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quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Black Alien - “Abaixo de Zero: Hello Hell” (2019)

 

"Quem precisa de correntes de ouro pra ser Gustavo?/
Quem precisa de correntes de ferro pra ser escravo?"
Da letra de "Área 51"

“Eu sou o agora.”
Da letra de "Que nem o meu Cachorro"

Após os Racionais MC’s terem aberto a porteira para o novo rap brasileiro nos anos 90, uma questão se formou: identificar este gênero musical dentro do contexto da música brasileira. Por incrível que pareça, não foi aquele que lançou a principal interrogação pós-“Sobrevivendo no Inferno” quem matou a charada. Se Marcelo D2 foi quem propôs encontrar “a batida perfeita”, a qual pressupunha uma junção do estilo marginal e urbano norte-americano com o samba brasileiro, coube a outro ex-Planet Hemp ser o verdadeiro achador deste formato próprio de um hip hop que respondesse aos anseios de seus criadores e de um novo mercado fonográfico no Brasil: Black Alien. Não é de se estranhar, afinal Gustavo de Almeida Ribeiro sempre se diferenciou dentro da Planet. Enquanto os outros integrantes exauriam o discurso do “Legalize Já!”, este carioca de São Conrado mostrava-se conectado com uma infinidade de referências como jazz, literatura, psicanálise, pós-punk e cinema cult, visão “extrapunk/extrafunk” que lhe dava mais condições de perceber além, de ver que o grito libertário da geração pós-Ditadura deveria ser necessariamente mais amplo. Tanto foi coerente e certeiro que, em seu primeiro disco solo, “Babylon By Gus Vol. 1 – o Ano do Macaco”, de 2004, foi ele quem, na esteira de Sabotage e seu "Rap É Compromisso!", de três anos antes, encontrou a tal batida perfeita. Chegava-se, enfim, ao que se pode chamar de rap brasileiro.

Acontece que, se a batida é perfeita, as quebradas são tortas. O cara que abriu as portas para que viessem a público os novíssimos talentos do rap brasileiro, como Criolo, Emicida, Rincon Sapiência e Baco Exu do Blues, levou mais de uma década para lançar um segundo trabalho, o irregular “No Princípio Era o Verbo – Babylon by Gus, Vol. II”. Neste meio tempo, Criolo já havia colocado o gênero de ponta-cabeça com o revolucionário “Nó na Orelha”, em que abria um paradigma como há décadas não se via na música brasileira, Emicida reinventava o discurso da negritude, Rincon retornava às raízes da África para forjar uma nova poesia nagô e Baco elevava o estilo ao nível de art-rap como apenas ousaram MF Doom e Beastie Boys. Black Alien parecia haver perdido o passo, perdido o tempo da batida. Alguma coisa haveria de estar imperfeita – e estava. A dependência química, hábito da adolescência, tomava dimensões indesejáveis na vida do músico a ponto de lhe atrapalhar a carreira e a produção artística. A ponto de quase o deixar à sombra de seus discípulos.

Só que, como diz o próprio Black Alien: “Não ir pra frente é retrocesso, nada que vale a pena é fácil”. Precisou, então, descer abaixo do nível zero e dar um alô para o diabo para que ressurgisse. Limpo das drogas e de tudo que não lhe interessava, Black Alien, como a fênix, lança, 17 anos depois da estreia solo, seu terceiro e melhor álbum: o corajoso e autorreferencial “Abaixo de Zero: Hello Hell”. Coeso, tal grandes discos da MPB do passado tem curta duração, o suficiente para apresentar, em menos de 10 faixas, uma música altamente impactante e bem produzida feita basicamente a quatro mãos com o produtor carioca Papatinho nas composições, beats, samples e programações. Black Alien desfila, com uma poesia áspera e sofisticada, visto que rica em figuras de linguagem e rimas rebuscadas (dos tipos emparelhada, coroada, preciosa, entre outros), versos confessionais e conscientes sobre drogas, religiosidade, existência e política, mas sem cair no enfadonho. Pelo contrário. "Área 51", que abre o disco, manda ver em versos brilhantes como estes: “Invicto no fracasso, invicto no sucesso/ A gata mia, boemia aqui não me tens de regresso/ De boa aqui na minha, não foi sempre assim, confesso/ Levitei em excesso, neve tem em excesso/ A costela quebrada me avisa quando eu respiro/ A favela e a quebrada te avisam quando me inspiro”. E o refrão é impagável: “Vim pesadão ninguém vai me ‘dirrubá’/ E problema com pó quem tem é o dono do bar”.

Outra joia confessional, o charme-soul “Carta pra Amy” nem precisa mencionar a homenageada em sua letra para dar o recado. Versos doloridos e inspiradíssimos aprofundam a ideia central do disco, elevando a reflexão a questões existenciais e da religiosidade (“Jurei por Deus que ia acertar as contas/ E aí lembrei que é Deus quem acerta as contas/ Ele acerta no início, no meio, e no fim das contas”). Mas sempre com a visão catalisadora, como nesta passagem em que traz a banda de David Byrne como referência: “Vencer a mim mesmo é a questão/ Questão que não me vence/ Minha cabeça falante fala pra caralho/ E aí my talking head stop makin’ sense”. Usa este mesmo último verso, aliás, para criar outra analogia, numa rima indireta com o nome Byrne: "No confinamento as paredes são minhas páginas de cimento/ Babylon burn." Sem deixar, ainda, de alfinetar a demagogia dos ex-companheiros de grupo (“Quando legalizarem a planta/ Qual vai ser o seu assunto? Cara chato”), Black Alien guarda para o refrão o mais alto nível poético e literário em que conjuga Bob Marley, William Faulkner e C.J. Young num tempo: “Mostre-me um homem são e eu o curarei/ You’re runnin and you’re runnin’ and you’re runnin’ Away/ Não posso correr de mim mesmo/ Eu sei, nunca mais é tempo demais/ Baby, o tempo é rei/ Em febre constante e o dom da cura/ Nem mais um instante sem o som e a fúria”.

A dissonante “Vai Baby” literalmente descontrói o compasso para problematizar a questão do sexo neste novo contexto de vida longe das drogas. Mais uma vez, contudo, a veia poética faz com que Black Alien não recorra a um artifício óbvio, mencionando o filme “Mais e Melhores Blues”, de Spike Lee (1990), para representar, numa metonímia, a ideia do casamento entre erotismo e música negra. “Quero mais e melhores blues/ Com água sob os pés, sobre a cabeça, céus azuis/ Mais e melhores jazz, mais e melhores Gus/ Só de tá na busca, eu tô além do que eu supus”. Passo além dentro da própria obra de Black Alien, lembra em temática “Como eu te Quero”, sucesso de seu primeiro disco, porém noutro nível de maturidade.

