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quinta-feira, 30 de novembro de 2023

"Bom Dia, Manhã - Poemas", de Grande Othelo - Ed. Topbooks (1993)




"Grande Othelo foi um imenso brasileiro, um dos maiores de todos os tempos: ator, músico, cantor, apresentador de televisão, grande do teatro e do cinema, gênio nascido no ventre mestiço do Brasil. Tão gênio brasileiro quanto Oscar Niemeyer, Carlos Drummond de Andrade e Pelé."
Jorge Amado

"O autor por excelência do Brasil."
José Olinto

Há determinados artistas brasileiros que deixam um vácuo quando morrem. Aqueles que vão inesperadamente como foi com Elis Regina, Chico Science, Raphael Rabello, Cássia Eller e, mais recentemente, com Gal Costa. Eles provocam essa sensação de um buraco que se abre e que nunca mais será preenchido. Tanto quanto aqueles que, comum mais antigamente, despediam-se com menos idade do que seria normal à atual expectativa de vida, casos de Tom Jobim (67), Emílio Santiago (66), Mussum (53) e Tim Maia (55). 

Sebastião Bernardes de Souza Prata, o Grande Othelo é um desses vazios. Aliás, fazem 30 anos deste vazio, tão grande que parece contradizer com a diminuta estatura deste homem de apenas 1m50cm de altura. Mesmo que menos prematuro como os já citados (morreu aos 78 anos), sua vida marcada pela infância dura e pela vida adulta boêmia, não o poupou de roubar-lhe, quiçá, uma década cheia. Mas o que este brasileiro deixou como legado se reflete (ao contrário dos citados acima, músicos por natureza) em mais de um campo artístico. Grande Othelo foi um gênio na arte de atuar, mas deixou marcas indeléveis na música popular e na poesia.

"Bom Dia, Manhã" cristaliza essa magnitude de Grande Othelo, o homem das palavras, sejam as da dramaturgia, as dos sambas ou as dos poemas. Lançado em 1993 e com organização de Luiz Carlos Prestes Filho, o livro reúne um bom compêndio de mais de 100 textos poéticos do artista que eternizou em seu nome o ícone shakesperiano. Não haveria o livro, por óbvio, ser menos do que isso. Com sua inteligência incomum e fluência natural de escrita, Grande Othelo alterna da mais singela confissão existencial ao romantismo sentimental, a malandragem e a alta literatura, os sambas e o parnasianismo, passando pelas homenagens aos amigos e as observâncias da vida e das mazelas do mundo. Tudo numa linguagem de "puras palavras", como definiu o escritor José Olinto, sem cerebralismos e dotados de cadências existenciais.

Em “Nada”, o poeta escreve: “Na saga das tuas solidões/ Vão surgindo outras/ Em outros corações”. A compreensão do amor “desromantizado” de “Homem e Mulher” é também digna de escrita, assim como “Estrada”, que narra o descompasso de um homem velho e uma mulher mais jovem. Os sambas, no entanto, são uma delícia à parte. Como os que coescreveu com Herivelto Martins  “Fala Claudionor” ou o clássico “Bom dia Avenida”, de 1944, feito quando a Prefeitura do Rio de Janeiro resolveu acabar com o Carnaval na referencial Praça Onze, a Sapucaí do início do século XX: “Vão acabar com a Praça Onze/ Não vai haver mais escola de samba/ Não vai/ Chora tamborim/ Chora o morro inteiro”. Mas há ainda o samba-fantasia “Penha Circular”, o samba-crônica “Rio, Zona Oeste”, o samba inacabado “A boemia cantou”, o samba não-cantado por Elizeth Cardoso “Ao som de um violão”.

Representativo da raça negra em uma época de inúmeras dificuldades para o exercício deste ativismo, Grande Othelo mesmo assim posiciona-se por meio de suas palavras. Semelhante ao que ocorrera com outro ícone preto made in Brazil, Pelé, Othelo (que bem pode ser considerado um Pelé dos palcos, pois possivelmente o maior da sua área) bastava existir para representar resistência. Mas faz mais. “Sou no momento que passa/ A expressão mais forte/ De uma raça”, escreveu em “Neste momento: eu!”. Leu, com o olhar de menino sábio, a lenda gaúcha do Negrinho do Pastoreio, que ele mesmo representou no cinema em 1973, dirigido pelo tradicionalista Nico Fagundes:

“O negrinho descerá e subirá cañadas
Em correrias desenfreadas...
Beberá a água das sangas
E sempre sozinho, pois ninguém o vê.
Mas quando voltar há de trazer
A felicidade procurada por você.”

Não é uma delicadeza de apreciação? Estas e muitas mais delicadezas estão em "Bom Dia, Manhã", cuja leitura se dá com o prazer de quem ouve um samba, de quem lê uma crônica, de quem reflexiona a própria condição humana. É difícil imaginar o que Grande Othelo teria feito se tivesse vivido, quem sabe, mais 10 anos – nada alarmante nos tempos de hoje em que senhores da faixa dos 87-88 anos são Tom Zé ou Roberto Menescal, ativos e joviais. Mas é impossível não sentir falta dele vivo, aqui presente. Pensar que aquele Macunaíma, aquele Espírito de Luz, aquele parceiro de Carmen Miranda, aquele Cachaça, aquele farol do povo brasileiro não está mais é reconhecer o vazio que isso provoca. Um vazio grande, como o que este pequeno Othelo carregava no nome.

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Trio de Ouro 


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 24 de julho de 2023

Emílio Santiago & João Donato - “Emílio Santiago Encontra João Donato” (2003)

 

“João Donato é o maior músico do Brasil”
Tom Jobim

"Emílio Santiago é a voz do Brasil"
Roberto Menescal 


Não é errado dizer que “Emílio Santiago Encontra João Donato” reúne os dois maiores músicos brasileiros de todos os tempos. Foi Tom Jobim quem, do alto de sua autoridade de Maestro Soberano, disse isso de João Donato. Já sobre Emílio Santiago, não apenas amigos e parceiros do calibre de Roberto Menescal como até a ciência comprovam tal teoria. Conforme análises técnicas de sua voz por fonoaudiólogos, o cantor, por razões anatômicas e físicas, tinha a voz mais "perfeita" do Brasil. Se existem controvérsias ou subjetividades para ambas as avaliações, há de se considerar também que são muito respeitáveis. Independentemente se são realmente os melhores, o fato é que Donato, compositor, arranjador e multi-instrumentista, junto com Emílio, o intérprete favorito dos colegas, só podia resultar em um primor.

