Sabe a CPI do MEC? Vai ficar pra depois das eleições. O que não fica para depois das eleições é o MDC, que hoje tem The Sugarcubes, Emílio Santiago, Sepultura, The Beach Boys, Eumir Deodato e mais. Ainda tem um Cabeção sobre o pianista e compositor de jazz Ahmad Jamal. Sem procrastinação, o programa vai ao ar às 21h na investigativa Rádio Elétrica. Produção, apresentação e comissão instalada: Daniel Rodrigues.
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quarta-feira, 6 de julho de 2022
sábado, 8 de janeiro de 2022
83 anos da Blue Note - Os 10 discos preferidos
Entre as gravadoras, o nome Blue Note é certamente
o mais mencionado entre todos aqui no blog quando falamos de música. Mais do que qualquer outro selo do
jazz, como Atlantic, Impulse!, Columbia ou ECM, ou mesmo da música pop, como Motown,
Chess, Factory e DefJam, a Blue Note Records já foi destacada em nossas postagens em pelo menos um cem número de vezes, aparecendo em diversos de nossos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS como informação essencial para, inclusive, a essencialidade das próprias obras. Não à toa. O selo nova-iorquino, que completou
83 anos de fundação esta semana, feito encabeçado pelos produtores musicais
Alfred Lion e Max Margulis nos idos de 1939, transformou-se, no transcorrer das
décadas, num sinônimo de jazz moderno de alta qualidade e bom gosto.
Mas, claro, o principal é a música em si. Musicalmente falando, a gravadora em diferentes épocas reuniu em seu elenco nomes como Horace Silver, Herbie Nichols, Lou Donaldson, Clifford Brown, Jimmy Smith, Kenny Burrell, Jackie McLean, Freddie Hubbard, Donald Byrd, Wynton Marsalis, Andrew Hill, Eric Dolphy, Cecil Taylor, Hank Mobley, Lee Morgan, Sonny Clark, Kenny Dorham, Sonny Rollins e tantos outros. Há, inclusive, os que lhe tiveram passagem rápida, mas que, mesmo assim, não passaram despercebidos, como Miles Davis, nos primeiros anos de vida do selo, ou Cannonball Adderley e John Coltrane, que em seus únicos exemplares Blue Note, no final dos anos 50, deixaram marcas indeléveis na história do jazz.
Pode-se dizer sem medo que pela Blue Note passaram bem dizer todos os maiores músicos do jazz. Se escapou um que outro – Charles Mingus, Chet Baker, Albert Ayler, Ahmad Jamal – é muito. Outros, mesmo que tenham andando por outras editoras musicais, tiveram, inegavelmente, alguns de seus melhores anos sob essa assinatura, tal Wayne Shorter, Dexter Gordon e McCoyTyner.
Daniel Rodrigues
O conceito, aliás, já está impregnado nas caprichadas e conceituais artes dos
discos, como nas capas emblemáticas de Reid Miles, as fotos de Francis Wolff e,
por vezes, a participação de designers convidados, como Burt Goldblatt, Jerome Kuhl e, nos anos
50, um então jovem artista visual de Pittsburgh chamado Andy Wahrol. Tudo encapsulado
pela mais fina qualidade sonora e técnica, geralmente gerenciada pelas hábeis
mãos do engenheiro de som Rudy Van Gelder em seus mágicos estúdios Englewood
Cliffs, em New Jersey, outro emblema de qualidade associado à marca Blue Noite.
Mas, claro, o principal é a música em si. Musicalmente falando, a gravadora em diferentes épocas reuniu em seu elenco nomes como Horace Silver, Herbie Nichols, Lou Donaldson, Clifford Brown, Jimmy Smith, Kenny Burrell, Jackie McLean, Freddie Hubbard, Donald Byrd, Wynton Marsalis, Andrew Hill, Eric Dolphy, Cecil Taylor, Hank Mobley, Lee Morgan, Sonny Clark, Kenny Dorham, Sonny Rollins e tantos outros. Há, inclusive, os que lhe tiveram passagem rápida, mas que, mesmo assim, não passaram despercebidos, como Miles Davis, nos primeiros anos de vida do selo, ou Cannonball Adderley e John Coltrane, que em seus únicos exemplares Blue Note, no final dos anos 50, deixaram marcas indeléveis na história do jazz.
Pode-se dizer sem medo que pela Blue Note passaram bem dizer todos os maiores músicos do jazz. Se escapou um que outro – Charles Mingus, Chet Baker, Albert Ayler, Ahmad Jamal – é muito. Outros, mesmo que tenham andando por outras editoras musicais, tiveram, inegavelmente, alguns de seus melhores anos sob essa assinatura, tal Wayne Shorter, Dexter Gordon e McCoyTyner.
Tanta riqueza que a gente não poderia deixar passar a data
sem, ao menos, destacar alguma lista como gostamos de fazer aqui. Melhor, então: destacamos cinco delas! Para isso, chamamos nossos amigos jornalistas – e profundos conhecedores de jazz – Márcio Pinheiro e Paulo Moreira, contumazes colaboradores do blog, para darem, juntamente conosco, Cly e eu, suas listagens de 10 discos preferidos da Blue Note Records.
Ainda, para completar, puxamos uma seleção feita pelo site de música britânico JazzFuel,
em matéria escrita pelo jornalista especializado em jazz Charles Waring no ano passado. A recomendação, então, é a seguinte:
não compare uma lista com outra e, sim, aproveite para ouvir ou reouvir o máximo
possível de tudo que cada uma traz. Garantia de que as mais harmoniosas notas azuis
vão entrar em sua cabeça.
