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segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Os 100 Melhores Filmes de Terror da IndieWiere (e aquelas 12 títulos que faltaram)


 
Cada vez mais fica claro que listas são feitas para serem complementadas. As famosas (e polêmicas) seleções de melhores do cinema não desmentem: por mais criteriosas que sejam em suas elaborações, sempre deixam aquela sensação de que algo faltou. Ainda mais quando o tema envolve os melhores “de todos os tempos ", que, por motivos óbvios - o de abarcar tudo que o universo daquela temática ou recorte deve oferecer -, corre muito mais risco de erro.

"O Iluminado", um clássico do terror incontestável.
Mas há outros
Caso da lista divulgada recentemente pelo IndieWire, reconhecido portal sobre cinema, que elaborou uma publicação com os 100 melhores filmes de terror de todos os tempos. Por si só, aliás, um gênero polêmico, seja pela classificação de um filme dentro desse gênero (às vezes, discutível se é terror ou não), seja pela paixão que exerce sobre seus milhares de fãs (o que supõe uma maior diversidade de preferências). 

Porém, a IndieWire encarou a empreitada. E o fez muito bem, por sinal. Tem de tudo: zumbi, monstro, slasher, vampiro, espírito, lobisomem. Sangue, morte e medo para todos os gostos. Podem se achar listados os principais filmes de terror que se conhece. Clássicos incontestes como "O Iluminado", "O Bebê de Rosemary", "Tubarão" e "O Massacre da Serra Elétrica" estão lá. Igualmente, a consideração a obras nem tão badaladas, mas inegavelmente merecedoras, tal "A Beira da Loucura", de John Carpenter (69°), "Irmãs Diabólicas", de Brian De Palma (87°) e "Violência Gratuita", de Michael Haneke (15°). Até mesmo a primeira colocação a "Possessão" (de Andrezej Żulawski) surpreende, mas é bem interessante em se tratando de uma lista claramente revisionista. Também é apreciável o prestígio aos orientais com várias produções do Japão e Coreia do Sul da década de 50 até a de 2000. Como diz a própria publicação, “prestamos atenção às seleções que abriram caminho em inovações para o gênero e para o cinema como um todo”.

No entanto, há controvérsias, claro. A começar pela má colocação de alguns títulos que fazem jus a uma melhor pontuação, seja por sua importância para o gênero ou para a própria história do cinema, como "A Hora do Pesadelo", pondo o icônico Freddie Krugger apenas no 98° lugar; o referencial "Psicose", obra-prima de Alfred Hitchcock e possivelmente top of the tops numa relação mais tradicional, aqui contentando-se somente com o 39° posto; ou o já citado "O Bebê...", 42°, recorrentemente tido como um dos principais filmes da história do cinema em todos os gêneros. E "Nosferatu" de Murnau, na 40ª? Ou "O Exorcista" só 51ª? Sinistro...

Mas são as ausências que mais gritam tal qual a mocinha clichê fugindo do serial killer no meio da noite. Ver uma seleção de 10 dezenas de obras de terror e enxergar algumas sendo esquecidas (ou preteridas) motiva àquilo que referimos no início do texto: o ímpeto de querer complementá-la. Por isso, trazemos aqui 12 títulos não listados pela IndieWire, mas que consideramos essenciais de constarem. Tirar alguns? Ampliar? Adicionar aquele "plus"? Tanto faz. Importante é contribuir com mais filmes certamente cabíveis numa lista como esta: legal, mas incompleta. Os amantes do terror hão de concordar.


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"O MAL QUE NOS HABITA", de Damián Rugna - ARG (2023) - Um desses recentes, mas que já mexeu com as estruturas do universo do horror é o aterrorizante argentino "O Mal Que nos Habita". Tem possessão, tem gore, tem violência extrema, tem canibalismo, tem sobrenatural, tem perseguição e, de quebra, ainda, na entrelinha, crítica social. A gente fica apavorado com o que vê, cenas gráficas e sangrentas daquelas de fechar os olhos, como a famosa sequência do cachorro matando a menininha; espantado com o que aconteceu mas não viu, como o garoto que comeu a avó; e amedrontado pelo que não vê, a maldição que persegue os moradores de uma cidadezinha interiorana na argentina e que pode estar em qualquer um, em qualquer lugar. Um dos grandes filmes do gênero nos último anos.





"TERRIFIER", de Damien Leone - USA (2016) - "Terrifier" surgiu meio que como um cult. Era uma espécie de clássico do underground daqueles que só tinha visto quem conseguia por algum meio menos convencional. Mas o fato é que, mesmo difícil, restrito a alguns fanáticos sanguinários e incansáveis ratos de internet, o filme era muito comentado pelas barbaridades, atrocidades e brutalidades de um palhaço mímico que comete uma verdadeira carnificina numa noite de Halloween. E de fato, a fama não era a toa. "Terrifier" é dos filmes mais brutais que já assisti. As coisas que faz o palhaço Art são duvidáveis até para o mais acostumado fã de slashers. Tipo, "Ele não vai fazer isso... não vai fazer...  Fez!!!". O visual da fantasia preto e branco com uma mini-cartola, aquele sorriso sujo assustadoramente amplo, a determinação em seus objetivos assassinos, o sadismo doentio, e o talento para as execuções de suas vítimas fazem de Art um dos novos grandes matadores do cinema e mais um personagem clássico do horror.



"INVASÃO ZUMBI", de Yeon Sang-ho - KOR (2016) - Os zumbis foram mudando ao longo da história do cinema desde que George Romero os 'inventou". Já foram apalermados, organizados, individualistas, inconscientes, cruéis, devoradores, possuídos, experimentais... Em "Invasão Zumbi" um dos grandes baratos é que ao invés de zumbis lentos, descoordenados, capengando com os braço estendidos para a frente e babando, temos zumbis rápidos. Velozes, determinados, imparáveis e vorazes! A partir do momento que o primeiro infectado entra no trem de Seul para Busan o frenesi não tem mais fim. Aí ele morde um que morde outro que morde outro, e os corredores apertados do trem são o cenário perfeito para um dos filmes de zumbi mais alucinantes que já se viu.





