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terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Black Pantera - Bar Ocidente - Porto Alegre/RS (14/11/2022)

 

Por Lucio Agacê

Afro-punk - História

O termo se originou no documentário “Afro-Punk”, de 2003, dirigido por James Spooner. No início do século XXI, os afro-punks compunham uma minoria na cena punk norte-americana. Notáveis bandas que podem ser ligadas à comunidade afropunk, como Death, Pure Hell, Bad Brains, Suicidal Tendencies, Dead Kennedys, Wesley Willis Fiasco, Suffrajett, The Templars, Unlocking the Truth, Fishbone e Rough Francis. No Reino Unido, foram músicos negros influentes associados à cena punk do final da década de 1970 tal Poly Styrene da X-Ray Spex, Don Letts e Basement 5. O afro-punk se tornou um movimento comparável ao início do movimento hip hop dos anos 80. O Afropunk Music Festival foi fundado em 2005 por James Spooner e Matthew Morgan e recentemente teve sua segunda edição no Brasil realizada em Salvador, na Bahia.


Então: abri com esse texto para poder introduzir o tema a uma banda que pra mim é o grande destaque do momento e que eu tive o prazer de conhecer pessoalmente e fiz questão de dizer a eles que essa era a oportunidade, porque depois disso eles alçariam voos ainda maiores.

No Brasil, assim como no mundo, houve nos últimos anos uma certa ascensão da extrema direita racista e supremacista causando uma divisão popular jamais vista na história da humanidade. Diante de toda essa situação atípica, faz-se natural alguns seguimentos da sociedade se juntarem para combater um inimigo em comum. Após o fatídico caso George Floyd nos Estados Unidos essa luta antirracista se tornou mais do que nunca necessária. Um combate à extrema direita ultraconservadora e os seus claros flertes com o fascismo fez com que cada vez mais jovens negros encontrassem na arte e na cultura, mais uma vez, seu refúgio.

Mês passado, no bar Ocidente, em Porto Alegre, rolou o espetáculo. Sim, senhores: um espetáculo!!! Era a Black Pantera, banda mineira composta por negros de atitude e com uma sonoridade monstruosa! 

Fiquei sabendo do show através de um amigo e começamos uma verdadeira saga para conseguir ingressos ou por sorteio ou pelos solidários. Até que, pasmem: a banda, com seu engajamento social, libera 50 ingressos para cidadãos negros de baixa renda. Bastava enviar um e-mail e confirmar presença.

trecho do show da Black Pantera 
no Ocidente, em Porto Alegre

Pronto: ingressos na mão. Fomos ao show, que começou às 21 horas em ponto, mas não antes daquela boa tietagem, troca de ideias, fotos e tudo mais, com direito a autógrafos no cartaz. Isso tudo numa segunda-feira, dia 14 de novembro...

O show da Black Pantera (formada por Charles Gama, guitarra e vocal; Chaene da Gama, baixo; e Rodrigo "Pancho" Augusto, bateria) começou com uma patada chamada “Abre a Roda e Senta o Pé”, seguida de mais alguns petardos, que até então eram novidades pra mim. Teve direito a cover do ídolo pop Michael Jackson, “A Carne”, de Elza Soares, e um belo momento onde a banda chama as garotas pra um samba-de-roda punk. Inacreditável!!

Eu quero exaltar aqui não apenas um, mas três discos da Black Pantera: “Project Black Pantera”, de 2015, “Agressão”, de 2018, e “Ascensão”, de 2022. Ouçam!

Senhores: o movimento Afropunk existe e está vivo. Vários artistas brasileiros estão nessa barca e merecem atenção!

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Confira mais fotos do show e dos bastidores:

BP no palco do Ocidente detonando


Lucio com a galera da BP após o show


Batendo aquele papo...


... sobre afropunk 


Mais câmbios entre Porto Alegre e BH


Foto afudê com a galera no camarim


No camarim trocando altas idieas com o pessoal da BP


quarta-feira, 5 de maio de 2021

Música da Cabeça - Programa #213

 

Vamos também entrar na onda: "MDC from Rio"! Sobem no nosso ônibus hoje João Gilberto, Beck, Hubert Laws, Ray Charles e Amado Maita. Também damos uma carona para Pepeu Gomes no 'Música de Fato' e para o sessentão Herbert Vianna no 'Palavra, Lê'. Pode entrar, que seu banco tá reservado no mercedão da Rádio Elétrica, que parte às 21h. Produção, apresentação e passe livre: Daniel Rodrigues.


Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Música da Cabeça - Programa #171


Pereira, Jones, Reed, Buarque, Nascimento, Guðmundsdóttir e Drumont são alguns dos sobrenomes de sangue universal que estarão hoje no programa. Já deu pra suspeitar do que estamos falando, né? De música, claro! Para isso, vamos ter a ajuda destes e de Antônio Carlos Jobim, Adriana Calcanhotto, Ray Charles, Marisa Monte e mais. Também, “Música de Fato”, abordando as manifestações de racismo meio cultural gaúcho, “Cabeça dos Outros” com Caetano Veloso e “Palavra, Lê” em homenagem aos 40 anos da morte de Vinicius de Moraes. Tudo hoje, 21h, na nobre senzala da Rádio Elétrica. Produção, apresentação e alforria: Daniel Rodrigues.



Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Robert Wyatt - “Shleep” (1997)



Pela primeira vez, eu revi meu passado
e parecia tão inacessível,
e tudo o que eu tinha feito
- mesmo tendo gravado
 neste meio tempo – 
parecia tão distante do que eu era agora,
 que era a primeira experiência
que eu já tive na minha vida de nostalgia.”
Robert Wyatt,
sobre Shleep



Os Jogos Paralímpicos, ocorridos recentemente no Rio de Janeiro, trouxeram à tona o velho questionamento – muitas vezes, retórico e demagogo – das dificuldades e enfrentamentos que deficientes físicos têm de passar em suas vidas. Na arte, mesmo em tempos modernos como os de hoje, as barreiras são semelhantes. Quando se pensa sobre artistas famosos com deficiência logo vem à mente Stevie Wonder e Ray Charles, dois cegos que passaram por cima de seu problema físico por mérito, perseverança e, claro, talento. Mas outra cabeça genial também se enquadra nessa lista de artistas deficientes que souberam suplantar esse aspecto tanto pela superação quanto, igualmente, pela capacidade criativa. Está se falando do inglês Robert Wyatt, fundador e integrante da Soft Machine e um dos principais representantes da chamada cena de Canterbury, grupo de bandas e músicos do final dos anos 60/início dos 70 que misturavam com muita propriedade rock progressivo, psicodelia e jazz. Mas não só isso quando se fala de um criador de alta estirpe como Wyatt.

