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quinta-feira, 5 de junho de 2025

Filó Machado - Grezz - Porto Alegre/RS (27/05/2025)


Filó Machado foi uma descoberta tardia, que o POA Jazz Festival de 2014 me trouxe. Naquela edição, o show dele foi surpreendentemente o melhor da noite em que se esperava que o "bruxo" Hermeto Pascoal ocupasse esse espaço. A partir dali, passei a ter contato direto com o som e a impressionante musicalidade desse paulista genial cujo obscurantismo (ou segmentação) dentro da indústria cultural no Brasil só pode ser explicado pela incapacidade do brasileiro de assimilar suas próprias coisas boas. Afinal, surgido à mesma época que Djavan, que guarda MUITAS semelhanças com a musicalidade de Filó, a mesma indústria acabou por separá-los em caixinhas: um na popular, para rodar na mídia, e o outro no segmentação, destinado a ouvidos mais "exigentes".

Ocorre que Filó, 74 anos e carreira tão consolidada quanto robusta, vai muito além da sonoridade “djavanesca” e não é nada difícil apreciar sua música, Excelente guitarrista, é um cantor, compositor e arranjador daqueles que o Brasil deveria diariamente se orgulhar. E se os brasileiros não lhe dão o devido reconhecimento, os estrangeiros, estes sim, dão. Admirado por artistas do calibre de Michel Legrand, Jon Hendricks, John Patitucci e Warvey Waynape - além de brasileiros de alcance internacional, como Gal Costa, João Donato, Joyce e outros - Filó é ovacionado no Japão, Estados Unidos, França, Rússia, Holanda, Bélgica, Lituânia, Canadá, Equador, Croácia e mais dezenas de países. Tivemos a oportunidade Leocádia e eu de fazermos o mesmo novamente após 11 anos.

Desta vez, no entanto, foi mais especial ainda. Na nossa primeira vez no Bar Grezz, localizado na região do 4º Distrito de Porto Alegre e que fora fortemente afetada pelas enchentes de um ano atrás, pudemos ver de perto um show muito mais intimista de Filó. Ele cantou, contou histórias e emanou toda sua infinita musicalidade, que entremeia bossa nova, jazz, samba e soul com a naturalidade dos deuses negros da música. Acompanhado dos músicos locais Ras Vicente (piano), James Liberato (baixo) e Renato Popó (bateria), Filó iniciou cantando nada mais, nada menos que o samba perfeito “Acontece”, de Cartola. Só ele e o violão elétrica. Uma música que, na sua versão original, econômica e limpa, dura pouco mais de 1 min, com Filó ganhou a dimensão dramática que a própria melodia sugere. Um começo de arrepiar.

Simpático e conversador, Filó falou sobre “Jogral” antes de cantá-la. Gravada em 1981 por Djavan, então um assíduo frequentador da casa noturna onde Filó tocava em São Paulo, a história elucida de onde veio a ideia do suingue, das divisões rítmicas e das construções harmônicas que tanto caracterizaram a sonoridade do autor de “Oceano”. “Meu pensamento rodou/ Cortando o torrão nesse trem, andando bem/ Acho que a mais de cem/ De Maceió aqui parece ali”. Parece letra escrita por alguém nascido na capital do Alagoas como Djavan, né? Mas, não: é de Filó.

As lindas melodias prosseguiram: a emocionante “Por Onde Andávamos”, parceria com o célebre Sérgio Ricardo (“Por onde andávamos quando éramos estranhos/ Quem sabe estivéramos perto a ponto de nos tocar”), que fala sobre a sincronicidade da vida e do amor; a hispânica “Carmens e Consuelos”, esta com outro genial, Aldir Blanc, presente no disco mais recente de Filó, “Cisne Negro”, lançado em 2024, somente com parcerias inéditas dele com o saudoso letrista de outros clássicos da MPB como “O Bêbado e a Equilibrista” e “Delírio Carioca”; o suingado samba “Amar a Maria”, que faz um admirável jogo sonoro com as palavras (“Mas a Maria não estava nem aí/ A Maria é uma Maria se ela estivesse fora de si”); e uma das minhas preferidas dele, “Perfume de Cebola”, esta, com o poeta mineiro Casaco, que se ele não tocasse, eu ia pedir, juro.

A admirável musicalidade de Filó, seja no violão vívido e jazzístico, seja nas melodias cheias de pulsação e criatividade harmônica, também se expressava nos deliciosos melismas ao estilo George Benson em que não apenas fazia duos da voz com ao próprio violão, como, percussionista que também é, inventava solos de percussão com a boca. E que solos! Isso quando não chamava a nós da plateia para acompanhar em seus acordes, às vezes difíceis de arremedar. Rolou este expediente vocal no pot-pourri de “Je Viens te Dire la Verite”, parceria com o músico francês Michael Legrand e cantada por Filó, claro, num invejável francês, emendada com uma das composições dele e da musicista carioca Fátima Guedes, no caso, a belíssima “Blue Note”, gravada por ela em 1983.

Teve também participação do músico gaúcho de vasta experiência internacional Adriano Trindade, que tocou com o mestre e professor duas belas canções: “Canto da Senzala” (parceria com Gelson Oliveira) e uma ótima “milonga jazz”, a qual contou também com a participação de Dida Larruscaim e Pietra Keiber, chamados ao palco para uma jam.