"ATIVIDADE PARANORMAL", de Oren Peli - USA (2007) - Sei que o found-footage já tá enchendo no saco de tanta coisa que se fez no formato desde o sucesso do fenômeno "A Bruxa de Blair", mas não dá pra ignorar e deixar de fora o igualmente criativo "Atividade Paranormal". Basicamente uma câmera num tripé posicionada no quarto de um jovem casal que suspeita sua casa, suas vidas, estejam sendo atormentadas por alguma força sobrenatural, um espírito, um demônio ou algo assim. Para tentar tranquilizar a esposa Katie e esclarecer as dúvidas, o marido, Micah, aficionado por eletrônicos, vídeos, filmagens, coloca câmeras gravando o tempo inteiro em vários pontos da casa, inclusive no dormitório do casal. É, e para desespero dos dois, as imagens revisadas nos dias seguintes às gravações, depois de suas noites de sono, confirmam seus piores temores: tem alguma coisa lá. Simples? Sim, mas eficiente. O passar dos dias, o aumento gradual da atividade, dos fenômenos mantém o interesse do espectador. Sem graça? Uma câmera fixa na mesma posição... Que nada! Aquele silêncio, aquela imagem parada na amplitude do quarto faz a gente ficar com o olho atento a cada detalhe, a cada cantinho. Será que a porta vai mexer? Será que sai alguma coisa debaixo da cama? E o lençol? E o chinelo? E o pé dela? E o pé dele?... Pior é, depois de ver o filme, ir dormir e ter que apagar a luz do quarto.



"CREEPSHOW", de George A. Romero - USA (1982) - Se um filme dirigido por George A. Romero com argumento e roteiro de Stephen King, inspirado nos clássicos quadrinhos de terror dos anos 50 não é uma das melhores coisas do mundo do terror, eu não sei mais o que é bom ou não. Com todo aquele colorido e visual de HQ na tela, com arte desenhada, fontes Comic Sans, layout de tela como uma página de papel, os mestres do terror nos apresentam cinco contos recheados de medo, morte, sangue e humor, com mortos-vivos, criaturas assassinas, coisas de outros planetas, infestações incontroláveis, em tramas envolventes que desfilam ódio, traição, vingança, ambição e repugnância. King, Romero, quadrinhos, sangue, decapitações, zumbis, insetos nojentos, monstros... O que pode ser melhor que isso?







trailer de "Creepshow"



"O SEGREDO DA CABANA"
, de Drew Godard - USA/CAN (2012) - Reverência e crítica ao mesmo tempo, "O Segredo da Cabana" brinca com os clichês dos filmes de horror construindo a partir disso, por incrível que possa parecer, uma obra inteligente e singular. Grupo de jovens, cabana no meio do nada, lenda local, livro no porão, despertar de algo sobrenatural... Sei, sei. Já vimos tudo isso. Mas e se tudo isso estivesse sendo meticulosamente controlado por uma espécie de central mundial de eventos paranormais que decide qual monstro, assombração ou criatura será destinado para cada local, e quando e como o maligno deverá agir? Tipo de arma, tipo de morte, ambiente, essas coisas... Enquanto o 'escolhido' entra em ação, os funcionários do local, que já prepararam tudo, luz, nevoeiro, trilhas, dificuldades, obstáculos, apostam entre si, enquanto assistem por um circuito privado de vídeo, como se dará, efetivamente, cada execução: morte rápida, lenta, decapitação, mutilação, estrangulamento, muito sangue, pouco sangue, etc. Lá pelas tantas as coisas fogem do controle desse pessoal da retaguarda da 'empresa' e dois dos jovens descobrem suas instalações secretas subterrâneas, e é quando muita coisa passa a entrar em jogo, incluindo a existência da humanidade se aquela horda de aberrações, mantida até então sob controle, for libertada e sair pelo mundo afora. A hora em que os garotos abrem os elevadores das criaturas é um dos momentos de maior caos que já se viu em filmes do gênero, e ao mesmo tempo um dos momentos mais "lindos" para fãs de terror. Tudo está ali: Lobisomens, vampiros, bruxas, ciclopes, górgonas, dragões, duendes doentios, crianças malignas, palhaços assassinos, répteis gigantes, zumbis famintos, surgem todos ao mesmo tempo, remetendo a diversas referências do mundo do cinema que entusiastas do gênero com certeza não deixam de notar. "Hellraiser", "It", "O Chamado", "Poltergeist", "O Iluminado", "A Noite dos Mortos-Vivos", "A Múmia", "O Monstro da Lagoa Negra", "O Massacre da Serra Elétrica" e outros mais... todos estão homenageados nas celas de vidro ou corredores de sangue da tal 'empresa', a fábrica de pesadelos do diretor Drew Godard. Um deleite para nós, cultuadores desses filmes! Uma crítica ao cinema hollywoodiano, seus vícios, seus padrões, seus métodos, sua influência e abrangência, mas também, de certa forma, uma cutucada quanto ao mundo em que vivemos como um todo, no qual uma minoria de poderosos, 'donos do mundo', decide como as coisas são e como devem continuar sendo. 