A inventividade harmonia e rítmica que Wyatt tirava da bateria na Soft Machine já denotava algo que seria determinante em sua obra solo a partir de 1º de julho de 1973. Pois neste fatídico dia, numa festa regada a muita droga, Wyatt, numa crise depressiva, se atira do terceiro andar de um prédio. Resultado: fica paraplégico. O que seria trágico para quem tem de usar as pernas para operar seu instrumento por completo foi transformado por Wyatt. Com dor e sacrifício, ele se reinventa como pessoa e como músico. Se sua figura hoje lembra a de um mago – barba branca e espessa, sobrancelhas angulosas e olhar firme –, não é coincidência. A expressão guarda as marcas de alguém que, talvez inconscientemente, tenha tido que buscar nas profundezas mais místicas de si próprio uma forma de fazer nascer um novo homem e artista diante da condição limitadora que a cadeira de rodas impõe. Impossibilitado de tocar bateria, ele, em contrapartida, especializa-se em vários outros aparatos musicais, tornando-se multi-instrumentista. Sua musicalidade provou, assim, ir além do instrumento em si, pois é de sua natureza, independente do timbre que produza ou da técnica que precise usar. Dentro de uma extensa e profícua discografia (tanto solo quanto em outros projetos), “Shleep”, de 1997, é uma joia que condensa seus melhores predicados.

O brilhante afro-pop “Heaps Of Sheeps” abre o disco em alto nível. Uma levada de guitarra soul, um baixo bem marcado e uma base de teclados norteiam esta embalada melodia, repleta de percussões e efeitos de sintetizador. Ademais, “Shleep” conta com a produção do mais habilidoso profissional das mesas de estúdio do rock internacional: Brian Eno. Artista de formação plural, alia sua sensibilidade e conhecimento musical e artístico a serviço do conceito dos trabalhos que produz, tornando-se, não raro, um coautor não creditado como tal – assim como ocorrera em “Zooropa”, do U2, ou “Dream Theory in Malaya”, de John Hassell. Mesmo também não coassinando este, é visível sua interferência na estrutura do repertório, na arquitetura sonora e nas marcantes participações, seja de seus teclados e sintetizadores, vocais ou arranjos. Ouvindo “Heaps...”, por exemplo, é impossível não lembrar-se de outras faixas de abertura de projetos de Eno, como “Home” (em “Everything That Happens Will Happen Today”, com David Byrne), “Lay my Love” (de "Wrong Way Up", com John Cale) ou “No One Receiving” (“Before and After Science”, solo). E como não perceber no refrão o toque de Eno no coro com aquele ar étnico? O vocal de Wyatt, entretanto, é um elemento único. Sua quase sufocada voz transmite ao mesmo tempo sapiência e sofreguidão.

“Shleep” segue com a engenhosidade harmônica das duas linhas de piano de “The Duchess” – uma em tempo 1 x 2 e outra 3 x 3, mas meticulosamente dessincronizadas –, que dão-lhe um caráter quase atonal. Lembra bastante a obscuridade da The Residents – banda, aliás, bastante influenciada por Wyatt. As frases do sax de Evan Parker, combinadas com uma flauta e o violino polonês de Wyatt, ao mesmo tempo emprestam dissonância e cores a esta canção de ninar macabra, que podia tranquilamente integrar a trilha de um filme de terror com criança. A atmosfera muda totalmente em “Maryan”, quando o trompete de Wyatt, sobre o dedilhar de um violão, começa a canção serpenteando acordes hispano-árabes. O djembê africano de Gary Azukx e o violino oriental de Chikako Sato adicionam-se. World music in natura. É quando entra a intrincada melodia de voz de Wyatt, a qual inclui a da esposa e parceira musical Alfreda Benge, formando a provavelmente mais complexa e bela canção do disco. Isso sem mencionar o solo de guitarra de outro fera que participa das gravações: o mestre Phil Manzanera. Tudo, claro, orquestrado pela maestria de Wyatt.

De fato, a inteligência musical de Wyatt sempre foi além do óbvio. Ligado às artes plásticas (é de sua autoria as pinturas e desenhos que ilustram todas as capas de seus discos), sua visão de arte vai além apenas dos sons. Por isso, sua música é tão completa e complexa. Do rock progressivo ele faz suscitar o dodecafonismo e a eletroacústica; sua leitura do jazz engloba a avant-garde e projeta o pós-jazz; a psicodelia não fica somente nos clichês, mas vai em busca de texturas próximas do concretismo, do minimalismo e do microtonalismo; as referências exóticas não se restringem apenas à música indiana ou oriental, mas bebem nos timbres e ritmos da Espanha muçulmana e da África negra e egípcia. “Was A Friend”, nessa proposta politonal e polirrítimica, é um jazz dissonante que quebra novamente o ritmo da sequência de faixas, o que, em termos de conceito de obra, é um expediente empregado por Eno na construção temática dos álbuns que produz afetuosamente aos amigos (“Everything...”, com Byrne, e “Outside”, com David Bowie, por exemplo, respeitam essa ordem).

Noutro destaque, a emocionante “Free Will And Testament” (“Livre vontade e testamento”), dá para captar na voz sentida e em registro agudo de Wyatt (de difícil afinação) o sofrimento pela condição da paraplegia, bem como a culpa pelo ato suicida que ainda o rondava mesmo quase 25 anos depois do acidente. “Vou ter a minha liberdade, mas dentro de certos limites/ Eu não posso desejar para mim ilimitadas mutações/ Eu não posso saber o que eu seria se não fosse ele/ Posso apenas imaginar a mim mesmo”. Um lamento do fundo da alma que gerou uma canção excepcional. Mudando de sintonia de novo, o pós-jazz “September The Ninth” remonta a Chick Corea de "Mad Hatter", a Carla Bley de “Escalator Over the Hill” e até ao microtonalismo de Harry Partch na ópera-lóki “Revelation in the Courthouse Park”.

“Alien”, composição de Wyatt e Alfreda, tem claramente o dedo de Eno no arranjo. Basta notar os característicos teclados espaciais ao fundo, os mesmos que se ouvem lá em "Low", de Bowie, e em outros vários trabalhos de Eno, principalmente os de ambient music. Aos belos vocais longilíneos de Wyatt somam-se percussões africanas bastante rítmicas e um baixo alto e bem marcado, revelando aos poucos outra grande faixa do álbum – a qual retraz, agora, a pegada world music experimentada por Eno com os Talking Heads em "Remain In Light", de 1979.

“Out Of Season”, intensa, também interliga vários pontos díspares: música de teatro, atonalismo, Debussy, jazz modal. E como se tudo estivesse propositadamente disperso, fora da estação. Porém, na montanha-russa proposta pelo autor, logo há uma nova tentativa de encontro de um centro tonal (e emocional) mais acolhedor, o que se nota na colorida – mas não menos dispersa –  “A Sunday in Madrid”. Aqui, Wyatt narra uma onírica e viagem à capital espanhola, numa letra de grande teor literário: “Pa chega à cidade das portas fechadas/ É recebido por mineiros das Astúrias/ Sua limusine estriada guarda as últimas brilhantes gavetas-caixas gigantes/ Amontoados para o calor/ Ele é depositado em sua câmara interna/ Mais tarde, Pa encontra o urso representando uma árvore/ Para confundir sentido de cheiro dos cães dos portões do inferno...”

