Eles não são franceses, mas manjam dos “mon amour”. A sonoridade do idioma francês enseja à musicalidade. E que músico que não gostaria de cantar uma canção em francês? Há os que se aventuraram com muito sucesso, a se ver por Cássia Eller com "Non, je ne regrette rien", Grace Jones com “Libertango” ou Caetano Veloso em "Dans mon Ile".
No entanto, cantar em francês é uma coisa. Agora, compor não sendo da terra de Piaf é, aí sim, tarefa para poucos.
Poucos e bons, é possível dizer. Em época de Olimpíadas de Paris, fizemos aqui uma pequena lista de músicos não-franceses e suas composições, originais, na língua de Hugo. E é cada preciosidade, que Aznavour diria, com toda a certeza: “Oh là là”!, elogio que até quem não é da França compreende.
Semelhante ao que fizemos há 3 anos quando das Olimpíadas de Tóquio, pinçamos só coisas interessantes, desde roqueiros a jazzistas, de músicos populares a eletrônicos. Só coisa boa, só "crème de la crème". Confiram aí!
PS: Pensaram que a gente ia puxar a Gretchen cantando "Melô Do Piripipi", hein!?
“La Renaissance Africaine”– Gilberto Gil
Certa vez, nos anos 90, assistia na TV5, canal de televisão estatal francês, a uma entrevista do craque Raí, cidadão francês e ídolo por lá. Até que, de repente, quem o apresentador chama para entrar no estúdio? Gilberto Gil. Com um francês em dia, o mestre teria uma lista só sua de composições francófonas. Uma delas, destacamos aqui, talvez a mais bela de todas, originalmente de 2008 e gravada de maneira gigante em "Concerto De Cordas & Máquinas De Ritmo". Numa Olimpíadas em que grande parte dos atletas da casa são descendentes diretos de africanos, esta música se torna cada vez mais pertinente e poética.
“Dis-mois Comment”– Chico Buarque
O cara tem casa em Paris, onde, aliás, passou o seu recente aniversário de 80 anos. É outro da MPB que domina o francês talvez tanto quanto o português pelo qual é multipremiado como escritor. Tanto que é capaz de escrever canções como “Joana Francesa”, feita para a voz de Jeanne Moreau para o filme homônimo de 1973 na qual brinca com a sonoridade de um idioma e outro. Mas esta aqui, em especial, é integralmente em francês. Trata-se de ser uma das 14 joias da parceria Chico Buarque e Tom Jobim, que nada mais é do que "Eu te Amo", que o autor gravou com a cantora Cecília Leite em 2005.
“Le Petit Chevalier”– Nico
Nico iniciou a carreira musical muito bem amparada por nomes como Bob Dylan, Jackson Browne, Lou Reed e John Cale. Porém, embora o inquestionável talento dessa turma, ela ficava sempre muito dependente e, pior, subjugada a homens e relegada apenas a uma intérprete. Foi então que, em 1971, ela mesma compôs faixa a faixa aquele que é seu melhor álbum: “Desertshore”, no qual consta esta bela canção de ninar cantada em francês pela voz do pequeno francesinho Ari Boulogne, filho da musicista e modelo com o ator Alain Delon, à época com 9 anos. Uma preciosidade, ou melhor, "un bijou".
“Orléans”– David Crosby
Neil Young é amado pelos fãs de rock, mas da turma do folk rock da Costa Oeste David Crosby talvez seja o mais lendário deles. Após encabeçar projetos célebres como a The Byrds, a Crosby, Stills, Nash & Young, ele lança, em 1971, seu primeiro disco solo. Afiado melodista assim como seus parceiros de estrada, ele traz no seu maravilhoso “If I Could Only Remember My Name” a linda “Orléans”. Tá certo: trata-se de um tema tradicional do folclore norte-americano, mas a roupagem dada pelo arranjo de Crosby justifica o crédito.
“Aéro Dynamik” – Kraftwerk
Por meio e através das máquinas, eles criaram sons universais. Nada mais natural, então, de criarem músicas não apenas no alemão, seu idioma original, mas em outros diversos como inglês, espanhol, português e até japonês. Para a língua da França, no entanto, a Kraftwerk guardou um trabalho especialmente dedicado, que é o belíssimo disco “Tour de France Soundtracks”, de 2003. Todas as músicas não instrumentais receberam letra em francês, como esta, que fala sobre um dos elementos essenciais para o ciclismo e outros esportes de velocidade: a aerodinâmica.
“La Pli Tombé” – Marku Ribas
Marku Ribas é daqueles craques da música brasileira que o Brasil não conhece. Talvez até por isso, ele seja mais bem entendido por quem fala francês. Tendo morado em Paris no final dos anos 60 (atuou neste período em filmes de Robert Bresson e Jean-Marc Tibeau, no qual interpreta o líder comunista brasileiro Luiz Carlos Prestes, inclusive), este mineiro incontrolável foi parar na Martinica, onde oficialmente fala-se francês, mas não-oficialmente o crioulo. Numa mistura dessas duas fontes, Marku escreveu algumas de suas canções, como esta, baseada em um folclore tradicional martinicano, que grava em seu excepcional disco “Marku”, de 1976.
