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segunda-feira, 20 de abril de 2020

Discos para (e de) quarentena


A Queen, isolada numa
fazenda para gravar sua
obra-prima
Nesse período de isolamento em casa pela Covid-19, de todo lado surgem listas com indicações do que se ler, assistir e, bastantemente, ouvir. De playlists a discos, muitos recorrem à música pra aliviar a barra da clausura forçada. Eu mesmo colaborei com uma seleção recentemente para o site AmaJazz sobre os discos de jazz que 50 pessoas escolheram para escutar na quarentena – o meu, aliás, foi "The Real McCoy", de McCoy Tyner, a pouco resenhado por mim para a seção ÁLBUNS FUNDAMENTAIS aqui do blog.

Mas o que ainda não ouvi falarem são os discos não necessariamente próprios para este momento, mas os FEITOS em isolamento. Seja no estúdio improvisado na própria casa, num apartamento fechado, numa mansão isolada da civilização e até num hospício ou cadeia. Tem de tudo. Não é novidade que artistas em geral busquem essa condição de recolhimento para se concentrar, principalmente quando intentam um projeto novo. Porém, geralmente isso ocorre de maneira controlada e adaptada a um fluxo rotineiro. Aqui, não. Falamos de exemplos da discografia do rock, da MPB, da black music e do jazz concebidos ou gravados em condições extremas de afastamento de qualquer outra coisa que pudesse interferir além da própria criação musical. Tamanho foco não raro acarretou em trabalhos brilhantes, sendo alguns bastante recorrentes em listas de melhores em vários níveis.

Woodland, a casa que viu nascer
"Trout...", da Captain Beefheart
Mesmo que o motivo para se isolar destes discos não seja o de um perigo à saúde como hoje, cada um deles é, a seu modo e motivo, também fruto de um momento necessário de reflexão. Se seguirmos o termo pelo que diz o dicionário, "reflexão", do latim tardio, quer dizer "ato ou efeito de refletir algo que se projeta". Música, assim como toda arte, não é exatamente isso?

Aqui, então, uma listagem que serve como dicas para audição nestes dias com 15 discos cujo processo de isolamento lhes foi essencial para serem concebidos, mesmo que a própria sanidade mental de seus autores tenha sido, em certos casos, comprometida para que isso ocorresse (se é que já não estava). Se a nossa saúde física está em perigo atualmente, a discografia musical, diante dessa (aparente) contradição entre “liberdade” e “prisão”, é capaz de sanas nossas mentes.


*****

1. “Os Afro-Sambas” – Baden Powell e Vinícius de Moraes (1966)
Local: Casa de Vinícius de Moraes, Parque Guinle, Laranjeiras, Rio de Janeiro, Brasil

Já resenhado aqui no blog, é o exemplo clássico na música brasileira de confinamento que deu certo. Mas não um isolamento para ficar limpo ou longe da família e das tentações. Os instrumentos de home office foram o poderoso violão de Baden, o papel e a caneta de Vinícius e um engradado de whisky 12 anos. “Eu fiquei tão entusiasmado que passamos uns três meses completamente enfurnados”, disse Vinícius sobre a temporada em que abrigou Baden em seu apartamento no Parque Guinle, no Rio de Janeiro, para comporem as mais de 50 canções que resultariam n”Os Afro-Sambas”. Depois da concepção, foi só lapidar em estúdio com as intensas percussões, os arranjos e regência do maestro César Guerra-Peixe e as participações vocais do Quarteto em Cy e de Dulce Nunes. Como Cly Reis bem colocou na resenha de 2013, “Os Afro-Sambas” é “uma perfeita mescla de técnica, poesia, brasilidade, africanidade, sincretismo, tradições, folclore e genialidade em um trabalho que leva ao limite a multiplicidade e as possibilidades dentro da linguagem do samba e das vertentes da música brasileira desde suas mais remotas origens”.

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2. “Music from Big Pink” – The Band (1968)
Local: "Big Pink", West Saugerties, Ulster, Nova York, EUA

Ia tudo bem com os canadenses Robbie Robertson, Rick Danko, Levon Helm, Garth Hudson e Richard Manuel em 1966. Eles formavam o grupo de apoio de Bob Dylan no clássico “Bringing It All Back Home” e revolucionavam o folk rock ao eletrificá-lo de forma inequívoca. Mas o perigo está sempre à espreita. Não demorou muito para que as reações contrárias viessem e as vibrações ruins dos conservadores da música norte-americana afetassem tanto Dylan, que o fizeram se acidentar de moto. Fim da linha? Não, pelo contrário: fase superprodutiva. Com músicas até sair pela orelha, os rapazes da The Band alugam uma casa de cor rosa em West Saugerties, uma pacata vila no Condado de Ulster, em Nova York, e concebem seu primeiro e histórico álbum, metalinguisticamente chamado de “música da grande casa rosa”. Resultado: “Music...”, cuja capa reproduz um óleo da autoria de Dylan, é classificado como 34º melhor disco pela Rolling Stone's entre os 500 maiores de todos os tempos. Não precisa dizer mais nada.


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3. “Trout Mask Replica” – Captain Beefheart & His Magic Band (1969)
Local: Woodland Hills, Ensenada Drive, Modesto, Califórnia, EUA

O blueser vanguardista Don Van Vliet já havia dado ao mundo do rock dois discos memoráveis com sua Captain Beefheart: Safe as Milk (1967) e Strictly Personal (1968). Mas um filho musical de Frank Zappa como ele jamais se contenta com o que já fizera. Movido por um desejo artístico superior, Vliet fez, então, “Trout...”. Reproduzo o parágrafo que abre a resenha que escrevi em 2013 sobre este disco aqui para o blog, pois vai na essência do que essa obra representa: “Um músico se trancafia em um casarão antigo, só ele e um piano. Ali, compõe 28 peças. Não, não estamos falando de algum pianista de jazz em abstinência de heroína nem de um concertista clássico precisando de isolamento e concentração para criar sua obra-prima. Estamos falando de um disco de rock, tocado com baixo, guitarra, bateria e, solando, clarinetes e saxofones. Tudo sem um acorde sequer de piano. (...) Talvez o trabalho que melhor tenha fundido rock, jazz, blues, folk e erudito, sustenta o status de uma verdadeira ‘obra de arte’, um dos 10 registros mais importantes da música contemporânea ao lado obras de Shostakovitch, Charles Mingus, Velvet Underground e Ligeti.”

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4. “Gilberto Gil” - Gilberto Gil (1969)
Local: Quartel da Vila Militar, Deodoro, Rio de Janeiro, e domicílio-prisão, Rua Rio Grande do Sul, Pituba, Salvador, Brasil

Antes de “Changin’ Time”, do norte-americano Ike White (que falaremos logo adiante), outro grande disco cunhado em regime de cárcere era produzido, infeliz ou felizmente, no Brasil. Foi em 1969, nos anos de ditadura militar. O que se tem a celebrar desse capítulo triste da história brasileira é que nem a repressão foi suficiente para impedir que a genialidade de Gilberto Gil produzisse um álbum grandioso tanto em qualidade quanto em simbologia e resistência. O supra-sumo do tropicalismo. E ainda num ínterim tenso e degradante. Em prisão domiciliar em Salvador após meses encarcerado no Rio de Janeiro e quatro meses antes de embarcar para o exílio em Londres, Gil lançou mão apenas de seu violão e de sua voz para gravar as bases de todas as músicas que comporiam seu novo álbum. Nove preciosidades que, quando foram parar nas mãos de Rogério Duprat para que este as produzisse e as vestisse com os outros instrumentos e orquestrações, seu autor já estava em pouso forçado no Velho Mundo. O antropólogo Hermano Vianna observa, abismado, que "Gilberto Gil" “é quase um milagre que tenha sido produzido e lançado”. Milagre maior é saber que desse disco há obras como “Aquele Abraço”, “Futurível”, “Cérebro Eletrônico” e “Volks Volkswagen Blues”.