"POLTERGEIST, O FENÔMENO", de Tobe Hooper – USA (1982) - Assim como "O Exorcista", "Tubarão" e "Pânico", o filme de Tobe Hooper - àquela altura, início dos anos 80, bem melhor aparado pela indústria do cinema do que quando realizou na raça o independente "O Massacre da Serra Elétrica" em 1974 - é daqueles que títulos que, independentemente da colocação conforme o critério adotado para a seleção, não pode faltar a uma lista de 100 best horror of all times de jeito nenhum. Produzido por Steven Spielberg e com trilha do craque Jerry Goldsmith, além do enorme sucesso que fez à época de lançamento, tornando-se um marco dos filmes de terror assim como os citados acima, "Poltergeist" "cumpre" algo que nem sempre filmes do gênero, por mais bem feitos que sejam, conseguem alcançar: ele assusta. Depois de assisti-lo, nunca mais se olha para uma árvore ao lado da janela da mesma maneira.



“O ESTRANHO MUNDO DE ZÉ DO CAIXÃO”, de José Mojica Marins - BRA (1968) - O máximo que a lista da IndieWire vai fora da América do Norte, da Ásia ou da Europa é um filme do Oriente Médio (“Garota Sombria Caminha pela Noite”, do Irã) e outro da América do Sul, o chileno “Santa Sangre”. Talvez por essa pouca atenção além do circuito tradicional tenham deixado de voltar seu olhar para o Brasil e o seu grande ícone do cinema de horror: José Mojica Marins, o homem por trás do personagem cujo mundo é tão estranho quanto magnífico. Os gringos que não se façam de loucos, pois o conhecem muito bem como Coffin Joe, quando o brasileiro foi descoberto nos festivais internacionais de cinema como Avoriaz, nos anos 90, e passou a ser cultuado. Poderia ser o seminal “O Estranho Mundo de Zé do Caixão” ou o lisérgico “O Despertar da Besta”, mas “O Estranho Mundo de Zé do Caixão” é sua obra mais bem acabada e sintética do estilo híbrido de seu cinema, que vai do trash e o vampirismo ao gótico e o body horror.



“O MENSAGEIRO DO DIABO”, de Charles Laughton – USA (1955) - Se tem um filme absolutamente injustiçado nessa listagem publicada esse filme é "O Mensageiro do Diabo". Clássico da segunda fase do cinema noir, o único longa dirigido pelo experiente ator inglês Charles Laughton impressiona pela perfeição em todos os aspectos fílmicos: fotografia, roteiro, edição, trilha, atuações. E que atuações! Robert Mitchum, que encarnaria o perigoso Max Cady na primeira versão de "Cape Fear" 12 anos depois, leva muito para aquele papel o clima do personagem deste filme, o assassino de viúvas ricas Harry Powell. Mas não só Mitchum: a perseguida Willa, vivida por Shelley Winters e, principalmente, as crianças (Lilian Gish e Billy Chapin) dão um show de interpretação, lembrando o desempenho acima da média de outra dupla de pequenos atores noutro título clássico do terror: "Os Inocentes" (41° da lista).





“AS DIABÓLICAS”, de Henri-Georges Clouzot – FRA (1955) - Um dos critérios adotados pela IndieWire para compor a lista é de que os filmes não fossem somente fantásticos, mas também dessem medo. Seguindo esta lógica, "As Diabólicas" não estar presente é definitivamente um equívoco. Uma das mais marcantes obras da cinematografia francesa dos anos 50 pré-Nouvelle Vague, "As Diabólicas" assusta pra caramba! Michel Delassalle dirige com mão de ferro um pensionato para meninos, assistida por sua doce esposa Christina. Ele tem por amante Nicole Horner, professora da instituição. Cansadas do despotismo de Michel, as duas mulheres unem para assassiná-lo. Alguns dias depois do crime, no entanto, o cadáver desaparece e situações estranhas começam a se suceder. Esteticamente impressionante, algo expressionista, é contado de forma magistral pelo diretor Henri-Georges Clouzot, mestre de narrativas tensas a se ver pelo sufocante Palma de Ouro "O Salário do Medo", de 1953. O ambiente sombrio do pensionato, a figura arrepiante de Simone Signoret como a fria Nicole e, principalmente, as reviravoltas do roteiro, fazem deste filme uma obra-prima do gênero do terror. Ah: e é uma das inspirações de Hitchcock para produzir "Psicose". Não precisa dizer mais nada, né?


trailer de "As Diabólicas"



"A CASA QUE PINGAVA SANGUE", de Peter Duffell - ING/IRL (1971) - Típico filme de terror inglês "das antigas": histórias criativas, instigantes e bem contadas. Reunião de quatro histórias que são contadas ao Inspetor Holloway, que investiga o misterioso desaparecimento do ator de filmes de terror Paul Henderson após mudar-se para uma antiga casa. Assassinos que saem dos livros para a realidade, um museu de cera que desperta desejos proibidos, uma menina alijada de uma boneca e uma capa capaz de dar poderes a um homem fazem dessa reunião de pequenos filmes - mas interligados entre si - daqueles clássicos que dava gosto de assistir na tevê com a dublagem da TKS. E ainda conta no elenco com o veterano Peter Cushing, que viveria Sherlock Holmes no cinema em 1984, e ele: Christopher Lee, lenda do terror.





“HALLOWEEN III – A NOITE DAS BRXAS”, de Tommy Lee Wallace – USA (1982) - Tá ok: já tem o clássico “Halloween” do Carpenter, o filme que melhor captou o lado sombrio dessa comemoração muito peculiar da cultura norte-americana, abrindo a porta para uma interminável sequência que perdura até hoje, mais de 40 anos após seu lançamento. Mas é impossível não referir nessa relação de melhores de terror uma dessas sequências, a de nº 3. Curiosamente (e isso é uma das qualidades do filme de Tommy Lee Wallace), não tem nada a ver com a história do assassino Michael Myers entabulada nos até então outros dois anteriores. Mas a principal qualidade de “Halloween III” é o de ser absolutamente arrepiante como poucos filmes o são. Antecipando a viagem paranoico-televisiva de “Videodrome” de Cronenberg e resgatando ideias de obras como “Invasores de Corpos”, dos filmes de zumbis, inova a abordagem dos filmes de bruxa ao adicionar, inclusive, a crítica ao sistema capitalista, capaz de penetrar no cérebro dos consumidores e lobotomizá-los para vender seus produtos. Isso tudo sem deixar de ser sanguinolento. Em uma época em que se começava a discutir os efeitos nefastos da propaganda subliminar, é de arrepiar só de ouvir aquele jingle maldito mas aparentemente inocente.