Outra pungente, "Que Nem o Meu Cachorro", com um belo e circunspecto riff jazzístico de piano, fala da força de vontade para manter-se sóbrio, num esforço artístico e pessoal de autorreconhecimento. Black Alien diz a si mesmo: não esquecer para não reincidir. “Bem-vindo ao meu lar, cuidado pra não tropeçar, a mesa ainda tá aqui, porém mudei certezas de lugar”, alerta. A animalização causada pela dependência química (“Tô que nem o meu cachorro no domínio do latim”) é suplantada pela consciência do “só por hoje”, “pois”, como diz a letra, “a zona de conflito é minha zona de conforto, e a estrada pro inferno se desce de ponto morto, então parou com a zona”. E finaliza: "Não tô nem aí, nem lá, tô bem aqui, além do que se vê/ Se vêm baseado no passado, só há um resultado: 'Cê' vai se fuder.”

Referência direta ao cool jazz e a Dave Bruback, “Take Ten” adiciona ao relato pessoal a crítica ao sistema: “Quem me viu, mentiu, país das fake News/ Entre milhões de views e milhões de ninguém viu”. Além disso, estão num mesmo caldeirão John Coltrane, Disney, Dr. Jekyll Mr. Hyde e Jimi Hendrix e anáforas geniais como estas: “Hoje cedo no Muay Thai de manhã/ Outros tempos, só Deus sabe onde ia tá de manhã/ O cara vai ter pra adiantar de manhã/ Praticava o caratê de rá-tá-tá de manhã”. 

Sensual e picante como já havia trazido em “Vai Baby”, “Au Revoir”, no entanto, também reflexiona a relação amorosa imbricando-a com a passagem do tempo e, novamente, o sentimento de atenção ao presente: “Não tem como saber sem ir/ Aonde a gente vai chegar/ Au revoir/ Mais e melhores blues/ Assinado Guzzie”. Como diz Fernando Brant em naqueles versos clássicos: “O trem que chega é o mesmo trem da partida”. Já a tocante "Aniversário de Sobriedade" relembra com distanciamento o Gustavo “fundo do poço” para que o mesmo não seja esquecido. Que letra! Ao mesmo tempo forte, autocrítica e filosófica e na qual Black Alien cita até Nietsche. Metalinguística, referencia a sua própria obra “Babylon By Gus” para escancarar seu comportamento no passado e o quanto isso o fez desperdiçar oportunidades: “Vishh!!!/ Meu ‘cumpadi’ que fase/ Me olho no espelho ‘mas Gustavo, o que fazes?’/ Cadê as letras?/ Esqueceu da caneta/ Fica só cheirando em cima do CD de bases/ Os beatmakers, os melhores do país/ E eu só vou pra Jamaica pra acalmar o meu nariz/ Mete a venta e não produz/ Bye bye Gus, babylon by trevas volume zero, sem luz”. No estúdio com ele e Papatinho, ainda Julio Pacman nos teclados e o suingado solo de sax de Marcelo Cebukin.

Black Alien reserva para o fim de um disco irretocável aquilo que desde a Planet foi seu forte, que é a crítica social. Porém, “Jamais Serão” traz esta verve agora filtrada pelo "despertar temporão" do novo Gustavo, percorrendo uma lógica que vai do particular para o público. Tradução da era Temer, que havia se instaurado com o golpe político-jurídico à época da feitura de “Abaixo de Zero...”, a música astuciosamente prevê que o pior ainda viria no governo Bolsonaro. No entanto, alerta com esperança que "presidentes são temporários". E sentencia: "música boa é pra sempre/ esses otários jamais serão".

Rap, trap, reggae, funk, rock, charme, soul, jazz e R&B. Deu para perceber que não se fala de samba? Pois é: Black Alien não só achou a “batida perfeita” acalentada por D2 quanto, ainda, desmistificou que rap no Brasil precisa ser “tropicalizado”. A se ver por um estilo pós-moderno e de origem suburbana que é, não haveria de precisar abrasileirar-se para se tornar essencialmente brasileiro visto a semelhança socioantropológica que une as nações de diáspora negra. Com uma sonoridade quase doméstica e despida de rodeios – ao contrário do caminho tomado por D2, Emicida e, principalmente, Criolo, que evoluiu para um som além do próprio rap – o feito de Black Alien conquistou o Prêmio Multishow como Disco do Ano e foi eleito o Melhor Álbum pelo Prêmio APCA de Música Popular. “Abaixo de Zero...”, no entanto, mostrou muito mais do que um encontro classificatório para as prateleiras de lojas ou playlists de streaming. O principal achado não estava fora, mas dentro do próprio artista. Afinal, Black Alien entendeu que ele é “o agora”.

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FAIXAS:
1. "Área 51" - 2:46
2. "Carta pra Amy" - 4:23
3. "Vai Baby" - 2:57
4. "Que Nem o Meu Cachorro" - 3:31
5. "Take Ten" - 2:33
6. "Au Revoir" - 3:27
7. "Aniversário de Sobriedade" - 2:45
8. "Jamais Serão" - 2:59
9. "Capítulo Zero" - 1:27
Todas as composições de autoria de Black Alien e Papatinho

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OUÇA O DISCO:

Daniel Rodrigues

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Sergei Prokofiev - "Pedro e o Lobo" (1936)



Duas capas de "Pedro e o Lobo":
acima, a primeira gravação, com a 
Boston Symphony Orchestra, de
1939, e abaixo, versão em português
narrada por Rita Lee, de 1989
”Na Rússia, há um grande esforço para a educação musical das crianças. Uma das minhas peças orquestrais, ‘Pedro e o Lobo’, foi uma experimentação. As crianças recebem impressões de diversos instrumentos da orquestra apenas ouvindo a peça sendo apresentada”. 
Sergei Prokofiev

“[O estilo de Prokofiev é uma] combinação do simples com o intrincado, da complexidade do conjunto com a simplificação do particular”. 
V. Karatygin, crítico musical

“Todo o instável, transitório, acidental ou caprichoso foi excluído de sua obra (...) Nada efêmero, nada acidental. Tudo é distinto, exato, perfeito. Por isso, Prokofiev é um dos maiores compositores do nosso tempo”. 
Sergei Eisenstein

O compositor russo Sergei Prokofiev pode ser considerado um artista moderno em vários aspectos. Não apenas por ter contribuído para a construção da música contemporânea uma vez que pertencente à geração modernista, mas por ter sentido na pele o maior dos dilemas de um artista dos tempos atuais: ser pop ou não ser pop. Eis a questão. Para quem vivia de arte na Rússia de Stálin, o estrelato até era possível, mas não sem preço. O instituído conceito de Realismo Socialista exigia dos artistas maior comunicação com o publico. Trocando em miúdos: que suas criações servissem, como em qualquer ditadura, de propaganda política. Entre os grandes músicos de sua geração, todos, sem exceção, tiveram problemas para exercer justamente aquilo que os fazia importantes inclusive para o governo bolchevique, que se aproveitava de seus talentos para potencializar o discurso comunista. Stravisnky, Rachmaninoff e Shostakovitch, por exemplo, sofreram ora com a apropriação do Estado, ora com a ferrenha vigília do mesmo. Se não obedeciam, eram postos numa geladeira mais fria do que a Sibéria: aquela destinada aos traidores da nação. Fosse numa prisão domiciliar ou mesmo no autoexílio, não raro o resultado era uma depressão pela falta de liberdade ou, pior, pelo nacionalismo ferido. Não havia o que lhes salvasse.