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5. “Barrett” – Syd Barrett (1970)
Local: Fulbourn Hospital, vila de Fbridbourn, Cambridgeshire, Inglaterra

Syd Barrett é daqueles gênios que nunca bateram muito bem. A capa, desenho dele, denota esse ínterim entre a loucura e a mais graciosa sanidade. Ao mesmo tempo em que produzia coisas incríveis, como a marcante participação (e fundação!) na Pink Floyd, era capaz de cair num estado vegetativo indissolúvel. A esquizofrenia era ainda mais comprometida pelo uso de drogas pesadas. Tanto que, logo depois de “The Piper at the Gates ofDown”, de 1967, o de estreia da banda, Roger Waters e David Gilmour assumiram-lhe a frente. Mas não sem desatentarem do parceiro, que gravaria logo em seguida o também lendário “The Madcap Laughs”. Gilmour, aliás, amigo e admirador, fez o que poucos fariam para manter viva aquela chama: montou um estúdio em pleno manicômio, em que Barrett fora internado, em 1969, para que o “Crazy Diamond” registrasse sua obra mais bem acabada antes que sua mente se deteriorasse e o impedisse disso para sempre. Foi, aliás, exatamente o que aconteceu com Barrett, morto em 2006 totalmente recluso e sem ter nunca mais entrado num estúdio com regularidade. Antes, graças!, deu tempo de salvar “Barrett”, dos discos cinquentões de 2020.

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6. “Led Zeppelin IV” – Led Zeppelin (1971)
Local: Headley Grance, East Hampshire, Inglaterra

Era comum a galera do rock dos anos 60 e 70 dar umas escapadas sabáticas para ver se conseguiam fugir um pouco burburinho de fãs e executivos e produzir algo que lhe satisfizesse. Acabou sendo o que aconteceu com a Led Zeppelin para a produção daquele que foi seu mais celebrado disco: o “IV” (ou "Four Symbols", ou "ZoSo" ou "o disco do velho”). Em dezembro de 1970, a banda se reuniu no recém-inaugurado Sarm West Studios, em Londres, para a pré-produção de seu até então novo álbum. Só que não. Outra banda, a Jethro Tull, havia chegado primeiro. O quarteto Page/Plant/Bonham/Jones decidiu, então, por sugestão dos integrantes de outra grande banda inglesa, a Fleetwood Mac, finalizar a produção no pequeno estúdio da Headley Grance, uma mansão de pedra de três andares em East Hampshire, no meio do nada, com fama de mal assombrada mas com uma acústica incrível. Prova do acerto na escolha do lugar para a gravação é o som da bateria de Bonham em "When the Leevee Breaks", gravada, com microfones-ambiente na base da escadaria da casa. O resultado é um som trovejante e uma das introduções de bateria mais marcantes de todos os tempos. Fora isso, o local viu nascerem alguns dos maiores clássicos do rock de todos os tempos, como "Black Dog", "Rock and Roll", "Stairway to Heaven" e "Four Sticks".

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7. “Exile on Main St.” – The Rolling Stones (1972)
Local: Mansão Nellcôte, Villefrance-sur-Mer, Costa Azul, França

Sabe tudo que se fala do caos que foi o set de filmagens de “Apocalypse Now”, do Coppola, com drogas, sexo, atrasos, grana desperdiçada, crises e, claro, o isolamento de toda a equipe  do filme numa floresta quente e úmida? Algo semelhante foram as gravações de Exile...”, dos Rolling Stones. Troca-se apenas a úmida floresta asiática pela da famosa Nellcôte, mansão localizada na mediterrânea Villefrance-sur-Mer, Sul da França, que presenciou, entre 10 de julho a 14 de outubro de 1971, um festival de sexo, drogas e muito, mas muito rock ‘n’ roll. Quase ninguém saía nem entrava, a não ser traficantes e groupies para animar as noites viradas. Os atrasos, como no filme, foram decorrência, o que, aliás, também fez gastar tempo e dinheiro. No que se refere à crise, foi uma financeira que fez a banda fugir da Inglaterra para aquele lugar longe de tudo – principalmente do fisco. Cenário perfeito para sair tudo errado, certo? Se o filme de Coppola venceu a Palma de Ouro e virou o maior filme de guerra de todos os tempos, “Exile...”, a seu tempo, se transformou no melhor disco dos Stones – o que é quase dizer que se trata do melhor disco de rock de todos os tempos.



8. “Rock Bottom” – Robert Wyatt (1974)
Local: Little Bedwyn, vila de Wiltshire, Inglaterra

O segundo disco solo do inglês Robert Wyatt, então baterista da Soft Machine, é outra experiência radical de isolamento forçado. Porém, esta se deu por um motivo limite: um grave acidente. Na noite de 1º de junho de 1973, em uma festa regada a Southern Comfort COM tequila (receita ensinada pelo parceiro de bebedeira Keith Moon), Wyatt, depois de incontáveis doses, não percebeu que saía a pé por uma janela, despencando sem escalas direito do quarto andar rumo ao chão. Ele acordou só no outro dia numa cama de hospital sem movimentar as pernas nunca mais a partir de então. Quando ele finalmente conseguiu se sentar em uma cadeira de rodas, um dos primeiros objetos que encontrou no hospital foi um velho piano na sala de visitas, onde começou a trabalhar no material de “Rock Bottom”, algo como “fundo do poço”. Após um período difícil de adaptação à sua nova condição, ele começou a gravar faixas no início de 1974 em uma fazenda em Little Bedwyn, numa pacata vila de Wiltshire, sudoeste da Inglaterra, alavancando a unidade de gravação móvel da Virgin Records, estacionada no campo do lado de fora da casa. Para o crítico musical e historiador italiano Piero Scaruffi, “Rock...”, cuja soturna arte da capa também é de autoria de Wyatt, é uma das 15 obras mais importantes da música moderna na segunda metade do século XX.



9. “A Night at the Opera” – Queen (1975)
Local: Rockfield Studios, Rockfield Farm, Monmouthshire, País de Gales

A história desse disco é tão legal, que virou uma das melhores sequências do premiado filme “Bohemian Rhapsody” - faixa, aliás, que exprime com grandeza a importância e qualidade ímpar do disco da Queen. Depois do sucesso dos primeiros álbuns com o grupo e recém contratados por uma grande gravadora, a banda sabia que tinha que trazer algo melhor e novo no álbum seguinte. Pois Freddie Mercury, em alta efervescência criativa, convence o restante do grupo a se instalar temporariamente na Rockfield Farm, uma pequena vila no sudeste do País de Gales, longe do burburinho dos fãs e, principalmente, de qualquer influência que o desviasse do objetivo de fazer, sem modéstia, uma obra-prima. Se a gravadora achou ousado demais e houve críticas à mistura de música clássica com rock, não importa. O fato é que “A Night...” logo estourou, entrou para a lista dos mais vendidos e saiu bem àquilo que Freddie intentava: uma obra-prima.