Realizado em 2003, 10 anos antes da morte prematura de Emílio, aos 67, e 20 da do mais longevo Donato, recém-falecido aos 88, o disco que reúne estes dois talentos incontestes é um presente deixado por ambos para a posteridade. A modernidade das melodias e harmonias de Donato, que hibridizou a essência da bossa-nova ao jazz latino através do toque sincopado do piano, ganha, aqui, o revestimento ideal na voz de Emílio. A sintonia, aliás, vem de muito tempo. No primeiro disco do cantor carioca, de 1975, é Donato que arranja e toca piano em boa parte, fora a autoria de “Bananeira”, esta última, inclusive, o tema que abre aquele álbum. Ou seja: Donato está na trajetória musical de Emílio desde o começo. Depois disso, nunca se perderam de vista. Emílio gravou o amigo acreano várias vezes, entre elas em 1977, no disco “Comigo É Assim”, chamando-o para arranjar e tocar “Nega”, ou para participações especiais no DVD “De um Jeito Diferente”, de 2007. 

O esmero de “Emílio Santiago Encontra João Donato” já começa pelo repertório: 14 temas de autoria de Donato. Sejam somente dele ou com parceiros da mais alta classe da MPB, de certa forma funcionam como uma amostra da trajetória compositiva de Donato ao longo daqueles então 54 anos de carreira. Caso de “Vento No Canavial”, que abre o álbum entregando já de pronto tudo aquilo que este se propõe. Dando a largada, um rico arranjo de metais característico de Donato, tomado de bom gosto na escolha das notas e alternâncias entre os sopros. A fineza sem igual da voz de Emílio, na sequência, entra para cantar os versos do irmão e corrente parceiro musical de Donato, Lysias Ênio: “Vento no canavial/ Sopra uma saudade assim/ Vento que vem me contar/ Que você não gosta mais de mim”. O toque do piano de Donato, algo sambado e caribenho ao mesmo tempo, também é uma marca inconfundível.

“E Vamos Lá”, de Donato e Joyce Moreno, sensualiza uma rumba que faz Emílio subir ao palco para gingar com a voz, brincando com modulações e tempos, o que fazia com maestria. Já em “E Muito Mais”, outro clássico de Donato e Ênio, vem novamente forte o latin jazz muito bem aprendido por Donato dos tempos de Estados Unidos e na convivência com músicos como Mongo Santamaría, Tito Puente e Bud Shank. O casamento harmonioso do toque do piano com o dos metais é pura classe, sem falar na adequação do vocal de Emílio, simplesmente perfeito.  

O bolero romântico “Nunca Mais” dá uma diminuída no ritmo da música, mas não do coração. Que beleza esta parceria de Donato com Arnaldo Antunes e Marisa Monte, top 5 entre as canções de autoria da carreira dos três. Feita para a voz de Marisa, que a gravou um ano antes em “Managarroba”, de Donato, aqui é Emílio, no entanto, que rouba para si a música. Mais duas da dupla Donato e Ênio: o irresistível cha-cha-cha “Então Que Tal”, rumbado e apaixonado; e o clássico “Até Quem Sabe”, faixa do célebre disco de Donato “Quem é Quem”, de 1972, quando se ouviu pela primeira vez a voz doce e pequena do autor numa gravação. Aqui, no entanto, não precisa, pois Emílio, senhor dos microfones, dá o devido tom a esta triste canção de despedida (“Até um dia, até talvez/ Até quem sabe/ Até você sem fantasia/ Sem mais saudade”).

Outro clássico do cancioneiro de Donato diversas vezes revisitado por ele é “Sambolero”, cuja original, somente instrumental, data de 1965. Noutro patamar, contudo, a letra de Carmen Costa, incluída nos anos 90, ganha o aveludado do vocal de Emílio, que desvela os versos no gogó: “Quero voltar/ A ver meu céu/ A ver meu sol, minhas estrelas a brilhar”. Já em “Everyday (A Little Love)”, num inglês perfeito, o cantor faz revelar um jazz ainda mais classudo e Broadway, desta vez acompanhando apenas o piano de Donato. 

Para “Os Caminhos” (com Abel Silva), Donato põe novamente os lindos arranjos de sopros atuando no ponto médio da arquitetura sonora, a qual é tão sofisticada e equilibrada formalmente, que dá liberdade para os músicos efetuarem sutis variações sem saírem da escala. Mesma observação para outras duas com Ênio: a animada “Pelo Avesso”, misto de Havana e Zona rural do Rio de Janeiro, e “Mentiras”, mais uma de “Quem é Quem”. Porém, se naquela ocasião quem a canta é Nana Caymmi num samba-canção melancólico, nesta nova versão Donato põe Emílio para deslizar sua vocalidade sobre um suingue funkeado semelhante aos do colega Arthur Verocai, outro craque dos arranjos na música brasileira.

Igual ao que Caetano Veloso fez quando escreveu e tocou “Surpresa” com Donato para seu “Cores Nomes”, em 1982, Emílio canta-a também somente sobre as notas salpicadas do teclado. A letra, pequena e sensual, diz assim: “Que surpresa/ Beleza/ Luz acesa/ Certeza/ Que saudade/ Verdade/ Já chegou/ Então/ Vem cá”. Se na primeira havia o timbre límpido do baiano, agora ganha-se na carga interpretativa de Emílio. 

Quase fechando, outros duas de Donato com parceiros. Primeiro, noutra com Arnaldo na não menos malemolente e a mais recente do repertório “Clorofila Do Sol (Planta)”. Mas claro, não podia faltar ele, que ficou para o gran finale: Gilberto Gil, aquele com quem Donato escreveu algumas de suas mais célebres canções, como “Emoriô”, “Ê Menina” e a própria “Bananeira”, o pontapé inicial da carreira de Emílio nos anos 70. Neste disco, porém, a escolhida foi outra clássica, e que não podia ser escolha melhor: “A Paz”. Emílio, que já havia capturado para si “Nunca Mais”, impõe novamente a mesma autoridade, dando à “Leila IV” – título da original da música, de 1986, quando ainda não havia ganhado letra de Gil e mudado de nome – a dimensão exata do intérprete: emocional, técnica, sensível. Perfeita. 

Que se trata do melhor disco brasileiro de todos os tempos, talvez seria exagero dizer. Mas que este trabalho marca o encontro de dois ases raros e irrecuperáveis, não o que negar. Completando 20 anos deste lançamento e 10 da morte de Emílio, a recente despedida de Donato faz evidenciar o quanto a música brasileira perdeu em riqueza nestas últimas duas décadas, seja na composição e instrumentalização, no seu caso, quanto na interpretação em relação ao colega. “Emílio Santiago Encontra João Donato” é, acima de tudo, um exemplar lapidado de onde a MPB chegou em termos de sonoridade, estética e inspiração. Como dizem os versos da canção, sem semear fantasia ou melancolia, o fato é que “nunca mais” haverá uma comunhão assim, de tamanho talento e representatividade. Nunca mais, nunca mais, nunca mais.