“Bonjour, Monsieur Gendarme” – Chico César
Outro talentoso músico brasileiro também se aventurou pelo bom “français”. Chico César, em seu álbum “Vestido de Amor”, de 2022, gravado em Paris e que tem, além da produção do franco-belga Jean Lamoot, toques de músicos africanos, brasileiros e franceses. Primeira composição feita por Chico em francês, foi uma das iscas para atrair os ouvintes de lá para a edição estendida do álbum. Espertinho esse Chico César.
“Valse Au Beurre Blanc” – Ed Motta
O ouvido de Ed Motta capta e absorve tudo que é som do mundo. Da tão admirável Paris, não seria diferente. No seu “Dwitza”, de 2009, considerado por muitos seu melhor trabalho, ele manda ver nesta genial “chanson” – e com uma pronúncia daquelas de quem sabe o que está cantando. Mais do que isso: convida para os vocais um coro de barítono e sopranos e ao estilo Bel Canto elegantérrimo. Ah, detalhe: é ele, Ed, quem toca todos os instrumentos. “Va te faire foutre!”, é só o que posso dizer.
“Le Mali Chez la Carte Invisible” – Tiganá Santana
O primeiro álbum do compositor, cantor e instrumentista baiano Tiganá Santana, "Maçalê", lançado em 2010, é nada mais, nada menos, do que o primeiro álbum na história fonográfica do Brasil em que um autor apresenta canções próprias em línguas africanas. São línguas do tronco linguístico bantu, mas onde também entra bela canção em francês inspirada em reconstruções idiomáticas de várias pessoas que habitam o solo do continente africano.
“Purquá Mecê” – Os Mulheres Negras
A música saiu na gozação com o idioma francês, daquelas típicas da dupla Maurício Pereira e André Abujamra, principalmente, que faria várias dessas na sua banda Karnak anos depois com o russo, o espanhol, o esperanto e por aí vai. Além de ser um barato, a letra, que não diz coisa com coisa, explora a sonoridade do francês e tenta (sim, tenta) traduzir para o português. Clássico d'Os Mulheres Negras.
Rita e Sakamoto nos deixaram esse ano mas seus ÁLBUNS permanecem e serão sempre FUNDAMENTAIS
Chegou a hora da nossa recapitulação anual dos discos que integram nossa ilustríssima lista de ÁLBUNS FUNDAMENTAIS e dos que chegaram, este ano, para se juntar a eles.
Foi o ano em que nosso blog soprou 15 velinhas e por isso, tivemos uma série de participações especiais que abrilhantaram ainda mais nossa seção e trouxeram algumas novidades para nossa lista de honra, como o ingresso do primeiro argentino na nossa seleção, Charly Garcia, lembrado na resenha do convidado Roberto Sulzbach. Já o convidado João Marcelo Heinz, não quis nem saber e, por conta dos 15 anos, tascou logo 15 álbuns de uma vez só, no Super-ÁLBUNS FUNDAMENTAIS de aniversário. Mas como cereja do bolo dos nossos 15 anos, tivemos a participação especialíssima do incrível André Abujamra, músico, ator, produtor, multi-instrumentista, que nos deu a honra de uma resenha sua sobre um álbum não menos especial, "Simple Pleasures", de Bobby McFerrin.
Esse aniversário foi demais, hein!
Na nossa contagem, entre os países, os Estados Unidos continuam folgados à frente, enquanto na segunda posição, os brasileiros mantém boa distância dos ingleses; entre os artistas, a ordem das coisas se reestabelece e os dois nomes mais influentes da música mundial voltam a ocupar as primeiras posições: Beatles e Kraftwerk, lá na frente, respectivamente. Enquanto isso, no Brasil, os baianos Caetano e Gil, seguem firmes na primeira e segunda colocação, mesmo com Chico tendo marcado mais um numa tabelinha mística com o grande Edu Lobo. Entre os anos que mais nos proporcionaram grandes obras, o ano de 1986 continua à frente, embora os anos 70 permaneçam inabaláveis em sua liderança entre as décadas.