10. “Changin' Times” – Ike White (1976)
Local: Tehachapi State Prison, Tehachapi, Califórnia, EUA

Se o assunto é disco produzido e gravado num ambiente fechado, “Changin’ Times”, de Ike White, vai ao extremo. Músico prodígio, hábil com vários instrumentos e de uma capacidade compositiva sem igual, ele poderia ter sido um dos grandes astros da black music norte-americanos, no nível de James Brown, Isaac Hayes ou Curtis Mayfield. Só que o destino cruel quis que aquele homem negro tão talentoso quanto pobre fosse sentenciado por um homicídio e passasse a maior parte da vida na cadeia. Mas foi dentro de uma, a penitenciária de Tehachapi, uma pequena cidade no interior da Califórnia, que White, em 1976, ajudado por Stevie Wonder e pelo produtor Jerry Goldstein, revelasse ao mundo aquele é um dos melhores discos da música soul de todos os tempos, o acertadamente intitulado “Tempos de Mudança”. Esses dados são adivinhados pelos agradecimentos na capa do álbum ao superintendente Jerry Emoto, do Departamento de Correções da Califórnia, e ao restante da equipe da prisão "sem cuja ajuda esse projeto não poderia ter sido realizado". E não há mais informações sobre Ike White. Nada. Ano passado, o documentário “The Changin' Times of Ike White”, de Daniel Vernon, revelou alguma coisa mais do pouco que se sabe sobre a lenda Ike White. Porém, ouvindo um disco tão maravilhoso quanto este talvez se conclua que seja isso mesmo tudo que se precise saber.



11. “Bedroom Album” – Jah Wabble (1983)
Local: Dellow House, Dellow Street, Wapping, East London, Inglaterra

Dellow House, sito ao logradouro de mesmo nome, área urbana da Grande Londres, código postal E1. Este é o endereço em que o lendário baixista britânico Jah Wabble gravaria um de seus discos mais influentes para a galera do pós-punk, entre eles, Renato Russo, que ovacionava este álbum. Porém, nem mesmo todas essas indicações geográficas são suficientes para apontar precisamente onde o disco fora concebido, produzido e gravado: o próprio quarto de Wabble. Aliás – assim como o já citado disco da The Band – o título, "Bedrom Album", mais claro, impossível. Depois de ter ajudado John Lydon e sua trupe da Public Image Ltd. a definir o som dos anos 80 e 90, Wabble, não dado por satisfeito e dono de uma carreira solo que passa desde a música eletrônica ao free funk, fusion, experimental e new-wave, faz seu o melhor trabalho até hoje. As linhas de baixo graves e mercadas ganham toda a relevância nos arranjos, que tem como aliada a guitarra do parceiro Animal (Dave Maltby). Os outros instrumentos, todos a cargo do dono do quarto. Semelhanças com a sonoridade da P.I.L., há, como na brilhante “City”, nas arábicas “Sense Of History”, “Concentration Camp” e “Invaders of the Heart”. Uma aula de como fazer um disco brilhante sem sair da cama.

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12. “Blood Sugar Sex Magik” – Red Hot Chili Peppers (1991)
Local: The Mansion, Laurel Canyon, Los Angeles, Califórnia, EUA

A The Mansion, antiga construção na montanhosa Laurel Canyon, em Los Angeles, era lendária e assombrada. Nas décadas de 1960 e 1970, muitos artistas famosos como Mick Jagger, David Bowie, Jimi Hendrix e The Beatles estiveram nela. Conta-se que, nos anos 20, seus donos a abandonaram depois que um homem morreu caindo de sua varanda. Há quem afirme que, quando esteve em seus corredores, as portas se abriam sozinhas. Era o cenário perfeito para que os malucões da Red Hot gravassem "BSSM", seu quinto e mais festejado álbum. Os 30 dias em que Anthony Kiedis, Flea, John Frusciante e Chad Smith se mudaram para a mansão pertencente ao produtor Rick Rubin foram essenciais para que criassem clássicos e hits do rock como "Give It Away", "Under The Bridge", "Suck My Kiss" e "Breaking the Girl". Funk, punk, heavy metal, indie, jazz fusion, pop. Tudo junto e misturado no disco que, junto de “Nevermind”, do Nirvana, fez o rock alternativo sair das cavernas e ir para as paradas.



13. “Wish” – The Cure (1992)
Local: The Manor Studio, Shipton Manor, Oxfordshire, Inglaterra

A The Cure também teve a sua vez de reclusão. Foi para a gravação de “Wish”, de 1991. O trabalho anterior, o celebrado “Disintegration”, foi um sucesso de crítica e público, mas bastante tempestuoso durante as gravações. Último disco com o então integrante formador Lawrence Tollhust, muito desse clima se deve à relação já bastante estremecida dele para com Robert Smith e outros integrantes da banda. Já sem ele, decidem, então, se enfurnar numa mansão em estilo Tudor em Oxfordshire, interior da Inglaterra, a chamada Shipton Manor. Um lugar espaçoso, cheio de espelhos enormes, tapetes persas, lareiras e um enorme mural no átrio. A ideia eram justamente, fugir um pouco de toda a polêmica e as complicações em torno do processo que o Tolhurst movia contra Robert Smith e o grupo. A safra foi frutífera, tanto que rendeu um álbum duplo, o último grande da banda, e com o hit “Friday I’m in Love”, que colocou “Wish” nas primeiras posições em várias paradas naquele ano.



14. “Ê Batumaré” – Herbert Vianna (1992)
Local: Antiga residência dos Vianna, Estrada do Morgado, Vargem Grande, Rio de Janeiro, Brasil

Talvez um desavisado que conheça Herbert Vianna hoje, paraplégico por causa de um acidente sofrido em 2001, pense que “Ê Batumaré”, assim como o disco de Wyatt, seja caseiro por motivos de "força maior". Mas, não. À época, quase 20 anos antes daquele ocorrido trágico, o líder e principal compositor da Paralamas do Sucesso, dotado de todas as funções motoras, estava dando uma guinada sem volta na carreira pela influência da música brasileira em sua música (em especial, do Nordeste). Já se percebiam sinais em discos da banda, como “Bora Bora” (1988) e “Os Grãos” (1991), e se sentiria ainda mais no sucessor “Severino”. Gravado, tocado e cantado inteiramente pelo ele em uma garagem sem tratamento acústico e num equipamento semiprofissional (como está escrito no próprio encarte), ouve-se de Zé Ramalho a Win Wenders, de baião a eletroacústica, de rock a repente, além de instrumentos de diversas sonoridades e timbres e, claro, as ricas melodias que sempre foi capaz de criar. O álbum é o centro desta mudança de paradigma que Herbert trouxe à sua música, à de sua banda e ao rock nacional como um todo. Se à época a imprensa brasileira – sempre pronta para criticar os artistas de casa – recebeu o disco com frieza, considerado-o “experimental” (mentira: eles não entenderam!), nunca mais o rock brasileiro foi o mesmo depois de “Ê Batumaré”.