Mais uma ótima é “Blues In Bob Minor”, um blues embalado que é levado numa base de órgão. O canto ininterrupto de Wyatt conta outra longa história, esta da existência sem sentido dos personagens Roger e Martha em meio à célere e burocrática vida urbana. Nessa, a guitarra carregada do ex-Roxy Music Manzanera faz um duo de improviso com a jazzística de Philip Catherine, noutro momento especial do disco. “The Whole Point Of No Return”, composição do amigo Paul Weller (Jam e Style Council), é uma pequena vinheta altamente lírica que encerra o disco numa versão tão personalizada que em nada lembra a original, de 1982. A base se sustenta num coro ao estilo do canto medieval, soturno e litúrgico, assinado pelo próprio Weller. O piano de Wyatt solta notas esparsas, dando a liberdade perfeita para seu trompete solar, que desfecha “Shleep” com a mesma complexidade e beleza que o perfazem desde o início.

Da discografia de Wyatt, muitos destacariam “Rock Bottom”, de 1973, como o pesquisador musical italiano Piero Scaruffi, que o coloca como o 2º maior álbum de rock de todos os tempos e entre dos 15 trabalhos mais importantes da música mundial na segunda metade do século XX. Não é para menos: gravado imediatamente após o acidente, é um registro fiel e pungente do então novo Robert Wyatt que o destino reservara (o título, pertinentemente quer dizer “fundo do poço”). Entretanto, o também celebrado “Shleep”, além de contar com a mão mágica de Eno na produção, é resultado de um artista, então aos 52 anos, maduro, tanto no que se refere à sua música e arte quanto a ele próprio enquanto pessoa e cadeirante. “Levei muito tempo para me recuperar do acidente”, confessou em entrevista na época do lançamento de “Shleep”. As questões da depressão estão igualmente presentes, bem como a reflexão de quem se é a busca de significados maiores. Se Wyatt chegou às respostas, só ele pode confirmar. O disco, no entanto, dá pistas desse olhar autocurador que ele lançou para dentro de si. Terapêutico para ele e um deleite para quem escuta.
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FAIXAS:
1. Heaps Of Sheeps (Alfreda Benge/Robert Wyatt) - 4:56
2. The Duchess - 4:18
3. Maryan (Philip Catherine/Wyatt) - 6:11
4. Was A Friend (Hugh Hoppe/Wyatt) - 6:09
5. Free Will And Testament - 4:13
6. September The Ninth (Benge/Wyatt) - 6:41
7. Alien (Benge/Wyatt) - 6:47
8. Out Of Season (Benge/Wyatt) - 2:32
9. A Sunday In Madrid - 4:41
10. Blues In Bob Minor - 5:46
11. The Whole Point Of No Return (Paul Weller) - 1:25

todas as composições de Robert Wyatt, exceto indicadas.

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OUÇA O DISCO:






segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Duelo - com Paulo Telles (2ª parte)



Seguindo com a segunda parte do duelo com o radialista, locutor, cinéfilo e blogueiro Paulo Telles num bate-papo tão apaixonado pela sétima arte quanto instrutivo. Se na primeira Telles aborda o faroeste norte-americano, destacando diretores, títulos referenciais e até sobre o papel da mulher no western, agora, ele fala um pouco mais sobre o spaghetti, a versão italiana para o gênero que não só ganhou fãs no mundo todo como, de certa forma, trouxe-lhe uma nova linguagem. Ainda, aquilo que todo cinéfilo gosta: listas. O entrevistado já sai elencando seus filmes preferidos nas duas categorias e defende com muito critério e poder analítico uma a uma de suas escolhas. Vamos, então, à segunda e última parte da entrevista:



FRANCISCO BINO:- Sei que não é fácil fazer estas coisas, mas nos faça uma lista com os dez melhores western Spaghettis de todos os tempos segundo você? E os dez melhores do cinema americano?
PAULO TELLES: E não é mesmo, prezado Bino (risos). Elaborar uma lista com apenas dez de cada estilo não é uma tarefa fácil. Entretanto, há outros títulos que também estão em minha apreciação que não se encontram aqui listadas, portanto, apresento os meus Top Ten de cada estilo do gênero:

  • AMERICANOS
1 - "RASTROS DE ÓDIO"/The Saerchers (1956) – Direção: John Ford
Foi através desta obra prima (assisti pela primeira vez em 1985, com catorze anos) que comecei a me interessar sobre cinema e tentar entendê-lo como arte. Foi a partir deste momento, que me deixei penetrar pelo mundo de John Ford e no mundo dos westerns. Não tem como você não se deixar encantar pela beleza majestosa e áspera do Monument Valley, cenário natural este preferido de Ford, e pela figura estoica de Ethan Edwards, interpretado por John Wayne. Em minha opinião, foi a melhor atuação de sua carreira, digna mesmo de um prêmio, trabalho este que rendeu até elogios do cineasta e filósofo Jean-Luc Godard, inimigo declarado de Wayne por razões políticas. “Rastros de ódio” conserva os elementos dramáticos do faroeste tradicional, por seu estilo peculiar, épico e lírico, onde o cineasta descreve a odisseia de Ethan e de seus discípulo Martin Pawley (vivido por Jeffrey Hunter) na perseguição aos comanches que raptaram a jovem Debbie (vivida por Natalie Wood), e isto tudo num relato de tensão ininterrupta e de grandeza plástica e cromática, segundo as nobres palavras do finado crítico Paulo Perdigão, ex-colunista do jornal O Globo. Recentemente, o filme foi exibido em reprise nas grandes salas do Cinemark, em sua sessão de clássicos, e assisti junto ao José Eugenio Guimarães, editor do blog Eugenio em Filmes. Mesmo sem o impacto do formato VistaVision, ainda assim valeu o ingresso.