Cly Reis
Daniel Rodrigues

segunda-feira, 27 de maio de 2024

Philip Glass - "Symphony Nº 4 'Heroes'” ou "'Heroes' Symphony - by Philip Glass from the Music of David Bowie & Brian Eno” (1997)



As várias capas e edições de "Heroes" pelos selos
Point Music, Orange Mountain, Universal e Decca
  
“A influência contínua destas obras, ‘Low’ e ‘Heroes’, garantiu a sua estatura como parte dos novos ‘clássicos’ do nosso tempo. Assim como os compositores do passado recorreram à música do seu tempo para criar novas obras, o trabalho de Bowie e Eno tornou-se uma inspiração e ponto de partida para uma série de sinfonias de minha autoria”.
 
Philip Glass

Chegados os anos 90, Philip Glass já era uma lenda digna da idolatria. Ligado à música de vanguarda da Costa Leste norte-americana, pela qual surgiu nos anos 60, o autor das “Glassworks” e de peças revolucionárias como “Music in Twelve Parts”, “Koyaanisqatsi” e "Metamorphosis" já havia ultrapassado a linha entre erudito e popular fazia muito tempo, desde suas trilhas sonoras marcantes para o cinema quanto por sua aproximação com o rock e a world music. Porém, afeito a desafios, Glass deu-se conta de um gap em sua já extensa obra àquela época: por incrível que parecesse, faltava-lhe ainda a composição de uma sinfonia. Sim, Glass havia escrito óperas, concertos, corais, peças para câmara e teatro, prelúdios, partitas, balês, sonatas, trilhas sonoras e toda categoria musical que se possa imaginar. Menos sinfonia, justamente o gênero que tanto consagraria os grandes nomes da música clássica, aquele pelo qual os fariam mundialmente conhecidos, como Beethoven (5ª e ), Mahler (Trágica), Mozart (41ª ou Júpiter), Berlioz (Fantástica) e Shostakovich (8ª).

Glass precisava preencher essa lacuna. No entanto, dada a importância deste tipo de obra para um autor do gabarito dele, entendia que precisava ser algo especial. O “coelho da cartola” foi, mais uma vez, a versatilidade e o ecletismo: usar o rock como base para isso. Igual ao que compositores clássicos antigos faziam ao se referenciarem na obra de seus ídolos, só que de uma forma bem inovadora. Sobre temas do clássico disco “Low”, de David Bowie, de 1977, gravado na Alemanha e cuja batuta de Brian Eno mereceu-lhe créditos de coautoria, Glass elaborou sua primeira sinfonia em 1992. Um sucesso de crítica e, principalmente, junto aos próprios Bowie e Eno, que adoraram a homenagem, O mais legal da rica versão de Glass para as faixas do Lado B de “Low”, as de caráter mais ambient e avant-garde do álbum, foi que ele não criou uma ópera-rock, dando somente um teor erudito a sonoridades pop mas, sim, extraindo o que havia de “erudito” de cada música, de cada detalhe, fosse na instrumentalização, no redesenho sonoro ou mesmo na escolha de quais faixas usar.

Caminho aberto para as sinfonias, e Glass, então, não parou mais. Escreveu, nos anos subsequentes, as de nº 2 (1994) e nº 3 (1995) - formando, atualmente, 14 peças neste celebrado formato. Porém, a talvez melhor de sua carreira seja a que veio logo a seguir, em 1997: a “Sinfonia nº 4” ou simplesmente “Heroes”. Animado com a primeira experiência sinfônica e encorajado pelos próprios autores, Glass repete a dose de se inspirar noutro álbum célebre de Bowie/Eno: “Heroes”, de 1978, que forma, junto com "Low" e “Lodger”, de 1979, a famosa trilogia alemã que redefiniu o futuro da música pop com sua ousada combinação de influências da world music, da vanguarda experimental e do rock.

A experiência das sinfonias anteriores - bem como dos trabalhos com grande orquestra, como as óperas - foi, contudo, fundamental para que Glass chegasse à sua quarta empreitada neste tipo de obra mais equipado musical, formal e esteticamente. Glass sabia exatamente como fruir os sons e arranjos das canções originais para criar uma peça ainda mais singular. Ele utiliza flautins, clarinetes baixos, metais (trompete, trombone, trombone baixo, trompa e tuba), percussões (tambor lateral, tambor tenor, bumbo, pandeiro, pratos, triângulo, vibrafone, tam-tam, castanholas e carrilhão), harpa, celeste e cordas (violino, viola, violoncelo e contrabaixo).

O melhor exemplo é o tema-título, o "1º Movimento". Quem escuta os acordes orquestrados de Glass dificilmente identifica a música de Bowie, aquele glitter rock potente e dramático. Aliás, talvez a única característica mais visível que ele tenha mantido nos quase 10 minutos que se transcorrem (em detrimento dos aproximadamente 3min30' da versão comercial de Bowie ou, no melhor dos casos, dos pouco mais de 6min da versão estendida) seja a dramaticidade, tendo em vista que a transforma num adagio instrumental cheio de idas e vindas, volumes e variações de intensidade, Mas, principalmente: o veterano minimalista deu uma personalidade única à música, recriando-a. O entendimento de Glass sobre o que ele ouve em “Heroes” é tão singular quanto genial, coisa de quem tem ouvido absoluto ou uma outra percepção sobre as coisas: uma audição além daquilo que os reles mortais alcançam. 