15. “The Downward Spiral” – Nine Inch Nails (1994)
Local: 10050 Cielo Drive, Benedict Canyon, Los Angeles, Califórnia, EUA

Nos anos 90, o avanço da tecnologia dos equipamentos sonoros dava condições para se montar estúdios portáteis onde quer que fosse. Foi então que o multi-instrumentista norte-americano Trent Reznor pensou: “por que não instalar um em plena 10050 Cielo Drive, a mansão nos arredores de Beverly Hills, Los Angeles, em que, na madrugada do dia 9 de agosto 1969, a família Manson assassinou cinco pessoas, entre elas, com requintes de crueldade, a atriz e modelo Sharon Tate, grávida do cineasta Roman Polanski?” O que para alguns daria arrepios, para o líder da Nine Inch Nails foi motivação. Ali ele compôs o conceitual “The Downward Spiral”, disco de maior sucesso da banda. Reznor, que se mudara para a casa, absorveu-lhe o clima macabro para criar uma ópera-rock cheia de ruídos, distorções e barulho em que o personagem principal passa por solidão, loucura, descrença religiosa e repulsa social. Até o estúdio improvisado ganhou nome em alusão àquele trágico acontecimento: Le Pig, uma referência a uma das mensagens deixadas escritas nas paredes da casa com o sangue dos mortos. Se por sadismo ou mau gosto à parte, o fato é que o disco virou um marco dos anos 90, considerado um dos melhores álbuns da década pouco após seu lançamento por revistas como Spin e Rolling Stone.


Daniel Rodrigues
Colaboração: Cly Reis

segunda-feira, 10 de abril de 2017

Pink Floyd – “The Piper at the Gates of Down” (1967)


“’Sim’, disse o Rato gravemente. ‘Ele está desaparecido há alguns dias, e as lontras caçaram em todos os lugares, de alto a baixo, sem encontrar o menor vestígio, e também perguntaram a todos os animais por milhas ao redor, e ninguém sabe nada sobre ele.’”
trecho do conto infantil “O Vento nos Salgueiros”,
de Kenneth Grahame, de onde Syd Barrett tirou a frase
“The Piper at the Gates of Down” (“O Flautista nas Portas do Alvorecer”)


A explosão de talentos ocorrida no rock dos anos 60 ainda é inigualável em comparação a qualquer outra época da história do gênero mais popular e subversivo da música moderna. Além de hábeis compositores, eram verdadeiros mestres na reelaboração dos elementos do blues e não raro sob a lisérgica roupagem psicodélica. Jimi Hendrix, John Lennon, Eric Clapton e Van Morrison são exemplos incontestes. Em alguns casos, entretanto, a psicodelia era tanta que a sonoridade pendia para a vanguarda experimental, caso dos igualmente brilhantes Frank Zappa, Don Van Vliet, Mayo Thompson e Roky Erikson. De fato, nem todo mundo conseguia soar pop e equilibrar uma escrita musical própria com a tendência psicodélica, a qual, por si, apontava para infinitos caminhos. Quem melhor chegou a esta química – que continha em sua composição muita droga psicotrópica, em especial LSD – foi o gênio louco Syd Barrett, cabeça e fundador do Pink Floyd.

“Diamante Desvairado”, como os companheiros de banda o apelidaram, é a melhor classificação que podia ser dada a Syd Barrett. A perturbação mental e emocional sempre lhe foram uma faca de dois gumes. Suspeita-se que sofria de Síndrome de Asperger, condição neurológica do espectro autista caracterizada por dificuldades na interação social e comunicação não-verbal, além de padrões de comportamento repetitivos e interesses restritos. Em contrapartida, tal condição lhe evidenciava uma criatividade acima da média – ou, quem sabe, não era suficiente para suplantar-lhe o ato de criar. “Não acho que seja fácil falar de mim, tenho uma mente muito irregular”, dizia, referindo-se a si próprio. De fato, como os misteriosos caminhos percorridos pela lontra Portly ao perder-se na floresta em “O Vento nos Salgueiros”, não é simples entender por quais meandros psiconeurológicos percorriam a mente de Barrett, artista capaz de conciliar rock com música barroca, conto de fadas, expressionismo abstrato, duendes, jazz avant-garde, teosofia e B movie numa única sinapse cerebral. Naturalmente uma mente de vanguarda. “The Piper at the Gates of Down”, um dos ícones do rock psicodélico, é a melhor representação dessa equação ímpar engendrada por Barrett. Junto com “Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band”, dos Beatles, o primeiro do The Doors, “Velvet Underground & Nico” e alguns outros clássicos do rock que completam 50 anos em 2017, a estreia do Pink Floyd continua inovadora a cada audição, inundando de referências gerações e gerações.

“The Piper...” é surpreendente do início ao fim. A começar pela capa, que não poderia ser mais tradutora da psicodelia da época, em que os integrantes do grupo se misturam como num caleidoscópio lisérgico. A produção de Norman Smith se vale do luxuoso aparato técnico do estúdio Abbey Road, em Londres, para criar a devida atmosfera espacial e jogar luz sobre todos os detalhes (não raro exóticos) ressaltados por Barrett e a jovem banda, que trazia Roger Waters, baixo e voz; Richard Wright, teclados, sintetizador; e Nick Mason, bateria e percussão – ou seja, os integrantes clássicos do Pink Floyd somados a David Gilmour, substituto de Barrett a partir de 1968. Comandando a guitarra e os vocais, Barrett dá o direcionamento conceitual do álbum, que começa com a tensa "Astronomy Dominé". Sinais intermitentes de um contador Geiger iniciam a música prenunciando a instabilidade do tema. Em uníssono, o vocal canta sobre um compasso monofônico: “Verde-limão límpido, uma segunda cena/ Uma luta entre o azul que você uma vez conheceu/ Flutuando para baixo o som ressoa/ Pelas águas geladas e subterrâneas/ Júpiter e Saturno, Oberon, Miranda e Titânia/ Netuno, Titã, estrelas podem assustar”. Uma espécie de refrão sem letra se dá numa frase de guitarra e um vocalize que, unidos, assemelham-se a um uivo selvagem. Isso até chegar a 1 min 35 da faixa, ponto onde ela muda totalmente. Parece que a canção irá se manter nesse rumo sob sons de órgão, efeitos, interferências de rádio e improvisações. Entretanto, a melodia de repente volta ao tema inicial e o término é igualmente intenso, quase catártico. Isso tudo é o disco recém começando...

A magnífica “Lucifer Sam” – cuja produção e a engenharia de som de Peter Bown são irretocáveis – é, basicamente, um blues ritmado com certa pegada surf music. Não fosse sua atmosfera sombria e mística (“Lucifer Sam, um gato siamês/ Sempre sentado ao seu lado/ Sempre ao seu lado/ Esse gato tem algo que não posso explicar/ Jennifer Gentle você é uma bruxa/ Você está do lado esquerdo/ Ele está do lado direito/ Esse gato tem algo que não posso explicar...”), que a leva mais para uma obscura trilha de série de TV. Efeitos como chocalhos, o órgão de Wright, a guitarra-base, o baixo de Waters e a bateria de Mason são perfeitamente ouvidos, mas o que se destaca mesmo é a segunda guitarra de Barrett, que executa um riff em tom grave, a qual contém uma das características compositivas dele: os leves atrasos nos tempos. Como se sempre algo estivesse fora do presente, pondo-se entre a realidade e o sonho. E se o virtuosismo não é a característica de Barrett – como será a de Gilmour, que assumirá as guitarras logo em seguida na banda –, o solo da faixa (toque percutido, exploração dos efeitos de pedal, variação de escala) é de pura criatividade.