No ano em que perdemos o Ryuichi Sakamoto e Rita Lee, não podiam faltar mais discos deles na nossa lista e a rainha do rock brasuca, não deixou por menos e mandou logo dois. Se temos perdas, por outro lado, celebramos a vida e a genialidade de grandes nomes como Jards Macalé que completou 80 anos e, por sinal, colocou mais um disco entre os nossos grandes. E falando em datas, se "Let's Get It On", de Marvin Gaye entra na nossa listagem ostentando seus marcantes 50 anos de lançamento, o estreante Xande de Pilares, coloca um disco entre os fundamentais logo no seu ano de lançamento. Pode isso? Claro que pode! Discos não tem data, música não tem idade, artistas não morrem... É por isso que nos entregam álbuns que são verdadeiramente fundamentais. Vamos ver, então, como foram as coisas, em números, em 2023, o ano dos 15 anos do clyblog:
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PLACAR POR ARTISTA (INTERNACIONAL)
The Beatles: 7 álbuns
Kraftwerk: 6 álbuns
David Bowie, Rolling Sones, Pink Floyd, Miles Davis, John Coltrane, John Cale* **, e Wayne Shorter***: 5 álbuns cada
Talking Heads, The Who, Smiths, Led Zeppelin, Bob Dylan e Lee Morgan: 4 álbuns cada
Stevie Wonder, Cure, Van Morrison, R.E.M., Sonic Youth, Kinks, Iron Maiden , U2, Philip Glass, Lou Reed**, e Herbie Hancock***: 3 álbuns cada
Björk, Beach Boys, Cocteau Twins, Cream, Deep Purple, The Doors, Echo and The Bunnymen, Elvis Presley, Elton John, Queen, Creedence Clarwater Revival, Janis Joplin, Johnny Cash, Joy Division, Madonna, Massive Attack, Morrissey, Muddy Waters, Neil Young and The Crazy Horse, New Order, Nivana, Nine Inch Nails, PIL, Prince, Prodigy, Public Enemy, Ramones, Siouxsie and The Banshees, The Stooges, Pixies, Dead Kennedy's, Velvet Underground, Metallica, Dexter Gordon, Philip Glass, PJ Harvey, Rage Against Machine, Body Count, Suzanne Vega, Beastie Boys, Ride, Faith No More, McCoy Tyner, Vince Guaraldi, Grant Green, Santana, Ryuichi Sakamoto, Marvin Gaye e Brian Eno* : todos com 2 álbuns
*contando com o álbum Brian Eno e John Cale , ¨Wrong Way Out"
**contando com o álbum Lou Reed e John Cale, "Songs for Drella"
*** contando o álbum "Five Star', do V.S.O.P.
PLACAR POR ARTISTA (NACIONAL)
Caetano Veloso: 7 álbuns*
Gilberto Gil: * **: 6 álbuns
Jorge Ben e Chico Buarque ++: 5 álbuns **
Tim Maia, Rita Lee, Legião Urbana, Chico Buarque, e João Gilberto* ****, e Milton Nascimento*****: 4 álbuns
Gal Costa, Titãs, Paulinho da Viola, Engenheiros do Hawaii e Tom Jobim +: 3 álbuns cada
João Bosco, Lobão, João Donato, Emílio Santiago, Jards Macalé, Elis Regina, Edu Lobo+, Novos Baianos, Paralamas do Sucesso, Ratos de Porão, Roberto Carlos, Sepultura e Baden Powell*** : todos com 2 álbuns
*contando com o álbum "Brasil", com João Gilberto, Maria Bethânia e Gilberto Gil
**contando o álbum Gilberto Gil e Jorge Ben, "Gil e Jorge"
*** contando o álbum Baden Powell e Vinícius de Moraes, "Afro-sambas"
**** contando o álbum Stan Getz e João Gilberto, "Getz/Gilberto"
***** contando com os álbuns Milton Nascimento e Criolo, "Existe Amor" e Milton Nascimento e Lô Borges, "Clube da Esquina"
+ contando com o álbum "Edu & Tom/ Tom & Edu"
++ contando com o álbum "O Grande Circo Místico"
PLACAR POR DÉCADA
anos 20: 2
anos 30: 3
anos 40: -
anos 50: 121
anos 60: 100
anos 70: 160
anos 80: 139
anos 90: 102
anos 2000: 18
anos 2010: 16
anos 2020: 3
*séc. XIX: 2 *séc. XVIII: 1 PLACAR POR ANO
1986: 24 álbuns
1977 e 1972: 20 álbuns
1969 e 1976: 19 álbuns
1970: 18 álbuns
1968, 1971, 1973, 1979, 1985 e 1992: 17 álbuns
1967, 1971 e 1975: 16 álbuns cada
1980, 1983 e 1991: 15 álbuns cada
1965 e 1988: 14 álbuns
1987, 1989 e 1994: 13 álbuns
1990: 12 álbuns
1964, 1966, 1978: 11 álbuns cada
PLACAR POR NACIONALIDADE*
Estados Unidos: 211 obras de artistas*
Brasil: 159 obras
Inglaterra: 126 obras
Alemanha: 11 obras
Irlanda: 7 obras
Canadá: 5 obras
Escócia: 4 obras
Islândia, País de Gales, Jamaica, México: 3 obras
Austrália e Japão: 2 cada
Itália, Hungria, Suíça, França, Bélgica, Rússia, Angola, Nigéria, Argentina e São Cristóvão e Névis: 1 cada
*artista oriundo daquele país
(em caso de parcerias de artistas de países diferentes, conta um para cada)
“Paulinho na verdade é uma ponte, não uma ruptura. É um craque (vascaíno) de ligação entre a tradição e o novo, o lado de lá e o de cá, o samba de morro e o do asfalto, as raízes e as antenas. Paulinho criou suas influências e seus precursores. Sua obra modificou nossa concepção do que se fez antes em matéria de samba.”