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FAIXAS:
1. “Vento No Canavial” (João Donato, Lysias Ênio) - 2:41
2. “E Vamos Lá” (Joyce, Donato) - 2:57
3. “E Muito Mais” (Donato, Ênio) - 2:52
4. “Nunca Mais” (Arnaldo Antunes, Marisa Monte, Donato) - 3:53
5. “Então Que Tal” (Donato, Ênio) - 4:03
6. “Até Quem Sabe” (Donato, Ênio) - 3:09
7. “Sambolero” (Carmen Costa, Donato) - 3:15
8. “Everyday” (Donato, Norman Gimbel) - 3:04
9. “Os Caminhos” (Abel Silva, Donato) - 3:42
10. “Pelo Avesso” (Donato, Ênio) - 2:53
11. “Mentiras” (Donato, Ênio) - 4:00
12. “Surpresa” (Caetano Veloso, Donato) - 2:14
13. “Clorofila Do Sol (Planta)” (Antunes, Donato) - 3:10
14. “A Paz” (Gilberto Gil, Donato) - 4:11



Daniel Rodrigues

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Chico Buarque - "Vida" (1980)

O disco de uma vida



 

“Vida, minha vida/ Olha o que é que eu fiz?”
Versos iniciais da música “Vida”

“- Parecia que aquele disco branco marcava já um Chico mais sereno...
- Já vejo diferente. Vejo um disco bastante angustiado. Se a gente continuar dividindo o trabalho, você vai ter, desde ‘Construção’ até ‘Meus Caros Amigos’, toda uma criação condicionada ao país em que eu vivi. Tem referências a isso o tempo todo. Existe alguma coisa de abafado, pode ser chamado de protesto.”
Entrevista de Chico Buarque à Rádio Eldorado, em 1989

No final dos anos 90, Porto Alegre presenciou um encontro histórico e inédito na Casa de Cultura Mario Quintana de duas figuras icônicas da cultura brasileira: Luis Fernando Verissimo e Chico Buarque. Mais do que as falas inteligentes e bem humoradas vindas de ambos, no enquanto, uma imagem captada pelas câmeras que registravam o bate-papo entre o gaúcho e o carioca ficou marcada em minha memória já que eu, igual a milhares de outros porto-alegrenses menos afortunados, contentava-me em assistir pela televisão por não poder estar presente devido à rápida lotação do evento preenchida dias antes. A imagem era a de um espectador da plateia, que carregava em seu colo um LP de Chico. Com a capa um tanto surrada pelos anos de fabricação e, certamente, constante uso na vitrola de sua casa, era com ela que iria enfrentar uma quilométrica fila após o evento para ganhar um autógrafo do autor. 

Não sei se conseguiu os valiosos garranchos, mas este moço, um homem de uns 30 e poucos anos, ouvia compenetrado a conversa daqueles dois geniais artistas, concentração esta que fazia com que a expressão do seu rosto se assemelhasse com a da capa do disco que portava como uma relíquia: um primeiro plano em tom sépia-esverdeado sobre um árido fundo branco do rosto de um Chico Buarque maduro, na faixa dos 40 anos, com o olhar igualmente sério e penetrante desenhado pelas mãos habilidosas de Elifas Andreato. Aquele lance fortuito em meio a uma atração infinitas vezes mais importante formava, contudo, uma duplicidade bastante simbólica para aquela situação. O jeito como o rapaz segurava o disco, com as duas mãos, com tamanha devoção e carinho, como que a um filho, como se realmente carregasse uma vida consigo, dava a dimensão da significância do encontro, da existência daqueles dois imortais e da obra de Chico. Da importância sentimental do referido disco para aquele fã e para outros igualmente a ele que ali estavam ou não. Quer dizer, meu caso.

O long play em questão completa 40 anos de lançamento neste conturbado 2020, e ouvi-lo hoje, como em todas as inúmeras vezes que o fiz ao longo dessas quatro décadas - tal como aquele rapaz com o qual me identifiquei -, redimensionam sua simbologia, sua importância, sua contundência. Não foi sem querer que Chico escolhera, em 1980, chamá-lo de “Vida”. 19º álbum de carreira do cantor, compositor, dramaturgo e escritor, é também o primeiro no qual ele pode, minimamente, falar sobre si e sobre os irmãos sufocados pelas ditaduras que assolavam a América naqueles idos ainda mais conturbados do que hoje. Chico vinha de anos de uma ferrenha perseguição pelos militares, com peças de teatro empasteladas, apresentações sabotadas, letras censuradas e projetos cancelados, o que prejudicava sobremaneira a concepção de qualquer obra por inteiro que intentasse. Foi assim durante todo os anos 70, a ponto de inviabilizar totalmente um disco de própria autoria havia uns 4 anos. O álbum de versões “Sinal Fechado”, de 1974, de título nada desavisado, e o “Disco da Samabaia”, de 1978, uma coletânea de sobras de alguém que não conseguia completar um repertório novo, são a materialização do mais próximo do possível de um artista que queria trabalhar. Mas não só: queria também a liberdade sequestrada.

Mas eis que chega a roda-viva e carrega o destino pra lá. Vladimir Herzog e Stuart Angel são assassinados pela polícia, celebra-se a missa ecumênica na Sé, a corrupção começa a corroer o Estado, a crise do petróleo afeta a economia mundial, dentre outros diversos fatores. Tudo isso faz com que o desgastado governo militar sinta a necessidade de afrouxar as mordaças. E para quem vinha de uma quase total censura, a Lei da Anistia, de 1978, era suficiente pra se celebrar. É neste impulso de renovação das esperanças democráticas que Chico decide exaltar a existência nesta obra em homenagem – mas também, em revisão – à sua própria e a de todos os brasileiros. Um disco que versa sobre o tempo, do começo ao fim. Um disco sobre vidas.

Detalhe da contracapa
do disco: a identidade
das digitais e da 3x4
de quando foi preso na 
adolescência, que lembra
as fotos de presos
políticos da Ditadura
A proposta é inequívoca, tanto que é ela, a memorável faixa-título, uma de suas melhores em todos os tempos, que abre o disco. Crítica e autocrítica, “Vida” já seria um marco na carreira de Chico pela inerente simbologia. Mas a canção, em letra e música, vai além. A melodia, num ritmo rumbado, é densa mas absolutamente sensível. Arranjada por Francis Hime, que lhe impõe uma orquestração dramática e ares melancólicos com o trompete de Maurílio nos primeiros acordes, tem ainda o violão erudito de Arthur Verocai e uma intensa percussão comandada por Chico Batera, que se exalta conforme o decorrer – conforme a “vida” passa. Já a letra é de uma honestidade e consciência tocantes, poucas vezes atingida na tão rica música brasileira: "Vida, minha vida/ Olha o que é que eu fiz/ Deixei a fatia/ Mais doce da vida/ Na mesa dos homens/ De vida vazia/ Mas, vida, ali/ Quem sabe, eu fui feliz”. Chico, amadurecido e fortalecido, questiona-se, e não apenas defende-se ou lamenta. 