Novamente revelador, o disco traz a estranha mas brilhante “Matilda Mother”, que muda totalmente pelo menos umas três vezes em pouco mais de 3 minutos de canção. O arranjo vocal, incrivelmente variante, é um primor, lembrando bastante no refrão o estilo que o Pink Floyd adotaria muitas vezes a partir de então, como em “Breath” (1973) e “The Thin Ice” (1979). O teclado e o baixo pronunciam o acorde inicial, pausado e contemplativo. O universo lúdico da infância, ao mesmo tempo fantástico e tempestuoso, é expresso na letra, em que Barrett clama pela mãe e pela criança que não mais é: “Havia um rei que governou a terra/ Sua Majestade estava no comando/ Com olhos prateados a águia escarlate/ Banhou de prata as pessoas/ Oh, Mãe, me conte mais”. Depois de algumas sinuosidades melódicas, lá por 1 min 25 entra um solo de órgão de ares barrocos. Porém, o que mais se destaca é a psicodélica percussão gutural de Barrett. De repente, as vozes se intensificam, a guitarra dita o riff e... volta tudo à melodia inicial, num proposital corte abrupto – como uma contação de estória sendo interrompida, ou melhor, deslocando-se no tempo psicológico em que o autor se dá conta de que a infância se foi. Em 2 min 25, um novo fim falso, que leva a música até o desfecho num clima ainda mais onírico.

“Flaming” não só se mantém no universo anedótico como o expande, levando o ouvinte a um céu estrelado e azul com unicórnios e animais da floresta de toda ordem. A melodia é ondulante, obscura, exótica. Não é para menos, pois se trata de um dos mais fiéis relatos de uma viagem lisérgica de LSD: “Observando botões-de-ouro moldarem a luz/ Dormindo em um dente-de-leão/ É demais, eu não vou te tocar/ Mas até poderia”. Exemplo de melodia composta no violão e devidamente arranjada pela banda em que todos se destacam, principalmente Barrett ao violão e Wright, que segura o clima no órgão e no solo de cravo ao final.

Nova surpresa, nova montanha-russa, nova obra-prima. Os sons articulados na goela e na faringe não apenas reaparecem como sustentam a abertura da sui generis “Pow R. Toc. H.”. O que se ouve são cacos vocais e sons quase demenciados sobre curtos e esquisitos rufares percussivos igualmente gerados por aparelho vocal humano. Essa configuração estranha se transforma em seguida num som de culto indígena, haja vista os gritos tribais e o ritmo ritualístico ditado pelo tambor – agora da própria bateria. Essa nova formatação sonora, entretanto, se altera rapidamente de novo numa perfeita transição executada na mesa de estúdio, fazendo a melodia se transformar agora num... elegante jazz! É Wright quem brilha nessa parte, solando no piano por quase 1 minuto sobre a ainda tribal percussão. Isso é interrompido mais uma vez, claro. Sons de órgão e de guitarra improvisam e se entrelaçam por quase 2 min, direcionando o tom jazzístico para uma polifonia. Tudo isso, para retomar a linha melódica inicial, agora com a guitarra, os efeitos de mesa e de pedal e os ensandecidos alaridos finalizando o número. Junto com “Peaches en Regalia”, de Zappa, é um dos temas instrumentais mais criativos do rock anos 60. Além disso, é, ao lado de “Interstellar Overdrive”, a única composição coletiva do disco, que já denota claramente que o Pink Floyd não era (e não seria, fatalmente) apenas Syd Barrett.

Composição de Waters, “Take Up Thy Stethoscope And Walk” é mais um belo exemplar do rock psicodélico que 1967 emoldurava. Isso se deve em parte, principalmente na primeira parte – ou melhor, até onde vai a seção cantada, a pouco mais dos 30 segundos iniciais, tendo em vista que o restante, exceto o rápido desfecho, é tomado de delírios instrumentais da banda inteira – a Barrett, que se vale, novamente dos cacos e sons guturais em conjunção com os efeitos e as texturas sonoras para compor o arranjo.

Centro do disco, a já mencionada “Interstellar Overdrive” é um hino lisérgico, que se assemelha em formato e proposta a outro clássico do rock composto naquele mesmo ano: “Heroin”, do Velvet Underground. Quase uma pequena sinfonia, começa como um hard rock cuja semelhança à sonoridade de Black Sabbath e Led Zeppelin não é mera coincidência. A 2 min e 20, a guitarra parece trancar como se tivesse arranhado o sulco naquele ponto (novamente, sente-se o estranhamento com o tempo). Essa ideia – lapidada pela maestrina do pós-jazz Carla Bley em “Musique Mecanique III”, de 1979 – reproduz no instrumento outra das peculiaridades da música de Barrett: os fonemas cacofônicos, ditos com certo engasgo. É como se fosse o sintoma da formação de uma linguagem atípica e excêntrica do Asperger, aliado ao dos padrões repetidos da doença, traduzido para música, para arte.

Seguem-se cerca de 7 minutos de improviso de toda a banda, que forma uma sonoridade espacial, quando não de uma viagem alucinógena ou uma trilha de filme de ficção científica. Até que, quase no fim do tema, um ruidoso e longo rolo de Mason traz de volta o riff inicial. Mas... algo estranho está embaralhando os ouvidos e os sentidos... É Norman Smith mais uma vez valendo-se do aparato do Abbey Road e de sua técnica como produtor operando uma radical alteração do balance, o qual joga rapidamente todo o som de um lado para o outro nas caixas de som: enquanto uma fica em silêncio, a outra recebe toda a massa sonora. Isso gera um efeito de desequilíbrio, espiral, revolto, que age diretamente sobre os sentidos humanos. Parece que se está escutando a arte da capa do disco. Impossível ficar impassível, pois o efeito atingido aqui pelo Pink Floyd chega a ser físico. Por todas essas particularidades, “Interstellar...” pode-se dizer a precursora do rock progressivo, que faria tantas bandas surgirem ou aderirem (como o próprio Pink Floyd em certa medida) nos anos 70.

Aí, como se nada tivesse acontecido, colada à intensa “Interstellar...”, entra a faixa seguinte, “The Gnome”: uma singela ciranda infantil sobre seres elementais. Só que não! Igualmente brilhante e consideravelmente sinistra, “The Gnome” (“Quero te contar uma história/ Sobre um homenzinho/ Se eu puder/ Um gnomo chamado Grimble Crumble/ E pequenos gnomos que ficam em suas casas/ Comendo, dormindo, bebendo vinho...”) realça o belo timbre de voz de Barrett e sua pronúncia elegante – o que confere ainda mais obscuridade ao tema. Os cacos fonéticos e a preferência por vocábulos “engasgados” (“GRimble”, “CRumble”, “tunIC”, “ADventure”) aparecem em abundância, intensificados pela dicção do cantor.