O gaúcho Adriano Trindade tocando com uma milonga com o mestre Filó Machado

Filó reservou sabiamente para encerrar o show sua abismal versão de “Take Five”, clássico jazz modal de Dave Bruback, que ele transforma num samba-jazz visceral e muito, mas muito brasileiro! Shows de improviso, melismas e desempenho da banda. No bis, amável, Filó acatou pedidos da plateia. E que bom, pois uma das solicitadas foi a belíssima “Venha até a Minha Casa”, dele e de Judith de Souza, das joias do seu brilhante álbum “Canto Fatal”, de 1984. Surpreendendo gregos e troianos (aliás, gaúchos), ele ainda manda ver numa versão do samba do nome negro da MPG, Gelson Oliveira – que, infelizmente, me escapa o título da canção.

Um desbunde. É a melhor definição que se pode dar. Há centenas de talentos no Brasil, mas certamente poucos guardam tantas qualidades reunidas como Filó Machado. E com todo respeito e admiração a Djavan, há de se convir, depois de ouvir e ver Filó assim, tão de perto, que a sina de cada um merece, digamos, os seus devidos lugares. Como querer filonear o que há de bom – e de muito bom.

***************

Começa o show!

Somente Filó e seu violão tocando Cartola. Nem precisava mais

Surpresas, participações e muito jazz

Visão geral da banda no palco do Grezz

Improvisação no violão


Filó Machado esbanjando musicalidade 
com seus melismas


Filó com a afiada banda de músicos gaúchos

O gigante Filó. Canto ancestral

Rolou jam com Adriano Trindade e convidadas 

Mais um pouco da participação de Adriano Trindade
aqui tocando a bela "Canto da Senzala"


Talento puro

Filó e banda se despedem do palco do Grezz



texto: Daniel Rodrigues
fotos e vídeos: Daniel Rodrigues, Leocádia Costa e Canal Youtube Adriano Trindade 

quinta-feira, 15 de maio de 2025

Argemiro Patrocínio - "Argemiro Patrocínio" (2002)

 

“Eu só faço samba sobre coisas que me inspiram.”
Argemiro Patrocínio

Existem talentos especiais que passam pela Terra quase despercebidos. Embora esse descuido possa ocorrer em qualquer canto do planeta, não é difícil de se supor que os vícios de alguns lugares favoreçam a que preciosidades sejam obscurecidas – às vezes, por uma vida inteira. O Brasil, país jovem e com sérias dificuldades históricas de autoidentificação, é prodígio quando o assunto é apagar seus próprios iluminados, quanto mais, os da cultura popular. Com o samba, que sofreu por décadas perseguição, proibição e preconceito, a demora no reconhecimento de atores fundamentais para a construção do gênero musical mais original e identitário brasileiro promoveu um atraso quase irrecuperável. Dona Yvone Lara, Adoniran Barbosa, Cartola, Nelson Cavaquinho, Clementina de Jesus e Nelson Sargento, por exemplo, só lançaram seus discos de estreia na terceira idade. A vida humilde, a discriminação e a ralação do dia a dia sempre lhes foi uma realidade inescapável.

Se com esses grandes nomes quase não deu tempo de aproveitá-los, imagine-se com os sambistas de comunidade, menos midiáticos. É o caso de Argemiro Patrocínio, também conhecido por Argemiro do Pandeiro, Argemiro da Portela ou, simplesmente, Seu Argemiro, como era chamado em Madureira e Oswaldo Cruz, chão dos portelenses. De uma geração à frente de Monarco ou Candeia, dois referenciais bambas da Escola, Argemiro foi um compositor de mão cheia, mas que nunca teve espaço suficiente para desaguar suas autorias fora da quadra da escola. Os mais atentos podem lembrar dele na capa do disco de estreia de D. Yvone, “Samba Minha Verdade, Samba Minha Raiz”, de 1978, atrás dela, à direita e junto com outros companheiros de samba, em que aparece meio de soslaio quase escondido pelo inseparável chapéu. Ou na cena dos partideiros no pátio da casa de Candeia no filme “Partido Alto”, de Leon Hirszman, de 1982. Como se vê, aparições sempre secundárias: integrado ao grupo, mas dissolvido nele.

Argemiro, contudo, começou cedo sua relação com o samba. Foi levado, nos anos 50, pelos históricos Paulo da Portela (então diretor) e Betinho (diretor de bateria) para a Portela, passando a integrar a Ala dos Pandeiros. Pai do Mestre Sala Jerônimo (da Portela e Imperatriz Leopoldinense), mais tarde entrou na Ala dos Compositores e também na velha-guarda da Escola, a qual, apadrinhada por Paulinho da Viola, se tornou uma referência entre as velhas-guardas cariocas a partir dos anos 70.

Homem de pouco estudo, mas de enorme sabedoria e inteligência, Argemiro trabalhou duro como técnico em refrigeração, profissão pela qual se aposentou de forma humilde. Isso explica em parte porque só começou a compor aos 56 anos, no final dos anos 70. Não demorou para que suas músicas, as mais de 100 que anotava com esmero num caderno, fossem reconhecidas. Em 1980, a madrinha do samba Beth Carvalho gravou a primeira composição sua, “A Chuva Cai”, parceria com Casquinha. Entre discos da Velha Guarda da Portela, participações em trabalhos de Zeca Pagodinho, Teresa Cristina e Grupo Semente, ganhou reconhecimento como o autor original que é, principalmente, na virada para o século 21. Ou seja: já na velhice. Não somente ele, como também os companheiros de Velha Guarda Casquinha e Jair do Cavaquinho, que tiveram, após o lançamento do álbum “Tudo Azul”, da Velha Guarda, em 2000, seus também primeiros discos gravados todos pelo selo Phonomotor, de Marisa Monte, um em 2001 e outro em 2002. Argemiro, que esperara oito décadas para isso, foi o terceiro da fila e não desperdiçou a oportunidade de marcar de vez seu nome na história da discografia do samba.