O uso das metáforas relativas ao “mar” (“barco”, “cais”, “vela”) e ao “palco” (“cortinas”, “luz”) deixa clara a virada de pagina na biografia de Chico, em pleno curso de escrita – como, aliás, é a vida. “Infinitas cortinas com palcos atrás”. O futuro incerto, o destino a se perseguir. O artista que passou pelo autoexílio, o jovem bonito revelado nos festivais, o genial letrista, o herdeiro intelectual dos Buarque de Hollanda, o boleiro, o homem do teatro e do cinema, o parceiro de Tom e de Vinicius, o Julinho da Adelaide, o malandro, o pensador de voz política... Chico tornara-se definitivamente, pela força das vidas e das mortes, as verídicas e as simbólicas, um artista adulto, que deixava para trás todos estes Franciscos, mas abarcando-os como experiência vivida. É o que dizem os versos da canção: “Toquei na ferida/ Nos nervos, nos fios/ Nos olhos dos homens/ De olhos sombrios/ Mas, vida, ali/ Eu sei que fui feliz.”. A mínima permissão política faz com que Chico se permita "tocar nas feridas", denunciando do jeito que dava as barbáries promovidas pela ditadura ao fazer referência às torturas (feridas, nervos, fios, olhos). 

Os acordes finais de “Vida” dão este alerta tenebroso. Inconclusos e em tom grave, deixam uma angustiante sensação de que o pior ainda não havia acabado. Afinal, o retorno à liberdade seria “lento e gradual”, como anunciava a Anistia. Levaria ainda quase uma década para o Brasil se ver livre dos milicos no poder, e esse cenário fazia com que continuasse sendo difícil para o autor de “A Banda” compor um álbum autoral sem percalços. O jeito era fazer como vinha procedendo havia alguns trabalhos: se não tinha condições de montar um repertório completamente novo, a solução era aproveitar sua versatilidade e pescar aqui e ali composições espalhadas em outros projetos, como para o cinema e teatro, ou feitas para os amigos. E o mais incrível disso é que, assim como foi com “Meus Caros Amigos”, de 1976, onde teve de se valer de tal expediente, o resultado final é excelente. Dos 12 números de “Vida”, quase 100% têm origem anterior ou análoga ao disco. 

O artista em 1980,
 fotografado por Thereza
Eugenia: maturidade
A própria faixa-título é extraída da peça “Geni”, situação igual à canção seguinte, a sensível e melodiosa “Mar e Lua”. Como classifica o jornalista Márcio Pinheiro, a “melhor música sobre suicídio duplo da música brasileira”, narra de forma altamente poética o trágico destino de duas mulheres amantes cujo amor não é admitido“naquela cidade distante do mar” e que “não tem luar”. Chico falando de uma relação homossexual novamente, como já o tinha feito na censurada “Bárbara”, da trilha da peça “Calabar”, de 1973, cujo sulco dos vinis havia sido literalmente riscado pela censura no momento em que se pronunciavam os versos “de nós duas”... Agora, conquistava o direito de falar com todas as letras sobre um tema tabu sem cortarem-lhe violentamente a fala. Mais uma pequena vitória de uma democracia clamante.

Igualmente, na linha de reaproveitamentos, “Bastidores”, imortalizada na voz de Cauby Peixoto, o qual foi presenteado por Chico com a canção para seu álbum “Cauby Cauby Cauby”, daquele ano, e que se tornou o maior sucesso na carreira do tarimbado cantor. Chico, no entanto, mesmo sem o poderio vocal de Cauby, desempenha muito bem a própria criação, num samba-canção cadenciado e rascante. Impossível não fazer relação com a faixa inicial quando se ouve Chico cantar os famosos versos: “Chorei, chorei/ Até ficar com dó de mim”. Seria um momento de autocompaixão?

Das novas, destacam-se a bonita “Já Passou”, em que o hábil compositor harmoniza a extensa e cacofônica palavra “catatônico” com a maior naturalidade – assim como faria semelhantemente poucos anos mais tarde com outro vocábulo cabeludo, “paralelepípedo”, na emblemática “Vai Passar” –, e “Deixa a Menina”. Esta última, aliás, nem tão nova assim. É um samba em resposta a “Sem Compromisso”, de Geraldo Pereira, de 1956, que Chico havia cantado em seu último álbum de estúdio, “Sinal Fechado” - aquele em que, em protesto, decidira gravar apenas outros autores (inclusive, um tal de Julinho da Adelaide...). Aqui, Chico encarna o sambista malandro, mas com a classe composicional que lhe é peculiar num arranjo que inclui o clarinete de Botelho e o violão de Octávio Burnier. 

De um ano antes e ideada aos "caros amigos" da MPB4 para o indagador disco do quarteto vocal "Bons Tempos, Hein?!", “Fantasia” é mais uma pérola da então pequena safra recente by Chico Buarque. Se “Vida” havia iniciado o lado A do bolachão, esta, uma ode à liberdade individual e, em especial, aos trabalhadores do campo, traz versos que dizem muito sobre os Anos de Chumbo e a eterna necessidade de reforma agrária no Brasil: "Canta, canta uma esperança/ Canta, canta uma alegria/ Canta mais/ Trabalhando a terra/ Entornando o vinho/ Canta, canta, canta, canta”. Sem concessões, Chico expõe seu coração e admite sofrer, mas, assim como a música “Vida” propõe, acredita que a arte redima: “E se, de repente/ A gente não sentisse/ A dor que a gente finge/ E sente/ Se, de repente/ A gente distraísse/ O ferro do suplício/ Ao som de uma canção/ Então, eu te convidaria/ Pra uma fantasia/ Do meu violão”. O convite aberto é aceito por uma constelação de convidados que, literalmente, fazem coro com ele neste manifesto utópico: as manas Cristina Buarque e Miúcha, a sobrinha Bebel Gilberto, o ator Antônio Pedro, o parceiro italiano Sérgio Bardotti, os admiráveis músicos Danilo Caymmi e Markú Ribas, entre outros.

A romântica e triste “Eu te Amo”, em que divide os vocais com Telma Costa, nem parece mais uma reciclagem de quem padecia de pouco material. A luxuosa parceria com Tom Jobim (responsável pelo piano), “crème de la crème” da MPB capaz de legar obras como “Retrato em Branco e Preto” e “Olha, Maria”, não deixa perceber que se trata de uma encomenda do cineasta Arnaldo Jabor para a trilha sonora do filme de mesmo nome. E nem mesmo “De Todas as Maneiras” (dada a Maria Bethânia para seu Disco de Ouro "Álibi", de 1978) e “Qualquer Canção”, consideradas menores no cancioneiro de Chico, tão curtas que parecem vinhetas, passam longe de puxar para baixo a qualidade e a coesão do álbum. Afinal, ainda guardavam-se outras três obras-primas, a começar pelo semba “Morena de Angola”, prova de que Chico estava com a mão encantada se não para ele, para os outros. Igualmente escrita como presente, esta, para Clara Nunes, assim como “Bastidores”, também se transformou num grande sucesso e, assim como ocorreu com Cauby, virou um emblema da cantora mineira.