Rivalizando com outras duas canções daquele ano, “Within You Without You”, dos Beatles, e “The End”, dos Doors, “Chapter 24” ergue uma mística capela sonora. Wright é exímio ao imitar nos teclados o som de um fole nórdico. A percussão, inteligente, é apenas nos pratos e sinos, emprestando muita naturalidade. Apenas o baixo é mais “moderno” na sonoridade de “Chpater 24”, haja vista que o canto de Barrett soa quase litúrgico. Talvez a mais linear faixa do disco – se é que dá pra classificar qualquer uma das peças assim, tão simploriamente –, abre caminho para a totalmente medieval “Scarecrow” com suas flautas celtas e percussão barroca. Genialmente, Barrett dissolve qualquer noção de tempo – o mesmo “tempo” que ele, mentalmente perturbado, não consegue apreender. A bela letra é talvez a mais autobiográfica e – haja vista a metáfora essencial, a comparação de si com um “espantalho” – tristemente reveladora. Merece ser reproduzida por completo:

“O espantalho preto e verde
Como todo mundo sabe
Ficava com um pássaro no seu chapéu
E palha por todo lado
Ele não se importava
Ele ficava num campo onde o milho cresce
Sua cabeça não pensava, seus braços não se moviam
Exceto quando o vento soprava
E ratos corriam pelo chão
Ele ficava num campo onde o milho cresce
O espantalho preto e verde é mais triste do que eu
Mas agora ele está resignado com seu destino
Pois a vida não é má
Ele não se importa
Ele fica num campo onde o milho cresce.”

O que resta a um disco impecável como este? “Scarecrow”, por seu final quase épico, dá indícios de fim. Mas clássico que é clássico tem mais uma joia reservada. É o caso da originalíssima e sarcasticamente circense “Bike”, forjada sobre um único compasso. A voz de Barrett, tão cristalina quanto alucinada, joga versos em demasia sobre os intervalos – mas eles fazem caber no tempo musical, hábeis em harmonia como são. A festa no picadeiro lúgubre parece terminar a 1 min 45', mas sons de bugigangas (entre estas, relógios, como os que aparecerão 6 anos mais tarde em “Time”, do “The Dark Side of the Moon”), comandados pelos teclados fasmáticos de Wright, entram para preencher o restante da faixa a la John Cage. Esta, no entanto, termina da talvez mais apavorante forma que qualquer disco da música pop – e olha que bate muita dark music. O volume vai baixando aos poucos, anunciando o final, quando surge um som que parece ser de uma boneca enguiçada. Misto de gargalhada macabra com urro de dor e de prazer carnal, vai subindo até um clímax, que chega a chocar os ouvidos. Porém, logo em seguida, vai caindo até terminar o disco finalmente. Dá para imaginar uma cena de filme de terror em que o palhaço assassino aproxima-se, chegando a centímetros do escondido e amedrontado perseguido, mas que, não o encontrando, afasta-se e vai embora. No quarto de brinquedos, quebrados e tristes, está terminada a obra sinistra de Barrett e Cia.

A aparente infinita inventividade de Barrett, por infelicidade, teve sim um fim. Acometido pela deterioração mental, agravada pelo exagerado uso de drogas, Barrett afastou-se da banda antes de lançar um segundo trabalho com eles, restando apenas mais uma (e igualmente brilhante) composição sua em “A Saucerful of Secrets”, de 1968: “Corporal Clegg”. Vieram ainda duas obras-primas solo em 1970: “The Madcap Laughts” e “Barrett”, nos quais já se nota o progressivo agravamento do quadro físico e psíquico. Logo em seguida, entra numa reclusão autoimposta de 30 anos até a morte, em 2006. Porém, os parcos 6 anos em que produziu seguem influenciando profundamente a cultura pop meio século depois de seu surgimento em “The Piper...”. Para o próprio Pink Floyd foi assim: com talento, souberam apreender e reelaborar o legado de seu ex-líder, avançando em suas ideias mas mantendo-lhe uma ligação permanente. Mesmo com as capacidades criativas de e liderança tanto de Waters quanto de Gilmour, o Pink Floyd foi e sempre será como um tal personagem de conto de fadas chamado Syd Barrett.

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“The Piper…” teve, em 1967, uma edição norte-americana que, além de alterar a ordem das faixas e suprimir duas delas (“Bike” e “Astronomy Dominé”), conta com uma nova, “See Emily Play”.  Em 1974, os dois primeiros álbuns do Pink Floyd são reunidos num único volume, “A Nice Pair”. Ainda, “The Piper...” consta na íntegra com outros discos nas caixas “First XI” (1979), “Shine On” (1992), “1997 Vinyl Collection” e “Oh By the Way” (2010).

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FAIXAS:
1- "Astronomy Domine" – 4:12
2 - "Lucifer Sam" – 3:07
3 - "Matilda Mother" – 3:03
4 - "Flaming" – 2:46
5 - "Pow R. Toc H." (Nick Mason, Richard Wright, Roger Waters, Syd Barrett) – 4:26
6 - "Take Up Thy Stethoscope and Walk" (Waters) – 3:05
7 - "Interstellar Overdrive" (Barrett, Mason, Waters, Wright) – 9:41
8 - "The Gnome" – 2:13
9 - "Chapter 24" – 3:42
10 - "The Scarecrow" – 2:11
11 - "Bike" – 3:21
todas as composições de autoria de Syd Barrett, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:


por Daniel Rodrigues

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Ornette Coleman – “The Shape of Jazz to Come” (1959)



"Ornette é um dos meus astronautas favoritos"
Wayne Shorter


“’Kind of Blue’ era um álbum bonito, delicado,
mas não lembro de ele ter realmente
virado minha cabeça na época.
 Então, quando Ornette surgiu,
 ele de fato soava como se
 pertencesse a uma outra era, 
a um outro planeta.
A novidade estava ali”.
Joe Zawinul



Chego ao meu 50° ÁLBUM FUNDAMENTAL por um motivo especial. Embora todos os discos sobre os quais escrevi sejam caros a mim, quando percebi que chegava a essa marca não queria que fosse apenas mais um texto. Tinha que ser por um motivo especial. Escreveria sobre os artistas brasileiros a quem ainda não resenhei: Chico BuarqueEdu LoboMilton NascimentoPaulinho da Viola? Ou das minhas queridas bandas britânicas, como The CureThe SmithsCocteau Twins, Echo and The Bunnymen? De algum dos gênios da soul, Gil Scott-Heron, Otis Reding, Curtis Mayfield, que tanto admiro? Do para mim formativo punk rock (Stranglers, Ratos de Porão, New York Dolls)? Obras consagradas de um Stravinsky ou alguma sinfonia de Beethoven? Outro de John Coltrane ou Miles Davis? Nenhum desses, no entanto, me pegava em cheio. A resposta me veio no último dia 11 de junho, quando o saxofonista norte-americano Ornette Coleman deu adeus a esse planeta. Aos 85 anos, Coleman morreu deixando não apenas o mérito da criação do free-jazz como uma das mais revolucionárias obras do jazz. A cristalização da proposta de inovação musical – e espiritual – de Coleman veio pronta já em seu primeiro disco, o memorável “The Shape of Jazz to Come”.