A “Heroes” de Glass, por sinal, é mais colorida do que a séria expressividade dada pelo autor da canção. E não se ceda à tentação de cogitar que a “Heroes” sinfônica é meramente uma orquestração do tema que a originou, como se fosse possível encaixar uma sobre a outra. É, sim, uma outra “Heroes” - ou melhor, a mesma, só que sentida de outra forma. E embora as dessemelhança, por incrível que pareça, há ainda um fio de identificação, como que a "alma" da criação tivesse se mantido. A se pensar em outros trabalhos da música erudita dos anos 90, década pouco densa em obras significativas nesse campo em relação a suas antecessoras, “Heroes, Moviment I” é comparável a outras três marcantes obras: “Kristallnacht”, de John Zorn, "Food Gathering in Post-Industrial America, 1992", de Frank Zappa, e “Blu”, de Ryuichi Sakamoto.

Na sequência, “Abdulmajid”, de um arranjo primoroso, pega emprestada com suavidade a atmosfera árabe deste b-side de “Heroes”, uma world music bastante eletrônica em sua concepção primal, próximo ao som de Jon Hassell e Terry Riley. Ela ganha, agora, um conjunto de cordas em variações de 5 e 7 tempos, castanholas e uma percussão cintilante de sinos, esta última, executora do “riff”. Assim como o movimento inicial, este andante é prova da tarefa nada óbvia a que Glass se propôs, uma vez que seria, por exemplo, muito mais fácil arranjar para orquestra o tema de feições orientais (e já instrumental) “Moss Garden”, uma das faixas de “Heroes” de Bowie que não aproveitou. Já “Sense of Doubt”, originalmente instrumental, é provavelmente a que menos trabalho lhe deu em adaptar, visto que sua estrutura melódica forjada nos sintetizadores já intui o som da orquestra.

Para “Sons of the Silent Age”, mais uma das originalmente cantadas assim como “Heroes”, Glass suprime as vozes e dá a roupagem mais clássica de todas do repertório. Elegante, explora bastante os sopros doces em contraste com os registros graves de tuba e trombone baixo. Pode-se dizer um balê glassiano, que traz as repetições circulares de cordas e sopros, as quais dão a sensação hipnótica peculiar de sua música, mas ao mesmo tempo bastante renascentista, fazendo remeter a outros mestres formadores de sua musicalidade como Bach e Mozart.

Outra que Glass consegue unir a originalidade de seu olhar sobre a obra alheia e o frescor daquilo em que se baseia é “Neuköln”, a música que os ingleses Bowie e Eno compuseram em homenagem a um dos bairros de Berlim no período em que se refugiaram na capital alemã para produzir “Low/Heroes/Lodger”. Nesta, o compositor norte-americano se esbalda sobre a ideia-base, a de uma peça eletroacústica que conjuga sintetizadores, guitarras e frases arábicas de um áspero sax alto tirada do atonalismo de Cage e La Monte Young, admirados por Eno. Sabedor de todos estes caminhos como poucos, tanto dos antecessores quanto dos contemporâneos, Glass reúne as pulsões sonoras distintas e promove uma reunião de tempos e intenções, redimensionando a própria música. Ele não deixa de aproveitar nenhuma nota, nenhum som para atribuir a “Movement V - Neuköln” um caráter particularmente épico. 

Encerrando, outra na qual Glass mostra o quanto suas antenas são capazes de sintetizar mundos. Homenagem de Bowie e Eno aos pais do pop eletrônico, a banda alemã Kraftwerk, ‘V2 Schneider” (referência ao sobrenome de um dos fundadores e principais compositores dos “homens-máquina”, Florian Schneider) ganha uma retextura de Glass à sonoridade high-tech em um corpo sonoro tradicional e secular. Conforme diz o crítico musical especializado em música clássica Richard Whitehouse, “V2 Schneider” abre com movimentos rítmicos animados em metais e percussão, cordas e sopros trocando temas à medida que a música ganha em incisividade. “O movimento rítmico solidifica-se num ostinato pulsante, ao longo do qual a atividade ganha intensidade textural e dinâmica, construindo um pico de que é encimado pelo vigoroso acorde de encerramento, arredondando assim toda a obra com um efeito decisivo”, completa. Ao traduzir Bowie/Eno, Glass retraduzia o kratrock alemão presenciado in loco pela dupla britânica e, por tabela, todos os que inventaram a música eletrônica, como o “germaníssimo” Karlheinz Stockhausen e a turma da Música Nova de Darmstadt dos anos 50.

Em 1971, dois jovens músicos de aparência kitsch interessados em arte para além do rock assistiam empolgados à estreia em Londres de “Music in Changing Parts”, obra da primeira fase de Glass. Esses jovens eram David Jones e Brian de La Salle Eno, já artistas consagrados, mas nem por isso incapazes de admirar um de seus heróis na música. Tamanha reverência parece ter, de alguma forma, influído para que esse “herói” concretizasse, mesmo que apenas mais de três décadas depois, a autoexigência de compor sinfonias tendo como objeto exatamente aqueles dois rapazes fãs de tanto tempo. Sucessor de “Low” na fase alemã de Bowie, “Heroes” fazia-se, agora sinfônico, igualmente sucessor, mas na carreira de Glass - que ainda concluiria a veneração à trilogia berlinense com “Symphony Nº 12  - Lodger”, de 2022. Criadores e criaturas se intercambiam e se referenciam mutuamente. Como dizem os versos da música que dá nome a ambas as obras, a de Bowie/Eno e a de Glass, “Nós podemos ser heróis”. Todos são.