Com Prokofiev ocorreu tudo isso também: talento descoberto cedo, alçamento à estrela, tentativa de doutrinação, contrariedade a esta condição, longo período sabático no exterior, amadurecimento artístico e... retorno para a Rússia. Nessa ordem. O bom filho, ainda mais um nacionalista como todos da sua geração, à casa tornaria hora ou outra, mesmo que o cenário não fosse dos mais favoráveis como aquele de 1933, 16 anos após a Revolução Socialista. Produzir? Podia, só que dentro dos ditames que o estado determinava. Passar a compor marchas diatônicas, corais para amadores e cantatas meramente comemorativas era o que lhe restava se quisesse trabalhar. Neste processo de simplificação linguística e aproximação com o lirismo tradicional russo escreveu trilhas para cinema em contribuições memoráveis nos filmes “Alexandre Nevsky” e “Ivan, o Terrível”, ambos de Sergei Eisenstein. Mas longe daquilo que gostava: dissonâncias, polifonia, riqueza harmônica e exageros aqui e ali. 

Só que, diferentemente dos seus pares, Prokofiev tinha dentro de si um anjo para lhe salvar. Compositor desde os 5 anos de idade, quando surgiu como pianista prodígio, Prokofiev resgata da memória as tenras melodias folclóricas que ouvia dos camponeses quando criança em Sontsovka, na Ucrânia, onde nascera, e do incentivo dos pais para a vida musical para se inspirar e pincelar com cores vivas a sua inevitavelmente intrometida obra. É neste contexto que nasce aquela que, além de ser sua obra mais conhecida, é também uma das mais revolucionárias da música erudita de todos os tempos: o conto sinfônico infantil “Pedro e o Lobo”, de 1936, para narrador e orquestra, Opus 67.

Capa do livro original 
em russo, de 1936
Na história, Pedro é um jovem pastor de ovelhas que vive com o seu avô no campo. Um dia, farto de algo mais divertido, decide gozar com as pessoas da aldeia, mentindo que estava sendo atacado por um lobo. Desmascarado, ele não é acudido pelos camponeses irritados com sua atitude mentirosa quando, de fato, o perigoso animal espreita. O lobo engole o pato, que havia fugido por descuido do menino, e só não o faz o mesmo com o gato porque este, ágil, sobe à árvore. 

O sucesso universal que “Pedro...” obteria século XX adiante faz com que seja difícil imaginar o quanto foi penoso para Prokofiev compô-la. Autor acostumado às construções intrincadas de melodia e harmonia, subvertidas com perícia e austeridade, o que geralmente lhe dificultava o entendimento, Prokofiev via-se agora diante da encomenda de Natalya Sats, diretora de um teatro infantil de Moscou, em um projeto no qual era necessário ser compreendido por todos os públicos, principalmente o infantil. Desta forma, o compositor usa toda sua inteligência musical para, num processo cartesiano, limpar as complexidades desnecessárias e edificar uma peça que, devido à sua beleza lúdica e clareza conceitual, passou a servir de referência a obras voltadas para crianças. Na Rússia e no mundo! Sendo forçosamente pop, Prokofiev inferiu de maneira inapagável na cultura pop.

Ledo engano, no entanto, supor que o compositor russo apenas despiu de experimentalismo sua música para criar um mero número fácil e vulgar. O grande mérito dele está em, sabendo valer-se de toda sua sensibilidade musical e extenso cabedal técnico – adquirido desde a infância com mestres como Glière, Rimsky-Korsakov e Stravisnky, e mais tarde, no convívio com figuras como Picasso, Cézanne, Diaguilev e Maiakowsky –, não desfazer a inteligência do público a quem se dirigia: as crianças. Situando-se entre a música absoluta, a realização de uma paisagem sonora ideal desvinculada do ambiente externo, e a música programática, gênero instrumental criado no período romântico que transforma o espaço natural em sala de concerto, “Pedro...” tem o objetivo pedagógico de ensinar música às crianças.

Prokofiev: um revolucionário
entre o erudito e o popular
Prokofiev deu a cada personagem da história a representação por um instrumento: Pedro, o quarteto de cordas; passarinho, a flauta transversal; pata, oboé; gato, clarinete; vovô, fagote; lobo, três trompas; e os sons dos caçadores, tímpanos e bombo. Através da linguagem musical plástica e literária, faz-se entender e entreter. No espaço simbólico entre a elite e o povo, Prolofiev optava pelos dois. Como Richard Wagner, o russo vale-se da aliteração poética para fazer com que a música participe do enredo, evocando sugestões e harmonias. Uma das ferramentas usados é outra técnica largamente usada pela ópera: o leitmotiv. Elemento recorrente na composição de “Pedro...”, ajuda Prokofiev a desenvolver temas que constituem, cada um, um “motivo”, isto é, uma reiteração ao longo da composição, que apela com frequência ao resgate de trechos e sons anteriores.

Ao suavizar sua estética geralmente arrojada por uma simplificação estilística, Prokofiev marca uma viragem que, talvez sem perceber, provocaria uma revolução na música mundial. Quantos artistas posteriores a ele oriundos do meio alternativo, da vanguarda ou do erudito também se depararam com a dicotomia entre popular e alta cultura? Manterem-se fiéis aos preceitos e restringir sua comunicação a poucos ou mudar de paradigma e expandir o alcance de suas obras? E quantos, sem saber lidar, se perderam nisso? Beatles, Salvador Dalí e Federico Fellini, cada um em sua área, sabem bem do que se trata. 

O fato é que é certo dizer, por exemplo, que “Fantasia”, realizado três anos após o lançamento de “Pedro...”, jamais sairia do raff de Walt Disney não fosse o conceito linguístico cunhado por Prokofiev, que foi aos Estados Unidos em 1938 apresentar-lhe a peça ao piano especialmente. Tanto que o próprio Disney produziu, em 1946, sua versão para a obra, introjetando seus ensinamentos. “Pedro...” influenciou as cabeças de Hollywood, que perceberam naquela “fórmula” de casamento música-imagem um poderoso elemento narrativo de comunicação com o público espectador, e não só o infantil. Filmes, animações, publicidade, televisão e tudo que se imagine da relação som/personagem bebem até hoje nesta inaugural sinfonia para crianças – e adultos, claro. Não precisa ir muito mais longe para notar essa influência. Os acordes de cordas que designam Pedro são exaustivamente copiados em praticamente todas as trilhas sonoras cinematográficas de filmes minimamente voltados ao público infanto-juvenil, visto que o principal reinventor do conceito musical do cinema moderno, John Williams, é claramente um adepto de Prokofiev.