"Bye Bye, Brasil": marco do cinema
brasileiro genialmente traduzido em
música por Chico
Mais um rescaldo suntuoso: “Bye Bye Brasil”, canção que intitula o filme de Cacá Diegues, noutra contribuição para o cinema e para a filmografia do parceiro, tal como já o fizera em “Quando o Carnaval Chegar” (1972) e “Joana Francesa” (1973). Com maestria, Chico traça uma crônica do Brasil em fase de modernização com todas suas maravilhas e mazelas. Tal como num filme, a música (com coautoria de Roberto Menescal), lança diversos insights, às vezes, aparentemente desconexos, mas que dão condições de o ouvinte visualizar uma cena em que o cenário social, político e cultural são extremamente profundos. Desigualdade social, globalização, analfabetismo funcional, avanço da tecnologia, urbanização desenfreada, solidão e outros aspectos estão todos dispostos e interligados, dando destaque, principalmente, para a inexorável passagem do tempo. Seja na ligação telefônica, fadada a terminar conforme os minutos passam, seja na implacável ação da natureza, nada está sob o controle dos meros mortais. Tudo pertence ao destino. Quase terminando o disco, os versos “as fichas já vão terminar” se ligam imperiosamente ao clamor do tema-mãe do disco, “Vida”: “Arranca, vida/ Estufa, vela/ Me leva, leva/ Longe, longe/ Leva mais”.

Inteligentemente, Chico guarda para a estocada final mais um caso de reuso. “Vida” começava o álbum com uma reflexão na qual apontava a Ditadura como responsável por um caminho tão pedregoso (sem, contudo, abster-se), mas o engraçado baião “Não Sonho Mais”, feito para a trilha do filme “República dos Assassinos”, de Miguel Faria Jr., de 1979, e com a admirável flauta de Altamiro Carrilho, fecha-lhe o ciclo creditando a culpa, sim, aos opressores. Por isso, "engraçado" em termos, pois vai além da inocente brincadeira: trata-se, no fundo, de um desafiador recado aos militares. A história de uma esposa que, castigada pelo marido na vida real, relata-lhe um “sonho” em que ele é atacado impiedosamente pode ser facilmente entendida como uma revolta do povo contra o governo que lhe maltrata. “Vinha nego humilhado/ Vinha morto-vivo/ Vinha flagelado/ De tudo que é lado/ Vinha um bom motivo/ Pra te esfolar”. Detalhe: no sonho, ela estava entre os “esfoladores” que lhe rasgam “a carcaça”, descem-lhe “a ripa”, viram-lhe “as tripa” e comem-lhe os "ovo". “Tu, que foi tão valente/ Chorou pra gente/ Pediu piedade/ E olha que maldade/ Me deu vontade/ De gargalhar”, avisa ela sorrateiramente. Na linguagem chula, pode-se chamar de um “te liga!”.

"Vida" é mais que um disco: é o encontro das duas esferas que compõem a existência: a matéria e o espírito. Realidade e fantasia. Como um totem, suas músicas falam sobre dor e castigo nas mais variadas formas - do amor, da política, da sociedade, da força bruta. Não à toa a palavra "dó" aparece em três letras e "dor" em quatro, sem falar nos desdobramentos ("cravar as unhas", "toquei a ferida", "costas lanhadas", "ferro do suplício", "pediu piedade"). Referências a "sangue", igualmente, como as veias, o pulsar, o coração ou a própria expressão ou radical, ouvida em pelo menos três músicas: "Vida", "Eu te Amo" e "De Todas as Maneiras" - fora os outros sentidos figurados. Por outro lado, "Vida" é, ao mesmo tempo, uma obra de identidade. Aliás, como todo “álbum branco”, sendo este o que Chico intentou realizar e não o que foi obrigado como aconteceu anos antes quando, mais uma vez, a censura tolheu-lhe ao proibir a imagem da capa de seu “Calabar”, reintitulado como “Chicocanta” por força maior. "Vida", assim, é também sinônimo de resistência.

Hoje vendo o meu exemplar de “Vida”, tão surrado e usado como o do rapaz da plateia naquela longínqua tarde em Porto Alegre com Chico e Verissimo, fico imaginando o que ele, meu disco, já presenciou desse Brasil nas quatro décadas que se transcorreram desde que fora parido numa prensa industrial. As Diretas, a queda da ditadura, a redemocratização, duas Copas do Mundo, títulos e morte Senna, impeachments e golpes, Governo Lula, Brasil no Oscar, Lava-Jato, Fora Temer, Bolsonaro... Sim, porque aqueles olhos azuis da capa, mesmo que desenhados, enxergam! Permanentemente abertos, são testemunhas oculares da história recente deste Brasil que, como a vida, ainda está se construindo. Colcha de retalhos de alta qualidade, a feitura de "Vida" é quase milagrosa, tal outros discos célebres da música brasileira do período ditatorial como "Milagre dos Peixes", de Milton Nascimento, ou Gilberto Gil/68. Um milagre da "Vida", que, ao concebê-lo, Chico experencia o clássico dilema que ele próprio havia prenunciado: a gente quer ter voz ativa e no nosso destino mandar, mas eis que chega a roda-viva e carrega o destino pra lá. E não é assim a própria vida?

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Chico Buarque com Tom Jobim e Telma Costa - 
Vídeo de "Eu te Amo" (1980)

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FAIXAS:
1. "Vida" - 3:20
2."Mar e Lua" - 1:50
3."Deixe a Menina" - 2:53
4."Já Passou" - 1:50
5."Bastidores" - 2:27
6."Qualquer Canção" - 1:50
7."Fantasia" - 4:30
8."Eu Te Amo" (Chico Buarque/Tom Jobim) - 4:55
9."De Todas As Maneiras" - 1:50
10."Morena de Angola" - 3:15
11."Bye Bye Brasil" (Buarque/Roberto Menescau) - 4:40
12."Não Sonho Mais" - 3:45
Todas as composições de autoria de Chico Buarque, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:

Daniel Rodrigues

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Milton Nascimento & Criolo - "Existe Amor" (2020)



"Criolo é um dos artistas mais criativos com quem já convivi na vida. Conheço poucas pessoas que conseguem fazer letra e música do jeito que ele faz." 
Milton Nascimento