Márcio Pinheiro
Jornalista
1 - Cannonball Adderley - "Somethin Else" (1858)
2 - Eric Dolphy - "Out to Lunch" (1964)
3 - Grant Green - "The Latin Bit" (1962)
4 - Herbie Hancock - "Takin' Off" (1962)
5 - Horace Silver - "Song for my Father" (1963)
6 - Joe Henderson - "Mode for Joe" (1966)
7 - John Coltrane - "Blue Train" (1958)
8 - Lee Morgan - "The Sidewinder" (1963)
9 - Ron Carter - "The Golden Striker" (2002)
10 - Sonny Rollins - "Newk's Time" (1959)
Paulo Moreira
Jornalista
2 - Wayne Shorter - "Speak No Evil" (1965)
3 - Eric Dolphy - "Out to Lunch"
4 - John Coltrane - "Blue Train"
5 - Bud Powell - "The Amazing Bud Powell Vol. 1 e 2" (1949/51)
6 - Art Blakey And The Jazz Messengers - "Moanin'" (1959)
7 - Herbie Hancock - "Maiden Voyage" (1965)
8 - Sonny Clark - "Cool Struttin'" (1958)
9 - Dexter Gordon - "Go" (1962)
10 - Grant Green - "The Complete Quartets With Sonny Clark" (1997)
Mais Três Discos Bônus:
11 - Freddie Hubbard & Woody Shaw - "The Freddie Hubbard And Woody Shaw Sessions" (1995)
12 - Hank Mobley - "The Turnaround" (1965)
13 - James Newton - "The African Flower" (1985)
Cly Reis
Arquiteto, cartunista e blogueiro
2. Wayne Shorter - "Night Dreamer" (1964)
3. Horace Silver - "Song for My Father"
4. Lee Morgan - "The Sidewinder"
5. Grant Green - "Matador" (1964)
6. Dexter Gordon - "One Flight Up" (1965 - foto)
8. Wayne Shorter - "Speak No Evil"
9. Herbie Hancock - "Maiden Voyage"
10. McCoy Tyner - "Extensions" (1970)
Daniel Rodrigues
Jornalista, radialista e blogueiro
2 - Cannonball Adderley - "Somethin Else"
3 - Lee Morgan - "The Sidewinder"
4 - Wayne Shorter - "Night Dreamer"
5 - Grant Green - "Matador"
6 - McCoy Tyner - "Extensions"
7 - Horace Silver - "Song for my Father"
8 - John Coltrane - "Blue Train"
9 - Dexter Gordon - "Go"
10 - Cecil Taylor - "Unit Structures" (1965)
Charles Waring
Jornalista da JazzFuel
2 - Clifford Brown – "Memorial Album" (1956)
3 - Sonny Rollins – "A Night At The Village Vanguard" (1957)
4 - John Coltrane – "Blue Train"
5 - Art Blakey and The Jazz Massangers – "Moanin’"
6 - Kenny Burrell – "Midnight Blue" (1963)
7 - Horace Silver – "Song For My Father"
8 - Lee Morgan – "The Sidewinder"
9 - Eric Dolphy – "Out to Lunch"
10 - Herbie Hancock – "Maiden Voyage"
quarta-feira, 31 de março de 2021
Música da Cabeça - Programa #208
Você, que é do time que não bloqueia a vida de ninguém, vai se identificar com o MDC de hoje. Retendo só o que há de bom, o programa vai ter gente como Elvis Presley, Gal Costa, U2, Suicide, Maria Rita e Ahmad Jamal, entre outros. Tem também um "Cabeção" pelos 140 anos de nascimento do compositor húngaro Bela Bártok e mais "Música de Fato" e "Palavra, Lê", claro. Encalhamos nosso cargueiro hoje, às 21h, no canal liberado Rádio Elétrica. Produção, apresentação e manobras (sonoras): Daniel Rodrigues.
Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/
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segunda-feira, 24 de julho de 2017
The Miles Davis Quintet - "Cookin'" (1957)
“Eu estava tocando o meu trompete e liderando a melhor banda do mercado, uma banda criativa, imaginativa, sobretudo coesa e artística”. Miles Davis, em 1956
“A tremenda coesão, o suingue impetuoso, a absoluta exaltação e a emoção controlada, presentes nos melhores momentos do quinteto de Davis, foram captados nesta gravação. [Philly Joe] Jones disse que essas sessões são as melhores já realizadas por Davis. Estou inclinado a concordar.” Revista Down Beat, em 1957
Há o mito de que o artista precisa de compenetração e tempo para que a inspiração venha. Pelo menos para Miles Davis, essa lógica não era uma máxima. Na metade dos anos 50, já gozando da aura de lenda que havia se tornado – aquele que tocou com Charlie Parker, que formava bandas invejáveis, que descobrira talentos e revolucionara o estilo ao legar-lhe o cool jazz no início daquela década –, Miles tocava muitos projetos ao mesmo tempo. Além das temporadas nos bares noturnos e da participação em festivais, ele gravara, entre 1955 e 1957, nada menos que 17 álbuns. Muito disso se deve ao fato de que ele atendia a duas gravadoras ao mesmo tempo. Contratado a preço de ouro pela Columbia em 1955, ele bem que poderia dispensar sua então gravadora, a Prestige Records. Mas preferiu encarar. Foi daí que, para dar tempo de cumprir o acordado, surgiram os quatro dos seis históricos álbuns pelo selo de Bob Weinstock, todos registrados numa maratona de apenas duas sessões de gravação nos estúdios Van Gelder, em Nova York, em 11 de março e 26 de outubro de 1956: “Relaxin’”, “Workin’”, “Steamin’” e o irrepreensível “Cookin’”.
Trabalhar a “toque de caixa” para Miles e sua banda não era um problema. Pelo contrário: acostumados com a simultaneidade de projetos e ao ritmo corrido da indústria do jazz, isso os estimulava a por para fora a liberdade criativa e a encontrar soluções rápidas em meio à pressão pelo resultado. Afinal, não se tratava de qualquer conjunto. A The Miles Davis Quintet era, simplesmente, a melhor banda daqueles efervescentes anos do jazz. Formava-se por Paul Chambers, no baixo; Red Garland, ao piano; Philly Joe Jones; nas baquetas; e John Coltrane, soprando seu genial sax tenor. Esse time, comandados pelo trompete sofisticado e pela liderança nata de Miles, é o responsável pela feitura de “Cookin’”, que, assim como os outros três da Prestige, completa 60 anos de lançamento.