"Pedro e O Lobo", de Walt Disney (1946)

Além disso, é possível ouvir versões de “Pedro...” nas mais diversas línguas e culturas, que se identificam com a história independentemente do local e tempo dada sua universalidade. David Bowie, Sean Connery, Bono Vox, Boris Karloff (inglês), Gérard Philipe, Pierre Bertin (francês), Antonio Banderas (espanhol), Sophia Loren (italiano), Paul de Leeuw (holandês), Rita Lee e até Roberto Carlos (português) já narraram a peça em seus respectivos idiomas em mais de uma centena de gravações.

O feito de Prokofiev, mesmo que a duras penas, foi o de contribuir sobremaneira para a cultura pedagógica da música na sociedade e para a popularização da música erudita, taxada de difícil e chata (muitas vezes, não sem razão) pelo grande público. Em “Pedro...”, sem abrir mão da tradição clássica e da veia vanguardista, Prokofiev, salvo pela própria alma infantil, ajudou a democratizar a música de alta qualidade, tornando-a popular no melhor sentido da palavra. Fez o que talvez camarada Stálin nem suspeitasse ser possível sem rigidez: uma obra literalmente “comuna”.

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FAIXAS:

1. "Parte 1" - 00:56
2. "Parte 2" - 01:25
3. "Parte 3" - 02:17
4. "Parte 4" - 01:49
5. "Parte 5" - 01:47
6. "Parte 6" - 01:04
7. "Parte 7" - 01:43
8. "Parte 8" - 01:25
9. "Parte 9" - 02:31
10. "Parte 10" - 01:31
11. "Parte 11" - 01:11
12. "Parte 12" - 00:33
13. "Parte 13" - 01:55
14. "Parte 14" - 00:19
15. "Parte 15" - 01:50

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OUÇA O DISCO:
Sergei Prokofiev - "Pedro e o Lobo"*

*Versão com a New Philharmonia Orchestra, narrada por Richard Baker com dondução de Raymond Leppard, de 1971, considerada pela revista de música clássica Gramophone como a melhor gravação de "Pedro e o Lobo"


Daniel Rodrigues

domingo, 9 de agosto de 2020

Claquete Especial Dia dos Pais - 9 filmes sobre paternidade


Aproveitando a data comemorativa do Dia dos Pais, lembramos aqui de filmes que, sob enfoques distintos entre si, abordam o tema da paternidade. Produções de diferentes nacionalidades e épocas que, a seu modo, trazem, por conta das peculiaridades culturais e históricas, também diferentes formas de expressão daquilo que é ser pai. Porém, uma coisa fica evidente em todos estes títulos: o amor. Seja incondicional, conflituoso, arrependido, culpado ou manifesto, está lá sentimento que norteia a relação entre eles, pais, e seus filhos. 

Fazendo uma panorâmica, vê-se que há menos filmes significativos sobre pais do que de mães. Pelo menos, aqueles em que o pai é protagonista e não simplesmente uma figura acessória. Até por isso, torna-se interessante levantar uma listagem como esta no dia dedicado a eles. Escolhemos 9 títulos, afinal, estamos no dia 9. E detalhe: selecionamos apenas filmes premiados, desde Oscar até premiações estrangeiras ou nacionais. Indicações imperdíveis aos que ainda não viram, lembrança bem vinda aos que, como eu, terão a felicidade de revê-los - de preferência, com seus pais.


PAI PATRÃO, irmãos Taviani (Itália, 1977)

Baseado no romance autobiográfico de Gavino Ledda, conta a história da dura infância e adolescência do escritor quando, aos seis anos, é obrigado pelo pai a abandonar os estudos para trabalhar no campo. Todas as suas tentativas de mudar de vida são abortadas pela ignorância e violência do patriarca. Aos 20 anos, ainda analfabeto, Gavino acaba entrando para o exército, onde adquire, enfim, algum conhecimento. Renunciando à carreira militar, ele volta à sua terra para seguir estudando. No entanto, o choque com o pai é inevitável.

Explorando a linda paisagem e luz naturais da região da Sardenha, “Pai Patrão” é um tocante e contundente drama que põe a nu extremos da relação entre pais e filhos, fazendo-se psicanalítico mesmo naqueles confins da Itália. O pai (muito bem interpretado por Omero Antonutti) é uma representação do quanto os instintos do bicho homem falam mais alto quando a ignorância impera. O amor, existente – e contraditoriamente motor disso tudo –, submerge diante do medo e da insegurança de uma pessoa despreparada para aspectos da paternidade. A abordagem dos Taviani é crítica ao ressaltar o comportamento de vários personagens muito próximo ao de animais. Também, surpreendem ao desviar em alguns momentos o foco dos protagonistas, mostrando ações e pensamentos de outros que os rodeiam, evidenciando sentimentos muito parecidos com os de Gavino e de seu pai.

Gavino, já adulto, encara seu pai: amor e ódio
Palma de Ouro no Festival de Cannes, “Pai Patrão” foi a afirmação dos irmãos Vittorio e Paolo Taviani como importantes cineastas da cinematografia moderna italiana a partir dos anos 70, uma vez que tinham como herança a responsabilidade de fazer jus à obra de gênios já consolidados como Fellini, Antonioni e Pasolini. Os Taviani, no entanto, cunharam um estilo mais próximo ao dos neo-realistas, principalmente De Sica, no engenhoso jogo de grandes e médios com primeiros planos, adicionando a isso um modo sempre muito peculiar de contar as histórias, este, próprio do cinema moderno.


A FONTE DA DONZELA, de Ingmar Bergman (Suécia, 1960)

Na Suécia do século XIV, um simples casal cristão dono de uma propriedade rural incumbe a filha Karin (Birgitta Pettersson), uma adolescente pura e virgem, de levar velas para a igreja da região. No caminho, ela é estuprada e assassinada por dois pastores de cabras. Quando a noite chega, ironicamente os dois vão pedir comida e abrigo para os pais de Karin, onde são recebidos cordialmente. Porém, ao descobrirem a tragédia, os pais são tomados pelo sentimento de ódio.

Temas recorrentes na obra do sueco, a morte, a religiosidade e a compaixão servem de tripé para essa história magistralmente dirigida por Bergman. O contraste entre luz e sombra da fotografia em preto-e-branco do mestre Sven Nykvist realça, principalmente a partir da segunda metade da fita, a polaridade emocional da trama: bem e mal, Deus e Diabo, brutalidade e candura, vingança e perdão, vida e morte. O dilema recai sobre o pai, interpretado pelo lendário Max Von Sydow (recentemente morto, no último mês de março), que, com o coração dilacerado e pressionado pela mulher a matar os criminosos, perde a cabeça. E sua religiosidade? E a culpa em sujar-se de sangue? E a dor sua e da esposa? Isso aplacará a perda? Como administrar tudo isso?

filme "A Fonte da Donzela"

Vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e do Globo de Ouro na mesma categoria, esta obra-prima de Bergman valoriza, como em “Pai Patrão”, os elementos da natureza (água, pedra, sol, terra) como representação dos desafios essenciais da vida, mas difere do filme dos Taviani no tratamento da relação pai-filho. Se no outro a questão centra-se na distância emocional entre os personagens, aqui, é a morte que se impõe como separação. Por este ângulo, mesmo num filme transcorrido na Idade Média, “A Fonte da Donzela” é atualíssimo, pois traz um dilema muito comum na sociedade urbana atual: o de como os pais se posicionam diante da perda de um filho vitimado pela violência. Afinal, trata-se de uma obra incrível e significativa a qualquer época.


