É interessante perceber como o cinema, mesmo com seu alto grau de imaginação e artificialidade, consegue trazer para o mundo dos mortais aqueles que, no imaginário popular, são tidos como seres sobre-humanos, mitológica, perfeitos. Não raro, há, inclusive, um sentimento de decepção por parte do espectador quando cai uma máscara revestida de endeusamento. Os filmes já trouxeram à realidade terrena figuras públicas intocadas como Elvis Presley, Michelangelo, Steve Jobs e Nelson Mandela, para citar alguns, mostrando-os, quando transpostos para a tela de forma dramatizada, que eles, sim, são imperfeitos e sofrem tal qual todos os seres que pisam a Terra.
Em seu quarto longa-metragem, a talentosa cineasta chinesa Chloé Zhao atinge esse propósito, porém de uma maneira particular. Considerada uma das principais diretoras do cinema da atualidade, a vencedora do Oscar de Melhor Direção e Filme por "Nomadland", em 2021, em “Hamnet: A Vida Antes de Hamlet" ela extrai da imagem mítica do dramaturgo inglês William Shakespeare esse grau de humanismo, só que a partir de um olhar diferenciado, que passa necessariamente pelo feminino.
A história se passa na Inglaterra rural do século 16, quando o então jovem professor de latim William (Paul Mescal) encontra aquela que se tornaria seu grande amor e mãe de seus filhos, a “feiticeira” (leia-se: feminina) Agnés, vivida por Jessie Buckley, grande candidata ao Oscar de Atriz. A partir da experiência do luto pela perda de um filho do casal, o filme explora a capacidade interior de superação e ressignificação individual, ao mesmo tempo em que revela o pano de fundo para a criação da tragédia “Hamlet”, a obra mais famosa do autor britânico.
O filme trata sobre questões humanas muito profundas e conflitantes, como as escolhas entre vida profissional e familiar e os sacrifícios necessários para que se chegue a algum propósito na vida. No caso, sacrifícios pautados principalmente pelos esforços que a mulher é obrigada a fazer em nome de uma causa maior. Não se exclui a manifesta dor do pai em relação à perda do filho quando ele, trabalhando longe do pequeno vilarejo de Stratford-upon-Avon, estava ausente. Tanto é que, numa forma de sublimar essa perda, genialmente ele transpõe essa dor para a peça, a qual se transformaria num epiteto da arte universal por tantos séculos.
Porém, a abordagem dada por Zhao e a roteirista Maggie O’Farrell – esta, autora do livro que dá origem ao enredo – pretende privilegiar o olhar feminino e seu poder de realização do mundo. É ela que gera, que pare e que sofre, in loco, com a morte. Por mais compartilhada que possa ser o sofrimento da perda (bem como os perrengues diários de uma vida provinciana, a qual ele havia praticamente deixado para trás para correr atrás do seu sonho no teatro), é Agnés, a figura da mulher, quem está de corpo presente. Tão essencial é seu papel para a história da família – e, por consequência, para a história inglesa e da arte ocidental – que, não fosse sua sensibilidade e senso de desapego, o marido padeceria com seu imenso talento em um pequeno povoado retrógrado e pobre.
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| Jessie Buckley como a forte e sofrida Agnés: possível candidata a Oscar |
Há um aspecto de condução narrativa também a se observar. A diretora propositalmente desloca não somente o foco do protagonista, que não é o célebre escritor, mas, sim, sua esposa Agnés, bem como, epistemologicamente, o próprio título do filme, que funciona como uma licença poética. Hamnet, o filho do casal morto quando criança, tem participação pontual no decorrer da trama, porém suficiente para justificar o destaque a seu nome, mesmo que o título o falseie como principal.
Afora isso, o roteiro em forma de diálogos e texto é bem escrito, mas não surpreende. Além de algumas repetições um tanto desnecessárias, artifício para facilitar a apreensão por parte do espectador, a dualidade “morte versus existência”, centro tensor e filosófico de “Hamlet”, é trazida para dentro do filme até com certa banalidade. É como se a famosa peça se reduzisse à importante - mas batida – frase: “Ser ou não ser: eis a questão”, semelhante a resumir Nietsche somente ao pensamento “o que não me mata me fortalece” ou Descartes a “penso, logo, existo”. Até mesmo o Soneto 12 (muito mais criativamente utilizado por Jorge Furtado em “O Homem que Copiava”, de 2003), que igualmente trata da questão de morte (envelhecimento) e existência (continuidade da prole), é evocado. Nada muito rebuscado diante de uma obra rica e complexa como a de Shakespeare.
A bela fotografia (Łukasz Żal), a trilha (Max Richter) e a direção sensível da Zhao certamente credenciam “Hamnet” a concorrer ao Oscar pelo menos nestas duas categorias, afora as de Filme e Atriz, como já mencionado. Igualmente, está entre os principais indicadas ao Globo e Ouro e ao Critics Choice Awards, cujos premiados serão revelados em janeiro próximo. Entretanto, trata-se de apenas um bom filme, que está longe, aliás, do essencial e original "Nomadland". É salutar, contudo, o olhar feminino sobre questões até então vistas massivamente pelos olhos masculinos, brancocentrados e europeizados. Neste começo de segundo quarto do século 21, se é para se quebrar arquétipos de endeusamento, que seja, então, pela visão das mulheres.
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