As capas, praticamente iguais, dos dois discos. |
Não é religião, não é seita,
não é doutrina, não é ciência,
não é filosofia, não é espiritismo.
É um conhecimento vindo do nosso verdadeiro mundo de origem.
Não é extraído de nenhuma mente humana,
é ditado pelo racional superior,
o verdadeiro deus."
da letra de "Que Legal"
Escute mas não ouça.
Ouça mas não dê a menor atenção.
Não dê a menor atenção às letras, uma exaustiva exaltação e convocação a uma estúpida e lobotomizante seita à qual Tim Maia, no auge do sucesso e da capacidade artística, havia se convertido ali pela metade dos anos 70. Nem ouça. Ah, mas os vocais, os arranjos, a riqueza, a combinação de ritmos, isso deve ser atentamente escutado, pois ali está uma das coisas mais brilhantes e inspiradas que a música brasileira já viu um de seus filhos produzir. à baboseira de universo racional, desncanto , ler o tal livro, deixe entrar por um ouvido e sair pelo outro, mas a musicalidade, o embalo, as experimentações rítmicas, deixe entrar e guarde na alma.
Planejado inicialmente para ser um álbum duplo, antes da "loucura" de Tim, os volumes 1 e 2 de "Tim Maia Racional" acabaram saindo separados depois que a gravadora, percebendo a piração que era aquela viagem, deu pra trás e saiu da jogada rescindindo o contrato com o cantor. Os dois discos, no entanto, apesar de toda a turbulência de gravação, produção e lançamento, apresentam uma grande unidade sonora, e, é claro, temática, embora a segunda parte, na minha opinião seja mais completa, ousada e bem acabada.
O primeiro volume, abre com o hit tardio, hoje cultuaoa e extremamente conhecido, "Imunização Racional (Que Beleza)", um reggae/soul que mostra o quanto Tim estava afiado na composição e o quanto sua banda estava a ponto de bala. Só uma mostra inicial do que o disco ofereceria rítmica e sonoramente a partir dali. "Bom Senso", um funk onde Tim relata seu sofrido caminho até aquele momento e aquela duvidosa descoberta; "Universo em Desencanto" que alterna genialmente samba com funk com soul; a lenta balada "Leia o Livro Universo em Desencanto"; a soul music de violão marcante "Contacto Com o Mundo Racional", na qual Tim desfila falsetes impressionantes; e o brilhante funkão com toques de gospel "Rational Culture" comprovam a versatilidade e qualidade do conjunto: do cantor, do compositor, da banda e por consequência álbum.
As faixas são intercaladas por curtas vinhetas, discursos enaltecendo o tal livro e a infame religião, mas mesmo nestes momentos Tim consegue brilhar com interpretações à capela extraordinárias como em "O Grão Mestre Varonil", onde em 15 segundos demonstra todo seu talento e poderio vocal.
O disco 2 é mais psicodélico, mais requintado estruturalmente e mias bem resolvido. Abre com o funk embalado ao melhor estilo filme blaxploitation "Quer Queira Quer Não Queira", com destaque para o trabalho de percussão e para a metaleira. "Energia Racional" é um funkão quebrado de arranjo de voz singular e o órgão viajante psicodélico. A ótima "Que Legal" é uma rumba; "Paz Interior", um samba, é quase uma versão "racional" para "Gostava Tanto de Você"; "O Dever de Fazer Propaganda Deste Conhecimento", essa sim, tem cara totalmente de música religiosa; e a espetacular "Guiné-Bissau, Moçambique e Angola Racional" é a ponte definitiva entre as culturas e raízes que originavam e nutriam a música de Tim. "Imunização Racional (Que Beleza)", fecha o conjunto de dois discos como iniciou com uma pequena variação em relação à de abertura do outro disco, menos reggae e mais guitarrada. E se de toda a tolice irracional de Tim Maia naquele momento dá ara tirar alguma coisa, a delicada soul, quase sussurrada "O Caminho do Bem", se encarrega, ao menos, de indicar o caminho que serve para qualquer seita, religião ou doutrina.
Há controvérsias quanto à data de lançamento dos discos "Racional", mas tudo indica que, por questões financeiras e de prensagem, tenha ocorrido, de ambos, em 1975, sendo que sua pequena tiragem era vendida muitas vezes pelo próprio Tim no boca-a-boca, no corpo-a-corpo na rua, nas praças ou em qualquer lugar onde pudesse divulgar a malfadada doutrina. Ironia é que a obra tenha-se um cult e aqueles exemplares desprezados pela gravadora e pelo público, hoje sejam objeto de desejo e itens de colecionador, e que a doutrina que Tim Maia, naquele momento esforçava-se tanto para difundir para meia dúzia de interessados num sinal de trânsito ou numa festa qualquer tenha, hoje, na época de downloads, internet, relançamentos e reprensagens, chegado a tanta gente. Se estivesse vivo, certamente não ficaria orgulhoso de que o universo que estupidamente promoveu e que pouco depois, num lampejo racional, num surto de bom senso fez com que se desencantasse, chegasse tanta gente. Mas o que o consolaria é que seus ouvintes que aprenderam a apreciar e cultuar os álbuns ao longo dos anos, sem dúvida alguma apenas o escutam mas felizmente não o ouvem.
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FAIXAS:
"Tim Maia Racional vol.1"
01 - Imunização Racional (Que Beleza)
02 - O Grão Mestre Varonil
03 - Bom Senso
04 - Energia Racional
05 - Leia o Livro Universo em Desencanto
06 - Contacto com o Mundo Racional
07 - Universo em Desencanto
08 - You Don't Know What I Know
09 - Rational Culture
"Tim Maia Racional vol.2"
01 - Quer Queira Quer Não Queira
02 - Paz Interior
03 - O Caminho Do Bem
04 - Energia Racional
05 - Que Legal
06 - Cultura Racional
07 - O Dever De Fazer Propaganda Deste Conhecimento
08 - Guiné - Bissau, Moçambique E Angola
09 - Imunização Racional (que Beleza)
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Ouça:
Tim Maia Racional vol. 1 e 2
Cly Reis