Gravado no mesmo ano de 1959 que pelo menos outros dois colossos do jazz moderno – "Kind of Blue", de Miles, arcabouço do jazz modal (agosto), e “Giant Steps”, de Coltrane, a cria mais madura do hard-bop (dezembro) –, “The Shape...”, vindo ao mundo a 22 de maio, não aponta para o lado de nenhum deles. Pelo contrário: engendra uma nova direção para a linha evolutiva do estilo. Nascido no Texas, em 1930, Coleman era daquelas mentes geniais que não conseguiam pensar “dentro da caixa”. No início dos anos 50, já em Nova York, nas contribuições que tivera na banda de seu mestre, o pistonista Don Cherry, ele, saudavelmente incapaz de seguir as progressões harmônicas do be-bop, já demonstrava um estilo livre de improvisar não sobre uma base em sequências de acordes, mas em fragmentos melódicos, tirando do seu sopro microtons e notas dissonantes, arremessadas contra às dos outros instrumentos, contra si próprias. Fúria e espírito. Carne e alma.

Seu processo era tão complexo que, exorcizando clichês, atinge um patamar até psicanalítico de livre associação e reconstrução do inconsciente coletivo, o que levou um dos pioneiros do cool jazz, John Lewis, a dizer: “Percebi que Coleman cunhou um novo tipo de música, mais semelhante ao ‘fluxo de consciência’ de James Joyce do que o entretenimento operado por Louis Armstrong com sua variação sobre uma melodia familiar”. Se na literatura este é seu melhor comparativo, faz sentido colocá-lo em igualdade também a um Pollock nas artes plásticas ou um Luis Buñuel no cinema. Na música, remete, claro, a Charlie Parker e Dizzie Gillespie, mas tanto quanto a compositores atonais da avant-garde como John Cage e György Ligeti.

Em “The Shape...”, a desconstrução conceitual já se dá na formação da banda. Traz o desconcertante sax alto de Coleman, a bateria ensandecida de Billy Higgins, o duplo baixo de outro craque, Charlie Haden (de apenas 22 anos à época), e o privilégio de se ter o próprio Cherry, com sua mágica e não menos desafiadora corneta. Nada de piano! Tal proposta, tão subversiva da timbrística natural do jazz a que Coleman convida o ouvinte a apreciar, assombra de pronto. “Lonely Woman”, faixa que abre o disco, é uma balada fúnebre e intempestiva. O free jazz, consolidado por Coleman um ano depois no LP que trazia o nome do novo estilo, dá seus primeiros acordes nesse brilhante tema. Dissonâncias na própria estrutura melódica, compasso discordante da bateria e um baixo inebriado que parece buscar um plano etéreo, longe dali. Algo já estava fora da ordem, anunciava-se. Coleman e Cherry, pupilo e mestre, equiparados e expondo uma nova construção composicional aberta, incerta, em que a música se cria no momento, numa exploração dramática conjunta.

Na revolução do free jazz, cada membro é tão solista quanto o outro. “Eventually”, um blues vanguardista em alta velocidade, e “Peace”, com seus 9 minutos de puro improviso solto, sem as amarras do encadeamento tradicional, são mostras disso. Cada músico está ligado ao outro primeiramente pelo estado de espírito, não apenas pela habilidade técnica. E eles perdem o apelo momentâneo? Jamais, apenas o centro melódico é outro. Os riffs e o tom estão lá como os do be-bop; a elegância do blues trazida do swing também. Mas o conceito e a dinâmica aplicados por Coleman e seu grupo fazem com que se desviem das formas tradicionais a as diluam, direcionando a uma tonalidade expandida como praticaram Debussy, Messiaen e Stravinsky.

Nessa linha, "Focus on Sanity" se lança no ar inquieta, mas logo freia para entrar o maravilhoso baixo de Haden, suingando, serenando-a. Não por muito tempo: por volta dos 2 minutos e meio, Coleman irrompe e o grupo retorna em ritmo acelerado para seu novo solo da mais alta habilidade de fúria lírica. O mesmo faz Cherry, que entra raspando com o pistão e forçando que o compasso reduza-se novamente. “Foco” e “sanidade”, literalmente. A inconstância desse número dá lugar ao blues ligeiro "Congeniality". Mais “comportada” das faixas, traz, entretanto, a fluência do quarteto dentro de um arranjo em que se prescinde da referência harmônica das cordas – o piano. Pode parecer um be-bop comum, mas, ditado pela intuição e não pelo arranjo pré-estabelecido (tom, escala, variação), definitivamente não é. Fechando o álbum, “Chronology” mais uma vez ataca na desconstrução da progressão acorde/escala. As explosões emocionais súbitas de Coleman e seu modo atritado e carregado de tocar estão inteiros neste tema.

Wayne Shorter, Anthony Braxton, Eric Dolphy, Albert Ayler, Pharoah Sanders e o próprio Coltrane, mesmo anterior a Coleman, não seriam os mesmos depois de “The Shape...”. O fusion e o pós-jazz nem existiriam. Coleman influenciou não apenas jazzistas posteriores como, para além disso, roqueiros do naipe de Jimi Hendrix, Don Van VlietFrank Zappa e Roky Erickson. Ele seguiu aprofundando esse alcance em vários momentos de sua trajetória. No ano seguinte ao de sua estreia, emenda uma trinca de discos, começando pelo já referido “Free Jazz” (dezembro) mais “Change of the Century” (outubro) e “This Is Our Music” (agosto). Em 1971, surpreende novamente com a sinfonia cageana “Skies of America”, para orquestra e saxofone. No meio da década de 70, ainda, adere ao fusion, quando lança o funk-rock “Body Meta” (1976), recriando-se com uma música dançante e suingada.

Além disso, Coleman teve a coragem de legar ao jazz um sobgênero, o que, juntamente com o contemporâneo “Kind of Blue”, referência inicial do jazz modal, ajudou a desafiar conceitos e padrões estabelecidos. O jornalista e escritor Ashley Kuhn, em “Kind of Blue: a história da obra de Miles Davis”, recorda a receptividade de “The Shape...” à época entre músicos e críticos, os quais vários deles (como um dos pioneiros do fusion, o pianista Joe Zawinul), colocavam os dois discos em polos opostos: free jazz versus modal. No entanto, como ressalta Kuhn: “No fim das contas, Coleman e Davis parecem mais filosoficamente compatíveis do que musicalmente opostos: ambos dedicaram suas carreiras a reescrever as regras do jazz”.

Desde que meu amigo Daniel Deiro, que mora em Nova York, disse-me anos atrás tê-lo assistido em um bar da Greenwich Village, fiquei esperançoso de também vê-lo no palco um dia. Não deu. O astronauta do jazz, capaz de fazer quem o ouve também flutuar sem gravidade, deixa como suficiente consolo uma obra gigantesca e densa a ser decifrada, sorvida, descoberta. Como a de um Joyce, Pollock ou Buñuel. Se a função do astronauta é desbravar o espaço, Ornette Coleman cumpriu o mesmo papel através da arte musical, que ele tão bem soube explorar em sua dinâmica atômica e imaterial através da propagação dos sons no ar, na atmosfera. E o fez de forma livre, como bem merece um free jazz. Agora, então, foi ele que se libertou para poder voar sobre outros planetas igual à sua própria música.