Elegância. É o que melhor define a versão de “My Funny Valentine”, que abre o disco. Um solo sensualíssimo de Miles serpenteia sobre a melodia de ritmo cadenciado oferecido pelas vassourinhas na caixa de Joe Jones e pela condução compassada de Chambers. Ao final do improviso, nota-se a melodia tomando um feitio suingado e suavemente alegre. Prenúncio do apurado solo que Garland despeja sobre o piano, salpicando notas ligeiras e saltitantes nas teclas brancas, uma de suas características. Miles volta a assumir a frente, o que faz com que o ritmo envolvente e harmonioso retorne para, numa total sintonia de todos, finalizarem o tema brilhantemente. Se “My Funny Valentine” com Frank Sinatra é talvez a maior referência pop desta canção, a da Miles Davis Quintet ganha o título de “a mais cool” certamente.
É Garland quem puxa "Blues by Five", composição sua. Um jazz bluesy irresistível como os que Miles tinha grata preferência. Depois de o trompete entoar inteligentemente sequências espaçadas mas firmes, é a vez de Coltrane dar as caras pela primeira vez. Um solo em séries lógicas e com certo suingue, mas demarcando seu estilo intenso, com notas arremessadas, sobreposições e leves dissonâncias. Garland, aqui com total propriedade dada a autoria, novamente esbanja suingue e delicadeza. Chambers não deixa por menos, escalonando no baixo um gostoso solo. Ao final, antes da conclusão, é Joe Jones quem mostra as armas, improvisando rolos e combinações tomadas de balanço na conjunção caixa/bumbo/tom-tom/chipô/pratos.
"Airegin", diferentemente das anteriores, dá uma guinada mais desafiadora à obra, haja vista sua composição intrincada que prenuncia o jazz modal aperfeiçoado por Miles dois anos dali no célebre “Kind of Blue”, o mesmo que Coltrane faria já como front band em “My Favourite Things”. Isso se nota quando Miles, que dá a largada nas improvisações, articula, de tempo em tempo, o solo sobre uma escala modulada, a qual se mantém paralelamente enquanto o trompete flutua naquele espaço/tempo. Isso tudo encapsulado por um jazz ágil, que exige a habilidade dos músicos aprendida nos night clubs nova-iorquinos. E, claro, todos se saem impecavelmente bem. O que dizer de Coltrane, particularmente afeiçoado a esse tipo de estrutura harmônica complexa? Ele parece passear com o som de seu sax pela atmosfera, num toque de extrema destreza, sensibilidade e potência. Miles, no seu jeito peculiar de elogiar, disse certa vez que não adiantava dar orientações ao saxofonista, pois ele era mesmo um “filho da puta irrefreável”.
"Tune Up", única composição de Miles, é incendiada pelo fogo do hard bop, mas, igualmente pela elegância e simetria dos sopros quando nos chorus. Joe Jones sustenta um compasso aligeirado na combinação entre caixa e pratos, enquanto o band leader desvela um solo entre o cool e a tradição do be bop. Coltrane, por sua vez, entra logo em seguida e não deixa por menos, num toque encadeado e elevando a tonalidade. Garland pede passagem com seu piano, intervindo lindamente enquanto Trane ainda improvisa. Até que sua vez chega, e ele parece celebrar os mestres Nat King Cole, Bud Powell e Ahmad Jamal. Joe Jones, endiabrado, entra na roda de solos para fazer uma rápida – mas de tirar o fôlego – dobradinha com Miles.
O engenheiro de som Rudy Van Gelder não corta o take e eles engatam em "Tune Up" outro standart do jazz assim como “My Funny...”: "When Lights are Low", de Benny Carter e Spencer Williams, de 1936. Num clima contemplativo parecido com a da faixa de abertura, eles mudam a rotação anteriormente intensa para um jazz cheeck to cheeck. Um solo deslumbrante de Miles, longo e expressivo, é prosseguido pelo de Coltrane, o qual também executa suas combinações por um bom tempo. Carregado, áspero, impetuoso, como é particular do saxofonista. Com suavidade e precisão, Garland encaminha o desfecho do número, que o líder Miles se encarrega de concluir.
O feito do “quinteto clássico” é ainda hoje, seis décadas transcorridas, praticamente inigualável. Se sim, foi conseguido bem dizer somente pelo próprio Miles quando este formara o “segundo grande quinteto”, entre 1964 e 1968 com Herbie Hancock (piano), Ron Carter (contrabaixo), Tony Williams (bateria) e Wayne Shorter (sax). “Na minha opinião, a intricada complexidade de ligação entre as mentes daqueles músicos jamais foi igualada por qualquer outro grupo”, escreveu o crítico musical Ralph Gleason anos 17 depois do lançamento da tetralogia da Prestige, da qual “Cookin’” é, se não o melhor, um dos mais celebrados por crítica e público. Hoje, 60 anos depois, o disco continua soando cristalino e atemporal. Agora, imagine se Miles Davis tivesse se concentrado! Nem dá pra pensar no que sairia.
..................................
FAIXAS
1. My Funny Valentine (Lorenz Hart/Richard Rodgers) - 6:04
2. Blues by Five (Red Garland) - 10:23
3. Airegin (Sonny Rollins) - 4:26
4. Tune Up (Miles Davis)/When the Lights Are Low (Benny Carter/Spencer Williams) - 13:09
..................................
OUÇA
Daniel Rodrigues
segunda-feira, 16 de novembro de 2015
Herbie Hancock – “Maiden Voyage” (1965)
"O esplendor de um navio
marítimo em sua viagem inaugural".
Hancock,
sobre o que lhe inspirou
a
compor a música “Maiden Voyage”
Ano passado, quando escrevi sobre um dos discos de jazz que mais
admiro, "Empyrean Isles", de Herbie Hancock, que completava 50 anos de seu lançamento, deixei subentendido que,
em 2015, outro dele não só mereceria também uma resenha quanto, igualmente,
chegava ao cinquentenário. Pois a dourada década 60 para o jazz
norte-americano, quando centenas de músicos produziam às pencas e com qualidade
jamais vista, obviamente, contaminavam este pianista, tecladista, compositor e
arranjador, um dos maiores jazzistas de todos os tempos e importante artífice
da cena ocorrida cinco décadas atrás. Prodígio (aos 11, já tocava Mozart ao
piano), Hancock notabilizou-se cedo no mundo do jazz de modo que, desde sua
estreia como band leader, em 1962,
aos 22 anos, seus trabalhos passaram sempre a ser aguardados com atenção. Após “Empyrean
Isles”, já maduro e consagrado, era normal que se esperasse dele algo inovador.