Zuenir Ventura
Paulinho da Viola tem uma relação com o tempo distinta de todo o resto da humanidade. Primeiro, porque é evidente que ele não pertence a uma mera sucessão de instantes que se passam um depois do outro. Seria muito reducionista em se tratando de Paulo César Batista de Faria que, dizem, está completando 80 anos de vida. Mas duvide-se um pouco disso. Ele mesmo admite que é um ser do século 19 nascido quase que por engano no século 20. Engano, no entanto, não é. Se sua existência não responde à cronologia dos mortais, sua vinda ao mundo significa algo muito representativo. Este “dândi do morro” é, sob nenhuma suspeita, o grande modernizador do ritmo mais brasileiro de todos os tempos (e um dos mais latinos também): o samba. Irokô, orixá do tempo, sabe das coisas: não teria seu filho emprestado vindo com sua classe, originalidade e elegância se não fosse para decretar que o novo samba lhe pertence. Nele, a estética e a sofisticação da classe média da zona sul do Rio de Janeiro dos anos 50 e 60 se encontraram com a vibração dos subúrbios cariocas, resultando numa nova forma que atravessa o tempo sem alterar sua essência e abraçando a modernidade.
A carreira de Paulinho, marcada pela observância acurada da música de Cartola, Zé Ketti, Dª Ivone Lara e Nelson Cavaquinho, iniciou ao lado dos bambas do passado e do presente no conjunto Rosa de Ouro, e 1965. Mas a música está desde sempre na sua vida. Vem de casa, das rodas de choro em Botafogo promovidas pelo pai, o violonista César Faria, onde recebia de Pixinguinha, Jacob do Bandolim e Dilermando Reis sob os olhos do pequeno Paulo. Depois, nos pagodes e feijoadas na quadra da Portela, sua Escola, onde aprendeu com os gênios anônimos Manacéa, Ventura, Paulo da Portela, Santana, Monarco, Carlos Cachaça, Candeia. Fora isso, na juventude, o convívio de perto com os mestres no Zicartola, de Nelson Sargento a Clementina de Jesus, passando por Elton Medeiros, Hermínio Bello de Carvalho, Ciro Monteiro e outros, que deram combustível ao coração sensível e à mente altamente inteligente de Paulinho. Eis, então, um autor original e intimista, que consegue juntar a tradição do samba, a voz do morro e a modernidade aludida pela bossa nova.
Dono de uma obra de apenas 21 álbuns solo em quase 60 anos de carreira, sendo alguns ao vivo ou de regravações, Paulinho tem um cancioneiro diminuto. Sabiamente descompassado do restante do mercado fonográfico, desde 1996 não lança um trabalho de estúdio novo. Isso tudo obriga o ouvinte a, diante de sua obra, ser tão contemplativo quanto suas letras sugerem, fazendo com que cada disco seu seja um verdadeiro tesouro artesanal onde guardam-se preciosidades como choros, toadas, sambas-enredo, partidos-altos e mais e mais brasilidades. Tudo encapsulado por um estilo marcadamente sofisticado e por uma poética que remete ao parnasianismo, ao simbolismo, ao romantismo e às vezes à poesia moderna (a se ver pela ousada “Sinal Fechado”, de 1971). Por isso, escolher “Prisma Luminoso” para representar sua discografia é tarefa fácil. Nele se encontra toda esta conjunção de qualidades amalgamadas a um estilo tomado de originalidade e fineza.
Quase como um lema, “O Tempo não Apagou” começa um dos discos preferidos do próprio Paulinho em ritmo de batucada, a qual encerra com uma batida única que não se encontra mais em lugar nenhum, nem mesmo nas escolas de samba há bastante desviadas do som dos blocos carnavalescos de antigamente. Logo depois, de arranjo impecável de Cristóvão Bastos, o samba romântico “Retiro” apontaria o caminho em timbrística e clima para a retomada da carreira de Emílio Santiago alguns anos dali nas “Aquarelas Brasileiras”. Já “Cadê a Razão”, João Bosco, Djavan e Gilberto Gil na veia (não à toa dedicada aos três, aliás) traz uma saborosa mistura de samba-de-breque com funk. Na medida certa, sem pesar a mão, bem ao estilo do seu autor.
Outra joia do disco é “Mas Quem Disse que Eu te Esqueço”, de autoria de Dª Ivone em parceria com Hermínio. Certamente uma das mais belas melodias e letras do samba de todos os tempos: “Tristeza rolou dos meus olhos/ De um jeito que eu não queria/ E manchou meu coração/ Que tamanha covardia”. Ainda mais quando cantada pela voz principesca de Paulinho! O samba triste “Mais que a Lei da Gravidade” tem no piano de Cristóvão a cama perfeita para a parceria com Capinan, com quem Paulinho também divide a autoria da faixa-título, um clássico samba de breque com astral pra cima, amoroso e sensível. Nela, se vê claramente a poética de Paulinho, que faz alusão às metáforas com os elementos naturais e suas simbologias, como o mar, o vento, o olhar, o sal e o cristal. Elementos da passagem do tempo.
A ótima “Documento”, de Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro, abre a segunda parte do disco, que tem na sequência outra coautoria de Paulinho, esta com o antigo parceiro Elton: “Quem Sabe”. Com um distinto riff puxado no cavaquinho, faz jus ao legado de Cartola a que tanto os dois dignificam. “Quem sabe/ Retomando a velha estrada/ Eu encontro em outros braços/ Aquela ternura que um dia perdi/ Dentro dos olhos teus”. A modernidade de Cartola, aliás, a qual Paulinho tanto exalta, é novamente reverenciada na versão de “Não Posso Viver sem Ela”, música de 1942 gravada originalmente por Ataulfo Alves e pelo seu autor em 1976. Para encerrar, o impecável “Prisma...” traz ainda a bela “Cisma”, a onírica “Só Ilusão” e a sertaneja “Toada”, mostrando a maturidade de um artista que se experimenta em vários gêneros.