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Como ocorre com obras do catálogo ligado à música clássica, “Heroes Symphony” ganhou mais de uma edição. Em pelo menos duas delas, a peça vem acompanhada no CD de outras duas também orquestrais: o "Concerto para Violino", de 1987 (edição Deutsche Grammophon/Decca, de 2014), e outra em conjunto com “Low Symphony” (Universal, 2003). 

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FAIXAS:
1. “Movement I - Heroes” (David Bowie/Brian Eno) - 9:28
2. “Movement II - Abdulmajid” (Bowie/Eno) - 9:24
3. “Movement III - Sense of Doubt” (Bowie) - 7:29
4. “Movement IV - Sons of the Silent Age” (Bowie) - 8:37
5. “Movement V - Neukoln” (Bowie/Eno) - 7:58
6. “Movement VI - V2 Schneider” (Bowie) - 7:17

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

quarta-feira, 22 de maio de 2024

Exposição "“FUNK: Um grito de ousadia e liberdade” - Museu de Arte do Rio (MAR) - Rio de Janeiro/RJ (25/04/2024)

 

Ir ao Museu de Arte do Rio, o MAR, é sempre uma experiência rica e penosa. Rica pelo óbvio: a qualidade das exposições que lá circulam, não raro as mais bem curadas e capitalizadas que passam pelo Rio de Janeiro (esta, por sinal, a cidade de maior concentração de grandes exposições do Brasil junto ou até mais do que São Paulo). Mas também penosa porque, além de extensas (o que, por mais gratificante que seja, é também cansativo), dificilmente se consegue aproveitar tudo que o MAR oferece simultaneamente. No caso, foram seis mostras, das quais pude, na companhia de Leocádia e do amigo Eduardo Almeida, ver com um pouco mais de atenção três delas.

Uma destas, contudo, posso dizer que foi a melhor que presenciei no Rio desta feita: “FUNK: Um grito de ousadia e liberdade”. Um espetáculo. Com curadoria da Equipe MAR junto a Taísa Machado e ninguém menos que o lendário Dom Filó – um dos principais ativistas da causa negra e agitadores culturais do funk dos anos 70, responsável pela descoberta de que ninguém menos que gente como a Banda Black Rio e Carlos Dafé –, a principal mostra do ano do MAR perpassa os contextos do funk carioca através da história. A temática da exposição apresenta e articula a história do funk, para além da sua sonoridade, também evidenciando a matriz cultural urbana, periférica, a sua dimensão coreográfica, as suas comunidades.

Para chegar aos morros e favelas onde o funk carioca se tornou obra e sinônimo e estilo, a mostra traz com muita propriedade toda a construção desdobramentos estéticos, políticos e econômicos ao imaginário que em torno dele foi constituído, recuperando as audições públicas do início do século XX, os clubes para negros dos anos 40/50, os bailes hi-fi dos anos 60, até chegar, aí sim, no fenômeno das festas black dos anos 70. Influenciados pelo movimento Black Power, Panteras Negras, a Blackexplotation e, claro, a música soul norte-americana e outros, a galera tomou conta de ginásios e galpões da Zona Norte e mandou ver no movimento mais libertário e dançante que o Brasil moderno já viu. E tudo isso estava representado na exposição através de fotos, posters, pinturas, capas de disco, e também em som, seja dos hinos funk até o poderoso off do próprio Dom Filó. Ninguém melhor que ele para a tarefa de contar a história daquele momento crucial para a cultura pop no Brasil, o que viria a dar no funk carioca tal qual conhecemos.

Toda a parte que mostra a evolução do funk em terras cariocas é bem interessante, evidenciando as etapas vividas nos anos 90, a entrada no século XXI e o advento/chegada das novas tecnologias no morro. O contraste – inevitável, proposital, ressignificado – entre pobreza e riqueza, periferia e centralidade, comunidade e cosmopolitismo, é de uma riqueza incalculável, muito a se assimilar. Porém, mesmo com bastante material, esta segunda metade da exposição, mesmo sendo o crucial do projeto, não é tão interessante quanto a sua primeira, a que traz a pré-história do funk do Rio. Talvez pelo fascínio que a mim tem a era Black Rio, suas inspirações políticas, comportamentais e culturais que bebem nos Estados Unidos, isso tenha me prendido mais a atenção – embora tenha a sensação de que, documentalmente falando, seja pelos áudios, obras, objetos, músicas, etc., esta parte introdutória pareça mais completa.

Contudo, a principal sensação que se sai é a de que, enfim, chegamos aos espaços de arte. Embora eu não tenha relação e nem pertença ao universo do funk carioca (embora o seja contemporâneo, mesmo que de longe), a exposição fez-me aludir aos versos de Cartola em sua música "Tempos Idos", quando ele via seu samba assumindo a nobreza que lhe é merecida: "O nosso samba, humilde samba/ Foi de conquistas em conquistas/ Conseguiu penetrar no Municipal". Aqui, é a cultura pop na melhor acepção da palavra que adentrou os salões nobres das Belas Artes, o que suscita um sentimento de pertencimento. Ver meus ídolos da música pop negra brasileira - Black Rio, Dafé, Gerson King ComboTim Maia, Cassiano, Toni Tornado, Sandra Sá, Dom Salvador - e internacional - James Brown, Isaac Hayes, Parliament/Funladelic, Chic, Curtis Mayfield, Marvin Gaye -  estampados, um mais bonito que outro, redimensionando suas belezas estéticas e simbólicas, é algo que realmente preenche o coração.