É quando entra nos famosos estúdios Van Gelder, em Nova York, a 17 de março de
1965, para lapidar outra pedra rara: o álbum “Maiden Voyage”.
Mas para equiparar-se ou até superar o que já havia feito, mais do que
qualquer expectativa externa o próprio Hancock certamente se impunha a não
apenas repetir a fórmula. Se o LP anterior trazia a semente do chamado jazz-funk, influenciando artistas da soul music, do jazz fusion, do rock e da música internacional (a ver pela MPB de Edu Lobo e Artur Verocai, para ficar em dois apenas), o desafio seguinte seria
articular outra novidade dentro de seu gigantesco cabedal de referências
sonoras. O jazz modal, o be-bop, a
música clássica, as inovações da vanguarda, os ritmos latinos: tudo passava pela
inventiva cabeça de Hancock. O resultado? Mais uma revolução dentro do jazz. E
a célula disso é a monumental faixa-título, composição magistralmente arranjada
e harmonizada por ele junto à não menos competente banda: o mestre do baixo
acústico Ron Carter; o saxofonista tenor com blues nas veias George
Coleman; Freddie Hubbard, no trompete, outro
monstro; e Tony Williams – dispensa comentários –, na bateria. Tudo amalgamado
pelos cirúrgicos dedos de Rudy Van Gelder na mesa de som – além de ter uma das
mais bonitas capas da Blue Note, assinada por Reid Miles.
E o que, então, essa “viagem inaugural“ de Hancock – não à toa, a faixa
de abertura – trouxe de diferente? A começar, um aprofundamento do chamado jazz
modal, introduzido por Miles Davis, artista do qual Hancock é um dos
discípulos, no memorável "Kind of Blue", de 1959. Isso por que o tema se vale duma configuração de modos musicais distintos, organizando esses campos
harmônicos através de uma distribuição entre os instrumentos espantosa. O riff de quatro acordes do piano se forma
por uma conjunção sensorial dicotômica: os três primeiros soam austeros,
enquanto o quarto, quase dispare, transparece vivacidade. O baixo, impositivo, logo
assume a função da manutenção da base, mas a seu jeito: ondulante na passagem
de uma nota para outra, dando sinuosidade ao contexto. Junto a isso, os metais,
noutro andamento mas dentro do mesmo tempo, registram dois tons acima. Perfil sonoro
alongado, de corpo simétrico e queda nada brusca. Parecem, sax e trompete, estar
num transe. Arrematando, a delicada bateria de Williams, que suspende a melodia
tanto pela manutenção nos pratos e caixa, o que lhe reforça o caráter etéreo,
quanto pelo estabelecimento de um compasso arrastado (e distinto dos mantidos
pelo piano e pelos metais, diga-se), no qual imprime leves atrasos no tempo. E,
por incrível que pareça (não tão incrível em se tratando de Hancock): tudo
fecha perfeitamente. Resta uma canção cujo centro modal é uno mas expandido, fazendo
com que os acordes soem livremente mas sempre reconduzidos a este.
Os solos de “Maiden Voyage” são um caso à parte. A primazia de abrir as
sessões de improviso é dada a Coleman, novo integrante e único não remanescente
da banda que gravara ”Empyrean Isles”. E ele faz jus ao privilégio. Que solo! O
seu melhor de todo o disco. Potente, rigoroso e lúcido. Já no final da primeira
frase, anuncia a conotação vertiginosa que não apenas ele quanto todos os
outros assumirão. Dois arpejos sutis mas determinados bastam para dizer isso. Sons
em espiral, autorreferências, ciclos. Solo curto, mas abundantemente expressivo.
Tão perfeito e afim com a melodia que não parece ter sido tirado na hora, mas
sim escrito em partitura. Carter, inteligente, segura com mãos de mágico toda
essa química quase improvável, enquanto Williams, este sim, sai apenas da
manutenção do compasso para, aproveitando-se do campo estendido do modal,
quebrar o andamento, lançar rolos curtos e desenhar o ritmo do jeito que a harmonia
lhe autoriza.
Aí vem a parte de Hubbard. Se em “Cantaloupe Island”, peça-chave do disco
anterior de Hancock, seu trompete trazia
um dos solos que se tornaria um dos mais pop do cancioneiro jazz, aqui, há
quase que uma recriação daquele improviso, porém, agora, ainda mais tomado de conexões
com a tradição do instrumento (Louis Armstrong, Coleman Hawkins, Miles) e com o
clima astral desse passeio musical proposto por
Hancock. Altíssima técnica e controle. Quase finalizando o solo, ele chama
todos os instrumentos a um momento mergulho, como que submersos num redemoinho
de sons no qual ele executa sons cíclicos e os companheiros reavaliam seus lugares:
oscilam, tumultuam-se e se reencontram novamente na margem. Emendado, o momento
do próprio Hancock desnuda ainda mais o âmago da canção: idas e vindas do
inconsciente em dissonâncias e sustenidos. A ideia espiral, claro, é retomada,
adicionando aí a onicidade fantástica que as teclas brancas agudas oferecem. Um
colosso da música mundial e uma das maiores expressões da avant-garde dentro do jazz. Enigmática mas instigante. Hermética
mas saborosa. Ousada mas cativante. Estruturalmente complexa mas hipnotizante.
Melodia, harmonia, arranjo, timbres: tudo faz com que “Maiden Voyage” seja uma
esfinge ainda a ser totalmente desvendada.
