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quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Quinteto Armorial - “Do Romance ao Galope Nordestino” (1974)

 

Doses Cavalares de Brasil


“Convencidos de que a criação é muito mais importante do que a execução, [os músicos do Quinteto Armorial] preferiram a tarefa mais dura, mais ingrata, mais difícil e mais séria: a procura de uma composição nordestina renovadora, de uma Música erudita brasileira de raízes populares, de um som brasileiro, criado para um conjunto de câmera, apto a tocar a Música europeia, é claro mas principalmente apto a expressar o que a Cultura brasileira tem de singular, de próprio e de não europeu.” 
Ariano Suassuna 

A história da arte no Brasil viu, em alguns momentos, a tentativa de se representar uma ideia de nação. Seja por motivos políticos, ideológicos ou simplesmente astuciosos, é fácil concluir que, para se chegar a uma identidade pretensamente simbólica de um povo, a produção artística é o melhor meio para se alcançar essa finalidade nacionalista. No século XIX, o Romantismo à brasileira buscava, num território recém emancipado da Coroa portuguesa, ressaltar as paisagens exóticas, a natureza, os povos primitivos e a miscigenação para suscitar o orgulho dos “novos” brasileiros. No Estado Novo, igual. Tanto o forte investimento na Rádio Nacional, impulsionadora de uma gama de célebres artistas, como no cinema, denotam o projeto de Estado de unificar em uma mensagem ufanista um espírito comum.

Afora a grande subjetividade de se materializar esse feito e da óbvia dificuldade de sintetizar em códigos simbólicos um país de dimensões continentais e em construção, é evidente que a estratégia não deu necessariamente certo em todas essas tentativas. A influência da Europa, seja como modelo, seja como contraposição, põe às claras a falta de elementos primitivos da cultura e da natureza de um país jovem historicamente como o Brasil – principalmente, em comparação à própria Europa, não à toa chamado de Velho Mundo. Residem nesse pensamento ocidentalizado as críticas a outro movimento que também tentou com suas ferramentas inventar uma arte puramente brasileira: o Movimento Armorial. Antes de “brasileira”, aliás, nordestina. Surgido em 1970 por iniciativa do escritor paraibano Ariano Suassuna quando atuou como Diretor do Departamento de Extensão Cultural da Universidade Federal de Pernambuco, essa vertente artístico-cultural, manifesta em literatura, música, dança, artes plásticas, arquitetura, cinema, etc., centrava-se na valorização das artes populares nordestinas e propunha como ideia central a criação de uma arte erudita a partir de elementos populares.

Há quem acuse o Movimento Armorial de ser, além de academicista, também elitista e cínico, pois, na prática, não se comunicava com o tal povo no qual tanto bebia, restringindo-se ao círculo de seus principais cabeças: Suassuna, o artista plástico Francisco Brennand, o gravurista Gilvan Samico e uma meia dúzia de afortunados homens das artes. O que é impossível criticar, no entanto, é a qualidade das obras produzidas, entre elas uma que completou 50 anos em 2024: o disco de estreia do Quinteto Armorial, “Do Romance ao Galope Nordestino”. Com uma obra que propõe um diálogo entre o cancioneiro folclórico medieval e as práticas criativas dos cantadores nordestinos e seus instrumentos musicais tradicionais, o Quinteto Armorial lançava, pelo selo Marcus Pereira, um trabalho revolucionário e inédito em forma e conceito, o qual mereceu Prêmio APCA como o Melhor Conjunto Instrumental de 1974.

Formado pelos então jovens músicos nordestinos Antônio José Madureira, Egildo Vieira do Nascimento, Antônio Nóbrega, Fernando Torres Barbosa e Edison Eulálio Cabral, o conjunto instrumental trazia um manancial de aparatos musicais condizente com sua proposta de síntese: rabeca, pífano, viola caipira, violão e zabumba perfilando-se com os eruditos violino, viola e flauta transversal. A junção do conceito armorial com a textura dos sons gerava uma sonoridade própria, a se ver por "Revoada", exemplo claro dessa junção de tempos históricos, culturas e apropriações. Sem percussão, traz o som metálico da viola caipira, que se harmoniza com as cordas – o violino clássico e a rabeca, retrazida da Idade Média para este novo contexto – e o sopro de pífaro e flauta. Uma forma bastante didática de começar o disco.

