
brasileiros da atualidade. Mart’nália é um espetáculo por si própria. Dona do
palco e totalmente entrosada com sua banda (Humberto Mirabelli, violão e
guitarra; Rodrigo Villa, baixo; Menino Brito, percussão e cavaquinho; Raoni
Ventepane, percussão; Macaco Branco, percussão; e Analimar Ventepane, percussão
e vocal), faz lembrar o pai Martinho da Vila, com quem se parece bastante fisicamente
e no gestual. Mas Mart’nália, musicista consagrada e original, não é apenas uma
cópia dele. Vê-se nela a música pop, a modernidade do rap, o swing da soul, a
urbanidade do funk carioca, a tradição dos sambistas anteriores a Martinho, as
mulheres bambas, como D. Ivone Lara e Jovelina Pérola Negra. Uma artista
completa que respira música e que, com alegria e malandragem, transmite isso no
palco.
A carismática e talentosa Mart'nália interagindo com o público
O repertório, dedicado aos 100 anos do samba, começa com a prece
sambística “Peço a Deus”. Entretanto, o show não trouxe apenas o ritmo mais
brasileiro de todos. Tinha, em perfeita mistura, os ritmos da música pop, como
o funk, o reggae e outros ritmos que Mart’nália introduz com uma naturalidade
tocante. Assim foi com “Tava por aí” e “Pretinhosidade”, duas dela e de Mombaça,
“Cabide”, seu grande sucesso, de autoria de Ana Carolina, “Namora comigo”, de Paulinho
Moska, e a linda “Ela é minha cara”, feita especialmente por Ronaldo Bastos e
Celso Fonseca a ela. Nessa mesma linha, a belíssima “Pé do meu samba”, escrita
por Caetano Veloso, de quem Mart’nália tocou também a graciosa “Gatas
extraordinárias”, conhecida na voz de Cássia Eller e que Mart’nália não se
atreve a meramente copiar, haja visto que sua versão lembra a original mas
traz-lhe toques de samba-reggae.
A segunda metade do show foi dedicada às raízes de Mart’nália, ou seja,
os sambas que cresceu ouvindo nas quadras da Vila Isabel e nos pagodes da vida.
A começar pela diva do samba, D. Ivone, de quem emendou três clássicos,
começando pela linda “Mas quem disse que eu te esqueço”, que muito me
emocionou, “Acreditar” e o sucesso “Sorriso Negro”. Veio uma de Benito di
Paula, “Que beleza”, e outra altamente emocionante do show: “Pra que chorar”,
de Vinicius de Moraes e Baden Powell, numa versão delicada e cheia de
musicalidade. A sensibilidade musical de Mart’nália, que canta e toca vários
instrumentos de percussão com impressionante naturalidade, prossegue com um
arranjo precioso de dois clássicos do mais célebre compositor de Vila Isabel,
Noel Rosa: “Feitiço da Vila” e “Com que roupa”.
Se o assunto era samba e Vila Isabel, então, era hora de puxar aquilo
que trouxe “de casa”, como ela mesma referiu. Ela emenda pout-pourri com seis clássicos de seu pai, começando por “Casa de
bamba” (“Lá na minha casa todo mundo é
bamba/ Todo mundo bebe, todo mundo samba”), passando por “Mulheres”, “Canta
Canta, Minha Gente” e uma engraçada performance de “Nhem nhem nhem”, na qual
Mart’nália gesticula como se estivesse sendo perseguida pela esposa dentro de
casa (“Toda vez que eu chego/ Em casa
você vem/ Com nhem, nhem, nhem/ Se eu vou pro quarto/ Você vai/ Volto pra sala/
Você vem/ Nos meus ouvidos, perturbando/ Nhem, nhem, nhem/ Nhem, nhem, nhem”).
Fechando a roda de samba, outro hit de Martinho: “Madalena”. O desfecho foi com
“Chega”, mais uma dela com Mombaça, canção muito querida do público.
Não tinha exatamente ideia do que ia encontrar num show de Mart’nália.
Embora as notícias davam conta de que sua presença de palco e seu carisma
cativavam o público, tive uma surpresa muito positiva. É muito bonito ver um
artista genuíno no palco, com entrega e amor pelo que faz. No caso dela, como
já mencionei, isso se junta à total musicalidade e bom gosto. Valeu, enfim,
mais uma empreitada idealizada por minha mãe. Que venham os próximos shows de recepção
no Rio, pois este foi mais um dos especiais.
Deve haver algum mistério divinal guardado
no nome Ivone que faz com que algumas delas, Ivones, sejam iluminadas. Só pode!
Pois se não bastasse dona Ivone Lara, a sambista bachiana da MPB, eis que tenho
a honra de conhecer e ver tocando a também dona Ivone, esta de sobrenome
Pacheco, intitulada como a Diva do Jazz de Porto Alegre. As semelhanças entre
as duas não se encerram aí: longevas (ambas ultrapassam as 80 primaveras), ainda
são mestres na música e, acima de tudo, verdadeiras entidades, pessoas que ao
se olhar se percebe que excedem este plano aqui, de nós mortais. Há uma
espiritualidade que as eleva e que, justamente, conseguem transpor em arte.