“Milton é um ser de luz. Isso não se explica, apenas, se sente.” 
Criolo

Milton Nascimento, além de ser um dos gênios vivos da música mundial, celebrado por gente do calibre de Wayne Shorter, Caetano Veloso, Elis Regina, Herbie Hancock e Esperanza Spalding, é conhecido pela generosidade. Tanto é que seus pares costumeiros, como Wagner Tiso ou Lô Borges, ou esporádicos, como Chico Buarque e Gilberto Gil, o elegem como o melhor parceiro para se escrever música. Generoso, porém, exigente. Não é qualquer um que coassina ou divide com ele o palco ou os microfones – quanto mais, autorias. Criolo, no entanto, está neste seleto time. Desde 2005, quando escreveram a primeira canção juntos, “Dez Anjos”, para o disco “Estratosférica”, de Gal Costa, o rapper paulista entrou para o panteão de compositores a comungarem arte com Bituca como os já citados Chico, Caetano e Gil, bem como os célebres Fernando Brant, Ronaldo Bastos, Lô e Márcio Borges e outros privilegiados. O EP “Existe Amor”, produzido por Daniel Ganjaman, deste ano, já chega com o peso de ratificar esse encontro de duas gerações como o mais representativo da MPB na década. Obra essencial para a sustentação da sanidade brasileira, sagazmente contradiz os versos do próprio Criolo para lançar um sopro de esperança e resistência em meio a um caos sanitário, político e econômico que vive o Brasil.

Encontro de gerações e de almas
O impacto é forte, o que não quer dizer que, para isso, tenha-se usado toda a tonelagem. Afinal, o experiente Milton sabe muito bem que tamanho não é documento. Afeito aos formatos mais enxutos de obras sonoras, mesmo tendo lançado uma série de álbuns extensos na carreira – como os duplos “Clube da Esquina I” e “II”, “Milagre dos Peixes – Ao Vivo” e “Txai” –, o mineiro nunca deixou de apostar em compactos e EP’s. Foi assim com o emblemático “Milton & Chico”, de 1977, que trazia apenas duas faixas, as obras-primas “O Sal da Terra” e “1º de Maio”, ou com o também marcante “RPM Milton”, de 1987, quando o experiente músico soube extrair da banda de Paulo Ricardo o melhor que esta guardava já em um período pré-dissolução. Agora, com Criolo, no entanto, o tratamento ganhou ainda maior requinte.

A começar pela sensibilidade inequívoca do pianista pernambucano Amaro Freitas, um dos maiores talentos da MPB/Jazz brasileira dos últimos anos, convidado para tocar e assinar o arranjo de duas das quatro do projeto: a clássica “Cais” (de Milton e Ronaldo, escrita em 1971) e a música a qual se tira sabiamente o controverso título, “Não Existe Amor em SP” (esta, de Criolo, do seu “Nó na Orelha”, de 2011). Amaro dá uma coloração que une nitidez e abstratismo, mas em tons introspectivos, oníricos, que reinventam canções já eternizadas no cancioneiro brasileiro. Mais do que regravações, tomam caráter de ressignificação, principalmente, “Não Existe...”, cuja mensagem deliberadamente crítica de Criolo à sociedade e ao mundo materialista é endossada pelo canto incomparável de Milton.

Não apenas estas duas, mas existe ainda mais amor em “Existe Amor”. Além das duas gravadas com o toque virtuoso de Amaro Freitas, o disco apresenta duas gravações feitas pelos artistas em 2018 com regência de Arthur Verocai, outra lenda da música brasileira, compositor, arranjador e maestro carioca presente em obras memoráveis da MPB como “Por que é Proibido Pisar na Grama”, de Jorge Ben (1971), e “Pra Aquietar”, de Luiz Melodia (1973), além de seus próprios trabalhos solo, considerados cult no Brasil e no exterior. Dessa safra, Milton e Criolo regravam com a fineza dos arranjos de Verocai a já citada “Dez Anjos” e “O Tambor”, esta, parceria dos dois últimos, originalmente registada no último álbum de Verocai, “No Voo do Urubu”, de 2016. Se com Criolo a relação é mais recente, com Milton os caminhos de Verocai se cruzaram já no final dos anos 60, quando participaram do movimento Músicanossa junto de outros compositores como Roberto Menescal e Marcos Valle. Ou seja: tudo em casa, conexões certas em todos os pontos. Outras duas preciosidades que, embora difiram do arranjo contemplativo e da textura pianística das primeiras, em nada destoam no conjunto da obra, formando um disco curto, mas 100% assertivo. Um novo clássico da música brasileira.

Além da qualidade musical, a reunião também tem méritos humanistas. A venda do EP pretende arrecadar projeto R$ 1 milhão para um projeto em conjunto com a agência AKQA e o Coala.Lab para ajudar pessoas durante a pandemia do Coronavírus. Milton, em depoimento sobre a atual situação do país e o desafio cidadão deste momento, falou: “E, diante desse cenário que se mostra cada dia mais absurdo, precisamos fazer a nossa parte, urgente.” O parceiro, por sua vez, engrossa o coro: “'Arte cria energia para a luta contra quem fomenta o mal”. Ao que depender dos dois, a chama da elaboração crítica fará com que os justos sobrevivam a tamanho obscurantismo e perversidade do Brasil atual. Ao contrário de todo o mar de negatividade que se impõem, eles nos dão um lugar - de fala e de escuta. Essa "SP" real e imaginária que representa a todos. A rebeldia, a não aceitação, a insubmissão como maior prova de amor. É a negação dos versos originais ("Não existe amor") como um chamado positivo de salvamento ("Existe Amor"). Por sorte, ele ainda existe em todas as “SP’s” simbólicas a que Milton e Criolo nos loteiam.

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FAIXAS:

1. "Cais" (Milton Nascimento/Ronaldo Bastos) - participação: Amaro Freitas - 6:03
2. "Dez Anjos" (Milton/Criolo) - 4:53
3. "Não Existe Amor em SP" (Criolo) - participação: Amaro Freitas - 5:48
4. "O Tambor" (Arthur Verocai/Criolo) - 3:25


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Vídeo de "Cais", com Milton Nascimento, Criolo e Amaro Freitas


Daniel Rodrigues


terça-feira, 19 de setembro de 2017

As minhas músicas preferidas de Chico Buarque (e as deles também)

Chico Paratodos os gostos

Por ocasião do recente lançamento do disco novo de Chico Buarque, “Caravanas” – o qual ainda não escutei integralmente, mas tudo que ouvi me agradou bastante – a Ilustrada da Folha de S. Paulo publicou uma matéria interessantíssima trazendo uma enquete com 40 personalidades afins com o músico e escritor, que fizeram, cada um, a seleção de suas três canções preferidas dele. Pronto, tocou em duas coisas que adoro: Chico Buarque e listas.

Bem abrangente, a publicação da Folha traz, entre os votantes, pessoas diretamente ligadas ao artista, como a irmã Miúcha, o genro Carlinhos Brown e a companheira de estrada Gal Costa, mas também nomes bem distintos, como o carnavalesco Alexandre Louzada, autor do enredo "Chico Buarque da Mangueira", com o qual a escola foi campeã em 1998; Adelia Bezerra de Meneses, autora dos livros "Figuras do Feminino na Canção de Chico Buarque" e "Desenho Mágico: Poesia e Política em Chico Buarque"; e o cineasta Bruno Barreto, diretor de "Dona Flor e Seus Dois Maridos" (1976), que tem na trilha a inesquecível “O Que Será?”.