Como bem coloca Suassuna em seu texto de apresentação na contracapa do disco, há a influência ibérica por meio dos instrumentos de origem hindu ou árabe, tão marcantes no Nordeste. Se "Revoada" é ritmada e lírica em seus toques ásperos e arcaicos, “acerados como gumes de faca-de-ponta”, tanto mais é "Repente". Esta evoca o Nordeste somente em sons e sem precisar articular uma palavra ou verso a tradição poético-musical dos repentistas de improvisarem estrofes criando-os no exato momento da apresentação. Desde 2021, o repente é considerado patrimônio cultural do Brasil pelo Iphan. 

Típica obra do Movimento Armorial: "Pe. Cícero Romão (Tríptico)”,
óleo sobre aglomerado de Gilvan Samico, do mesmo ano do disco
“Padrinhos” musicais do movimento Armorial, o maestro carioca César Guerra-Peixe e o compositor e folclorista pernambucano Capiba são reverenciados. Guerra-Peixe com a faixa “Mourão”, de sua autoria, um baião embalado que o Brasil inteiro passou a conhecer melhor na trilha sonora do filme “O Auto da Compadecida”, de 2000 (e que acaba de ganhar uma continuação), que se inspira em seus acordes. Nome do cavalo típico do sertão, Mourão, além da evidente referência aos mouros pela cor da pele/pelagem crioula, dignifica, ainda, uma das alusões presentes no título do disco, o “galope”, estilo musical base das festividades juninas da região. 

Já Capiba tem semelhante destaque. O inventor de frevos clássicos da cultura de Pernambuco e protagonista do tradicional bloco carnavalesco Galo da Madrugada, também é lembrado por uma de suas principais peças: "Toada e Desafio", esta também da trilha de “O Auto...” – aliás, a música central do filme –, aqui lindamente executada pelo Quinteto Armorial. Mais um leque de conhecimentos empíricos trazidos à luz da música erudita: além do popular galope, agora merecem releituras a “toada”, cantiga de melodia simples e monótona entoada pelos vaqueiros nordestinos, e o “desafio”, duelo de versos improvisados surgido na Grécia antiga entre os pastores, reinventado na Idade Média e que veio parar no Brasil justo no Nordeste brasileiro, onde, como diz Luz Câmara Cascudo, “o combate assumiu asperidades homéricas”.

A força cultural nordestina dá ainda mais elementos a Madureira, que compõe a renascentista "Toada e Dobrado de Cavalhada", claramente dividida em duas partes: um lento introdutória e, na sequência, um allegro que acompanha o trote ligeiro da dança. Flautim e pífaro dialogando. Misto da música rural dos berberos marroquinos e os mouros dos séculos 12 e 13, ambos ligados pela religião. Vanguarda que surpreenderia até mesmo gente como a Penguin Cafe Orchestra, como a “desafinada” “Toré”, absolutamente moderna. 

E quando idealizam uma Idade Média brasileira para além dos livros de História, como em "Romance da Bela Infanta"? Tema amoroso ibérico do séc. XVI recriado nas cores monocórdicas dos instrumentos rústicos. Mas Madureira faz ainda melhor quando resgata o romance do próprio Nordeste! "Romance de Minervina", canção provavelmente datada do séc. XIX, que recria uma atmosfera provençal ao modo dos trópicos. É possível enxergar uma procissão pelos campos mediterrâneos e, ao mesmo tempo, a tristeza árida do sertão. Igualmente medievas são "Excelência”, tema nordestino de canto fúnebre, e “Bendita”, cântico de Zacarias à maneira dos Salmos que os romeiros entoam pelo itinerário do enterro.