Foi um pouco disso que vi durante o
encontro do Club de Jazz Take Five no último dia 18 de abril, data em que o
clube completou 30 anos. Promovido por d. Ivone, o Take Five teve início quando ela se
juntou ao músico Marcos Ungareti (que, claro, estava lá na comemoração). Na
época, as performances musicais de d. Ivone se restringiam às festas da família. Só depois de criar os filhos,
cursar a faculdade de música e lecionar, Lady Ivone teve a ideia de fazer as jams
sessions no porão de sua casa. Foi então que tudo começou.
Grupo tocando Hancock, um dos
pontos altos da noite
O ambiente é totalmente mágico, misto de
clube de jazz nova-iorquino ou parisiense com loja de antiguidades. Um
espetáculo. Diversos quadros, espelhos, capas de disco, móveis antigos, objetos,
tecidos, pôsters que vão de Charlie Parker ao de Humphrey Bogart e, claro, o
piano. Pouca luz; suficiente. Cheiro de magia no ar. Pessoas felizes que te
sorriem sem saber quem tu és: o fazem só pela simples alegria de estar
compartilhando aquilo ali seja com quem for. Tomado por essa atmosfera, escutei
números de jazz tocados com muita emoção. Teve “Summertime”, “Hello, Dolly” e uma
versão de “Ins’t She Lovely” do Stevie Wonder com a mesma banda que tocou uma outra
que me tirou do chão: “Cantaloupe Island”, do Hancock. Uau!
"Summertime"
O pessoal do
rockabilly
Como funciona em rodízio de
bandas/artistas, cada um vai lá ao palco e manda ver algumas músicas. Numa
dessas trocas, um simpático trio de rockabilly se apresentou, tocando coisas bem
legais, como “Summertime Blues” (Eddie Cochran) e “Can´t Help Falling In Love”,
clássico imortalizado por Elvis Presley, em que todo mundo entoou o refrão.
D. Ivone e Ramiro Kersting tocando
"As Time Goes By"
Mas o melhor desta noite onírica não podia
vir de uma pessoa: d. Ivone. Ao piano, ela, numa concentração astral, emanou
com extrema delicadeza e sensibilidade peças emocionantes. Lembrava a fineza
dos dedilhados de Paul Bley, Toshiko Akyioshi, Bill Evans, Sonny Clark. Mas antes
de qualquer coisa era Ivone Pacheco. Como se não bastasse, juntou-se a ela o
trompetistaRamiro Kersting,
e ali se deu algo realmente mágico. Sem trocar uma palavra, mas em total
sincronia, presentearam o público com pérolas como “As Time Goes By” e “When The Saints Go Marchin' In”, para ficar em dois ótimos
exemplos.
Amante de jazz como sou, confesso que não
sabia da existência de um grupo tão antigo na minha própria cidade e em plena
atividade e, principalmente, do quão secreto é o evento. Entre as regras que regem
o clube, como o caráter não-comercial e o fato de todos levarem sua própria
bebida, o endereço é mantido em sigilo: só vai quem sabe ou se conhece alguém
que já foi – situação na qual me enquadro. Um critério seletivo que todos respeitam e que só faz valorizar o
clube, além de lhe dar ainda um charme especial.
Foi um momento de se respirar jazz, de se
inalar a “música da alma”. De se sentir música. Saí de lá com uma certeza: na
próxima encarnação, quererei vir Ivone.
Dona Ivone ao piano - comemoração dos 30 anos do Take Five
Um pouco mais sobre o Take Five
Take Five: casa que completa
30 anos
Sexto Take: Eu, totalmente intergrado
na atmosfera do clube
Depois de pôr em
funcionamento o Take Five, em 1982, Ivone Pacheco começou a se apresentar em
bares e fazer shows em Porto Alegre, interior gaúcho e até em outros estados e
fora do Brasil, tocando em ruas, metrôs e pubs. No início, as reuniões do Club
de Jazz eram semanais. Nos anos 90, auge do Take Five, os encontros passaram a
ser mensais, pois o local começou a lotar e perder um pouco sua essência. Ivone
Pacheco sempre incentivou novos e conhecidos artistas a se apresentarem naquele
espaço.Muitas bandas se formaram lá durante os encontros, que avançavam até as
altas horas da madrugada. Já passaram pelo palco bandas como a Tradicional Jazz
Band que, quando vinham se apresentar em Porto Alegre, faziam questão de tocar
no "porão da Ivone". Hoje, as reuniões do Take Five são realizadas
apenas em datas especiais quatro vezes por ano: o aniversário do clube, a noite
de São João, a chegada da primavera e a festa de encerramento com o Natal.