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FAIXAS:
1. "Lonely Woman" - 4:59
2. "Eventually" - 4:20
3. "Peace" - 9:04
5. "Focus on Sanity" - 6:50
5. "Congeniality" -  6:41
6. "Chronology" - 6:05

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segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Captain Beefheart and His Magic Band - "Trout Mask Replica" (1969)



“Um dos mais criativos e corajosos álbuns de todos os tempos, décadas à frente do resto da música rock.
É, acima de tudo, uma colagem de pinturas abstratas, cada uma diferente da outra em intensidade, cor e contraste, mas todas homogêneas em sua ‘abstração’ ”
Piero Scaruffi


Um músico se trancafia em um casarão antigo, só ele e um piano. Ali, compõe 28 peças. Não, não estamos falando de algum pianista de jazz em abstinência de heroína nem de um concertista clássico precisando de isolamento e concentração para criar sua obra-prima. Estamos falando de um disco de rock, tocado com baixo, guitarra, bateria e, solando, clarinetes e saxofones. Tudo sem um acorde sequer de piano. Sim, estamos nos referindo a Don Van Vliet e seu “Trout Mask Replica”, o primoroso terceiro LP da Captain Beefheart and His Magic Band, de 1969. Talvez o trabalho que melhor tenha fundido rock, jazz, blues, folk e erudito, sustenta o status de uma verdadeira “obra de arte”, considerado pelo crítico musical italiano Piero Scaruffi como o melhor álbum de rock de todos os tempos e um dos 10 registros mais importantes da música contemporânea ao lado obras de Shostakovitch, Charles Mingus, Velvet Underground e Ligeti.

Com produção do maestro-maluco Frank Zappa, do qual Van Vliet (vulgo Captain Beefheart) é discípulo, “Trout Mask Replica” é de difícil assimilação, quase indecifrável: atonal, dissonante, polirrítmico, abstrato, desconexo. Lembra ora a música aleatória de John Cage, ora o “passaredo” farfalhante de Messiaen, ora os borrões de um quadro de Jackson Pollock, ora um filme experimental de Derek Jarman. Altamente influenciado pela vanguarda erudita, pelo free-jazz de Ornette Coleman e pelo blues do Mississipi, Van Vliet criou um disco que aponta para infinitas direções que não só musicais, mas também plásticas, cênicas e literárias, haja vista a loucura e a irracionalidade poética que suscita. Ele desmembra o estilo blues, base do rock ‘n roll, desestruturando ritmo, harmonia, tom e melodia, remontando depois as peças, ”algo entre o caos orquestral de Charles Ives e audácia de John Cage”, definiu Scaruffi.

Oblíquas e sem uma linha melódica estável, as músicas de “Trout...” são rocks sem riff. Tudo numa roupagem seca dada pela produção. É assim que começa o álbum, com “Frownlands”: toda descompassada, parecendo estar se desmontando. A voz rouca e rasgada de Van Vliet cospe versos enquanto os sons se debatem, tentando se encontrar em uma harmonia, o que nunca acontece – ou melhor, acontece de forma diferente do que se está acostumado a ouvir no rock. O arranjo, elaborado por Beefheart a quatro mãos com o baterista da banda (!), John French, é tão primoroso que a sonoridade do instrumento que originou as melodias se adéqua perfeitamente à nova instrumentação, dando a impressão de que tudo foi improvisado – e a ponto de tornar o piano dispensável no resultado final. Mas tudo, do início ao fim, está dentro de uma geometria composicional criada pela louca e excêntrica cabeça de Van Vliet, movida à base de muito LSD. O repretório foi composto por ele em apenas oito horas, porém, os ensaios levaram exaustivos meses de isolamento de todos os músicos até a gravação que, de tanta repetição, foi captada praticamente todo de uma vez só.

 Mutáveis e caóticas, as músicas vão se recriando dentro de si próprias através de novas células sonoras. "Moonlight on Vermont", “The Blimp” e “Dachau Blues”, das minhas preferidas, são exemplos claros dessa metalinguagem. A poética dadaísta das letras é outro ponto peculiar, pois não são mais do que meros esboços non-sense, neologismos imbecis (“fast ‘n bulbs”, “semen ‘n syrup ‘n serum”, "hobo chang ba") que servem apenas para apontar para o ouvinte o caminho – errado. Vê-se já no título sem sentido da tribal “Ella Guru”, outra genial, que traz vozes em falsete, síncopes incoerentes, hinos guturais e um riff de baixo hesitante.

 “Hair Pie”, “bakes” 1 e 2, são suítes instrumentais fabulosas, a ver a primeira, um jazz com uma longa introdução de dois sax alto que se retorcem e se entrecruzam um sobre o outro através de dissonâncias, muito ao estilo de Albert Ayler e Anthony Braxton. O blues, elemento base do disco, é tão desestruturado que chega ao ponto de... inexistir! É o caso de “The Dust Blows Forward 'n the Dust Blows Back" e "Orange Claw Hammer", à capela e montadas em estúdio por picotes colados em sequência, em que apenas se supõe o ritmo. Apreciáveis também: a excelente “China Pig”, um blues bruto; “Dali’s Car”, espécie de suíte para duas guitarras; e "When Big Joan Sets Up", constantemente variante dentro de si mesma, como uma pequena sinfonia em 4 atos rápidos.

O disco termina com "Veteran's Day Poppy", que dá a impressão de desfechar, enfim, do modo consonante e agradável da tradição clássica até que, depois de um breve fade out/fade in, a música retorna consonante, mas... peraí! Está numa notação totalmente enviesada, dando a impressão de que está sendo executada ao contrário! Um final magistral para um disco que, bastante influenciador do rock alternativo (Tom Waits, Meat Loaf, Residents, Jah Wobble) e do pós-punk (P.I.L.Gang of Four , Polyrock e Sonic Youth que não me deixam mentir), continua, quase 45 anos de seu lançamento, uma audição desafiadora e instigante. Propositadamente desconfortável, desacomoda positivamente nossos ouvidos já tão saturados da métrica em três tempos da música pop, criticando, em decorrência, toda a sociedade moderna e seus padrões massificadores há muito esgotados.

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 FAIXAS:
1. "Frownland" - 1:41
2. "The Dust Blows Forward 'n the Dust Blows Back" - 1:53
3. "Dachau Blues" - 2:21
4. "Ella Guru" - 2:26
5. "Hair Pie: Bake 1" - 4:58
6. "Moonlight on Vermont" - 3:59
7. "Pachuco Cadaver" - 4:40
8. "Bills Corpse" - 1:48
9. "Sweet Sweet Bulbs" - 2:21
10. "Neon Meate Dream of a Octafish" - 2:25
11. "China Pig" - 4:02
12. "My Human Gets Me Blues" - 2:46
13. "Dali's Car" - 1:26
14. "Hair Pie: Bake 2" - 2:23
15. "Pena" - 2:33
16. "Well" - 2:07
17. "When Big Joan Sets Up" - 5:18
18. "Fallin' Ditch" - 2:08
19. "Sugar 'n Spikes" - 2:30
20. "Ant Man Bee" - 3:57
21. "Orange Claw Hammer" - 3:34
22. "Wild Life" - 3:09
23. "She's Too Much for My Mirror" - 1:40
24. "Hobo Chang Ba" - 2:02
25. "The Blimp (mousetrapreplica)" - 2:04
26. "Steal Softly thru Snow" - 2:18
27. "Old Fart at Play" - 1:51
28. "Veteran's Day Poppy" - 4:31

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Ouça:
Captain Beefheart and His Magic Band Trout Mask Replica