Todos os desdobramentos artísticos explícitos e implícitos são, no mínimo, admiráveis, se não objeto de muita apreciação e análise, como a hipnotizante dança do passinho, as pichações, a estética das armas, a sensualidade, a pele preta à mostra, a luz tropical, os cortes de cabelo. Na música, a constatação de que o funk carioca, original, é muito mais advindo dos ritmos africanos (inclusive do Nordeste da África, na Península Arábica) do que somente do funk importado dos states. Tem mais macumba do que enlatado.

Independentemente, vale a pena demais a visita ao MAR, nem que seja para ver apenas esta exposição. Mas se for, aviso: vá com tempo. 

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Já na entrada, o maravilhoso corredor com as pichações iluminadas


Recepção ao som de pukadão


King Combo: mandamentos black, brother


Edu "tatuado" pela projeção de uma das obras de Gê Viana
da série "Atualizações Traumáticas de Debret"


A pré-história do funk: Pixinguinha puxa Ângela Maria (esq.) pra dança e Jackson do Pandeiro
punha be-bop no samba, tropicalizando a globalização - e não o contrário


As desbotadas cores dos antigos bailes hi-fi revistas por Gê Viana


O artista Blecaute também reconta os apagados eventos sociais negros do passado em novas cores


Mais de Gê Viana em sua série em que recria Debret: genial quebra do tempo
simbólico e cronológico 



Outra arte imponente, esta de Maria de Lurdes Santiago


Anos 60/70: as referências de fora chegaram. Nunca mais o mundo foi o mesmo


Reprodução de cartazes dos Black Panthers:
a coisa ficou séria agora


Eis que chega a Black Rio, potente como uma Maria Fumaça


Dom Filó e sua turma da Soul Grand Prix, promotores das festas black da Zona Norte


Os pisantes, indispensáveis nos clubes soul
em arte de André Vargas



Tão indispensáveis quanto, as potentes 
aparelhagens de som


James Brown, uma das referências máximas da galera, em fotos no Brasil


Os "times" liderados pelos grandes nomes da soul brasileira 



Lindas fotos, maioria P&B, dos tempos dos bailes funk nas noites da Zona Norte carioca e seus sagrados palcos


Encerrando a primeira parte da exposição, obras da genial gaúcha (e preta) Maria Lídia Magliani


Mais Magliani


Os corpos femininos sempre tão explorados... prenúncios de dança da bundinha


Já nos anos 90, a beleza dos passinhos se mistura
à fúria violenta dos excluídos

Esta cocota que vos escreve rebolando até o chão


Corpos negros femininos quebrando padrões de beleza e gênero


Presença LGBTQIAP+ nas comunidades, outra força simbólica na cosmologia do funk


Pop art gay no morro: "Só tem no Brasil"



Sem concessões, a exposição mostra também mazelas como as drogas


E esta incrível pintura, que mais parece serigrafia? 


Funk também é afrofuturismo


Pra finalizar a exposição, uma frase cheia de sarcasmo
que contraria os detratores




texto: Daniel Rodrigues
fotos e vídeos: Daniel Rodrigues, Leocádia Costa e Eduardo Almeida



quinta-feira, 16 de maio de 2024

Danilo Caymmi - "Cheiro Verde" (1977)

 

“Você gravava, vendia, corria atrás, ia pra rua. Fizemos três mil cópias e conseguimos vender todas. Mas agora, nesta era digital, esse disco ficou parado. Ele foi se valorizando com o tempo, o que é muito gratificante”. 
Danilo Caymmi

Danilo é o menos badalado entre os Caymmi. No que diz respeito a seu pai, Dorival, poucos se equiparam ao gênio deste Buda Nagô, um dos maiores nomes da música brasileira de todos os tempos. Seu irmão mais velho, Dori, gabaritado maestro de reconhecimento internacional, trabalhou com alguns dos mais prestigiados músicos do seu tempo, como os conterrâneos Tom Jobim, João Gilberto e Elis Regina e os estrangeiros Dionne Warwick, Quincy Jones e Toots Thielemans. Nana, a irmã, é nome inconteste entre as maiores vozes da MPB. Até mesmo a filha Alice, cultuada pelo público mais jovem, ganha mais holofotes do que ele. A figura modesta talvez explique. A mãe Stella Maris, mineira, sentenciou certa vez que, entre os filhos, Nana cantava, Dori arranjava e Danilo tocava flauta. Porém, Danilo é, certamente, muito mais do que uma retaguarda, visto que é o mais catalisador da família em termos musicais. Caçula, talvez justamente por ter vindo por último ele consiga recolher características de cada um: de Dorival, traz nas veias a sofisticação das canções praieiras; do irmão mais velho, a versatilidade e a musicalidade profunda; de Nana, o timbre inconfundível dos Caymmi e o apuro vocal; da filha, a modernidade musical intercambiada desde que ela estava no berço.

“Cheiro Verde”, seu álbum de estreia, de 1977, é um exemplo claro desta multiplicidade simbiótica de Danilo. Cantor, flautista, compositor e violonista, traz em sua música uma impressionante diversidade de estilos, que vão da bossa nova ao baião, passando pelo samba jazz e a soul. Com um time de grandes músicos, tal Cristóvão Bastos, Maurício Maestro e Fernando Laporace, o disco traz a mais alta qualidade melodia e harmonia quanto letrística e instrumental, ao nível do "alto escalão" da MPB, como Tom, Arthur Verocai, Ivan Lins, Waltel Branco, Antonio Adolfo, Tânia Maria, Edu Lobo. Ao nível dos Caymmi.