STALKER, de Andrei Tarkowski (Rússia, 1979)

Em um país não nomeado, a suposta queda de um meteorito criou uma área com propriedades estranhas, onde as leis da física e da geografia não se aplicam, chamada de Zona. Dentro dela, segundo reza uma lenda local, existe um quarto onde todos os desejos são realizados por quem pisa seu chão. Com medo de uma invasão da população em busca do tal quarto, autoridades vigiam o local e proíbem a entrada de pessoas. Apenas alguns têm a habilidade de entrar e conseguir sobreviver lá dentro: os chamados "stalkers". É aí que um escritor, um cientista querem entrar e contratam um stalker para guiá-los lá dentro. No caminho até o quarto, vão passar por rotas misteriosas e muitas vezes, mutáveis, que simbolizam uma ida ao subconsciente e a verdades de suas próprias naturezas nem sempre afáveis. Acontece que este stalker (Alexandre Kaidanovski) quer salvar a sua filha mutante e desenganada alcançando o misterioso quarto.

Talvez o melhor filme de Tarkowski, “Stalker” é uma ficção-científica hermética e reflexiva sobre o homem e a sua existência, sendo a questão da paternidade a chave para tal reflexão. Trazendo a atmosfera onírica comum aos filmes do russo, vale-se do fantástico de “Solaris” (1971), porém burilando-lhe o cerebralismo existencial. A narrativa, transcorrida num clima de suspensão do tempo/espaço, tem como motor o amor de um pai desesperado em salvar sua filha. Ou seja: assim como em “Solaris”, a percepção difusa da realidade é totalmente explicável pelo estado de angústia vivido pelo protagonista. É como se, participante de sua busca, o espectador também adentre naquele mundo surreal. A sempre brilhante fotografia sombreada, o cenário apocalíptico e o recorrente uso de elementos sonoro-visual-narrativos como a água (símbolo da vida) unem-se ao ritmo muito peculiar, pois contemplativo e poético, de Tarkowski.

Os três homens adentram a Zona, mas é o pai que carrega a motivação mais genuína
Vencedor do Prêmio Especial do Júri do Festival de Cannes de 1980, este filme ímpar na história do cinema alinha-se, em verdade, com outros filmes de arte do gênero ficção científica produto do período de Guerra Fria, em que a noção temporal é imprecisa, a humanidade jaz desenganada, o estado comprometeu-se e os avanços tecnológicos, promessas de avanço no passado, não deram tão certo assim no presente. Haja vista “Alphaville” (Godard, 1965), “Laranja Mecânica” (Kubrick, 1972) e “Fahrenheit 451” (Truffaut, 1966).  Esse compromisso de crítica recai ainda mais sobre Tarkowski como cidadão da Rússia, um dos pilares da tensão planetária junto com os Estados Unidos.


KRAMER VS. KRAMER, de Robert Benton (EUA, 1979)

Se já falamos da questão paterna nos confins da Itália rural, na Idade Média e num lugar imaginário, aqui o tema é colocado na modernidade urbana norte-americana. No enredo, Ted Kramer (Dustin Hoffman), leva seu trabalho acima de tudo, tanto da família quanto de Joanna (Maryl Streep), sua mulher. Descontente com a situação, ela sai de casa, deixando Billy, o filho do casal, com o pai. Ted, então, tem que se deparar com a necessidade de cuidar de uma vida que não apenas a dele, dividindo-se entre o trabalho, o cuidado com o filho e as tarefas domésticas. Quando consegue ajustar a estas novas responsabilidades, Joanna reaparece exigindo a guarda da criança. Ted porém se recusa e os dois vão para o tribunal lutar pela custódia de Billy.

“Kramer vs. Kramer” é arrebatador. Começando pelas interpretações dos magníficos Hoffman e Maryl. No entanto, mesmo com o talento que os é inerente, não estariam tão bem não fosse o roteiro contundente, que aprofunda o drama familiar e social aos olhos do espectador. Os diálogos são tão reais e bem escritos, que naturalmente transportam o espectador para situações conflituosas da vida cotidiana, gerando identificação com os personagens. Quantos pais já não foram despedidos do emprego justo no momento em que estava tentando se erguer. E qual pai não ficaria desesperado e sentindo-se culpado por um acidente com seu filho, principalmente quando o acontecido pode ser usado pela mãe para justificar a perda da guarda?

Ted aprendendo e gostando de ser pai
Tamanho êxito como obra não passou despercebido. O filme foi o principal vencedor do Oscar de 1980, abocanhou os de Melhor Filme, Diretor, Ator, Atriz Coadjuvante e Roteiro Adaptado, além de vários Globo de Ouro e outros festivais. Exemplo de drama da cinematografia norte-americana, uma vez que o filme de Robert Benton consegue unir atuações muito bem dirigidas, um roteiro “europeizado”, visto que forte e realista – feito raro em Hollywood – e um enredo tocante, mas que facilmente poderia escorregar para o piegas ou uma enfadonha DR. Filmado no mesmo ano de “Stalker”, traz a figura do pai em um momento de autorreconhecimento desta condição, ao passo de que o filme russo, esta condição já foi compreendida. No entanto, em ambas as produções, a distância entre as culturas são movidas pela mesma busca de um pai pela sobrevivência do filho.


A BUSCA, de Luciano Moura (Brasil, 2012) 

Filme brasileiro relativamente recente, renova o olhar para o problema da distância entre pais e filhos (estado inicial e propulsor da narrativa de “Kramer...”) por questões sentimentais não resolvidas ou dialogadas. Theo Gadelha (Wagner Moura) e Branca (Mariana Lima) são casados e trabalham como médicos. O casal tem um filho, Pedro (Brás Antunes), que desaparece quando está perto de completar 15 anos. Para piorar a situação, Theo fica sabendo que Branca quer se separar dele e que seu mentor (Germano Haiut) está à beira da morte. Theo sai em busca do filho sumido, viagem que o impele a se redescobrir e a ressignificar a relação com o filho.

Road-movie muito bem realizado, “A Busca” tem na atuação de Moura, principalmente, a grande força da obra. Ele transmite ao espectador desde a irascibilidade e insensibilidade de um homem controlador e fechado em si próprio até, conforme o trama se desenrola nos lugares que percorre em busca do filho, passar pelo desespero, a frustração, a esperança e o encontro consigo mesmo. Todos estes momentos perfeitos por uma grande solidão emocional, estado ao qual o caminho lhe dá condições de repensar e transformar.