"Rastros de Ódio", cena de abertura

2 - MATAR OU MORRER/High Noon (1952) – Direção: Fred Zinnemann
Um dos grandes westerns que estabeleceu o chamado Western Psicológico, uma alusão ao Macarthismo e a sociedade americana de então, uma das obras primas de um grande cineasta, Fred Zinnemann. Poucos sabem, mas os americanos consideram tão importante este filme que uma cópia desta obra prima foi depositada numa cápsula do tempo, que só será reaberta no ano 2213. Uma trama elevada à dimensão de tragédia grega tendo como herói o xerife Will Kane (em minha opinião o mais humanizado de todos os protagonistas no gênero, digno do título de herói) vivido por um dos atores que mais bem personificaram o mito do cowboy do oeste, Gary Cooper, em uma cruzada solitária para defender sua vida. Ele durante muitos anos cuidou de uma cidade e de seus habitantes, mas agora mesmo não estando sob a insígnia da lei, estes mesmos habitantes se recusam a ajudá-lo, pois todos temem o pistoleiro e seus comparsas que descerão no trem do meio dia para matar Kane. Um estudo acurado da consciência do herói que mesmo podendo fugir ou deixar a responsabilidade para o próximo xerife, ainda sim mantém sua dignidade para ter paz consigo mesmo. Não tem como não falar deste Western sem mencionar Grace Kelly como sua esposa quaker, e a famosa canção “Do Not Forsake Me Oh My Darling”, interpretada por Tex Ritter. Solidão, consciência, medo, e ingratidão são as temáticas principais desta obra de Zinnemann.
3 - O MATADOR/The Gunfight (1952) – Direção: Henry King
Outro grande western de base psicológica dirigida por um dos grandes artesões de Hollywood, e trazendo Gregory Peck numa das melhores atuações do gênero, Jimmy Ringo, um temível pistoleiro que quer largar as armas para viver pacificamente para a esposa e seu filho, que ainda não o conhece. Contudo, sua fama de rápido no gatilho não só atemoriza as pessoas mais pacatas, mas atrai aventureiros desocupados que o querem por à prova, o que faz com que Ringo não consiga a paz que almeja. Um estudo acurado do mito do pistoleiro, que tão logo seja afamado (ou mal afamado), outros estão dispostos a temê-lo ou a desafiá-lo.
4 - DA TERRA NASCEM OS HOMENS/The Big Country (1958) – Direção: William Wyler
Um dos melhores Westerns americanos que já assisti e por muitos, e também pudera, não tinha nada para dar errado tendo na direção um dos maiores cineastas de todos os tempos, William Wyler, que assinou grandes obras primas da Sétima Arte, como “Jezebel”, “A Princesa e o Plebeu”, “Chagas de Fogo”, e “Ben-Hur”, como também não podia dar errado tendo um elenco de primeira categoria como Gregory Peck, Jean Simmons, e Charlton Heston. Outro destaque é sua produção, com uma fotografia impecável e formato de tela panorâmica que nenhum televisor poderia enquadrar, isto é, um dos primeiros faroestes americanos em superprodução para afastar o público dos televisores, que então esvaziavam as salas de exibição. Vale lembrar também de sua mensagem pacifista, coisa rara nos filmes do gênero, já que o personagem de Peck, um almofadinha do leste, se envolve na briga de duas famílias por causa da divisão de água, mas ele acredita que poderá agradar a gregos e troianos. Muito interessante! Destaque para a briga entre Peck e Heston, que viram a noite lutando, e também para eletrizante trilha sonora de Jerome Moross.
5 - OS BRUTOS TAMBÉM AMAM/Shane (1953)- Direção: George Stevens
Era o filme preferido do crítico brasileiro Paulo Perdigão, já falecido, entretanto a meu ver ele é um conto moral sobre a redenção e a ótica de uma criança ao idealizar o perfil do herói do Oeste. O baixinho Alan Ladd é perfeito como o pistoleiro Shane, que busca a paz e quer largar as armas, mas ele não consegue quando se vê obrigado a empunha-las para defender um casal e o filho deles, que o idolatra como um verdadeiro mito. Shane chega a uma cidade como um típico “anjo purificador” ao tentar distribuir dignidade e autoconfiança para os fazendeiros amedrontados. A fábula sobre o bem e o mal e disputa entre dois é bem caracterizada no duelo final entre Ladd (Shane) e o pistoleiro Wilson, vivido pelo brilhante Jack Palance. Outro clássico do gênero recomendado para todos os amantes do Western, ou simplesmente, quem ama cinema.
6 - DUELO AO SOL/Duel in The Sun (1946) – Direção: King Vidor
Verdadeiramente um Super-Western de tirar o fôlego!!! Uma nova forma bem adulta de atrair o público igualmente adulto as salas de cinema, e produzido por David O’ Selznick, o megaprodutor responsável por outra obra prima (E O Vento Levou) e estrelando a sensual Jennifer Jones e o galante Gregory Peck, que não esta nada galante nesse filme (risos). Foi o maior êxito comercial de Selznick e que foi o apogeu do Western romanesco, no entanto, acabou criando problemas com ligas puritanas americanas pelo teor de sexualidade bem apimentada e exagerada, ao introduzir o chamado “beijo francês” no cinema americano. Além disso, a trama é basicamente uma tragédia grega, onde a mestiça vivida por Jennifer Jones tem o pai condenado à morte por ter matado sua mãe e o amante dela, e daí passará a viver com uma tia, vivida por uma dama do cinema, Lilian Gish, que é esposa de um senador, vivido pelo lendário Lionel Barrymore. Mas os dois filhos do casal se interessam pela mestiça, mas ela acaba optando pelo mais sedutor e amoral, que é Gregory Peck, que não quer nenhum compromisso, em vez do decente Joseph Cotten. De resto, é uma tragédia grega a se seguir em grandes proporções, mas no grande estilo do Western Clássico Americano.
7 - A LEI DO BRAVO/White Feather (1955) – Direção: Robert D. Webb
É um dos meus prediletos por tratar-se de um tema antirracista, e um dos faroestes mais respeitados sobre a temática indígena, cujo argumento foi redigido pelo cineasta Delmer Daves, mas dirigido por Robert D. Webb (um cineasta de menor renome, mas nem por isso menos admirado). No roteiro, Daves repetiu os mesmos ingredientes de Flechas de fogo, realizado cinco anos antes, versando a trajetória de jovem guerreiro cheyenne Cão Pequeno (vivido espetacularmente por Jeffrey Hunter) e um engenheiro bem intencionado Josh Tenner (vivido por Robert Wagner). Este tenta persuadir os índios a mudar-se para uma reserva, mas o projeto acaba prejudicado pela ganância de garimpeiros. A obra caminha para uma sequência final que eu mais admiro - o confronto do solitário de Cão Pequeno, que se recusa a mudar de sua reserva, contra as tropas da União. Destaque para a bela Debra Paget, praticamente a repetir seu papel em Flechas de Fogo, como a irmã de Cão Pequeno e interesse romântico do herói vivido por Wagner. Recomendo.
Poster de "A Face Oculta, de Brando
8 - A FACE OCULTA/One-Eyed Jacks (1961) – Direção: Marlon Brando 
Outro Western em superprodução que está em minha apreciação onde se tem o registro da única experiência de Marlon Brando como diretor. Muitos apreciam "O Poderoso Chefão" como o melhor filme de Brando, mas contesto um pouco isso, tendo em vista este excêntrico trabalho do gênero onde o ator investiu cinco milhões de dólares, em dois anos de trabalho. Foi uma produção tumultuada (era para Stanley Kubrick dirigir), e das 35 horas de filme impresso, Brando selecionou material para cinco horas de filme, que acabou sendo reduzido para 2h e 21 minutos de filme. Era para ter sido o Western de maior duração da história se Brando não fosse obrigado a reeditar sua duração. Além disso, tramas ligadas sobre a vingança me fascinam, assim como a dualidade do caráter do ser humano quando se aplica no personagem vivido por Karl Malden. Malden é bandido assaltante de bancos como Brando, e acaba traindo este, seu melhor amigo, que passa cinco anos na prisão e jura vingança por todos os anos que ficou no presídio, e quando finalmente o reencontra, ele é um homem mudado, xerife de uma cidade, e respeitado pelo povo. A questão fica se ele mudou moralmente ou isso não passa de uma fachada. Brando sempre alegou que seu Western era um “assalto frontal ao tempo dos clichês”.
9 - OS PROFISSIONAIS/The Professionals (1966) – Direção: Richard Brooks
Revisitado por mim faz pouco tempo, não há a menor dúvida que esta obra de Brooks foi uma resposta americana (uma das primeiras) para o Western italiano que já invadia as salas de exibição, e também não foi pra menos, pois importaram até a beleza italiana dos deuses Claudia Cardinale para se juntar as feras do cinema americano, como Burt Lancaster, Lee Marvin, Robert Ryan, e o ator negro Woody Strode, este excelente, mas infelizmente pouco valorizado. Um ótimo exemplar de tenacidade e tensão, cuja trama vai adquirindo colorações políticas e éticas inesperadas, mas com extraordinário espírito de aventura como jamais vista no gênero americano. Destaque para a fotografia e para sua trilha sonora, de Maurice Jarre.
10 - MEU ÓDIO SERÁ SUA HERANÇA/The Wild Bunch (1969) – Direção: Sam Peckinpah
O “clímax dos clímax” do gênero, como eu defino. Para os amantes de cinema, e, sobretudo, do gênero que estamos debatendo, é a obra clímax da estilização da violência, coreografada de forma ritualística em câmera lenta, evocando um Oeste sujo e selvagem, sem qualquer idealismo romântico e lenda áurea dos mitos, com personagens decadentes, anacrônicos, e desglamourizados. Causou polêmica de fato, o que retardou o reconhecimento de Sam Peckinpah como um dos grandes cineastas do gênero, pois acabou sendo cortados 56 minutos de sua metragem original, o que provocou protestos do diretor e até mesmo por parte da crítica, que não estava ainda acostumada com este excesso da violência nos filmes. Outrora os ídolos do cinema americano, William Holden, Ernest Borgnine, e Robert Ryan, três fantásticos atores (principalmente o terceiro, que atuou em Hollywood sempre com muita competência e profissionalismo, sendo um dos meus atores preferidos) estão soberbos e maravilhosos em seus papéis, arquétipos do declínio e de toda decadência, que de uma maneira ou outra, desgraçadamente se empenham em aventurar num último golpe de suas malditas vidas. Vale também destacar a bela fotografia de Lucien Ballard.