Na sequência, o espírito blues é o que comanda “The Eye of the
Hurricane”, hard-bop efervescente, como
o título sugere, e de pura habilidade e afinação entre os integrantes. A
atmosfera onírica não demora a reaparecer, entretanto. “Little One”, lenta e
contemplativa, abre com repetidos rolos na caixa da bateria. O baixo e o piano largam
acordes soltos e os sopros estabelecem um chorus
longo, para, por volta de 1min20, mudar o compasso e entrar o sax de Coleman num
solo apaixonadamente carregado. A mesma linha segue Hubbard, que ora retoma as
ideias centrais do próprio improviso, ora dá voos. Elegante (mas não menos
comovido), Hancock revela um piano quase erudito. Então que chega a vez de
Carter maravilhar com um solo extraído da alma, antes de repetirem o intrincado
chorus da introdução no final.
A exemplo do álbum anterior (na faixa “The Egg”), esta obra traz também
a sua de caráter abertamente vanguardista. Aqui, é “Survival of the Fittest”. Inconstante,
arranca com os sopros lançando notas agudas, o que é logo interrompido por um
breve solo de Williams. O ritmo que se põe é intenso, suingado, sobre o qual
Coleman destrincha acordes às vezes beirando o estilo dissonante de John Coltrane, sua forte inspiração. O andamento é quebrado novamente por volta dos
3 minutos para um novo momento da bateria, o qual antecipa a entrada de
Hubbard. Tabelinhas com o piano, intensificadas pelas batidas, dão às
improvisações do trompetista uma dinâmica incrível. Hancock entra e, entre
dedilhados rápidos ora atonais ora coloridos feito um recital romântico, retraz
lances de “Maiden Voyage”. Williams, de papel fundamental na construção de
“Survival...” a finaliza carregando na caixa, no ton-tons e nos pratos.
O desfecho não poderia ser mais saboroso, com “Dolphin Dance”, standart do repertório de Hancock
regravada por gente como Ahmad Jamal, Chet Baker e Bill Evans. Que melodia
bela! Das mais deliciosas do jazz. Os solistas deitam e rolam: Hubbard arrasa
em mais de 2 minutos ininterruptos só dele; Coleman, intenso e amoroso, como um
bom Dexter Gordon. Dono da canção, Hancock sublinha ainda mais a emotividade
adicionando-lhe novos motivos, pondo os golfinhos para dançar juntinhos. Uma simbólica
maneira de terminar a “viagem inaugural”.
O ano de 1965 foi
de obras-primas do jazz como "A Love Supreme" e “Ascension”, de Coltrane, “The
Gigolo”, de Lee Morgan, e “The Magic City”, de Sun Ra. E “Maiden Voyage”
certamente figura entre estes, quando não entre os maiores da história, como no
caso das listas de uDiscover e Jazz Resource, que o apontam entre os 50
melhores de todos os tempos. Independente de colocação, o que importa mesmo é a
permanência e a perenidade dessa música sem igual alcançada por Hancock e seus
músicos. O próprio Hancock, irrequieto, não retornaria mais a este ponto: depois
de apenas mais um trabalho na linha modal (“Speak Like a Child”, de 1968), o
músico se enfiou em projetos com Miles, produziu trilhas sonoras e, quando viu,
já estava nadando pelos mares do pós-bop,
do fusion e do funk para mudar
novamente a cara da música do século XX. “Maiden Voyage”, assim, serviu como
uma verdadeira passagem para novos caminhos. Uma esplendorosa viagem inaugural sem
volta e com destino à eternidade.
***************
FAIXAS:
1. Maiden Voyage
2. The Eye of the Hurricane
3. Little One
4. Survival of the Fittest
5. Dolphin Dance
todas as canções de autoria de
Herbie Hancock.
OUÇA O DISCO:
por Daniel Rodrigues
sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014
"O Lobo de Wall Street", de Martin Scorsese (2013)
Uma das melhores combinações que existem atualmente no cinema norte-americano chama-se Scorsese/DiCaprio. Um, atrás das câmeras, e o outro, à frente. Martin Scorsese, o mestre que soube impor à indústria mais do que elementos narrativos, fílmicos e estilísticos da cena underground, mas, sim, o seu próprio olhar sensível e afiado sobre a sociedade, o qual acolhe o realístico e o fantástico. Leonardo DiCaprio, por sua vez, é o grande ator hollywoodiano da atualidade, capaz de, como os bons da arte de atuar, encarnar os papeis desde galã até os mais agudos sem parecer ele mesmo de uma atuação para a outra.
Pois “O Lobo de Wall Street” (2013), quinto trabalho em conjunto da
dupla, vai além da estreia da parceria no inconsistente “Gangues de Nova York”
(2002), em que é Daniel Day-Lewis quem cumpre o “fator Robert de Niro” e não DiCaprio;
de “O Aviador” (2004), épico mas de difícil deglutição, já com DiCaprio à
frente; e do brilhante e premiado “Os Infiltrados” (2006), em que o panteão de
astros (Nicholson, Damon, Wahlberg, Sheen) faz com que os holofotes se dividam.
Neste novo longa, porém, a química do trabalho entre os dois está amadurecida e
DiCaprio conduz o filme com total controle num papel de difícil equilíbrio
dramático, pois construído sobre o perfil psicológico preferido de Scorsese
muitas vezes assumido pelo talhado e exemplar de Niro: personalidade obsessiva,
ambiciosa, extravagante e depressiva mas com grande poder de atração.
O filme conta a história do “vida loka” Jordan Belfort (DiCaprio), um
jovem sem orientação dos pais que vai trabalhar como corretor em Wall Street,
onde conhece Mark Hanna (Matthew McConaughey, magnífico nos menos de 10 minutos
em que aparece), de quem recebe ensinamentos de como lidar com dinheiro, o que
acaba levando para toda a vida. A Segunda-Feira Negra, no entanto, faz com que
as bolsas caiam repentinamente e Belfort perca o emprego. Vai trabalhar, assim,
numa corretora de fundo de quintal que lida com papéis baratos. Lá tem a ideia
de montar uma empresa focada neste tipo de negócio, cujas vendas são de valores
mais baixos mas, em compensação, o retorno para o corretor é bem mais
vantajoso. Cria, então, ao lado de Donnie Azoff (companheiro de todas as horas
e carreiras de pó) e de meia dúzia de amigos na mesma vibe de enriquecer, a corretora Stratton Oakmont, uma máquina de produzir
dinheiro que faz com que todos passem a levar uma vida sem limites dedicada ao
prazer, ao sexo e às drogas.