Acontecimentos únicos como Paulinho da Viola revestem-se, no entanto, de certa normalidade. Veja-se só agora, com os 80 anos deste artista, celebrados país e mundo afora. Mas é só parar um pouco e observar o que está tácito: 80 anos, que nada! Paulinho tem 80 e mais, 80 e todos. 80 e tudo. Muita sabedoria, poesia, elegância, beleza para caber em meros anos somados uns anos outros. Ele pensa que engana quando canta os versos de Wilson Batista: “meu tempo é hoje”. Pura humildade: o tempo de Paulinho não é só hoje: é sempre. Paulinho é o tempo do infinito, o tempo dos mares que tanto lhe cabem na poesia. O tempo do vento, que lhe faz articular essa voz límpida e cheia de coração. O tempo do amor, sentimento sem tempo. Não é ele quem se navega: quem lhe navega é o mar.
Irokô definitivamente sabe das coisas.
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FAIXAS:
1. "O Tempo Não Apagou" - 3:18
2. "Retiro" - 2:50
3. "Cadê A Razão" - 3:08
4. "Mas Quem Disse Que Eu Te Esqueço" (Dona Ivone Lara, Hermínio Bello De Carvalho) - 3:20
5. "Mais Que A Lei Da Gravidade" Capinan, Paulinho Da Viola) - 3:25
6. "Prisma Luminoso" (Capinan, Paulinho Da Viola) - 3:09
7. "Documento (Eduardo Gudin, Paulo César Pinheiro) - 3:05
8. "Quem Sabe" (Elton Medeiros, Paulinho Da Viola) - 3:05
9. "Cisma" - 3:05
10. "Não Posso Viver Sem Ela" (Bide, Cartola) - 2:48
11. "Só Ilusão" - 4:15
12. "Toada" - 1:50
Todas as composições de autoria de Paulinho da Viola, exceto indicadas
O dias em que passamos Leocádia e eu no Rio de Janeiro foram invariavelmente lotados. Só coisa boa, mas lotados. Mas sempre se tem espaço para encaixar mais uma programação, ainda mais quando esta trata de música. Ou melhor: quando esta trata de música E discos, o que para um colecionador é um prato cheio. Minha mãe, sabendo de nosso gosto, havia avisado dias antes que ocorreria, no domingo, a Feira de Vinil Gira Música, na Casa da Polônia, no próprio bairro e avenida onde estávamos instalados, Laranjeiras. Pois que, voltando de um passeio no bairro Jardim Botânico neste dia, eis que cruzamos em frente à feira. Obviamente que descemos e fomos dar uma conferida, o que não só valeu a pena a título de passeio como, claro, de compras.
A feira trazia food trucks, bancas com artesanato e bijuterias e uma exposição sobre o célebre músico, arranjador e produtor Lincoln Olivetti, morto há 4 anos, infelizmente muito primária e amadora e que não dimensionava nem de perto a relevância do homenageado. Mas isso não era o mais importante e, sim, aquilo que nos levou até lá: os discos. Com expositores cariocas mas também vindos de Minas Gerais e São Paulo, a feira estava muito boa em termos de quantidade e variedade. Todos os gêneros musicais contemplados, mas principalmente rock, MPB e jazz. O nível dos expositores chamou atenção, uma vez que todos sabem muito bem o acervo que oferecem. Ou seja: os discos raros tinham preços que justificavam suas particularidades. Títulos como "A Bad Donato", de João Donato, "Stand", da Sly & Family Stone, o primeiro disco de Arthur Verocai, "Spirit of the Times", de Dom Um Romão, "Blue Train", de John Coltrane, ou o disco do próprio Lincoln em parceria com Robson Jorge, clássico da AOR brasileira, não saíam por menos que 500, 400, 350, 200, 180 Reais ou valores parecidos.
Galera percorrendo as prateleiras em busca "daquele" vinil
Clima descontraído e musical da Feira de Vinil na Laranjeiras
Não só vinil tinha na feira
Eu vasculhando as preciosidades da banda do Sonzera, um dos expositores
Pedaço da miniexposição sobre Lincoln Olivetti: deixou a desejar
Em compensação, vários balaios. E bons! Com muita variedade e, às vezes, até discos raros, era possível encontrar unidades a 10, 20 ou 30 Reais. E foi aí que me esbaldei, passando algumas horas na feira percorrendo as caixas com promoções enquanto Leocádia aproveitava outras atividades ou simplesmente me aguardava. Uma das atrações da feira seria a presença do cantor e compositor Hyldon, lenda da soul brasileira, que estaria à tarde autografando seu disco relançado, mas não ficamos para isso. Afinal, já estávamos muito bem alimentados com o que encontramos de variedade e qualidade de bolachões, inclusive esses, os que levamos para casa:
“Limite das Águas”– Edu Lobo (1976) Edu tem vários discos solo cultuados, como “Missa Breve”, “Camaleão” e “Jogos de Dança”, mas não raro este aparece como o preferido do autor de “Ponteio”. Afinal, não tem como não adorar as parcerias como Capinan, Cacaso e Guarnieri, além do primor dos arranjos do próprio Edu e as participações de músicos do calibre de Oberdan Magalhães, Cristóvão Bastos, Joyce, Toninho Horta, Danilo Caymmi e o grupo vocal Os 3 Morais. Coisa fina da MPB.