Poeta romântico e melodista precioso, Argemiro abre o disco com um soar de cavaquinho e a voz às vezes sôfrega e sibilante, mas naturalmente elegante e carregada de experiência vocal (e de vida). Ele canta os poéticos versos, que impressionam pela concisão das poucas palavras: “Não sei/ Porque/ Tudo de mal/ Acontece comigo/ Tentei/ Mudar/ Em vão/ Mas não consigo”. E arremata: “Ninguém pode fugir do seu destino/ Esse meu sofrimento é desde os tempos de menino”. Argemiro dá o tom da sua poética, calcada na tradição do samba de terreiro: o amor não correspondido, o sofrimento do coração partido, a mulher que abandona. Emendada, “Tudo Mudou Tão de Repente", uma das parcerias com outro célebre portelense, Chico Santana, segue na mesma linha: “Eu não sei se é meu destino/ Desde os tempos de menino/ Vivo sofrendo assim”. A sina do sambista, este eterno sofredor.

O violão de Paulão 7 Cordas, o cavaquinho de Mauro Diniz (filho de Monarco) e a “cozinha” de Felipe D’Angola e Marcelo Moreira dão a Argemiro o espaço necessário para ele entrar com seu pandeiro e sua voz. A magnífica “Solidão”, de tão classuda, ganha o toque do violoncelo de Jacques Morelenbaum. E olha que poética! “Um fantasma que mata/ E que maltrata o coração/ É dor, angústia e sofrimento O tédio é um eterno tormento/ Assim é a solidão”. Sua clássica "A Chuva Cai”, já ouvida na voz de Beth Carvalho, Renata Arruda, Grupo Explosão do Samba, Régis Clemente e outros, tem agora, enfim, a do seu próprio autor. A história da música no Brasil devia isso ao samba.

Marisa Monte, produtora do disco, sabia dessa importância histórica e dá ao conteúdo musical e até antropológico o devido capricho. Marisa, por sinal, vinha de alguns anos encabeçando o projeto de valorização da Velha Guarda da Portela. Primeiro, com o disco “Tudo Azul”, também produzido por ela. Mais tarde, os de Casquinha, Jair do Cavaquinho e este, além do belo documentário “O Mistério do Samba”, de Lula Buarque de Hollanda e Carolina Jabor, de 2008, que a tem como cicerone. É neste filme, aliás, que Argemiro ganha seu primeiro protagonismo em vida, tratado como um dos personagens centrais da Portela. Constantes no filme, "Deslize Da Vida" (“A vida/ Não é somente doçura/ Tem que haver amargura/ Para se dar o valor”) e a maravilhosa "A Saudade me Traz", com direito a "clipe", tem a ilustre participação de Zeca Pagodinho e das vozes femininas da Velha Guarda, as Pastoras – leia-se Tia Doca, Tia Eunice, Tia Surica e Áurea Maria. Uma das melodias mais bonitas da história do samba carioca e com uma letra, que é um show de domínio de prosódia e sintaxe: “A saudade me traz/ Quero rever alguém/ Que do meu coração não sai/ Eu vivo nessa agonia sem fim/ Eu canto, eu bebo para esquecer/ Mas nem assim”. Luxo só.

trecho do filme "O Mistério do Samba" com o "clipe" "A Saudade me Traz"

Capricho também se vê no arranjo especial dado a cada faixa. "Cadê Rosalina", um samba-de-roda com ares rurais, recebe, além das vozes tão afinadas quanto agudas das Pastoras, o acordeom de Waldonys. Trato semelhante em conceito tem “Vem Amor”, samba cadenciado em que o violino de Nicolas Krassik escreve frases líricas sobre a base de tamborim e o limpo cavaquinho de Mauro Diniz; bem como o samba romântico "Dizem Que o Amor", toda na voz delicada de Marisa e cujo arranjo valoriza as cordas do cavaquinho, do violão e do cello de Jacquinho. Por falar em voz feminina, é a da fã e parceira Teresa Cristina que aparece em “Amém” para dividir os microfones com o ídolo. Um samba recente, mas com cara de clássico das antigas.

Galanteador, malandro da velha estirpe e cheio de histórias, Argemiro transpõe para seus sambas embates amorosos como o de ‘Nuvem que Passou”. "Essa saiu de repente, inteira por causa de uma mulher que não deu certo. Nós nos encontramos, ela veio com saudade, mas eu não quis dar o braço a torcer", resume. Outra nesta linha é a divertida (mas não menos melodiosa) “Saia da Casa dos Outros”, na qual Argemiro lembra outra companheira que era frequentadora assídua da vizinha, em frente a uma vila em que ele morava em Oswaldo Cruz.