Neste sentido, Belfort se parece com Henry Hill (Ray Liotta) de “Os Bons
Companheiros” ou Jimmy
Doyle (DeNiro) de “New York, New York”, fator este que pode ser a única
crítica possível ao filme. Ao rodar uma nova “cinebiografia sem cortes” depois
de uma fantasia infantil, "A Invenção de Hugo Cabret" (2011), e de um terror
psicológico, "Ilha do Medo" (2010) – seus dois trabalhos anteriores –, Scorsese
estaria repetindo o formato de “Os Bons...”, “Aviador” ou “Touro Indomável”.
Sim, de fato. Mas qual o problema? Além de divertir com suas tiradas e cenas de
humor grotesco (a cena em que DiCaprio cheira cocaína para anular o efeito de
outra droga e reassumir o controle do próprio corpo para salvar o amigo,
fazendo um paralelo com o desenho do Popeye comendo espinafre na televisão, é
digna dessa classificação) e da habitual montagem hábil da mestra Thelma Schoonmaker,
“O Lobo...” é exemplar em atuações, não só do protagonista (Jonah Hill, como
Donnie, merece inquestionavelmente um Oscar de Coadjuvante, o qual concorre), mas
em condução narrativa, ainda mais tratando-se de uma produção de 3 horas, que o
espectador não vê passar tamanha a capacidade de prender-lhe a atenção.
A belíssima Margot Robbie como Naomi, a esposa de Belfort |
É
satisfatório saber que “O Lobo...” já é a maior bilheteria de Martin Scorsese
em sua carreira, tanto pela torcida pelo filme e a ele, cineasta que sempre
apostou no questionamento da sociedade contemporânea e na ruptura com os
modelos pré-estabelecidos da linguagem cinematográfica (e sem deixar de
reverenciar quem gosta), quanto pelo o que isso representa para o cinema em
dias atuais: a proposição de uma visão mais integrada das coisas, sem excessos
tanto de ideologias yankees imundas
nem de rompimento total com a arte. Nem tanto para blockbuster nem para Dogma 95. Cinema, na sua essência, é saber
contar uma história em audiovisual de uma forma interessante e cativante. Pois
o novo Scorsese/DiCaprio cumpre isso muito bem. Se vai ganhar algum Oscar,
mesmo com o ator principal sendo sério candidato, não se sabe, até porque a
Academia já cometeu muitas barbaridades em nome de ideologias políticas
duvidosas, e uma implicância com alguma ferida que o filme porventura toque não
seria de se estranhar que não leve mesmo alguma estatueta. Mas a torcida é
válida, pois predicados não faltam ao longa.
trailler "O Lobo de Wall Street"
por Daniel Rodrigues
quarta-feira, 25 de dezembro de 2013
Vince Guaraldi Trio - "A Charlie Brown Christmas" (1965)
e a glória do Senhor brilhou ao redor deles.
E eles tiveram muito medo, e o anjo disse:
‘nada temam, escutem: trago notícias alegres, que repartirei com toda a gente,
pois entre vocês nasceu, neste dia, na cidade de Davi,
um salvador, que é Cristo, nosso Senhor.’ (...)
E, de repente, ao redor do anjo, surgiu uma multidão de vozes
celestiais louvando ao Senhor e dizendo:
‘Glória a Deus nas Alturas, e paz na Terra aos homens de boa vontade’.
Este é o significado do Natal, Charlie Brown.”
Lino Van Pelt
Lino Van Pelt
Quando criança, o período do Natal me era empolgante por diversos
motivos. Além dos presentes, da reunião familiar e da decoração
pela casa, um deles era porque, nesta época, haveria programações
de tevê especiais que não se viam durante todo o ano. Era
necessário esperar 12 meses para que fossem transmitidas, pois
passavam somente no final de dezembro. Na Globo, depois da Missa do
Galo e de alguns desenhos temáticos da Turma do Mickey, rodava, já
de madrugada, um clássico hollywoodiano do nível de “E o Vento
Levou”, “O Mágico de Oz” ou “Hamlet” do Zefirelli. À
tarde, independente do dia que caísse o feriado, soltavam algum
filmão antigo sobre o Livro Sagrado como “Rei dos Reis”, “A
Bíblia” ou “Os 10 Mandamentos”. O Chaves, no SBT, repetiria
pela milésima vez o episódio em que todos da vila vão cear na casa
do Seu Barriga e causam a maior confusão – e eu via sempre. Dos desenhos animados, eram tradicionais os episódios natalinos. Todo
desenho que se prestasse deveria ter o seu! A Manchete dava vários
da Hanna-Barbera. Globo e SBT faziam o mesmo com o seu estoque: tinha
Natal dos Smurfs, da Pantera Cor-De-Rosa, do Pato Donald, do Tom &
Jerry e de vários outros.
Um dos que não me cansava de rever era o filme de Natal de um dos
desenhos que sempre me fez a cabeça: Snoopy. Era “Merry
Christimas, Charlie Brown”, o qual tinha como trilha sonora este
disco: “A Charlie Brown Christmas”, da Vince Guaraldi
Trio. Além de achar a série engraçada e prazerosa de ver – desde
lá, já adorava os personagens, o estilo de traço do Charles
Schulz, simples e expressivo, a coloração pastel, os longos
diálogos, o ritmo das narrativas e todo aquele universo da turma do
Minduim –, um dos elementos que mais me atraíam era, justamente, a
trilha sonora. Aquilo me arrebatava, embora me fosse enigmático.
O responsável por me fazer gostar assim, ainda pequeno, com uns 7, 8
anos, de um estilo de música que eu ainda nem sabia que se chamava
jazz é Vince Guaraldi. Pianista, maestro e compositor, dono de um
estilo de tocar e de compor de rara sensibilidade, ele é o autor de
todas as trilhas dos Peanuts desde as primeiras séries para tevê,
em 1964. Todas geniais. Oriundo da cena jazz da Costa Oeste, o “Dr.