“Libertango”– Astor Piazzola (1974) Um dos gênios da música do século XX em seu disco mais icônico. Gravado em Milão, é a representação máxima do tango argentino moderno, tanto que as próprias faixas, assim como a que o intitula, trazem o termo “tango” no nome: Meditango, Violentango, Undertango, entre outras. De ouvir ajoelhado - ou tangueando.
“Brazilian Romance – Sarah Vaughn with Milton Nascimento”ou“Love and Passion”– Sarah Vaughn (1987) A grande cantora norte-americana Sarah Vaughn, amante da MPB, recorrentemente voltava ao gênero. Depois de gravar discos como “Exclusivamente Brasil” e “O Som Brasileiro de Sarah Vaughn”, nos ano 70, em 1987 ela torna à sonoridade do Brasil por meio de um de seus mais admirados compositores: Milton Nascimento. E o faz isso com alto grau de requinte, haja vista a produção de Sérgio Mendes, os arranjos de Dori Caymmi e participações de gente como George Duke e Hubert Laws. Ela quase levou um Grammy de melhor performance feminina por este álbum.
“Merry Christmas, Mr. Lawrence (Music From The Original Motion Picture Soundtrack)”–Ryuichi Sakamoto (1983) Tenho adoração por este filme intitulado no Brasil como “Furyo - em Nome da Honra”, e tanto quanto pela trilha sonora, escrita pelo genial Ryuichi Sakamoto. Que, aliás, atua neste filme de Segunda Guerra do mestre Nagisa Oshima, o qual conta no elenco (e só no elenco, o que acho legal também em nível de desprendimento) e como ator principal David Bowie em espetacular atuação. A faixa-título é não só linda como um marco das trilhas sonoras feitas para cinema.
“Stories to Tell” – Flora Purim (1974) Terceiro disco solo de Flora e segundo dela em terras norte-americanas. Ou seja, vindo um ano após o seu debut “Butterfly Dreams”, no mesmo ano de“Hot Sand”, do então marido Airto Moreira, e dois da estreia com Chick Corea na Return to Forever, “Stories...” a consolida como a musa do jazz brasileiro. Ainda por cima tem Carlos Santana, George Duke, Ron Carter e o próprio Airto compondo a “bandinha”. E que voz é essa a dela?!
“Amor de Índio”– Beto Guedes (1978) Dos discos mais célebres da chamada “segunda fase” do Clube da Esquina. A galera tá toda lá: Milton, Brant, Toninho, Tiso, Venturini, Tavinho, Caetano e, claro, Ronaldo Bastos, produtor, compositor com Beto da faixa-título e autor da icônica foto dele enrolado no cobertor usada por Cafi na arte da capa.
texto:Daniel Rodrigues
fotos: Leocádia Costae fanpageGira Brazil - Gira Música
“Em 77, eu fui a Lagos, na Nigéria, onde reencontrei uma paisagem sub-urbana do tipo dos conjuntos habitacionais surgidos no Brasil a partir dos anos 50, quando Carlos Lacerda fez em Salvador a Vila Kennedy, tirando muitas pessoas das favelas e colocando-as em locais que, em tese, deveriam recuperar uma dignidade de habitação, mas que, por várias razões, acabaram se transformando em novas favelas [...] ‘Refavela’ foi estimulada por este reencontro, de cujas visões nasceu também a própria palavra, embora já houvesse o compromisso conceitual com o ‘re’ para prefixar o título do novo trabalho, de motivação urbana, em contraposição a ‘Refazenda’, o anterior, de inspiração rural.” Gilberto Gil
Não bastasse o movimento cíclico dos acontecimentos da
história, que de tempos em tempos retornam à pauta pelo simples fato de não
terem sido totalmente resolvidas no passado, parece que outros motivos retrazem
espontaneamente questões importantes de serem revisitadas. Caso dos negros no
Brasil, cuja história, escrita com a sangue e dor mas também com bravura e
beleza, faz-se sempre necessário de ser discutida. Se o 20 de Novembro carrega o
tema com pertinência, por outro lado, fatos recentes, como a ascensão
neo-fascista na Alemanha e Estados Unidos ou ocorridos racistas como o do “flagra”
do jornalista William Waack, mostram o quanto ainda há de se avançar nos
aspectos do preconceito racial, desigualdade social e intolerância. Por detrás
desses fatos, há, sim, muito a se desvelar justiça.
Dentro deste cenário, entretanto, outro fato, este extremamente
positivo, também vem à cena para, ao menos, equilibrar a discussão e trazer-lhe
um pouco de luz. Estamos falando dos 40 anos de lançamento de “Refavela”, disco
que Gilberto Gil lançara no renovador ano de 1977 e que, agora, em 2017, é
revisto e celebrado com uma turnê comemorativa – a qual conta com as
participações de Moreno Veloso, Bem Gil, Céu, Maíra Freitas e Nara Gil.