O próprio Argemiro comanda o pandeiro – e apenas mais o cavaquinho – em "Lamento de um Portelense", quase uma vinheta, que antecede outra das joias do álbum: "Em uma Noite de Verão". Samba-canção valseado, com harmonia complexa e engenhosa e de letra de alta expressividade e lirismo. “Até o brilho das estrelas/ Se fez presente aos olhos meus/ Como foi maravilhoso vê-las/ Que bom seria se não fosse o adeus”. É ou não é de dar inveja em muito compositor/letrista com bastantes mais condições na vida?

E o que dizer da maestria de "Vou-me Embora pra Bem Longe"? Esta é tão melodiosa e especial, que rendeu não uma faixa, mas duas no disco. A primeira, na voz de Moreno Veloso, com breve participação do seu autor. A segunda, num eletro-samba remixado por Marcelo D2 que, esta sim, traz o vocal inconfundível de Seu Argemiro. A letra? Essa maravilha aqui: “Vou embora para bem longe/ Não posso mais ficar/ Você não me corresponde/ E os meus anseios não podem esperar”. Note-se o domínio do fraseado e do bom uso dos recursos linguísticos (mesmo que isso se dê de forma totalmente inata): “Amar, como eu amei/ Até pensei que fosse minha um dia/ Cantar, também cantei/ Extravasei a minha alegria/ Mas tudo não passou de fantasia”. Uma estrutura literária própria dos grandes poetas.

A notoriedade que Argemiro recebeu, enfim, ainda em vida, infelizmente durou pouco. Em 2003, ao lado de Teresa Cristina, Jair do Cavaquinho e Grupo Semente, apresentou-se no Centro Cultural Carioca, na Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro. Pouco depois, vítima de uma parada cardíaca, viria a falecer, aos 81 anos, meses depois de lançar seu único disco solo. Quase não deu tempo de registrar essa preciosidade da música brasileira.

Ah, mas Seu Argemiro sempre tinha mais uma história! E esta aqui envolveu Vinícius de Moraes. Depois do sucesso de “A Chuva Cai”, Paulinho da Viola levou Argemiro num bar onde estavam Vinicius e Chico Buarque para apresentar-lhes o "novo compositor". Provocador, Vinícius, informado da capacidade de Argemiro fazer samba de partido-alto, aquele inventado na hora, olhou para ele e falou. “Faz música, mesmo? Então faz uma sobre essa garrafa aí na mesa”. Argemiro fechou o semblante e respondeu que não ia escrever sobre a garrafa, pois não estava sentido nada por ela. Ficou um climão, mas Argemiro foi para casa com aquilo na cabeça. Na semana seguinte, pediu para Paulinho levá-lo novamente àquele bar. Ao chegar, retirou a caixa de fósforo do bolso e batucou para a seleta plateia em que estavam novamente Vinicius e Chico o samba que havia composto naquela semana. Era “Minha Inspiração”, que fecha este disco em um canto a capella de Argemiro:

“Eu direi vocês estão enganados
Não faço sambas fabricados
Compreendendo vão me dar me razão
 
Somente escrevo que sinto
Falo a verdade não minto
Culpada é a minha inspiração
 
Já procurei escrever de outro jeito
Nada saía perfeito, porque não estava em mim
Não adianta eu forçar a minha natureza
Se o melhor do samba é a sua pureza
E eu forçando seria meu fim”.
 
Chico, impressionado, o olhou e disse. “Precisava isso tudo?”


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FAIXAS:
1. Pot-pourri: "Meu Sofrimento” (Argemiro Patrocínio) / “Tudo Mudou Tão de Repente" (Argemiro/Chico Santana) - 3:03
2. "Solidão" - Participação: Jaques Morelenbaum (Argemiro) - 3:26
3. "A Chuva Cai" (Argemiro, Casquinha) - 2:20
4. "Vem Amor" (Argemiro, Armando Santos) - 2:42
5. "Dizem Que o Amor" – Participação: Jaques Morelenbaum e Marisa Monte (Argemiro/Chico Santana) - 2:18
6. "Cadê Rosalina" - Participação: Pastoras da Velha Guarda da Portela e Waldonys (Argemiro, Paulo Vizinho) - 3:54
7. "Saia da Casa dos Outros" - Participação: Pastoras da Velha Guarda da Portela 
(Argemiro, Darcy Maravilha) - 3:01
8. "Deslize da Vida" (Argemiro/Chico Santana) - 3:17
9. "Lamento De um Portelense" (Argemiro/Chico Santana) - 0:55
10. "Em Uma Noite de Verão" (Argemiro) - 2:53
11. "Amém" - Participação: Teresa Cristina (Argemiro, Teresa Cristina) - 3:34
12. "Nuvem que Passou" (Argemiro) - 3:43
13. "Vou-me Embora pra Bem Longe" - Participação: Moreno Veloso e Rildo Hora (Argemiro, Guaracy, Renato Fialho) - 3:13
14. "A Saudade me Traz" - Participação: Pastoras Da Velha Guarda Da Portela e Zeca Pagodinho (Alberto Lonato, Argemiro) - 2:10
15. "Minha Inspiração" (Argemiro) - 0:22
16. "Vou-me Embora pra Bem Longe (remix)" - Participação: Cleber França e Marcelo D2 - 2:59


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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

terça-feira, 6 de maio de 2025

BPE + Cultura - Rua Riachuelo - Porto Alegre/RS (03/05/2025)

 

Que coisa louca essa vida: há exatamente um ano atrás, Porto Alegre, assim como maior parte do Rio Grande do Sul, estava debaixo de uma chuva torrencial, que não parava há dias. Vários bairros da capital, dentre eles, parte do Centro, inundados ou sem luz. Eis que, contrariando qualquer trauma, que nós gaúchos ainda estamos aprendendo a superar, o tempo se mostra há mais de uma semana ameno, ensolarado, solar, outonal, agradável. E melhor: sem um pingo d'água sequer.