Funk”, como era apelidado, ostentava um bigode pontiagudo tão
caricato quanto de um desenho animado e dizia-se, modestamente, um
mero “reformado pianista de boogie-woogie”, porém, mais
que isso, dominava o cool, o jazz contemporâneo, o soul e o
latin jazz, tornando-se influência para nomes como George Winston,
Dave Brubeck, Wynton e Ellis Marsalis. Este é o primeiro disco, além
das coletâneas e homenagens lançadas até hoje, dos três que
produziu para a série ao longo de aproximadamente 10 anos, até sua
morte prematura em 1976, aos 47 anos, vítima de um ataque cardíaco.
Pois “A Charlie Brown Christmas” é, assim como os desenhos do
cachorrinho Snoopy, apaixonante. A beleza começa na faixa inicial:
“O Tannenbaum”. A banda, composta por Guaraldi, Jerry Granelli,
na bateria, e Fred Marshall, no baixo acústico – a clássica e
charmosa formação em trio do jazz –, toca esta canção
tradicional germânica de Natal datada do século XIX. Claro, num
clima jazz-erudito ao modo de Gershwin. Nela, o piano de Guaraldi
desliza uma melodia suave e mágica, dando o tom que dominará o que
vem a seguir. “What Child is This?”, outra adaptação do
cancioneiro folk, este, da Inglaterra romanesca, vem numa arrojada
versão em que os três passeiam com elegância pela melodia,
situando-a entre o lúdico e o misterioso. O clima se mantém em “My
Little Drum”, composição do próprio Guaraldi, na qual o arranjo
se vale, pela primeira, do coral infantil, único tipo de voz usado
em todo o disco, o qual mantém, nesta, um vocalise constante
enquanto o piano desenha acordes que aludem a “O Tannenbaum”.
Quebrando o clima introspectivo – equilíbrio que, aliás, é
característico das próprias histórias do seriado –, vem a
clássica “Linus & Lucy”, certamente a mais conhecida canção
da série, curiosamente mais marcante do que os temas dos próprios
Snoopy e Charlie Brown. Esperta, faceira, bem humorada. Guaraldi,
como bom admirador de Herbie Hancock e Thelonius Monk, colore a
melodia com uma linha de piano swingada e moderna. Afinal, Natal é
tempo de alegria!
Das melhores do álbum, a emocionante “Christmas
Time Is Here” (que conta também com uma igualmente linda versão
cantada pelo coral infantil),
melancólica e sonhadora como o personagem Charlie Brown, é um show
do trio. Guaraldi, delicado e preciso no dedilhar, moderando
intensidades, volumes, ataques e sustenidos, improvisa belamente;
Granelli, raspando a escovinha sobre a caixa, ataca-a levemente para
marcar o tempo; e Marshall, no baixo, passeia pelas escalas com
liberdade e firmeza.
“Skating”
mais uma vez levanta o astral, musicando a brincadeira de esqui no
gelo praticada pelos personagens. Bluesy e cheia de swing, tem na
bateria um dos destaques, seja na parte que Granelli esfrega as
escovinhas ou na mais agitada, em que dá intensidade à música. O
riff, repleto de fantasia, traduz em sons a complexidade/simplicidade
do ato de brincar para o mundo da criança. O espírito natalino
retorna com a afortunada versão da cantata de Charles Wesley,
adaptada por Felix Mendelssohn em 1840, “Hark! The Herald Angels
Sing”, apenas com coral e órgão.
Na bossa-nova “Christmas Is
Coming”, Guaraldi homenageia dois de seus ídolos, Tom Jobim e Luis
Bonfá, e, de novo, seu toque remete aos mestres Hancock e Monk e
ainda Ahmad Jamal, Red Garland e Sonny Clark pelo fraseado de mão
esquerda solto e inteligente. Ele faz o mesmo em “The Christmas
Song”, solando por cerca de 1 minuto e 45 segundos (dos 3 minutos e
20 de toda a faixa), criando um jazz lírico e de cadência
arrastada.
Em “Für Elise”, a cândida
bagatela romântica de Beethoven escrita no início do século XIX,
que dispensa comentários de tão incrível, dá a impressão de que
Guaraldi cede lugar ao piano para o menino Schröeder, o alemãozinho
superdotado e amante do compositor da Nona, personagem dos Peanuts. O
tema de “What Child Is This?” é retomado com seu nome original
no folclore inglês, “Greensleeves”. A trilha finaliza com a
saltitante “Thanksgiving Theme”, não sem antes executar a minha
preferida de todos os temas inventados por Guaraldi para os
personagens de Snoopy: “Great Pumpkin Waltz”. Usada em outro
episódio da série, o da Grande Abóbora, é um tema simplesmente
magistral, que conta, além do trio, com a guitarra de John Gray e a
flauta de Tom Harrell. A melhor tradução do universo lúdico,
enigmático e fantasioso da série, que não se abstinha de mostrar
as aflições, emoções, incertezas, amores e fragilidades das
crianças. Pois a vida não é assim, repleta dessas belezas?
Neste sentido, Snoopy e Cia., que
mostra tão bem o mundo dos pequenos, tem tudo a ver com Natal, época
de celebrar a vida através do nascimento do Menino Jesus – e nada
melhor do que fazê-lo com boa música, né? Por isso, não é à toa
ter me lembrado deste desenho e de minha infância como pano de fundo
para um ÁLBUNS FUNDAMENTAIS especial de Natal. Ainda mais porque,
hoje, não se transmitem mais programas assim na tevê como ocorria
antes nesta época, inclusive os Peanuts, que nem passam mais há
muito tempo. O importante, entretanto, é o que disse Lino em sua
inocente sapiência ao citar, no episódio em questão, a passagem
bíblica de São Lucas sobre o nascimento de Cristo (e arrastando seu
inseparável cobertor azul, obviamente): “Este
é o significado do Natal, Charlie Brown”.