Antônio Nóbrega, dono de reconhecida carreira solo e o de maior proeminência entre todos os músicos do grupo, já a época não ficava para trás. É dele "Ponteio Acutilado", moda forjada na tradição dos violeiros. É praticamente 1 min de solo de viola caipira para, a partir de então, todos os outros instrumentos entrarem e se harmonizarem como se sempre tivessem pertencido ao mesmo território geográfico. A outra dele é "Rasga", dissonante e introspectiva na primeira metade, mas que se encerra (e ao disco) com um “rasga ponteio” festivo.

Os ouvidos populares hoje são familiarizados com a sonoridade que o Quinteto Armorial ajudou a sintetizar. Basta notar a naturalização desses sons em produções populares inspiradas na obra de Suassuna e seus séquitos, como as incontáveis produções audiovisuais da TV Globo que emulam esse universo folclórico e onírico. Mal comparando, como fizeram os alemães da Kraftwerk ao “inventarem” os sons de computador que conhecemos hoje, criando uma espécie de “sonoplastia digital” que se tornou universal. Para com a sonoridade nordestina e, até por uma questão de proporção territorial bastante brasileira, no caso, o Quinteto Armorial cumpriu mais do que um papel esteticamente formal, mas, sim, musical e antropológico. 

O movimento ao qual o Quinteto Armorial muito bem representou não é um consenso entre as pessoas da cultura, mas é inegável a validade de sua proposta, reconhecida hoje nacionalmente, haja vista a rica exposição aos seus 50 anos, ocorrida em 2023, e também internacionalmente por artistas consagrados como o chinês Ai Weiwei. A ideia de valorização da cultura do Brasil que movimentos como este tentam suscitar de tempos em tempos, podem, mesmo com as controvérsias, serem vistas como potência. Uma potência policarpeana de tornar oficial a cultura ancestral. Como escreveu Lima Barreto em “O Triste Fim de Policarpo Quaresma”, personagem símbolo da luta por uma identidade brasileira: “O que o patriotismo o fez pensar foi num conhecimento inteiro do Brasil, levando-o a meditações sobre os seus recursos, para depois então apontar os remédios”. Se depender desse pessoal, nenhum brasileiro jamais adoeceria por causa de síndrome de vira-latas.

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FAIXAS:
1. "Revoada" (Antônio José Madureira) - 3:44
2. "Romance da Bela Infanta" (Romance ibérico do Séc. XVI, recriado por Madureira) - :53
3. "Mourão" (César Guerra Peixe) - 1:50
4. "Toada e Desafio" (Capiba) - 4:26
5. "Ponteio Acutilado" (Antônio Carlos Nóbrega) - 4:32
6. "Repente" (Madureira) - 4:36
7. "Toré" (Madureira) - 2:59
8. "Excelência" (Tema nordestino de canto fúnebre, recriado por Madureira) - 3:02
9. "Bendito" (Egildo Vieira do Nascimento) - 4:23
10. "Toada e Dobrado de Cavalhada" (Madureira) - 4:52
11. "Romance de Minervina" (Romance nordestino, provavelmente do Séc. XIX, recriado por Madureira) - 1:33
12. "Rasga" (Nóbrega) - 4:48

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues
Texto publicado originalmente no site AmaJazz

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Exposição “Monet: Paisagens Impressionistas” - Praia de Belas Shopping - Porto Alegre/RS

 

“Todos discutem minha arte e fingem compreender, como se fosse necessário compreendê-la, quando é simplesmente necessário amar.”
Claude Monet

Nunca vi um Monet ao vivo. Como admirador de arte e visitador contumaz de exposições (à exceção desse período pandêmico que obriga ao distanciamento), costumo dividir com minha esposa e meu irmão, adoradores e visitadores tanto como eu, a alegria (e a expectativa) de ver alguma obra de um grande artista presencialmente. Já tive a emoção de ver à minha frente, a poucos centímetros, Picasso, Dali, Frida, Miró, Renoir, Yoko, Warhol, Bansky, GoyaVan Gogh, Weiwei, Mondrian, Basquiat... Mas Claude Monet, não. Um pouco desta vontade foi, no entanto, muito bem suprida com a exposição “Monet: Paisagens Impressionistas”, que está até 20 de fevereiro no Praia de Bela Shopping, em Porto Alegre. Na esteira do que vem se tornando prática no mundo expositivo de se tematizar artistas de forma mais tecnológica e imersiva, a exposição sobre o impressionista francês se sai muito bem. 