"Construção": a
campeã
Das escolhidas, várias se repetem de um votante para outro, mostrando o quanto são temas que realmente arrebatam os admiradores de Chico. Caso de “Construção”, a campeã em menções, 9 no total, “O Que Será” (8), “As Vitrines” (6), “Roda Viva” (5) e outras, como “Vai Passar” (“Mais atual do que nunca”, segundo o diretor de teatro João Falcão), “Futuros Amantes”, “O Meu Guri” e “Todo o Sentimento”.

É de se destacar que não apenas os clássicos consagrados pelo tempo entraram na seleção. Aparecem também obras das novas safras de Chico, como “Sinhá” (do seu penúltimo álbum, “Chico”, de 2011, parceria com João Bosco vencedora do Prêmio Tim de Música do Ano) e as recentes “As Caravanas” e "Tua Cantiga" – esta última, entre as preferidas de Zé Celso Martinez Corrêa e Miúcha.

Nessa linha, fico feliz (até por não tê-las conseguido incluir entre as minhas) em ver citados temas mais "escondidos" do cancioneiro de Chico, ou seja, aquelas músicas que não são necessariamente as mais populares e que, uma vez escolhidas, denotam um profundo apreço por parte de seu eleitor. Dentre estas, "Meio Dia Meia Lua", "Uma Canção Desnaturada", "Mil Perdões", "Quando o Carnaval Chegar" e "O Futebol". Senti falta, entretanto, de "Samba do Grande Amor" e "João e Maria", comumente queridinhas dos fãs. Porém, como se sabe, trata-se de uma obra gigantesca e qualificadíssima, por isso ausências como estas são mais do que justificáveis.

Então, vão aqui as listas das eleitas de cada participante e, claro, a minha também. Missão difícil, quase impossível. Mas como eu mesmo escrevo esta matéria, dou-me, ao menos, à liberdade de escolher não apenas três, mas 10 faixas. Eu posso.


A MINHA LISTA:
1 - “Construção” (em “Construção”, 1971)
2 - “A Bela e a Fera” (com Edu Lobo, em “O Grande Circo Místico”, por Tim Maia, 1982)
3 - “Futuros Amantes” (em “Paratodos”, 1992)
4 - “O Cio da Terra” (com Milton Nascimento, em “Chico & Milton”, 1977)
5 - “Cotidiano” (em “Construção”, 1971)
6 - “Meu Caro Amigo” (com Francis Hime, em “Meus Caros Amigos”, 1976)
7 - “O Meu Guri” (em“Almanaque”, 1981)
8 - “Estação Derradeira” (de “Francisco”, 1987)
9 - “Vida” (em “Vida”, 1980)
10 - "Valsinha" (com Vinícius de Moraes, em "Construção"), "Rosa dos Ventos" (em "Chico Buarque de Hollanda nº 4", 1970) e "Amando sobre os Jornais" (em "Mel", por Maria Bethânia, 1979)


.....................................

ALEXANDRE LOUZADA
Carnavalesco
[1] "Carolina" (1967) 
[2] "Quem te Viu, Quem te Vê" (1966) 
[3] "Cálice" (com Gilberto Gil - 1973) 

ADELIA BEZERRA DE MENESES
Professora da USP
[1] "Cala a Boca, Bárbara" (com Ruy Guerra - 1972/73) 
[2] "Todo o Sentimento" (com Cristóvão Bastos - 1987) 
[3] "O Que Será" (1976) e "Construção" (1971) 

BETH CARVALHO
Gravou "O Meu Guri" e inúmeras canções do compositor
[1] "Apesar de Você" (1970)
[2] "O Meu Guri" (1981) 
[3] "Sinhá" (com João Bosco - 2010)

BIBI FERREIRA
Atriz da primeira montagem de "Gota d'Água" (1975)
[1] "Gota d'Água" (1975)
[2] "Basta Um Dia" (1975)
[3] "Bem Querer" (1975)

BRUNO BARRETO
Cineasta, dirigiu, além de "Dona Flor e Seus Dois Maridos" (1976), episódios de "Amor em Quatro Atos" (2011), baseada em canções de Chico 
[1] "O que Será"
[2] "As Vitrines" (1981) 
[3] "Folhetim" (1977/78) 

CACÁ DIEGUES
Cineasta, encomendou a Chico canções para "Quando o Carnaval Chegar" (1972; aqui, o cantor também atua), "Joanna Francesa" (1973) e "Bye Bye, Brasil" (1980), entre outros
[1] "Morro Dois Irmãos" (1989)
[2] "Joana Francesa" (1973) 
[3] "A Banda" (1966) 

CADÃO VOLPATO
Jornalista e autor de conto inspirado em música de Chico para a antologia "Essa História Está Diferente" (Companhia das Letras)
[1] "Flor da Idade" (1973)
[2] "Quando o Carnaval Chegar" (1972) 
[3] "Joana Francesa" 

CARLINHOS BROWN
Cantor e pai de dois netos de Chico
[1] "Trocando em Miúdos" (com Francis Hime - 1978)
[2] "As Vitrines"
[3] "Olhos nos Olhos" (1976)

CAROLA SAAVEDRA
Escritora, assinou conto para o livro "Essa História Está Diferente"
[1] "Mil Perdões" (1983) 
[2] "Construção" 
[3] "Roda Viva" (1967) 

CHARLES MÖELLER
Diretor de "Todos os Musicais de Chico Buarque em 90 Minutos" (2014) e "Ópera do Malandro" (2003)
[1] "O Que Será" - A primeira ("Abertura")
[2] "Mil Perdões" 
[3] "Bye Bye, Brasil" (com Roberto Menescal - 1979)

CRIOLO
Rapper, compôs nova letra para "Cálice" e foi elogiado por Chico
[1] "O Que Será" 
[2] "Cálice" 
[3] "Construção" 

DIOGO NOGUEIRA
Gravou com Chico "Sou Eu"
[1] "Roda Viva"
[2] "Homenagem ao Malandro" (1977/78)
[3] "Sou Eu" (com Ivan Lins - 2009)

ELBA RAMALHO
Participou da primeira montagem da "Ópera do Malandro" (1978)
[1] "O Meu Amor" (1977/78) 
[2] "Todo o Sentimento" 
[3] "As Vitrines”

ELIFAS ANDREATO
Ilustrador de discos de Chico como "Ópera do Malandro" (1979) e "Almanaque" (1981)
[1] "Sobre Todas as Coisas" (com Edu Lobo - 1982) 
[2] "Tempo e Artista" (1993) 
[3] "Todo o Sentimento" 