Cenário perfeito para um evento de rua - algo inimaginável naquele começo de maio de 2024. Convidado como um dos autores do BPE + Cultura, promovido todo primeiro sábado do mês pela Biblioteca Pública do RS na própria Rua Riachuelo, em pleno Centro Histórico, tive o privilégio de autografar alguns dos meus livros “Chapa Quente”, “Anarquia na Passarela” e a antologia “Lar”, lá de 2014. Ainda, rever amigos e, claro, curtir o clima desse sábado iluminado de Porto Alegre.

Na companhia amorosamente inseparável de Leocádia e da simpatia canina de Bolota, foi possível aproveitar comes, cerveja artesanal, intervenções literárias, contação de histórias, oficinas e os shows, como o de samba do competente Quinteto Benguelê. Cheios de simpatia e com uma cantora carismática e talentosa, o grupo mandou ver em vários clássicos autores do samba, como Elis Regina/Baden Powell (“Vou Deitar E Rolar”), Cartola ("Tive Sim"), Dona Yvone Lara ("Sonho Meu") e Nelson Cavaquinho ("Palhaço"). Teve também uma emocionante apresentação do grupo teatral Dança do Leão e do Dragon, que trouxe a apresentação de dança O Despertar da Fortuna baseada nas tradições chinesas. O impactante vídeo da performance sinuosa e misteriosa do dragão ao som dos tambores típicos não deixa mentir.   


Enfim, um presente a nós e a todos os porto-alegrenses: a ocasião e a de poder aproveitá-la numa tarde de sol abençoada. Confiram um pouco de como foi:

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Dia perfeito para feira na rua


Uma visão geral do começo da tarde no evento promovido pela Biblioteca Pública do RS



Com os meus livros e com Bolota aguardando os autógrafos


Autografando um "Anarquia"


Batendo um papo com o amigo Otávio Silva, que foi me prestigiar


Com a escritora e parceira de autógrafos Maiza Lemos


Contação de histórias rolando com a criançada


Um trechinho do Quinteto Benguelê 
tocando Cartola


Com a diretora da BPE, Ana Maria de Souza, e Rafael Correia, curador do evento


Nossa parceira de feira


Nós três nesta tarde em que o sol sorriu pra Porto Alegre



texto: Daniel Rodrigues
fotos: Daniel Rodrigues e Leocádia Costa

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Dossiê ÁLBUNS FUNDAMENTAIS 2024

 


Se liga rapaziada de Liverpool que
o tio Wayne tá chegando
A gente que gosta de falar sobre grandes discos, volta e meia quando descobre alguma coisa, reouve ou reavalia algum disco esquecido, pensa "Eu tenho que escrever sobre esse disco!". Mas aí, muitas vezes, a gente pondera, "Poxa, mas vai ser mais um álbum do Fulano nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS... Já tem tantos". É que tem uns que é inevitável que tenham mais de um. Dois, três..., um monte.  Beatles, por exemplo, muitos defenderiam que toda a discografia estivesse destacada entre os melhores discos de todos os tempos (e não seria nenhum absurdo). Caetano Veloso, Stevie Wonder, Miles Davis, é impossível que em obras tão relevantes que influenciaram gerações, nos impressionemos e nos limitemos a destacar apenas um grande trabalho de cada um deles. Depois de alguns anos fazendo a seção de grandes álbuns, acumuladas grandes obras de diversos nomes desse porte, a gente fica sempre com a curiosidade: quantos discos daquele cara, daquela banda tem nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS?

Então surgem outras curiosidades: a gente vê vários de Rolling Stones, Elton John, Smiths, e se pergunta "Quantos ingleses tem na lista?", aí vê Ramones, Madonna, Herbie Hancock, Aretha Franklin, e compara, "Será que tem mais americanos ou ingleses?", "e os brasileiros, como estão nessa parada?", e vão surgindo categorias e mais categorias. Qual ano tem mais grandes discos lembrados? Qual década se destaca?... E assim criamos o Dossiê ÁLBUNS FUNDAMENTAIS, um levantamento que fazemos a cada ano, contabilizando os discos incluídos na última temporada na nossa seção, apresentando então quem está na frente em cada um dos critérios. 

No último ano, entre os artistas internacionais, os Beatles continuam firmes na ponta como aqueles com mais discos citados, mas começam a sentir a proximidade do gênio do jazz Wayne Shorter que vem chegando como quem não quer nada. No âmbito nacional, se Caetano Veloso se manteve à frente por conta de um disco em parceira com Chico Buarque, o mesmo álbum fez com que o próprio Chico se aproximasse e alcançasse a segunda posição. Entre os países, o Brasil, com 8 dos 21 discos destacados no ano, deu um salto na tabela ampliando ainda mais a vantagem em relação aos ingleses, mas ainda longe dos norte-americanos que lideram com folga.  Já nas épocas, a década de 70 continua sendo a que tem mais grandes álbuns mencionados, embora o ano que tenha mais obras seja da década de 80, o ano de 1986. No entanto, no ano passado, por trazer alguns discos que recentemente completavam 50 anos, o de 1974 foi o que apareceu mais na nossa galeria.