Com um tratamento curatorial bem realizado, a cargo de Patrícia Engel Secco e Karina Israel, a mostra me lembrou, dadas as devidas proporções, visto que menor em tamanho, algumas que assisti no CCBB do Rio de Janeiro devido a seu formato, que faz o visitante percorrer corredores que destacam a obra e a história ligada a Monet por meio de plataformas variadas (som, imagens, texto, luz, cenários, vídeos) e ambientes temáticos personalizados, que vão de bojos de som e proposições olfativas a salas escuras. 

São sete espaços temáticos, cada um destacando algum aspecto importante da longa trajetória artística e de vida de Monet. Um desses nichos é, por exemplo, logo no começo, o que traz um cenário que remete a Rue de Paris, com sua calçada típica e um poste iluminado diante de lojas parisienses da Belle Èpoque. É onde se conhece o lado caricaturista do artista ainda início da carreira. A proposta imersiva, no entanto, de fato se catalisa na seção que trata das paisagens impressionistas. São telões em uma sala escura que, apoiados por uma música bastante debussyana, mostram diversos vídeos com pinturas, filmagens, animações, fotografias e letterings que causam uma impressionante (ou seria "impressionista"?...) profusão de cores, traços e movimentos. Mesmo aqui reproduzidos em vídeo e fotos não passam a ideia da real sensação que se sente presenciando.

Tanto para quem conhece Monet e o impressionismo quanto para quem ainda possa se interessar, a exposição é bastante prazerosa. Para quem, como eu, prefere sempre ver um original ao invés de reproduções, a substituição se torna satisfatória, visto que bem realizada dentro de sua concepção. Não é igual a ver um Monet a olhos nus, certamente, mas que vale o programa, vale.

Fiquem com algumas imagens e vídeos da exposição:

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A recepção, que coloca o visitante no atelier de Monet

Seja bem-vindo à Rue de Paris!

Reprodução de algumas das caricaturas que o jovem Monet fazia
no início da carreira artística para levantar uma grana




Áudio, espelhos e desenhos, tudo ambientando a Paris da Belle Èpoque

Uma das atrações da mostra: reprodução do
quadro que deu nome ao movimento impressionista:
"Impressões, Nascer do Sol", de 1872

Janela aberta para a catedral da Catedral de Rouen,
vista que inspirou Monet em vários quadros




A famosa série de pinturas “Montes de Feno”
reproduzida em sensações olfativas e visuais




Obra dos primeiros anos de Monet, ainda clássico
mas já com alguns traços que soltos que lhe caracterizariam

Detalhe de outra obra impressionante em que Monet
retratou a primeira esposa morta




O impressionante salão com telões,
mais de 10 minutos de deleite





Que tal cruzar a ponte do jardim japonês de Giverny
pra finalizar a visita ao mundo de Monet?

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exposição “Monet: Paisagens Impressionistas”
Quando: até 20 de fevereiro
Onde: Praia de Belas Shopping (2º Piso, Ala Sul, ao lado da Livraria Saraiva)
Horários de visitação: de segunda a sábado, das 10h às 22h, e domingos, das 11h às 21h.
Ingressos: https://site.bileto.sympla.com.br/praiadebelas
Informações: www.praiadebelas.com.br  



Texto: Daniel Rodrigues
Fotos: Tamires Rodrigues, 
Ângela Sosa e Daniel Rodrigues

segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Exposição “Raiz Weiwei”, de Ai Weiwei - Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) e Paço Imperial - Rio de Janeiro/RJ