  • ITALIANOS/EUROPEUS
1 - TRÊS HOMENS EM CONFLITO/Il buono, il brutto, il cattivo (1966) – Direção: Sergio Leone
Foi o primeiro faroeste italiano a me chamar a atenção justamente devido a falta de romancismo, idealismo, lirismo, e todo tipo de folclore tão comumente acostumado nos faroestes americanos. Propositalmente, o grande Sergio Leone soube o que fez ao retratar o Velho Oeste do jeito que fosse condizer com os fatos, e descartando mitos. A ganância e o individualismo exacerbado, pessoas querendo se dar bem à custa de outras, são características bem acentuadas nas obras deste grande cineasta, como vemos neste exemplar, revelando ao mundo um novo tipo de cowboy, o mais distante possível de John Wayne, Gary Cooper, ou Randolph Scott, e seu nome é um mito vivo – o americano Clint Eastwood. Junto a Lee Van Cleef e Eli Wallach (maravilhoso como Tuco, o feio), formam um triunvirato de trapaças e aventuras desmedidas, onde ao fim, o duelo a três é inevitável.
2 -  DJANGO/Django (1966) – Direção: Sergio Corbucci
Outra obra prima que ajudou a consolidar o faroeste italiano na minha preferência. O mundo se rendeu a um novo ídolo do Western europeu, e desta vez um genuíno italiano chamado Franco Nero, um dos meus atores favoritos do gênero. Não há como não se impressionar com uma figura calada e de toda de negro chegando a uma pequena cidade carregando um caixão. Uma cidade dominada pelo terror da famigerada Ku Klux Klan que para dominar o poder enfrenta bandidos mexicanos, e o estranho Django está no meio de tudo isso para salvar a vida de uma estranha mulher, por quem se apaixona ao seu modo. Corbucci dá a esta obra uma carga explosiva acentuada, realçada pela antológica trilha sonora de Luis Bacalov.
3 - O DIA DA DESFORRA/La Resa dei Conti (1967) – Direção: Sergio Sollima
Outro exemplar à italiana do gênero que é um exercício psicológico de tensão, mas mantendo as características do legítimo padrão do western italiano, trazendo o americano Lee Van Cleef como um caçador de bandidos da elite que persegue um mexicano (vivido pelo italiano Thomas Millan) acusado de violentar e matar uma menina. Contudo após vários reveses, em que o caçador tem o seu orgulho ferido devido à esperteza do mexicano, ele descobre que na verdade ele é inocente, vitima de inescrupulosos da alta roda em que o caçador vivido por Cleef faz parte, e por isso ele resolve ajudar o mexicano. Um dos melhores e mais expressivos filmes do Western europeu, dirigido por um Sergio, mas que não é o Leone.