 Ainda no que diz respeito aos anos, vamos dar uma 'trapaceada' desta vez: como o disco "Me & My Crazy Self", do bluesman Lonnie Johnson contém gravações de 1947 a 1953, vamos incluí-lo nos anos 40 só porque, até hoje, era a única década que não tinha nenhum disco indicado. Pode ser? (Segredo nosso. Fica entre a gente. Shhhh!!!)

Como destaques tivemos as estreias da talentosíssima musa francesa Françoise Hardy e do subestimado Ivan Lins no nosso seleto grupo de elite; o disco ao vivo de Gilberto Gil, no Tuca, um dos álbuns cinquentões do ano passado; mais um da rainha Madonna para marcar sua grandiosa vinda ao Brasil; e, em ano de Olimpíadas, um disco de atleta, o excelente "Rust in Peace", do faixa preta em taekwondo Dave Mustaine do Megadeth.

Bom, chega de papo-furado: vamos às listas, às colocações, aos números que é o que interessa aqui. Com vocês o Dossiê ÁLBUNS FUNDAMENTAIS 2024.

Dá uma olhada aí:


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PLACAR POR ARTISTA (INTERNACIONAL)

  • The Beatles: 7 álbuns
  • Kraftwerk e Wayne Shorter***: 6 álbuns
  • David Bowie, Rolling Sones, Pink Floyd, Miles Davis, John Coltrane e John Cale*  **: 5 álbuns cada
  • Talking Heads, The Who, Smiths, Led Zeppelin, Bob Dylan, Philip Glass e Lee Morgan: 4 álbuns cada
  • Stevie Wonder, Cure, Van Morrison, R.E.M., Sonic Youth, Kinks, Madonna, Iron Maiden , U2, Lou Reed**, e Herbie Hancock***: 3 álbuns cada
  • Björk, Beach Boys, Cocteau Twins, Cream, Chemical Brothers, Sean Lennon, Deep Purple, The Doors, Echo and The Bunnymen, Elvis Presley, Elton John, Queen, Creedence Clarwater Revival, Janis Joplin, Johnny Cash, Joy Division, Massive Attack, Morrissey, Muddy Waters, Neil Young and The Crazy Horse, New Order, Nivana, Nine Inch Nails, PIL, Prince, Prodigy, Public Enemy, Ramones, Siouxsie and The Banshees, The Stooges, Pixies, Dead Kennedy's, Velvet Underground, Metallica, Dexter Gordon, PJ Harvey, Rage Against Machine, Body Count, Suzanne Vega, Beastie Boys, Ride, Faith No More, McCoy Tyner, Vince Guaraldi, Grant Green, Santana, Ryuichi Sakamoto, Sinéad O'Connor, Marvin Gaye e Brian Eno* : todos com 2 álbuns

*contando com o álbum  Brian Eno e John Cale , ¨Wrong Way Out"

**contando com o álbum Lou Reed e John Cale,  "Songs for Drella"

*** contando o álbum "Five Star', do V.S.O.P.



PLACAR POR ARTISTA (NACIONAL)

  • Caetano Veloso: 8 álbuns*#
  • Gilberto Gil * **  e Chico Buarque ++ #:  7 álbuns
  • Jorge Ben ** João Gilberto*  ****: 5 álbuns
  • Tim Maia, Rita Lee, Legião Urbana,  , e Milton Nascimento***** º: 4 álbuns
  • Gal Costa, Titãs, Paulinho da Viola, Engenheiros do Hawaii e Tom Jobim +: 3 álbuns cada
  • João Bosco, Lobão, João Donato, Emílio Santiago, Jards Macalé, Elis Regina, Edu Lobo+, Novos Baianos, Paralamas do Sucesso, Ratos de Porão, Roberto Carlos, Sepultura, Cartola, Baden Powell***  e Criolo º : todos com 2 álbuns 


*contando com o álbum "Brasil", com João Gilberto, Maria Bethânia e Gilberto Gil

**contando o álbum Gilberto Gil e Jorge Ben, "Gil e Jorge"

*** contando o álbum Baden Powell e Vinícius de Moraes, "Afro-sambas"

**** contando o álbum Stan Getz e João Gilberto, "Getz/Gilberto"

***** contando com o álbum Milton Nascimento e Lô Borges, "Clube da Esquina"

+ contando com o álbum "Edu & Tom/ Tom & Edu"

++ contando com o álbum "O Grande Circo Místico"

# contando com o álbum "Caetano & Chico Juntos e Ao Vivo" 

º contando com o álbum Milton Nascimento e  Criolo "Existe Amor"



PLACAR POR DÉCADA

  • anos 20: 2
  • anos 30: 3
  • anos 40: 1
  • anos 50: 121
  • anos 60: 101
  • anos 70: 166
  • anos 80: 142
  • anos 90: 108
  • anos 2000: 20
  • anos 2010: 18
  • anos 2020: 3


*séc. XIX: 2
*séc. XVIII: 1


PLACAR POR ANO

  • 1986: 24 álbuns
  • 1977 e 1972: 21 álbuns
  • 1969: 20 álbuns
  • 1976: 19 álbuns
  • 1970, 1971, 1985 e 1992: 18 álbuns
  • 1968, 1973 e 1979 17 álbuns
  • 1967, 1975 e 1980: 16 álbuns cada
  • 1983 e 1991: 15 álbuns cada
  • 1965, 1988, 1989 e 1994: 14 álbuns
  • 1987 e 1990: 13 álbuns
  • 1990: 12 álbuns
  • 1964, 1966, 1978: 11 álbuns cada