**********************************************
trecho do episódio "Charlie Brown Christmas"
FAIXAS:
1.
O Tannenbaum (Tradicional - Versão: Guaraldi) - 5:08
2.
What Child Is This? (Tradicional - Versão: William Chatterton Dix) -
2:25
3. My Little Drum (Guaraldi) -
3:12
4. Linus and Lucy (Guaraldi) -
3:06
5. Christmas Time Is Here
(Guaraldi/Lee Mendelson) - 6:05
6.
Christmas Time Is Here (Guaraldi/Mendelson) - 2:47
7.
Skating (Guaraldi/Mendelson) - 2:27
8.
Hark! The Herald Angels Sing (Mendelssohn/Wesley) - 1:55
9.
Christmas Is Coming (Guaraldi) - 3:25
10.
Für Elise (Ludwig van Beethoven) - 1:06
11.
The Christmas Song (Mel Tormé/Robert Wells) - 3:17
12.
Greensleeves (Tradicional - Versão: Dix) - 5:26
13.
Great Pumpkin Waltz* (Guaraldi) - 2:29
14.
Thanksgiving Theme* (Guaraldi) - 2:00
*
Na versão em CD de 2012
**********************************
OUÇA:
por Daniel Rodrigues
sexta-feira, 26 de abril de 2013
Ahmad Jamal Trio - "The Awakening" (1970)
Acima, a capa original de 1970 e
abaixo a capa de edições posteriores.
|
“Ele me impressionou com
seu conceito de espaço,
sua leveza de toque,
seu comedimento.”
Miles Davis,
sobre sua primeira audição de Ahmad Jamal, em 1953
Eu era um jovem da era pré-Google, sem dinheiro para comprar livros caros (neste caso, seriam dos caros) e sem muita orientação do que procurar para conhecer mais sobre um estilo de música que sempre me encantava quando ouvia: o jazz. Já conhecia "Kind of Blue" do Miles Davis alguma coisa de Wynton Marsalis e amava desde criança as trilhas do seriado Snoopy, que descobri serem de um tal de Vince Guaraldi vendo os créditos do desenho. Fora isso, mais nada. Assim, em minhas idas ao Centro de Porto Alegre para vasculhar e comprar discos (mais vasculhar do que comprar), entrava nas lojas e percorria com os dedos e os olhos a prateleira de vinis que dizia “Jazz” (embora já tivesse conhecimento suficiente para saber que a maioria das lojas não sabia classificar essa seção, por isso não era incomum achar um Richard Clayderman ou um Toto). Então que, numa dessas vezes, numa Multisom que até já fechou, encontrei um LP que tinha a maior cara de ser bom (e de jazz de verdade): “The Awakening”, de Ahmad Jamal Trio. Não só era o mais fino jazz como era, sim, muito bom, excelente.
Uma sonoridade refinada e viva exala do piano altamente técnico de Jamal, de uma identidade e emoção absurdas. É o que se vê na fenomenal faixa-título e de abertura, um dos melhores temas de jazz até hoje pra mim. Inicia com acordes soltos, que supõem um esboço da melodia, dando aos poucos forma a um jazz embalado e de clima suspenso com um toque erudito, seja pelos encadeamentos de acordes farfalhantes de Jamal, seja no padrão modal variante em si mesmo, mas sem suplantar a tônica. Intercala ataques ferozes até o mais suave dedilhar, ora rápido e miúdo nas teclas brancas agudas, ora altivo e imponente nas notas graves.
A aura clássica se intensifica na sequência, com outra obra-prima: “I Love Music”, uma peça lírica digna de Chopin e Rachmaninoff. Mas, como nos compositores românticos, este “amor” esconde mais mistérios do que se possa imaginar. Melancólica e densa, com um toque hispânico, abre com o piano em solo, num som cheio e ondulante. O baixo de Jamil Nasser e a bateria de Frank Gant entram depois de quase três minutos num complemento que envereda a música para uma amplitude sensorial ainda maior, mas mesmo assim as atenções se mantêm no estilo pronunciado do teclado de Jamal, desenhando uma harmonia rebuscada que alude, ao mesmo tempo, a um concerto beethoviano e às danças espanholas de Manuel De Falla.
Elevando o clima num jazz de compasso ligeiro e ritmo suingado, Jamal exercita variações de estruturas sobre uma base blues constante do baixo em “Patterns”, não menos magnífica. “Dolphin Dance” – delicada e etérea –, “You’re My Everithing” – ressonante, ora fugidia, ora acentuada – e “Stolen Moment” – apaixonante em sua construção em escalas – dão passagem para um desfecho forte e elegante com “Wave”, na mais impressionista versão do clássico de Tom Jobim Nesta, o pianista norte-americano se vale de um expediente pelo qual foi reconhecido desde seu surgimento nos clubes de jazz de Chicago, nos anos 50: o de simplificar a estrutura musical de standarts, permitindo-se dar novas cores ao tema.
Vim a saber, à medida em que fui entrando mais no mundo do jazz, que este disco, que comprei numa louvável reedição de 1986 da WEA, havia sido lançado originalmente 16 anos antes. Além disso, soube que este pianista, das poucas lendas do jazz ainda vivas, atualmente com 73 anos, é simplesmente uma das maiores influências de Miles Davis, Red Garland, Bill Evans e toda uma geração de jazzistas, pianistas ou não. O que sei é que, adquirido às escuras, “The Awakening” é até hoje um dos preferidos da minha discoteca, que vira a mexe volta ao toca-discos com o mesmo prazer da primeira audição. O prazer de uma descoberta.
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FAIXAS:
- "The Awakening" - 6:19
- "I Love Music" (Emil Boyd, Hale Smith) - 7:19
- "Patterns" - 6:19
- "Dolphin Dance" (Herbie Hancock) - 5:05
- "You're My Everything" (Harry Warren, Joe Young, Mort Dixon) - 4:40
- "Stolen Moments" (Oliver Nelson) - 6:27
- "Wave" (Antonio Carlos Jobim) - 4:25
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por Daniel Rodrigues
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