Wagner Moura em etapa do trajeto em busca de seu filho e de si mesmo
Vencedor do Prêmio do Público no Festival do Rio 2012, “A Busca” lembra o recorrente mote narrativo de filmes iranianos, a se citarem “Vida e Nada Mais”, “Gosto de Cereja”, “O Círculo” e “O Balão Branco”. Sempre há algo a se buscar, seja alguém ou algo que não se sabe exatamente ao certo. Metáfora da vida, essa busca simboliza a passagem do tempo e a (mesmo que não acontece durante o filme) inevitável morte, que um dia alcançará a todos independentemente da rota. Essa simbologia ganha ainda mais realce pelo fato de se tratar da genealogia sanguínea, ou seja: a única possibilidade de não-morte. O longa de Luciano Moura reafirma o entendimento de que, mais do que o final, o importante mesmo é o que se faz na jornada.


IRONWEED, de Hector Babenco (EUA, 1987)

Francis Phelan (Jack Nicholson) e Helen Archer (Maryl Streep, olha ela aí de novo!) são dois alcoólatras que vivem mendigando nas ruas tentando sobreviver às lembranças do passado: Ela, deprimida por ter sido uma cantora e pianista cheia de glórias e hoje estar na sarjeta. Já o caso dele é o que tem a ver com o tema em questão: o motivo por viver como um vagabundo é a não superação do trauma de ter sido o responsável pela morte do filho, ao deixá-lo cair no chão ainda bebê 22 anos antes. Ao mesmo tempo, Francis precisa voltar à realidade, e conseguir um emprego para dar um pouco de conforto à companheira Helen, já muito doente e enfraquecida. E o sentimento de pai do protagonista é, ao mesmo tempo, pena e salvação, uma vez que se configura como a única força capaz de tirá-lo da condição de mendicância.

Ainda mais do que “Kramer...”, “Ironweed” é um filme sui generis na cinematografia dos Estados Unidos, e isso se deve, certamente, ao olhar sensível do platino-brasileiro Hector Babenco. Com o aval dos estúdios para fazer uma produção própria em terras yankees após o grande sucesso do oscarizado “O Beijo da Mulher Aranha”, produção financiada com dinheiro norte-americano mas bastante brasileira em conteúdo e abordagem, o cineasta transpõe para as telas – com a habilidade de quem havia extraído poesia do abandono infantil – o romance de William Kennedy e dá de presente para dois dos maiores atores da história do cinema um roteiro redondo. Isso, ajudado pela fotografia perfeita do craque Lauro Escorel e edição de outra perita, Anne Goursaud, responsável pela montagem de filmes com “Drácula de Bram Stocker” e “O Fundo do Coração”, ambos de Francis Ford Coppola.

cenas de "Ironweed"

“Ironweed” levou o prêmio da New York Film Critics Circle Awards de Melhor Ator para Nicholson, embora tenha concorrido tanto a Oscar quanto Globo de Ouro. Babenco foi um cineasta tão diferenciado que, conforme contou certa vez, Nicholson, bastante sensibilizado com o filme que acabara de realizar, procurou-o um dia antes da estreia e pediu para ir à sua casa para o reverem juntos e que, durante aquela sessão particular, segurou bem firme na mão de Babenco e não a soltou até terminar.


À PROCURA DA FELICIDADE, de Gabriele Muccino (EUA, 2007)

Chris (Will Smith) enfrenta sérios problemas financeiros e Linda, sua esposa, decide partir e deixá-lo. Ele agora é pai solteiro e precisa cuidar de Christopher (Jaden Smith), seu filho de 5 anos. Chris tenta usar sua habilidade como vendedor de aparelhos de exames médicos para conseguir um emprego melhor, mas só consegue um estágio não remunerado numa grande empresa. Seus problemas financeiros, inadiáveis, não podem esperar uma promoção nesta empresa e eles acabam despejados. Chris e Christopher passam, então, a dormir em abrigos ou onde quer que consigam um refúgio, como o banheiro da estação de trem. Mas, apesar de todos os problemas, Chris continua a ser um pai afetuoso e dedicado, encarando o amor do filho como a força necessária para ultrapassar todos os obstáculos.

Se é difícil a vida de um pai solteiro na América urbana, como em “Kramer...”, imaginem um jovem-adulto negro e pobre 30 anos atrás? Baseado na história real do empresário Chris Gardner, este comovente filme tem alguns trunfos em sua realização. Primeiramente, o de trazer à luz a superação individual de um negro na sociedade norte-americana e no meio corporativo capitalista, ainda hoje majoritariamente dominado por brancos. Segundo, por revelar Jaden, filho de Will na vida real que, além de uma criança graciosa, é talentoso, vindo a lograr uma carreira de sucesso a partir de então a exemplo do pai, também um talento mirim no passado. Por fim, o êxito de consolidar Will como um dos mais importantes nomes de sua geração, daqueles Midas de Hollywood capazes de fazer brilhar onde quer que ponham a mão.

Will e Jaden: pai e filho no cinema e na vida real
Além de indicações ao Oscar e ao Globo de Ouro, “À Procura da Felicidade” faturou o NAACP Image Award de Melhor Filme mas, principalmente, premiou pai e filho por suas maravilhosas atuações. Will, o Phoenix Film Critics Society Awards. Já o pequeno Jaden levou não só este como o MTV Movie Award de Melhor Revelação. A sintonia entre pai e filho na frente e atrás das câmeras é captada com delicadeza pelo cineasta italiano Gabriele Muccino, que se valeu desta química para transpor para o cinema esta história inspiradora para qualquer pessoa, quanto mais, para um pai. 


UP: ALTAS AVENTURAS, de Pete Docter (EUA, 2009)

Carl Fredricksen é um solitário idoso vendedor de balões que está prestes a perder a casa em que sempre viveu com sua esposa, a falecida Ellie. Após um incidente, Carl é considerado uma ameaça pública e forçado a ser internado. Para evitar que isto aconteça, ele põe balões em sua casa, fazendo com que ela levante voo e vá em direção a Paradise Falls, na América do Sul, onde ele e Ellie sempre desejaram morar. Porém, Carl descobre que um “problema” embarcou junto: Russell, um menino de 8 anos.

A divertida e tocante animação, dirigida pelo assertivo Pete Docter (dos dois primeiros “Toy Story” e “Wall-E”), é das mais felizes realizações da Disney/Pixar. Acertos técnicos inquestionáveis como é de costume ao megaestúdio, mas principalmente, no enredo e nas metáforas que suscita. A simbologia do voo como elevação espiritual, da velhice e a proximidade com a morte é uma delas, bem como a casa como representação do corpo e daquilo que há no interior de cada um. Mas a trama toca também na questão da amizade, da lealdade e da paternidade, mas não necessariamente sanguínea. O ranzinza Carl, contrariado de princípio com a presença de Russell, vai se afeiçoando ao menino e compreendendo a importância do papel e da figura para este de um pai, o qual, ocupado com sua vida, pouco lhe dá atenção. As altas aventuras vividas por eles provam o quanto o pai também pode ser o que adota. Não no papel, mas no sentido mais emocional da palavra. Com o coração. O garoto, por sua vez, traz para o melancólico cotidiano de Carl, além de confusões – afinal, criança dá trabalho também – vida. Ah, e nisso inclui também a tiracolo um cãozinho, o simpático (e falante!) Dug.