Não à toa “Refavela” mantém-se atual e referencial. O disco tem
a força de um manifesto da nova negritude. Elaborado num Brasil ainda sob o
Regime Militar de pré-anistia, O disco capta o momento político-social
brasileiro, especialmente, dos negros, sobreviventes de uma recente abolição
(menos de 90 anos àquele então) e, bravios e corajosos, tentando avançar num
país subdesenvolvido e repleto de desafios sociais. Desafios estes, claro, superdimensionados
a um negro, cujos índices de estrutura social eram – e ainda são – injustamente
inferiores. Em conceito, Gil reelabora as diferentes vertentes de manifestação
cultural negras, do axé baiano ao funk, do afoxé ao reggae jamaicano, do samba
aos símbolos do candomblé. Assim, atinge não apenas uma diversidade
rítmico-sonora invejável quanto, representando o status quo do povo
afro-brasileiro (urbano, porém fincado em suas raízes), mas uma diversidade
ideológico-étnica, o motivo de ser de toda uma raça a qual ele, Gil, faz parte.
Do encarte do disco: Refavela: revela, fala, vê
A melhor tradução disso é a própria faixa-título, um hino do
que se pode chamar de “neo-africanidade”. De tocante clareza, a qual busca
bases na filosofia do geógrafo e amigo Milton Santos, a música demarca um novo
ponto de partida dos negros, cujas condições sociais, econômicas, habitacionais
e culturais enxergam, diante de muita dificuldade, um horizonte. “A refavela/
Revela aquela/ Que desce o morro e vem transar/ O ambiente/ Efervescente/ De
uma cidade a cintilar/ A refavela/ Revela o salto/ Que o preto pobre tenta dar/
Quando se arranca/ Do seu barraco/ Prum bloco do BNH”. A “refavela”, assim, não
é somente o lugar de morar, mas um novo espaço ideológico até então não ocupado
pelos negros e que lhes passa ser devido. Isso, encapsulado por uma sonoridade
igualmente contemplativa, como num sereno jogo de capoeira, de notas que se
equilibram entre a suavidade da raça negra e a seriedade da situação a se
enfrentar.
Enfrentamento. Isso é o que a faixa seguinte traduz muito
bem. Referenciando a visão revanchista da situação negra (a qual,
posteriormente, muito se verá discurso do rap nacional), “Ilê Ayê” traz as
palavras de ordem de inspiração no movimento Black Power entoadas pelo primeiro
bloco de carnaval baiano a se debruçar sobre essas ideias de maneira forte e
posicionada. A música, que impactara as ruas de Salvador em 1975, vem com uma
mensagem rascante: “Branco, se você soubesse o valor que o preto tem/ Tu tomava
um banho de piche, branco/ E ficava preto também/ E não te ensino a minha
malandragem/ Nem tampouco minha filosofia, porque/ Quem dá luz a cego é bengala
branca em Santa Luzia.” Algo diferente estava acontecendo no “mundo negro”.
Gil, que havia retornado do exílio há quatro anos e viajara
recentemente à Nigéria, onde viu de perto situações análogas ao presente e o
passado do Brasil, começara o projeto “Re” há dois com o rural e introspectivo “Refazenda”.
Agora, voltava seu olhar também para dentro de si, mas por outro prisma: o do
pertencimento. “O que é ser um negro no Brasil?”, perguntou-se. A interposição
entre estes dois polos – roça e cidade, sertanejo e negro, interno e externo – está
na mais holística canção do álbum: "Aqui e Agora". Das mais
brilhantes composições de todo o cancioneiro gilbertiano, é emocionante do
início ao fim, desde a abertura (que repete os acordes de “Ê, Povo, Ê”, de
“Refazenda”, mostrando a sintonia entre os dois álbuns) até a melodia suave e
elevada, intensificada pelo arranjo de cordas. A letra, tanto quanto, é de pura
poesia. O refrão, tal um mantra (“O melhor lugar do mundo é aqui/ E agora”), desconstrói
a lógica materialista de que “lugar” é necessariamente relacionado ao físico,
uma vez que este também é “tempo”, é imaterial. Gil mesmo comenta sobre o
misticismo da letra: "’Aqui e Agora’ é de uma sensorialidade tanto física
quanto álmica, quer dizer, fala de como ver, ouvir, tocar as superfícies do que
é sólido e do que é etéreo, denso e sutil; de uma visão voltada para dentro, o
farol dos olhos iluminando a visão interior.”
“Refavela” é realmente cheio de historicidades. Uma delas é a primeira aparição do reggae na música brasileira. Caetano Veloso já havia estilizado o ritmo em “Transa” com “Nine Out of Ten”, de 1972, quando ainda no exílio londrino. Porém, assim, tão a la Bob Marley, começou, sim, com "No Norte da Saudade". Igual importância tem outro reggae: “Sandra”, escrita quando Gil tivera que cumprir pena em um centro psiquiátrico em Florianópolis após ser preso portando droga numa turnê. Ele relata o rico encontro que tivera com várias mulheres (Maria Aparecida, Maria Sebastiana, Lair, Maria de Lourdes, Andréia, Salete), entre enfermeiras, tietes e pacientes. Em contrapartida, o músico também reflete sobre o quanto aquela loucura, simbolizada no porto-seguro sadio de sua então esposa, Sandra, praticamente não se distinguia da vida tresloucada do lado de fora do hospício.