A arte como resistência
por Daniel Rodrigues

"A arte não é um fim, mas um começo."
Ai Weiwei

O imaginário social criou a ideia do artista que se doa de corpo e alma para a sua arte e que, se não for assim, uma entrega total e desenfreada até chegar à moléstia, não vale. Os poetas românticos que morriam de amor no século XIX ou o alcoolismo da geração de 20 reforçam essa premissa um tanto questionável. Vendo a exposição “Raiz Weiwei”, do artista visual chinês Ai Weiwei, presentes no CCBB e no Paço Imperial, ambos no Rio de Janeiro, é possível compreender uma ressignificação deste conceito. O artista, mais do que ser a sua própria arte, é, tanto quanto, um vórtice transformador de sua realidade político-social. E a doença não é do artista, mas sim a do estado, a da sociedade de consumo, reelaborada nas entranhas do artista e exposta sob o caráter da crítica, da ironia, de resgate cultural, de empoderamento. Da arte.

A partir de uma visão profundamente humanista, Weiwei, que realizou uma residência no Brasil a convite do curador Marcello Dantas, põe-se abertamente do lado certo da história, o dos oprimidos. Filho de um literato perseguido pelo Regime Comunista de Mao, ele traz a sua carne para dentro da obra, chegando sempre no mesmo fim: a denúncia ao sistema. Seu objeto – e quando se materializa esse “objeto” chega-se a qualquer tipo de plataforma que comporte a mensagem: vídeo, porcelana, madeira, fotografia, lego, pedra, gesso, PVC, bambu – é a eterna tensão entre os que dominam e os que são dominados. Ou, no caso de pessoas como ele, os que lutam contra essa dominação.

Cabides: representação
da resistência da arte
Assim, tudo que se concebe da cabeça de Weiwei vem carregado de simbologia. Sem exceção. E não somente altamente simbólicas, como impactantes – pois belas desde e a partir de sua gênese, desde a raiz de Weiwei. É isso que faz um simples “Cabide” (madeira, aço e cristal, 2011, 2012 e 2013) se tornar um ato de resistência, haja vista que, durante a detenção arbitrária de Weiwei pelo autoritário regime chinês, cabides de plástico eram um dos poucos itens permitidos no espaço do cárcere privado. Qualquer semelhança com Ray, Beuys e Duchamp não é mera coincidência.

Mapa feito com a madeira recuperada:
preservação de identidade
A voz inquietante de Weiwei ecoa em questões do seu país natal, como nos vários mapas (“Mapa da China”, de 2015, feita com madeira recuperada de templos destruídos da Dinastia Qing, ou “Quebra-cabeça da liberdade de expressão”, 2015, porcelana, típica técnica chinesa); do Brasil, “He Xie”, 1000 caranguejos em porcelana, iguaria na China, abundância no país tropical, “Mutuofagia” (2018), gigantesca foto do próprio Weiwei e um menino abarrotando-se de frutas tropicais, ou as impressionantes telas de couro de vaca com escritos ao estilo do Alfabeto Armorial, a linguagem pluriartística idealizada por Ariano Suassuna, com ditos igualmente avassaladores como "Se pudessem, colocavam o negro de novo na escravidão" ou “A língua nunca é neutra”, citando Paulo Freire; e, sobretudo, do planeta, viste que toca nas mazelas universais de um mundo desigual e desequilibrado. Haja vista a preocupante questão dos refugiados (“5 910 fotos relacionadas a refugiados”, 2016-17, “Lei da viagem”, 2016, ou “Bicicletas Forever”, 2015).

Centenas de bicicletas em aço inundam de beleza a parte externa do CCBB
Weiwei nos mostra que, antes de ser artista, deve-se ser humano. E que arte e indignação caminham juntas, basta ter coragem de acessá-las. Talvez seja por isso que seja impossível ficar passivo diante da sua obra. Sobretudo Arte é arte da resistência – independe do formato em que se exprima. Quer maior ato de demonstração de resistência, internalização e comprometimento com a arte do que a selfie em que Weiwei sendo preso arbitrariamente pela polícia do governo do próprio país? Arte não se prende: se ilumina.