PLACAR POR NACIONALIDADE*

  • Estados Unidos: 218 obras de artistas*
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*artista oriundo daquele país
(em caso de parcerias de artistas de países diferentes, conta um para cada)

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Cartola - "Cartola" (1974)


“Por incrível que pareça, esse disco que só a perspectiva histórica permitirá compreender, no futuro, é o primeiro long-play de um dos poucos verdadeiros gênios da música popular brasileira”. 
José Ramos Tinhorão

“Alguns, como Cartola, são trigo de qualidade especial. Servem de alimento constante. O nobre, o simples, não direi o divino, mas o humano Cartola, que se apaixonou pelo samba e fez do samba o mensageiro de sua alma delicada". 
Carlos Drummond de Andrade

Há 50 anos o Brasil corrigia um erro crasso de, pelo menos, outro meio século anterior. Um dos maiores autores da música popular brasileira, finalmente, registrava sua obra pela própria voz: Angenor de Oliveira, o Cartola. Assim como ocorreu com outros sambistas prejudicados pela disfunção anacrônica da indústria fonográfica de um país desleixado com sua própria cultura (leia-se Nelson Sargento, Dª Ivone Lara, Clementina de Jesus, Adoniran Barbosa e outros velhos bambas desafortunados), Cartola, à exceção de uma rara gravação de 1965 junto ao coro da Escola de Samba do compositor Almeidinha, só pode realizar esse feito na terceira idade, aos 65 anos de uma vida sofrida e batalhada. Como a de todo brasileiro pobre, mas que, por mérito, deveria ser poupada a gênios como ele.

O ano foi 1974 e Sérgio Cabral, no texto da contracapa do LP, celebrava que, finalmente, havia um disco do grande Cartola. A realização deste feito, no entanto, se deve em grande parte ao destino e ao sentimento de dívida para com Cartola alimentado por algumas personalidades importantes da cultura carioca. O primeiro ė Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, jornalista e cronista que, em 1956, certa noite, descobriu que o já histórico compositor e fundador da Mangueira, dado por ele como morto, estava num subemprego de lavador de carros, ajudando-o, por fim, a retornar à carreira musical. Anos depois, nos anos 60, preterido pelos sambas-canções bolerizados e, principalmente, pela bossa-nova, Cartola se desilude, mas volta aos holofotes quando, em plena Ditatura Militar os jovens ligados ao CPC/UNE passam a valorizar artistas da velha-guarda do samba como ele. É quando participa, por iniciativa de Hermínio Bello de Carvalho, do memorável projeto "Fala, Mangueira" ao lado de outros bambas de seu calibre: Nelson Cavaquinho, Clementina, Carlos Cachaça e Odete Amaral

Impossível não citar ainda outro ardoroso venerador de Cartola dos que lhe ajudaram em vida e que foi responsável por, enfim, colocá-lo num estúdio: João Carlos Botezelli. Produtor musical e fã, Pelão levou a ideia ao selo Marcus Pereira de gravar um LP da lenda viva do samba. As sessões ocorreram entre os dias 20 e 21 de fevereiro e 16 e 17 de março daquele ano, contando com as participações de exímios músicos, como o percussionista Mestre Marçal, o violonista e arranjador Dino 7 Cordas, o flautista Copinha e o trombonista Raul de Barros. Não havia músico no Rio que quisesse perder aquela oportunidade de participar de um momento histórico: Cartola lançaria seu primeiro álbum solo, que já nascia clássico.

Basta ouvir os primeiros acordes da faixa inicial, “Disfarça e Chora”, para perceber que se inaugurava ali uma era na música brasileira – ou melhor, se resgatava o tempo perdido. Samba elegante, letra exata, melodia engenhosa, poesia romântico-parnasiana. Que acordes bonitos e criativos! Nunca o samba, nem com Paulo da Portela, com Dª Ivone, com Candeia, com Wilson Batista, com Batatinha, havia sido tão lírico. Lirismo e perfeição, aliás, caminham juntos durante todo o álbum. O que dizer de cânones da MPB como “O Sol Nascerá (A Sorrir)”, dele e de Elton Medeiros, e seus versos infalíveis em melodia, harmonia e poesia? “Finda a tempestade/ O Sol nascerá/ Finda esta saudade/ Hei de ter outro alguém para amar”.

Ou “Alvorada”? “Alvorada lá no morro/ Que beleza/ Ninguém chora/ Não há tristeza/ Ninguém sente dissabor/ O sol colorindo é tão lindo/ É tão lindo/ E a natureza sorrindo/ Tingindo, tingindo”. Parceria com Carlos Cachaça e Hermínio Bello de Carvalho, remete, em sua repetição harmoniosa de palavras e na economia harmônica de seus acordes, a simplicidade universal de outro sambista contemporâneo seu, o baiano Dorival Caymmi. É muita maestria.

E os clássicos só vão se avolumando. “Tive Sim”, uma das mais singelas declarações de amor da música brasileira e que pode ser considerada irmã de outra composição de Cartola, “Nós Dois”, de seu terceiro disco, “Verde que te Quero Rosa”, de 1977, pois conta sobre a felicidade de se ter um amor (Dª Zica, companheira do segundo casamento até sua morte) sem esconder que teve, sim, “um outro amor antes" daquele. Composta em 1968, a música participou da Primeira Bienal do Samba, defendida por Cyro Monteiro, e ficou em quinto lugar. Outra irreparável é “Corre e Olha o Céu”, com a bela introdução em que Copinha e Raul de Souza dão a deixa com seus sopros para Cartola entoar com a elegância de sempre os versos. “Linda!/ Te sinto mais bela/ Te fico na espera/ Me sinto tão só”. 