Afinal, Danilo, mesmo debutando como artista solo, não era nenhum novato. Flautista profissional desde os 16, o futuro arquiteto que abandonou a faculdade para seguir a vida musical já em 1968 participava do II Festival Internacional da Canção Popular. Levou o terceiro lugar com a clássica “Andança”, parceria com Edmundo Souto e Paulinho Tapajós, defendida por Beth Carvalho. No ano seguinte, venceu o Festival de Juiz de Fora com a canção “Casaco Marrom”, parceria com Renato Corrêa e Gutemberg Guarabyra, interpretada por Evinha. Bastante próximo dos colegas mineiros, de quem tem forte influência musical, já havia integrado a banda de Tom, Joyce, Milton Nascimento, Som Imaginário, Martinho da Vila, Quarteto em Cy, entre outros, além de assinar, juntamente com Beto Guedes, Novelli e Toninho Horta, um dos melhores discos de toda a década de 70.

Em “Cheiro…”, portanto, Danilo chegava pronto como que perfumado para uma festa. A primeira nota do frasco, “Mineiro”, é exemplar nisso: bossa nova com dissonâncias e harmonia típicas dos autores de grande domínio composicional. A letra de Ronaldo Bastos é uma homenagem de dois cariocas aos amigos do Clube da Esquina: “Vou por aí levando um coração mineiro, pois é”. Ainda, as participações especiais de Airto Moreira na bateria, Helvius Vilela no piano e Gegê na percussão. Com Bastos, também assina “Codajás”, que Nana gravara um ano antes. De tom ao mesmo tempo blueseiro e sambístico, traz o belo canto de Danilo soltando agudos difíceis a qualquer cantor, ainda mais a alguém de uma família cujo timbre tende sempre ao barítono. Fora isso, Danilo a aperfeiçoa ainda mais com um jazzístico solo de flauta, que encerra o número.

Com a então esposa Ana Terra, excelente musicista carioca e responsável também pela produção, compõe maior parte do repertório, como o samba “Pé sem Cabeça”, típica música do período da ditadura no Brasil - gravada posteriormente, claro, pela combativa Elis. Com cara de tema romântico, na verdade, denuncia o regime e os horrores cometidos contra os opositores: “Você me fez sofrer/ Ninguém me faz sofrer assim/ O que era tanta beleza num pé sem cabeça você transformou”. É dos dois também a brejeira e lúdica “Juliana”, de acordes jobinianos, e a subsequente “Aperta Outro”, samba cheio de suingue com toque do trombone de Edson Maciel e o baixo do parceiro Novelli. 

Ainda mais gingada é “Racha Cartola”, ode à boemia mas, igualmente, à preocupação do boêmio quando volta para casa. “Como explicar?”, pergunta-se lembrando que terá de encarar a esposa esperando-o irritada. A sincopada “Botina”, dele e de outro mineiro, Nelson Ângelo, traz novamente a atmosfera de Minas (“Velha porteira, cidade interior/ Uma voz de lavanderia, um batuque e um sabor”), referenciando, mais uma vez - além do próprio coautor -, à turma liderada por Milton Nascimento. Aliás, o gênio de Três Pontas empresta sua voz inconfundível em “Lua Do Meio-Dia”, outra com Ana e das mais belas e engenhosas melodias do disco, com sua estrutura dissonante e complexas divisões.

Em época de Abertura Política, mas de manutenção da repressão, Danilo ousa e encaminha o final do álbum com mais um tema bastante provocativo: “Vivo ou Morto”. Dele e de João Carlos Pádua, não tem como não relacionar os versos deste baião tristonho às mortes de presos políticos promovidas nos Anos de Chumbo: “Debaixo das 9 pedras/ Ele vive muito bem/… Ele respira e fala pelas bocas do inferno/…Debaixo das 9 bocas/ Ele nem mesmo se cala/ Debaixo das 9 botas/ Ele dá voltas na sala”. Para encerrar mesmo, então, a sinestésica faixa-título, quinta dele com Ana entre as 10 faixas de todo o trabalho. E que bela canção! Com a atmosfera da música “ecológica” que Tom inauguraria no início dos anos 70, quando começou a se voltar às questões do Planeta, Danilo parecia antever sua entrada anos depois, em 1984, na Banda Nova, conjunto que passaria a acompanhar o Maestro Soberano até o final de sua vida.

Desde então, Danilo seguiria intercalando uma afirmada carreira solo com participações como instrumentista em trabalhos de outros, reuniões com a família no palco e gravações e shows na Banda Nova. Lançou 10 álbuns como front man, alcançando, em 1990, grande sucesso com “O Bem e o Mal”, tema da minissérie “Riacho Doce”, da Globo. No entanto, “Cheiro Verde” permanece um marco na sua obra não apenas por ser o primeiro ato de um músico que soube aproveitar seu gene privilegiado, mas pela qualidade indiscutível que guarda até hoje. Tanto é que, lançado independentemente em 1977, teve, em 2002, sua tiragem licenciada na Inglaterra, tornando-se cult entre os jovens na Europa. Somente no ano passado, teve relançamento no Brasil para a alegria dos fãs e apreciadores. Pelo visto, esse aroma inconfundível e encantador não se dissipou mesmo tantos anos depois.

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FAIXAS:
1. “Mineiro” (Danilo Caymmi/ Ronaldo Bastos) - 3:25
2. “Pé Sem Cabeça” (Caymmi/ Ana Terra) - 2:45
3. “Codajás” (Caymmi/ Bastos) - 3:05
4. “Juliana” (Caymmi/ Terra) - 2:44
5. “Aperta Outro” (Caymmi/ Terra) - 2:54
6. “Racha Cartola” (Caymmi/ João Carlos Pádua) - 2:55
7. “Botina” (Caymmi/ Nelson Angelo) - 2:37
8. “Lua Do Meio-Dia” (Caymmi/ Terra) - 2:16
9. “Vivo Ou Morto” (Caymmi/ Pádua) - 3:07
10. “Cheiro Verde” (Caymmi/ Terra) - 4:15

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OUÇA O DISCO:

Danilo Caymmi - "Cheiro Verde"


Daniel Rodrigues