Papel de parede "Iluminação", de 2009: nome mais apropriado impossível

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Arte completa
por Cly Reis 

"Tudo é arte. Tudo é política."
Ai Weiwei

Eu já havia ouvido falar de Ai Weiwei, sabia de seu engajamento, de sua atuação política, conhecia superficialmente seus problemas com as autoridades chinesas, mas não tinha a verdadeira noção do quanto seu trabalho era comprometido e constantemente repleto de conteúdo. Nada nele é sem propósito, nada é por acaso. Uma cor, um material, um ângulo, uma pose, uma palavra, nada é sem motivo e sempre terá contido em si alguma mensagem ou contestação, pois, como ele mesmo afirma, os caminhos da arte são necessariamente indissociáveis aos da política.

A questão dos refugiados e a
urgência por um mundo mais humano
Ai Weiwei é a arte em estado puro. Desde uma notável sensibilidade estética e conceitual, à utilização do objeto mais banal e cotidiano como elemento artístico. É impressionante sua capacidade aplicar mais sentido, mais interpretações a uma obra que, por si só, já teria valor estético tornando-a ainda mais valorosa, então, pelo poder de sua sugestão. É o caso dos vasos de porcelana, já belíssimos se apreciados à distância, mas que, vistos em detalhe revelam recortes de situações de refugiados ao longo da história, aos quais o artista faz questão de lembrar sob um olhar crítico e corajoso, do impressionante papel de parede “egípcio” que ocupa uma parede inteira da exposição e que, de perto, revela também episódios de refugiados ao redor do mundo . E o que dizer das "Sementes de Girassol" (2010), milhares de réplicas cerâmicas, produzidas uma a uma, manualmente, obra repleta de simbologias remetendo ao mesmo tempo à vida das mulheres chinesas, aos direitos humanos e à época da Revolução Cultural.


Cerâmicas feitas manualmente: resistência e ancestralidade
“Raíz” é uma exposição daquelas que impressiona, perturba, alerta, encoraja, transforma, inspira e nos faz lembrar, tanto materialmente quanto conceitualmente, quais os verdadeiros objetivos da arte.

A impressionante arte de Weiwei: perturbação e alerta

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Manifesto
por Leocádia Costa

"Minha palavra favorita? É Agir!"
Ai Weiwei

Ai Weiwei reuniu a mim, Daniel e Cly numa incursão curiosa ao acervo que veríamos do ativista chinês no CCBB, que reúne lucidez e ação. À medida em que fomos entrando no processo de criação, misturado a trabalhos já realizados e outros mesclados ao solo brasileiro, fui me emocionando, porque somos parte do que ele faz.

Arte hoje é ativismo, mas não porque o artista de antes nunca tenha sido um interlocutor consciente do cenário onde vivia e da sua função mas, principalmente, porque hoje o artista possui uma conexão muito mais ágil, acessível e que em um único gesto é capaz de viralizar.


Selfie com os potes: riqueza no Ocidente,
sem valor no Oriente


A delicadeza da porcelana oriental e a contundência da palavra

Weiwei sabe disso.

Ele dá aquele grito derrubando muros de hipocrisia e medo. Ele coloca a verdade nua e crua dentro de um contexto histórico, afinal de contas, não somos meros personagens da vida, mas sim pessoas que fazem a história e, por isso, tem responsabilidade sobretudo com o que existe e acontece. Essa participação é viva, necessária, e se for artística fica ainda muito melhor. No caso dele é tudo isso de forma inspiradora.