O "O Dólar Furado",
dos favoritos
do faroeste spaghetti
4 - O DÓLAR FURADO/Uno Dollaro Bucato (1965) – Direção: Giorgio Ferroni
Giuliano Gemma é outro dos meus heróis do gênero à italiana, e este filme, ainda que embora tenha alguns clichês do Western americano, ainda assim vale o espetáculo, que como “Django”, de Corbucci, ajudou a impulsionar a moda do bang bang a italiana. Impressionante como uma moeda de um dólar no bolso acaba salvando a sua vida após ser abatido pelos inimigos, e como se fosse Ullysses da “Odisseia” de Homero, volta para se vingar dos homens que tentaram matá-lo, tiraram a vida de seu irmão, e raptaram sua mulher. “O Dólar Furado” é outra obra prima do gênero que ajudou no impulso do faroeste italiano.
5 - OS QUATRO MALDITOS/Los Cuetro Implacables (1965) – Direção: Primo Zeglio
Não chega a ser um clássico do gênero italiano, mas meus motivos para listá-lo são mais puramente afetivos, pois foi um dos primeiros assistidos por mim ainda na infância, e em ter como herói aqui Adam West, que no ano seguinte emplacaria como o mais famoso Batman da TV. O cowboy aqui vivido por West é quase limpinho, briga adoidado, mas a trama sobre um agente da lei (vivido por West) que tentar impedir que quatro bandoleiros (daí o título de “Quatro Malditos”, ou no original, “Os Quatro Implacáveis”) recebam a recompensa por terem capturado e matado um fugitivo da justiça que era inocente não deixa de ser de toda interessante e é uma história bem ritmada. Como não deixarão barato, os “quatro malditos” emboscam o agente da lei, e este, terá que lutar por sua vida.
6 - POR UNS DÓLARES A MAIS/Per un pugno di dollar (1964) – Direção: Sergio Leone
Leone parte com tudo nesta obra desmistificadora dos mitos laureados do Velho Oeste. A ganância, o individualismo, o dinheiro, surgindo a figura do 'caçador de recompensas', tão enormemente explorado em outros filmes, contudo sem tanta convicção e realidade como expõe Leone. Embora sem muitas afinidades, os personagens de Clint Eastwood e Lee Van Cleef, por motivos diferentes, acabam esquecendo suas diferenças e se unindo para enfrentar a quadrilha de Gian Maria Volonté, com a intenção de dividir a recompensa por eles oferecida pela Lei. Outra obra merecedora de destaque entre os grandes clássicos do gênero spaghetti de se fazer Western.
7 - ERA UMA VEZ NO OESTE/C'era una volta il West (1968) – Direção: Sergio Leone
Outro exemplar, talvez o mais popular, onde se seguiu toda a Trilogia de Leone (“Por um punhado de Dólares”, “Por uns Dólares a Mais” e “Três Homens em Conflito”). Vale destacar que o roteiro foi escrito por Leone com colaboração de Bernardo Bertolucci, com leves reminiscências do clássico americano “Johnny Guitar”, de Nicholas Ray (1954). Foi uma febre ao ser lançado nos nossos cinemas em 1971, mas infelizmente com cópias de 144 minutos devido à censura (a metragem original aos propósitos do cineasta foi de 229, sendo reduzidas umas para 137, e outras com 165 minutos, a versão apresentada no mercado de vídeo hoje). Uma trama com muito sangue e sem qualquer moral, uma verdadeira crítica à mitologia do Oeste em vez do antigo glamour dos faroestes americanos, retratando a passagem de pioneiros para os tempos da civilização com a chegada dos trilhos das ferrovias. Parece um paradoxo ao vermos Henry Fonda, outrora um representante da mitologia clássica do Western Americano, o típico mocinho das telas, na pele de um malfeitor sujo e cínico como Frank. Não foi a toa que Leone escolheu Fonda, pois era um assíduo admirador deste ator. Charles Bronson na pele de um pistoleiro, Harmônica (porque sempre toca esta gaita quando esta prestes a matar), que busca vingança contra Frank, que matou seu irmão, se destaca pelo caráter lacônico, de quase poucas falas, e de muito suspense de seu personagem, assumindo uma atitude quase parecida com a de Sterling Hayden em “Johnny Guitar”, quando protege a viúva Jill Mcbain, vivida por Claudia Cardinale. Mais do que uma superprodução, é um Super-Western, acabando por se consagrar como um dos exercícios mais ousados do cineasta Sérgio Leone.


"Era Uma Vez no Oeste", sequencia inicial

9 - CAÇADA AO PISTOLEIRO/Un minuto per pregare, un instante per morire (1968) – Direção: Franco Giraldi
Um Western italiano cheio de tensão, com argumento freudiano à dimensão de tragédia grega, mas não deixando de ser extremamente violento e desmistificador. Trata-se da história do pistoleiro Clay McCord (vivido por Alex Cord), temido e odiado por muitos, que tem sua cabeça a prêmio oferecido por um delegado corrupto de uma cidade (vivido pelo ótimo Arthur Kennedy). Contudo, o delegado age fora da lei e vem a intervir Lem Carter (o sempre brilhante Robert Ryan), governador do Novo México, que oferece uma anistia ao pistoleiro, contudo alguns aventureiros não querem saber e tentam emboscar McCord, que ainda enfrenta outro problema – ele tem momentos de ataque epilético, e carrega o trauma pelo pai também ter tido esse mesmo problema. Embora os atores principais sejam americanos, o filme ainda conta com as presenças italianas de Nicoletta Machiavelli, e do ator Mario Brega. Está entre meus colecionáveis.
10 - ADIOS SABATA/Indio Black, sai che ti dico: Sei un gran figlio di... (1970) – Direção: Gianfranco Parolini
Como não podia deixar de serem ao estilo italiano, trapaças, aventureiros sujos, e todo mundo querendo se dar bem. É assim que funciona esta obra de Parolini, tendo como anti-herói o aventureiro Sabata (na verdade, Indio Black no original), vivido pelo excelente Yul Brynner, aqui ainda um tanto limpinho e barbeado como foi em Sete Homens e Um Destino, em 1960. Sabata é um caçador de bandidos que se junta a um vigarista, Ballantine (vivido por Dean Reed) e ao engraçado e cínico revolucionário, o gordo Escudo (vivido por Ignazio Spalla) para combater as forças do Imperador do México Maximiliano, e se apoderar de um carregamento de ouro. Contudo, esta união de forças tem objetivos diversos. O destaque fica em algumas situações engraçadas, quando o ladrão Ballantine tenta enganar seus associados. Vale também a pena assistir “Sabata, O Homem que Veio Para Matar” (que não tem a ver com o filme estrelado por Brynner, apesar do mesmo nome do protagonista), estrelado por Lee Van Cleef, onde se apresentam as mesmas situações humorísticas quando se trata de bandido enganar o outro, afinal, quem disse que existe honra entre ladrões?

B: Quais você acha que são os western mais subestimados de todos os tempos?
PT: Acentuo uma obra fordiana intitulada “Audazes e Malditos”, de 1960, que trata da questão do racismo. Pela primeira vez, o Mestre John Ford desenvolveu uma mensagem antirracista em um tom bem eloquente que chega a ser comovedor, tendo como pano de fundo o ano de 1866, quando negros recém-libertados passam a integrar regimentos de cavalarias comandados por oficiais brancos. Um deles, um notável sargento vivido pelo brilhante Woody Strode, é acusado de um crime que ele não cometeu, sendo levado à corte marcial por preconceito racial. Mas ele é defendido por seu superior, vivido por Jeffrey Hunter. O relato do filme (sempre reconstituindo os fatos em flashbacks) é tenso, épico, e de uma solene dramática indescritível, que só um brilhante cineasta como Ford poderia conceber, mas eu pessoalmente considero um de seus melhores trabalhos junto às outras obras de requinte maior do diretor. Também “A Árvore dos Enforcados”, dirigido por outro grande artesão dos westerns, Delmer Daves em 1959, acredito um tanto subestimada por alguns críticos, entretanto não poderia ter um protagonista mais humano em todos os aspectos do que o médico Joe Frail, vivido por Gary Cooper em uma de suas últimas atuações. Amargo, malquisto, cínico, mas ao mesmo tempo, não isento inteiramente de altruísmo, procura esquecer um trauma do passado e tenta continuar a vida. Mas ele percebe que nem tudo esta perdido, pois se renderá ao amor de uma imigrante suíça que acaba salvando sua vida, vivida pela Maria Schell. Vale destacar a bela canção interpretada por Marty Robbins. Outro western, desta vez europeu, que acho muito subestimado é “Os bravos não se rendem”, dirigido por Robert Siodmak e Irving Lerner, que conta a trajetória do General Custer de maneira realista e desmistificadora (nada a ver com o herói pintado por Raoul Walsh no clássico “O Intrépido General Custer”, com Errol Flynn, em 1945). Robert Shaw esta perfeito como o famigerado militar em sua sede de glória, e a famosa batalha de Little Big Horn. Contudo é um dos trabalhos menos badalados (mesmo com uma bela trilha sonora), visto a índole verdadeira e descaracterizante do personagem, o que pode não agradar a todos.