Porém, há os clássicos entre os clássicos. Isso é a mais certeira afirmação, pois trata-se da música chamada “Sim”. Samba de 1962, gravado originalmente por Gilberto Alves, é a exatidão da palavra cantada no ritmo mais afro-brasileiro por excelência. “Para ter uma companheira/ Até promessas fiz/ Consegui um grande amor/ Mas eu não fui feliz/ E com raiva para os céus/ Os braços levantei/ Blasfemei/ Hoje todos são contra mim”. Não são dignos de um Álvares de Azevedo estes versos?

E o que dizer, então, de “Acontece”? Um assombro a capacidade de Cartola de sintetizar em pouco mais de 1 min tamanha perfeição musical. Traços de Villa-Lobos emanam do morro. E que canto o de Cartola! Elegante, afinado, emotivo, seguro, dono da própria criação. "Esquece nosso amor, vê se esquece/ Por que tudo no mundo acontece". Sem dúvida nenhuma, top 10 entre as melodias mais bem construídas da música brasileira. Para um país que tem o privilégio de ter compositores do calibre de Caymmi, Gil, Edu, Garoto, Donato, Joyce, Chico, Tânia, Moacir, alguns destes, maestros formados, isso é bastante representativo. 

Mas tem mais. “Amor Proibido”, claramente uma forte inspiração para Paulinho da Viola em estilo melódico e cuja melodia é tão linda que ganhou, em 2008, uma versão apenas instrumental de Zé Paulo Becker, no disco-homenagem “Viva Cartola – 100 anos”. Ainda, outras preciosidades: “Quem Me Vê Sorrindo”, nova parceria com Carlos Cachaça, “Festa da Vinda”, um ano antes gravada por Elza Soares, e “Ordenes e Farei”, sua e de Aluísio Dias. Finalizando o disco, uma música de 1965 que, resgatada, traduzia o momento especial do velho bamba: “Alegria”. “Alegria/ Era o que faltava em mim”. Em depoimento a O Globo, o próprio falou sobre esse sentimento quando se deu conta de que era verdade o que vivia: “Me senti muito emocionado quando ouvi a minha voz no disco. Eu já tinha até pensado que ia morrer sem gravar um disco”. Cartola, mesmo com cerca de meio século de atraso, estava de volta.

Até debutar em estúdio, Cartola já havia fundado, nos anos 20, uma das mais tradicionais escolas de samba cariocas – a qual ele mesmo, com seu senso estético apurado, escolhera as cores verde e rosa como símbolo. Já havia composto sambas-enredo campeões de diversos carnavais nas décadas de 40 e 50. Já havia inventado um ritmo, o samba-canção. Já havia posto sucessos nas vozes de artistas como Carmen Miranda, Noel Rosa, Francisco Alves e Aracy de Almeida. Já havia sido aprendiz de tipografia, pedreiro, pintor, guardador e lavador de carros, vigia de edifícios e contínuo de repartição pública. Já havia enviuvado e casado novamente, sido pai, dono da casa noturna Zicartola e radialista junto com Paulo da Portela e Heitor dos Prazeres. Tudo isso, toda uma vida antes desta estreia como artista solo. 

Isso é muito sério e diz bastante sobre o Brasil: rico em cultura, mas paupérrimo em autoestima. É como se a genialidade prodigiosa de Mozart, desperta na infância, fosse enclausurada na Áustria por uma vida inteira até ser revelada só quando este tivesse branqueado os cabelos. Não é exagero essa comparação, pois Cartola é o Mozart do samba. O maestro de música erudita britânico Leopold Stokowski, em excursão ao Brasil nos anos 50, já havia ficado impressionado com a musicalidade de Cartola. Nada mais do que a sua obrigação como homem da música em reconhecer o talento do brasileiro, considerou outro brasileiro genial, Carlos Drummond de Andrade. Aliás, é do poeta mineiro a definição mais sintética do que o admirável poeta do morro representa: “Cartola é daquelas criaturas que a música habita nelas”.

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FAIXAS:
1. "Disfarça E Chora" (Cartola, Dalmo Castello) - 2:06
2. "Sim" (Cartola, Oswaldo Martins) - 3:38
3. "Corra E Olhe O Céu" (Cartola, Dalmo Castello) - 2:23
4. "Acontece" - 1:17
5. "Tive Sim" - 2:09
6. "O Sol Nascerá" (Cartola, Elton Medeiros) - 1:42
7. "Alvorada" (Carlos Cachaça, Cartola, Hermínio Bello de Carvalho) - 2:40
8. "Festa Da Vinda" (Cartola, Nuno Veloso) - 1:59
9. "Quem Me Vê Sorrindo" (Carlos Cachaça, Cartola) - 2:07
10. "Amor Proibido" - 2:37
11. "Ordenes E Farei" (Aluízio Dias, Cartola) - 2:21
12. "Alegria" (Cartola, Gradim)- 2:44
Todas as composições de autoria de Cartola, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:
Cartola - "Cartola"


Daniel Rodrigues