"Panda a panda", bicho de pelúcia,
material impresso e cartão SD com
documentos confidenciais vazados
 por Edward Snowden
Em algumas fases da história da arte e, logicamente, da nossa civilização, manifestos foram impressos e levaram a linha de pensamento para fronteiras até então muito longínquas. Weiwei deixou de certa forma um manifesto impresso nas paredes e nos olhos que quem foi prestigiar essa exposição e que diz muito sobre o que ele faz e como ele percebe o seu lugar no mundo.

A partir das frases destacadas pela curadoria nos ambientes expositivos tomei a liberdade de montar esse manifesto, que com certeza elucidará sua mensagem aos ainda insensíveis e divergentes ao mesmo tempo em que inspira quem busca, como nós, agir.

"Eu não diria que me tornei mais radical: eu nasci radical. A história nos ensina que no início das maiores tragédias havia ignorância. Muitas vezes penso que o que estou dizendo é para as pessoas que nunca tiveram a chance de ser ouvidas. Eu quero que as pessoas enxerguem o seu próprio poder. Temos que lembrar que não temos escolha. Ou estamos do lado certo ou do lado errado. Minha palavra favorita? É Agir! Uma pequena ação vale um milhão de pensamentos. O meu mundo é uma esfera, não há Oriente nem Ocidente. A liberdade diz respeito ao nosso direito de questionar tudo. A arte não é um fim, mas um começo. Se você desviar o olhar você é conivente.”


O trio que comanda o Clyblog se esbaldando na exposição de Weiwei

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Confiram outras fotos das exposições:

A minúcia de Weiwei já na entrada da mostra:12 telas e centenas
de vídeos e imagens em sincronia

"Obras de Juazeiro do Norte" une a técnica ancestral do
artesanato em madeira do Brasil e da China

Ofertas votivas tradicionais que fiéis fazem a divindades
como sinal de gratidão e devoção. Entre estes, o "foda-se"

Visitantes no CCBB com o papel de parede "Iluminação" ao fundo

No piso, a bora "Florescer", símbolo da resistência do artista quando preso e,
ao fundo, a parede com a impressionante "5 910 fotos relacionadas a refugiados"

Sob os pés de Leocádia, "Máscara", em mármore (2013)

Detalhe de "5 910 fotos relacionadas a refugiados": ares da Guernica de Picasso

Detalhe de "Uvas", feito com 32 banquinhos da Dinastia Qing

Visitantes admirando a arte engajada de Weiwei no CCBB

Mulher atenta a um dos vários vídeos da mostra

As bikes de Wewei com a Candelária ao fundo

Olha eu lá interagindo com as luas de madeira, no Paço

Foto impressa em jogo de Lego: a criatividade sem limites de Weiwei

Uso do Alfabeto armorial em "Marca 11" (2018): citação de Seu Jorge,
Marcelo Yuka e Wilson Cappellette

A forte "Lei da Viagem", em PVC, no vão de entrada do Paço

Outra obra impactante, "Duas Figuras", feita em gesso

Uma das "Sete Raízes" extraídas de árvores nativas do Brasil

A violência policial no rico de detalhes da porcelana ao estilo chinês

Um "fuck" esculpido em bronze

As sementes de porcelana e, acima, "Taifeng" (2015), feita em bambu e seda

Metáfora à famosa cena da Praça da Paz Celestial, em Pequim

Outra parte de "Sete Raízes", que tem colaboração de artesãos do Brasil e da China

Caranguejos feitos em porcelana, animal que simboliza resistência
em diferentes dinastias chinesas ao longo da história

Tradicional arte em madeira para dizer... Recado dado

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Exposição "Raiz Weiwei", de Ai Weiwei
local: Centro Cultural Banco do Brasil - CCBB e Paço Imperial
endereços: Rua Primeiro de Março, 66 - Centro - Rio de Janeiro /RJ (CCBB) e Praça XV de Novembro, 48 - Centro (Paço)
horários: de quarta a segunda, das 9h às 21h (CCBB) e de terça a domingo, das 12 às 19h (Paço)
período: até 4/11/2019
ingresso: gratuito 


textos e fotos: Cly Reis, Daniel Rodrigues e Leocádia Costa