B: Sam Peckinpah e Robert Altman foram meio que marginalizados por Hollywood. Mesmo com poucos filmes sobre o tema western eles impactaram a estética do gênero para sempre. Wild Bunch e Quando os Homens são Homens, são exemplos claros disso. Que grande contribuição foi essa? E que outros diretores após essa geração conseguiram essa façanha?
O genial Altman, um dos diretores que mudaram o western
PT: Conheço pouco o trabalho de Altman no gênero, com exceção do “Oeste Selvagem”, estrelado por Paul Newman, em 1976. Entretanto, posso adiantar que ambos os cineastas são oriundos da televisão e dirigiram trabalhos gratificantes no gênero para a telinha. Peckinpah chegou a dirigir episódios de “O Homem do Rifle” (com Chuck Connors) e “Paladino do Oeste” (com Richard Boone), e Altman episódios da série “Bonanza” e “Lawman. Acredito que a questão da marginalização destes cineastas é que ambos foram sinceros demais em suas obras, sem rodeios. Peckinpah recorreu à violência em “Meu ódio Será Sua Herança”, de 1969, e a partir daí, não foi só no gênero western que se viu esta apelação do diretor que é consagrado como o “Poeta da Violência”. Basta acessarmos seus outros ótimos trabalhos como "Tragam-me a Cabeça de Alfredo Garcia" (1974) e "Sob o Domínio do Medo" (1972), que poderemos ver também esta exaltação. Quanto a Altman, como vi “Oeste Selvagem”, senti a desmistificação de uma lenda, no caso Buffalo Bill, e grande parte dos produtores embora saibam que as lendas e mitos não correspondem à verdade, ainda assim preferem que as lendas sejam impressas. Hollywood durante anos promoveu isso em seus westerns, e mesmo com o desenrolar das mudanças graças aos faroestes italianos, a indústria de cinema não parecia apoiar esta descaracterização dos mitos tão amados pelo folclore americano. Contudo, a grande contribuição destes dois mestres foi tentarem fazer um novo estilo de western, sem exaltação de mitos ou heróis, sem áura romântica, propondo para as plateias mundiais que o Velho Oeste também pode ser interessante se analisarmos seus personagens e o meio social em que viveram. Acredito que Lawrence Kasdam (que realizou em 1985 o ótimo “Silverado”), que também realizou pouquíssimos trabalhos no gênero (o último, “Wyatt Earp”, de 1994, com Kevin Costner, que foi um fracasso), e atualmente Tarantino, vem conseguindo esta proeza de impactar a estética, e por que não dizer, imortalizar o gênero.

B: Sabemos que ainda existem produções western tanto nos EUA quanto na Europa. Mesmo com Tarantino e outros diretores fazendo western a sua maneira e em forma de homenagem, podemos afirmar que esse gênero morreu ou ainda vai ressuscitar em uma grande e genial produção?
PT: Acredito que, na verdade, o western nunca morreu. Naturalmente as produções de hoje são em menor escala, e não como era a mais de 50 ou 60 anos atrás, época rica em criatividade e em franca produção, onde tínhamos cineastas brilhantes como John Ford, Raoul Walsh, Howard Hawks, Anthony Mann, Delmer Daves e claro, incluindo Peckinpah, Leone e outros mais. Mas de uma forma ou de outra, o faroeste está vivo, só esta adormecido enquanto um cineasta fera como Tarantino ou como Clint Eastwood, a lenda viva, não rodarem novos trabalhos no gênero (será que Clint pensaria em rodar um novo faroeste? Seria genial!). E enquanto isso, também, novas produções são realizadas pela TV americana ou mesmo para o cinema sem sabermos. Mas uma coisa é certa: este gênero estritamente americano também batizado pelos italianos não morreu e nem morrerá tão cedo se depender de cada fã e espectador como nós para divulgar, apreciar e assistir. Podem acreditar!

B: Quais filmes western merecem destaque a partir dos anos 80 até hoje, nos faça uma lista de alguns que são pouco conhecidos?
Willie Nelson em
"Justiça para um bravo"
PT: Não estou muito a par das novidades em matéria de western nos últimos tempos, mesmo porque sigo um esquema eclético focalizando em geral o cinema antigo e todos os seus gêneros, mas naturalmente, o western tem um espaço com todo carinho dedicado. Entretanto, posso acentuar alguns trabalhos do faroeste já tanto esquecidos na metade dos anos de 1980, como “De Volta ao Oeste” (Once Upon a Texas Train”), de 1986, para a TV, dirigido por um dos grandes especialistas do gênero, Burt Kennedy, e trazendo Richard Widmark (um notório Man Of The West de primeira), Angie Dickinson, e o cantor Willie Nelson, além de contar com presenças conhecidas como Chuck Connors, Stuart Whitman, Jack Elam, Ken Curtis, Dub Taylor. No ano seguinte, o mesmo Willie Nelson foi o protagonista de “Justiça para um Bravo” (“Red Headed Stranger”), também realizado para a TV, onde contou com as presenças da bela Katharine Ross (de “Butch Cassidy”) e do excelente Royal Dano (cujo seu melhor papel de destaque foi no western “Irmão contra Irmão”, dirigido por Robert Parrish, em 1958). Vale destacar também por esse período “O Álamo, 13 dias de Glória”, de 1987, que retrata a batalha do Álamo com mais fidelidade do que a versão patriótica apresentada por John Wayne, em 1960, onde James Arness (da série de TV Gunsmoke), interpreta Jim Bowie, Brian Keith como Davy Crockett, Lorne Greene como Sam Huston (em seu último desempenho), e o inesquecível Raul Julia como o general Santana. Em 1995, Jeff Bridges interpretou o temível Wild Bil Hickcok na produção “Uma Lenda do Oeste”, dirigida por Walter Hill, onde conta a trajetória fidedigna de uma lenda, o mais distante possível de Gary Cooper na produção “Jornadas Heroicas”, de 1936, dirigida por DeMille. Dos mais recentes que acredito que são ainda menos conhecidos, vale destacar “Inferno no Faroeste”, de 2013, sob a direção de Roel Reiné, onde estrelam Mickey Rourke e Danny Trejo. Parece-me que este western não chegou as nossas salas de exibição.