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Diretor de Redação da "piauí" e autor de "Folha Explica Chico Buarque" (Publifolha, 2004)
[1] "Beatriz" (com Edu Lobo - 1982) 
[2] "Pelas Tabelas" (1984)
[3] "O Futebol" (1989) 

GABRIEL VILLELA
Diretor de "A Ópera do Malandro" (2000), "Os Saltimbancos" (2001) e "Gota d'Água" (2001)
[1] "Uma Canção Desnaturada" (1979)
[2] "O Meu Guri" 
[3] "Brejo da Cruz" (1984) 

GAL COSTA
Intérprete de "Folhetim", dedicou "Mina d'Água do Meu Canto" (1995) à obra de Chico e de Caetano
[1] "Folhetim" 
[2] "Desalento" (com Vinicius de Moraes, 1970) 
[3] "As Vitrines" 

GEORGETTE FADEL
Atriz da montagem "Gota d'Água - Breviário" (2006)
[1] "Valsa brasileira" (com Edu Lobo - 1987-88)
[2] "Gota d'Água" 
[3] "Bárbara" (com Ruy Guerra - 1972-73) e "Roda Viva" 

HELOISA STARLING
Professora da UFMG e autora de "Uma Pátria Paratodos - Chico Buarque e as Raízes do Brasil" (Língua Geral)
[1] "Construção"
[2] "Futuros Amantes" (1993) 
[3] "Sinhá" 

HUMBERTO WERNECK
Jornalista, autor da reportagem biográfica de "Tantas Palavras" (Companhia das Letras)
[1] "Futuros Amantes" 
[2] "As Vitrines" 
[3] "Vai Passar" (com Francis Hime - 1984) 

JOÃO FALCÃO
Diretor de "Cambaio" (2001) e "Ópera do Malandro" (2014)
[1] "Futuros Amantes" 
[2] "Leve" (com Carlinhos Vergueiro - 1997) 
[3] "Vai Passar" - Mais atual do que nunca

JOÃO FONSECA
Diretor de "Gota d'Água" (2007)
[1] "O Que Será" 
[2] "Construção" 
[3] "Beatriz" 

LAILA GARIN
Atriz de "Gota d'Água [A Seco]" (2016)
[1] "As Vitrines"
[2] "Uma Palavra" (1989) 
[3] "Uma Canção Desnaturada"

LEILA PINHEIRO
Gravou com Chico "Renata Maria" e participou de álbuns dele como "Dança da Meia-Lua" (1988)
[1] "Futuros Amantes" 
[2] "Valsa Brasileira" 
[3] "Retrato em Branco e Preto" (com Tom Jobim, 1968) 

MIÚCHA
Cantora e irmã de Chico
[1] "Maninha" (1977) 
[2] "Tua Cantiga" (com Cristóvão Bastos, 2017) 
[3] "As Caravanas" (2017) 

MÔNICA SALMASO
Gravou com Chico "Imagina", além do disco "Noites de Gala, Samba na Rua" (2007), todo dedicado à obra dele
[1] "Beatriz"
[2] "Construção"
[3] "Sinhá" - Encontro arrebatador de mestres sobre a história do Brasil

MONIQUE GARDENBERG
Diretora do filme "Benjamim" (2004), adaptado do livro homônimo de Chico
[1] "Apesar de Você"
[2] "Joana Francesa" 
[3] "A Rita" (1965) 

NANA CAYMMI
Gravou com Chico "Até Pensei" e participou de projetos dele, como a trilha de "O Corsário do Rei" (1985)
[1] "Até Pensei" (1968)
[2] "O Que Será"

[3] "Gota d'Água"

NEY MATOGROSSO
Gravou o disco "Um Brasileiro" (1996), dedicado à obra de Chico
[1] "Construção" 
[2] "Almanaque" (1981) 
[3] "Tatuagem" (com Ruy Guerra, 1972/73) 

OLIVIA BYINGTON
Gravou diversas canções de Chico e participou de trabalhos dele, como a trilha de "Para Viver um Grande Amor" (1983)
[1] "Eu te Amo" (com Tom Jobim - 1980) 
[2] "Tatuagem"  
[3] "Apesar de Você" 

OSWALDO MONTENEGRO
Gravou um disco em torno da obra de Chico ("Seu Francisco", 1993)
[1] "Construção"
[2] "Todo o Sentimento" 
[3] "Roda Viva" 

RAFAEL GOMES
Diretor de "Gota d'Água [A Seco]" (2016)
[1] "Você Vai Me Seguir" (com Ruy Guerra - 1972/73) 
[2] "A Voz do Dono e o Dono da Voz" (1981) 
[3] "Meio Dia Meia Lua (na Ilha de Lia, no Barco de Rosa)" [com Edu Lobo, 1987/88] 

REGINA ZAPPA
Autora de "Chico Buarque para Todos" (Ímã Editorial) e "Chico Buarque - Cidade Submersa" (Casa da Palavra), entre outros
[1] "Construção"
[2] "Joana Francesa" 
[3] "O Meu Guri" 

RICARDO CALIL
Jornalista e codiretor do documentário "Uma Noite em 67", que mostra o Festival de MPB em que Chico apresentou "Roda Viva" com o MPB 4
[1] "Construção" 
[2] "Olhos nos Olhos" 
[3] "Cotidiano" (1971) 

SYLVIA CYNTRÃO
Professora da UnB e autora de "Chico Buarque, Sinal Aberto!" (7Letras)
[1] "O Que Será" 
[2] "Roda Viva" 
[3] "Sem Fantasia" (1967) 

TADEU JUNGLE
Roteirista e diretor de episódio da série "Amor em Quatro Atos"
[1] "Geni e o Zepelim" (1977/78) 
[2] "Sem Açúcar" (1975) 
[3] "Todo o Sentimento" 

VIVIAN FREITAS
Fundadora e vocalista do bloco Mulheres de Chico, dedicado à obra buarquiana
[1] "O Que Será (À Flor da Terra)" 
[2] "Roda Viva" 
[3] "Geni e o Zepelim" 

WALTER CARVALHO
Cineasta e fotógrafo, diretor de "Budapeste" (2009), baseado no livro homônimo de Chico
[1] "A Banda" 
[2] "Apesar de Você" 
[3] "Feijoada Completa" (1977)

ZÉ CELSO MARTINEZ CORRÊA
Diretor da montagem original de "Roda Viva" (1967)
[1] "Sem Fantasia”
[2] "O Meu Amor”
[3] "Tua Cantiga" 

ZIZI POSSI
Intérprete de "Pedaço de Mim", está montando show dedicado às parcerias de Chico com Edu Lobo
[1] "Cantiga de Acordar" (com Edu Lobo, 2001)
[2] "Beatriz"
[3] "O Circo Místico" (com Edu Lobo, 1982)


por Daniel Rodrigues