O trio impagável de "Up": paternidade de quem adota com o coração
“Up” ganhou Oscar e Globo de Ouro de Melhor Filme de Animação e Melhor Trilha Sonora (Michael Giacchino), e chegou a concorrer a Oscar de Filme com títulos como “Guerra ao Terror” (vencedor), “Bastardos Inglórios”, “Avatar” e “Preciosa”, um feito para uma animação que seria igualado apenas por “Toy Story 3”, um ano depois. Uma qualidade do filme é que, devido à sua abordagem fantástica e resolução da trama, dificilmente terá uma continuidade, que, assim como acontece com várias outras animações, seguidamente entregam a primeira realização pela inconsistência e pela mera repetição caça-níquel. Vale muito também a pena assistir a versão brasileira dublada, que tem Chico Anysio impagável como Carl Fredricksen em um dos últimos trabalhos do humorista antes de morrer.


RAN, de Akira Kurosawa (Japão/França, 1985)

Adaptação de “Rei Lear”, de William Shakespeare, retrata de forma épica e brilhante o Japão feudal do século XVI, onde um velho senhor da guerra Hidetora, patriarca do clã Ichimonji (Tatsuya Nakadai), renuncia ao poder, entregando o seu império e conquistas aos três filhos: Taro, Jiro e Saburo. Tarô, o mais velho, seguindo a tradição do patriarcado japonês, torna-se o líder do clã e recebe o Primeiro Castelo, centro do poder, ficando Jiro e Saburo, respectivamente, com o Segundo e o Terceiro Castelo. Hidetora retém para si o título de “Grande Senhor” para permanecer com os privilégios Contudo, ele subestima como o poder recém-descoberto dos filhos irá corrompê-los e levá-los a virarem-se uns contra os outros. 

Obra-prima, “Ran” é mais uma adaptação de Shakspeare que Akira Kurosawa promoveu de forma pioneira no cinema japonês – assim como para com outros autores não-orientais como Dostoiévski, Gorky e Arsenyev. Porém, desta vez em cores, diferentemente do que fizera em 1957 adaptando “Macbeth” em “Trono Manchado de Sangue”, o que amplia a magnífica fotografia em grandes planos, o desenho de cena primoroso, os figurinos em que os tons simbolizam estados psicológicos e cenografia que remete ao milenar teatro japonês.

trailer de "Ran"

“Ran” levou o Oscar de Melhor Figurino e concorreu a Melhor Direção de Arte, Fotografia e Diretor, sendo a primeira e última vez que Kurosawa seria nomeado pela Academia. A tragédia teatral ganha uma dimensão ainda mais bela na tela grande, mais do que adaptações anteriores da mesma peça, ao retratar os desacertos internos dos Ichimonji, evidenciando um problema recorrente em famílias poderosas, que é a briga pelo poder e o desafio à autoridade e figura do pai. Numa produção digna do anseio de seu realizador, "Ran" revela conflitos e sentimentos muito genuínos como inveja, cobiça e orgulho e questionando a ancestralidade como formas de manutenção (ou não) do sangue.


Daniel Rodrigues
com colaborações de Leocádia Costa e Cly Reis


sexta-feira, 10 de julho de 2020

“Robôs em Apuros”, de Neusa Sá e ilustrações de Maria Luiza Salvador - ed. RiMa Editora (2020)



“Sempre fui apaixonada por estória! Quando pequena eu conversava com personagens imaginários. Ao perguntarem com quem estava falando, narrava muitas estórias desses meus amigos: quem eram, de onde vinham, o que faziam. Se eles existiram de verdade? Não sei. O certo é que me deram todo o suporte para eu continuar contando estórias e criando outras, como a que está neste livro ‘Robôs em Apuros’.”
Neusa Sá

Taí um livro superinteressante, que promete conquistar leitores pequenos e também mais grandinhos: é “Robôs em Apuros”, escrito pela educadora Neusa Sá e ilustrado por Maria Luiza Salvador, que está sendo lançado pela RiMa Editora. Nessa aventura infanto-juvenil, a linha de produção de robôs de uma fábrica, em Robocópolis, entra em pane. É nesse contexto que surge Robolino, um robô criança que vai tentar desvendar o misterioso defeito na fabricação dos Robôs Assistentes para o Lar. É possível, no entanto, que a descoberta de Robolino possa ajudar os leitores a desvendarem algum mistério em sua vida.

O simpático Robolino, o personagem que tem a missão de salvar Robocópolis
Quando pensou em colocar no papel as estórias que lhe chegavam, Neusa Sá não imaginava que reuniria cinco textos para crianças. Tanto a autora como a editora possuem um olhar diferenciado para os leitores a quem essa publicação se dirige, visto que decidiram lançar o livro em plena pandemia para oportunizar que mais crianças pudessem conhecer a história de transformação que Robolino promove em sua comunidade.

Ilustração de Maria Luiz para a estória
de Neusa
"Graças ao incentivo da Profa. Dra. Tânia Fortuna (UFRGS) e do Prof. Dr. Euclides Redin (UNISINOS), me dediquei ao estudo da importância do brincar na educação e na vida. Acredito que nesse momento emergiu o Robolino, que estava adormecido dentro de mim", conta Neusa.

Além disso, o projeto tem mais uma proposta superinteressante e louvável: para a pré-venda, até o dia 15 de julho, foi estabelecida uma parceria entre a autora, a editora e a Casa do Jardim, entidade espírita assistencial de Porto Alegre/RS. Na compra dois exemplares, um deles é automaticamente doado às instituições atendidas pela Casa do Jardim, que reúnem crianças leitoras em situação carente. Além disso, toda a venda do livro foi doada por Neusa Sá à Casa do Jardim.

Saiba mais sobre a autora e a ilustradora de “Robôs em Apuros”:



Natural de Porto Alegre, Neusa Sá é formada no Magistério desde 1986. Anos mais tarde, formou-se em Pedagogia com ênfase em Educação Infantil/UFRGS e Psicopedagoga Clínica e Institucional pela PUCRS. Tem Mestrado em Educação pela UNISINOS. Trabalhou como professora na RME de Porto Alegre (RS). “Esse livro com certeza será lido por educadores, famílias e jovens leitores estimulando ainda mais o ensino através da literatura”.








Maria Luiza Salvador: Nascida no interior de São Paulo, cresceu apaixonada por desenhos animados da Disney, animes japoneses, revistinhas da Turma da Mônica e pelos desenhos do próprio pai. Possui graduação em Desenho Industrial, na Universidade Mackenzie (SP), até se aperfeiçoarem dentro da Quanta Academia de Artes. Atualmente, mora na Bahia e seus desenhos ilustram livros, roteiros, cenários e personagens de desenhos animados.