A África-Brasil também se manifesta através dos ritos. Caso
do afoxé moderno "Babá Alapalá", cuja letra
celebra as divindades do candomblé: “Alapalá, egum, espírito elevado ao céu/
Machado alado, asas do anjo Aganju/ Alapalá, egum, espírito elevado ao céu/
Machado astral, ancestral do metal/ Do ferro natural/ Do corpo preservado/
Embalsamado em bálsamo sagrado/ Corpo eterno e nobre de um rei nagô/ Xangô.” A música, escrita por Gil originalmente para a cantora e atriz Zezé Mota - sucesso com ela naquele mesmo ano - também integrou a trilha sonora do filme "Tenda dos Milagres", de Nelson Pereira dos Santos, o qual também trazia como tema a ancestralidade. Detalhe: uma das vozes do coro é a do mestre da soul brasileira Gerson King Combo.
Gil à época de "Refavela"
A presença de King Combo faz total sentido. Aquele 1977, de
fato, foi de um “re-nascimento” da cultura negra no Brasil. Se o samba via o
gênio Cartola chegar, aos 69 anos, a seu celebrado terceiro disco solo, e uma
inspirada Clara Nunes reafirmar a brasilidade de raiz, paralelamente, a soul
music e o funk extrapolavam os limites do subúrbio e chegavam ao grande
público. Estamos falando da geração “do black jovem, do Black Rio, da nova
dança no salão”, como diz um trecho da canção “Refavela”. Sintonizado com isso,
Gil olha novamente para dentro de si, neste caso, a influência latente da bossa
nova, e redesenha o clássico "Samba do Avião" sob novas cores. As
harmonias jobinianas originais ganham, aqui, um suingue funkeado ao melhor
estilo do soul brasileiro, na linha do que faziam Banda Black Rio, Carlos Dafé, Tim Maia, King Combo e outros.
Moderna em harmonia e arranjo – que poderia tranquilamente
ter sido gravada na atualidade por algum artista “gringo” fã de MPB, como Beck
ou Sean Lennon –, “Era Nova” é outra joia de “Refavela”. Nela, o baiano
sublinha uma crítica à ideia de o homem ter a necessidade de sempre querer
decretar a disfunção de certos tempos e prescrever a vigência de outros,
buscando instalar um novo ciclo histórico, seja do ponto de vista religioso ou
do político. Os versos iniciais são taxativos – e sábios: “Falam tanto numa
nova era/ Quase esquecem do eterno é”...
Visivelmente influenciada pela então recente vivência de Gil
na Nigéria, "Balafon" – nome de um tradicional instrumento da África
Ocidental –, pinta-se de tons do afrobeat de Fela Kuti e, por outro lado, da
poliritmia percussiva que desembarcara na Bahia negra vinda do Continente
Africano há séculos. Já o encerramento do disco não poderia ser mais simbólico
com “Patuscada de Gandhi”. Trata-se de um afoxé entoado pelo bloco Filhos de
Gandhi, ao qual Gil não apenas integra como, mais que isso, foi fundamental
para sua manutenção no carnaval baiano quando, dois anos antes, compusera a
música “Filhos de Gandhi” como forma de convocar todos os orixás para que o
grupo não se extinguisse. Deu certo. Tanto que, três anos depois, renovado o
bloco e sua importância antropológico-social para a cultura afro-brasileira,
Gil pode, feliz com a meta cumprida, aproveitar e fazer a folia.
Provavelmente estarei presente no show em celebração ao
aniversário de “Refavela”, que vem em dezembro a Porto Alegre, e devo voltar a
falar sobre este trabalho por conta dos novos arranjos e da ocasião
comemorativa em si. Entretanto, intacta já é a importância deste disco para a
música brasileira em todos os tempos. Vendo-se tantos artistas da atualidade em dia que,
cada um a seu modo, representam a negritude em sua diversidade (Criolo, Chico Science, Teresa
Cristina, Emicida, Seu Jorge, Fabiana Cozza, Mano Brown, Paula Lima, MV Bill), é
impossível não associá-los a “Refavela”. Todos filhos daquela geração que se
emancipava, e que, agora, crescida, segue para enfrentar novos desafios. Para
conquistar novos espaços. Em um Brasil que ainda tem muito em se que avançar,
isso é o que se extrai de “Refavela” a cada audição: a “re-significação”.
Gilberto Gilcomenta e canta"Babá Alapalá"
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FAIXAS:
1. "Refavela" - 3:40
2. "Ilê Ayê" (Paulinho Canafeu) - 3:10
3. "Aqui e Agora" - 4:13
4. "No Norte da Saudade" (Gilberto Gil, Moacyr Albuquerque, Perinho Santana) - 4:19
5. "Babá Alapalá" - 3:35
6. "Sandra" - 3:03
7. "Samba do Avião" (Tom Jobim) - 4:11
8. "Era Nova" - 4:51
9. "Balafon" - 2:39
10. "Patuscada de Gandhi” (Afoxé Filhos de Gandhi) - 4:20
Todas as músicas compostas por Gilberto Gil, exceto indicadas