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“Robôs em Apuros”
de Neusá Sá
ilustrações: Maria Luiza Salvador 
Ed. RiMa (2020)
16 páginas

Pré-Venda: Até 15 de julho, ao comprar o livro, você estará participando de uma Campanha que beneficiará crianças e jovens leitores de instituições assistidas pela Casa do Jardim. Na compra de 2 livros, um deles é automaticamente doado. Isso mesmo: ao comprar 2 livros (R$50,00+ frete), um deles será doado às instituições. Dessa forma milhares de crianças e jovens terão acesso a essa linda estória! 

Links:
Casa do Jardim:
Site: http://www.casadojardim.com.br/web/
Rádio Web: https://www.radiocasadojardim.com.br
Instagram: https://www.instagram.com/casa.do.jardim
Facebook: https://www.facebook.com/jardimmaior129


Daniel Rodrigues

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Música da Cabeça - Programa #150


Pra que ir para a Disney se podemos viajar ouvindo o Música da Cabeça, né? No programa 150, nosso passeio começa pela entrevista exclusiva com o músico e produtor carioca Sacha Amback no quadro "Uma Palavra". Também vamos passar por Hyldon, Lou Reed, Ivan Lins, Banderas, Ed Motta e mais. O destino se chama Rádio Elétrica, e o embarque é às 21h. Produção, apresentação e turismo musical: Daniel Rodrigues.


Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

sábado, 7 de dezembro de 2019

"A Dama e o Vagabundo", de Charlie Bean (2019)




A história de amor entre a Dama (Tessa Thompson), uma cocker spaniel mimada, e um vira-lata chamado Vagabundo (Justin Theroux), que salva a cadelinha do perigo de vagar sozinha perdida pelas ruas. Leve, lindo e muito fofo, assim é “A Dama e o Vagabundo”. A Disney acerta mais uma vez, em uma obra live-action, além de manter o espirito Disney, ainda consegue colocar representatividade no longa.
O filme sofre, como todos live-actions, das comparações com as animações originais, por tirar algumas coisas e acrescentar outras, as quais para mim, em sua maioria foram decisões acertadas. Neste caso específico, o longa ganha no seu enredo com mais história para os personagens mas perde um pouco de romantismo e quanto a isso, o roteiro poderia ter colaborado tirando um pouco de cenas do homem da carrocinha para focar mais no casal de protagonista e crescimento do sentimento entre eles. Por ser um filme com orçamento menor, ele também tem problemas nos efeitos especiais, na movimentação dos animais em algumas cenas, mas nada que atrapalhe o bom andamento.
 A obra, e muito “fofa”, você percebe que é um trabalho feito com muito carinho, atenção e muito cuidado. Nesse quesito “fofura” o filme é nota 1000, pois desde os cachorrinhos que são muito lindos e simpáticos, até a voz dos dubladores (que ficaram perfeitas), tudo funciona conforme a magia Disney manda. Mas não é só a fofura que se destaca no longa: o que podemos dizer sobre a diversidade que o longa mostra? Em grande maioria os personagens do filme são negros. Até em papeis menos relevantes, de uma cena só, está lá: atores negros. Mas também temos latinos, asiáticos, indianos... todos representados em um cinema globalizado que reflete o mundo à sua volta. Um cinema ideal onde TODOS são representados.
Com um ar moderno dialogando com o mundo atual mas sem perder a essência Disney, “ A Dama e o Vagabundo” me fez refletir sobre o papel do cinema na sociedade e seu poder em relação a ela através da diversidade étnica dos personagens mas ao mesmo tempo me fez ficar vidrado em cães fofos, brincando, dando vontade de adotar mais um filhote, me sentindo uma criança outra vez. A última vez que tive essa sensação foi com “Baby: O Porquinho Atrapalhado” e foi maravilhoso voltar a sentir isso oura vez.
Eu nunca canso da magia da Disney e a"A Dama e o Vagabundo" é cheio dessa magia.



por Vagner Rodrigues

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

"Ilha dos Cachorros", de Wes Anderson (2018)


Belo, bem escrito, bem dirigido, uma  animação espetacular! O filme é fantástico, Wes Anderson é incrível, “ Ilha dos Cachorros” pode não ser perfeito mas é sublime em todos os aspectos.
Atari Kobayashi é um garoto japonês de 12 anos de idade que mora na cidade de Megasaki sob tutela do corrupto prefeito Kobayashi. O político aprova uma nova lei que proíbe os cachorros de viverem no local, fazendo com que todos os animais sejam enviados a uma ilha vizinha repleta de lixo, porém o pequeno Atari não aceita se separar de seu cachorro, Spots. Ele então convoca os amigos, rouba um jato em miniatura e parte em busca de seu fiel amigo. E essa aventura vai transformar completamente a vida da cidade.
É uma obra que você tem que assistir completamente dedicado a ela pois necessita muito da sua atenção, uma vez que é fundamentada nos diálogos e detalhes.  Apesar de ser uma animação e ter bichinhos, "Ilha dos Cachorros" não é um filme infantil. Tem seus momentos cômicos mas de um modo geral seu enredo é bastante político, além de um ritmo lento que, certamente não chama atenção das crianças em geral, não é mesmo? (Podemos dizer que nem de alguns adultos).  Portanto, não vá com espírito de ver algo Disney/Pixar, ou Dreamworks.
A nada bela ilha para onde os cães são enviados.
Visualmente falando, o filme é perfeito e logo na primeira cena você já fica impressionado com a perfeição e naturalidade dos movimentos dos bonecos, já que estamos falando de uma obra de stop-motion. A forma como a câmera passeia pelo cenário também chama muito atenção. Temos planos abertos que são obras de artee lembram muito os filmes japoneses de samurais. Temos homenagens a Miyazaki e o estúdio Ghibli, aos animes de Tezuka, e muitas outras  referências a cultura japonesa.
É curioso como ficamos distanciados e não conseguimos ter muita empatia com os personagens humanos, o que é provável que seja proposital pelo fato do elenco de cachorros ser o principal,  o que fez com que nenhum humano me cativasse muito. Já os cães, são magníficos! O trabalho de arte de movimentação, as atuações, o trabalho vocal do grande elenco do filme (Angelica Huston, Bill Murray, Bryan Craston e mais uma galera... até Yoko Ono), e as partes cômicas também ficam por conta do cães que, por sinal, se saem muito bem.
Mesmo envolto numa polêmica de uma suposta apropriação cultural, que no meu ponto de vista é muito mais como uma linda homenagem ao cinema e à cultura japonesa, o longa vem com força e se continuar assim pode ser candidato ao próximo Oscar de animação. Não é uma obra de fácil absorção até pela grande quantidade de referências à arte nipônica, o que exige um certo conhecimento para captá-las, porém a beleza visual, a sutileza do enredo podem te colocar dentro  do filme e prender sua atenção. Mais uma bela obra de Wes, que vem conquistando meu coração a cada novo filme.
O divertido grupo de cães que ajudam o jovem Atari.




Vagner Rodrigues