B: Há um tempo eu soube que Clint Eastwood escreveu uma carta a John Wayne pedindo a ele para fazerem um filme juntos. Isso não aconteceu é claro. Caso acontecesse essa produção seria ímpar e juntaria definitivamente os dois maiores ícones do western. Um de cada estilo. E se no final do filme houvesse um duelo entre a dupla, quem venceria?
Wayne e Clint,
o tão esperado duelo que nunca aconteceu
PT: Vixe, nem ouso te responder com segurança a esta pergunta sem levar uma bala perdida (risos). Uma parada dura já que ambos são dois gigantes do mesmo gênero, mas com estilos diferentes e épocas diferentes. O mais engraçado é que, em 1989, dez anos após a morte de Wayne, uma pesquisa realizada por uma revista de cinema apontou Clint Eastwood como o novo sucessor de John Wayne. No entanto, Clint, apesar de admirar o bom e velho Duke, jamais quis se comparar a ele ou sequer substituir John Wayne. Clint tinha como modelo para o gênero o ator Gregory Peck, do qual considera sua melhor atuação em “O Matador (“The Gunfighter”). As performances vindas de Clint para compor seus durões nos westerns, segundo ele, se inspiravam em Gregory nesta obra dirigida por Henry King em 1951. É fato (e não fita) que Clint enviou uma carta para o veterano Duke, propondo que fizessem um filme juntos. Já pensou, Bino? Dois gigantes do gênero que talvez pudesse precisar de duas telas do formato VistaVision para compor tamanho encontro! (risos). Entretanto, Wayne, que vira “O Estranho Sem Nome”, a obra de Clint dirigida em 1973, não gostou nem um pouco do estilo revisionista e violento deste western. Para Wayne, já foi difícil filmar "Bravura Indômita", em 1969, tendo que se reinventar um pouco e quase recusou o papel que deu a ele seu único Oscar como ator. Mas o gênero estava se desenvolvendo bem rápido, e os faroestes estrelados por Wayne em épocas anteriores já ficavam obsoletos para os novos padrões. Entretanto, Duke não só recusou o convite como também aproveitou para criticar o trabalho de Clint Eastwood, que não lhe deu ouvidos. A parceria não aconteceu e o maior prejudicado foi o público, ou, quem sabe, o próprio Wayne. Portanto, por mais que eu adore John Wayne, acho que Clint sacaria primeiro, ou quem sabe, por alguma "providência", um empate técnico? (risos)

B: Para finalizar, uma pergunta que será símbolo de todos os "Duelos" com entrevistados: descreva você num grande filme?
PT:Meu Ódio Será Sua Herança”. Não que eu seja o “arquétipo da decadência” como os protagonistas da obra de Peckinpah, que queriam realizar o último trabalho de suas vidas antes de se “aposentarem”, mas eu sempre procuro investir nos negócios ou em qualquer situação da minha vida como se fosse dar também o meu “último golpe”, ou concretizar meu “último trabalho”. Isso não quer dizer, literalmente, que seja o último, mas quando desejamos alcançar certos objetivos na vida com sucesso fica a lição que devemos fazer o melhor do nosso melhor em todos os nossos empreendimentos como se fosse o último. Os homens de Pike Bishop (William Holden) não desistiram, e mesmo com o resultado que obtiveram no final, eles foram determinados, e nós também não devemos desistir, mesmo que nos sintamos decaídos em algum momento de nossas vidas. Assim, me descrevo em “The Wild Bunch”!


"Meu Ódio Será Sua Herança"



sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Winston McAnuff & Fixi – Festival MIMO – Praça Tiradentes – Ouro Preto/MG (30/08/2014)




Os três mandando ver
na histórica Praça Tiradentes
Sabe aquelas lances da vida que te surpreendem porque tu não tinhas prestado atenção na mensagem que o destino já tinha te dado? Pois a cenográfica Ouro Preto foi-me cenário para uma ocasião dessas. Afinal, só o destino explica porque Leocádia e eu cruzamos com aquela figura horas antes de iniciar o show que nos inebriaria e não o tenhamos reconhecido. Sim: topamos a centímetros com Winston McAnuff na histórica Praça Tiradentes durante uma de nossas caminhadas vespertinas pelas ruas da cidade. E mais: ele ficou nos mirando debruçado sobre uma mureta, com seus óculos escuros azuis e cabelos dread, como se nos convidasse para uma conversa, e... não o identificamos. Nem sequer puxamos a máquina fotográfica, que estava conosco!

Pois a nossa falta de oportunidade – e de informação –, talvez, não tenha sido à toa. Não sabíamos que aquela entidade negra que nos olhara tão de perto no local onde a plateia fica – e que, horas depois, seria por nós olhado daquele mesmo ângulo sobre o palco –, tratava-se de uma das lendas do reggae jamaicano, com passagem pela banda Inner Circle e de carreira solo consistente desde o final dos anos 70. Soma-se a isso o fato de que o jazzista Chick Corea, principal atração do Festival MIMO e motivo maior de termos ido até lá naqueles dias, cancelara seu show por não ter conseguido sair da Argentina em virtude da greve geral naquele país. Ou seja: não havíamos nos preparado para nenhuma outra programação. Mas, em contrapartida, se já soubéssemos o que presenciaríamos naquela noite não seria uma gratíssima surpresa assistir ao “Electric Dread”, como é apelidado, juntamente com outros dois (apenas dois!) músicos: o multi-instrumentista francês Fixi e o percussionista Marc Ruchmann. Somando, apenas três no palco. Mas tinham muitos ali, com certeza. Apoiado pelo espírito de Jah, a quem McAnuff invocou no começo da apresentação, eles deram um show memorável.
Fixi comandando a banda 
com seu acordeom

O show é baseado no álbum “A New Day”, projeto de McAnuff em colaboração com Fixi, de 2013. Aí começa a operar a benfeitoria do destino, pois tivemos a chance de ouvir as músicas do repertório primeiramente ao vivo, visto que, no estúdio, se não chegam a ser decepcionante, é bem menos impactante. Isso porque, ao vivo, o que se viu foi um trio totalmente tomado pelos sons, cada um a seu estilo, cada um com suas preciosidades.

Começando por Ruchmann, que mais parecia um monge tocador. Sentado ao fundo do palco de pernas cruzadas, ele combinava beat-box vocal com dois aparatos de bateria eletrônica e um prato em sua volta. Apenas. O suficiente para dar a impressão de que tinha todo o Olodum ali. Sua precisão e capacidade rítmica conseguiam imprimir com desenvoltura os mais variados climas e ritmos, indo do reggae ao dub, do punk rock ao trance. Já Fixi, arranjador e centro harmônico da banda, alternava piano, teclado e acordeom. Mas que acordeom! Parecia sair dali uns 20 instrumentos diferentes, de tão bem explorados o fole, o teclado e o diapasão. Além disso, o cara vibrava, dançava, girava alucinadamente a cabeça. Era contagiante sua entrega. E melhor: mantinha a base e não saía do tom jamais.

E o que falar de Winston McAnuff, então? Nossa: que cantor. Daqueles que cantam com a alma negra, como um Ray Charles ou Ibrahim Ferrer, mas que, acima de tudo, conhece a projeção da voz no ambiente ao vivo, sabendo usar as reverberações e extensões da própria emissão como poucos. Performático, lembrava, inevitavelmente, Bob Marley, haja vista a força espiritual e a influência que o “pai do reggae” tem na Jamaica. Mas não fica só nisso. Múltiplo e aberto a todos os ritmos do mundo, fez, com Fixi, o skank de Mandeville e o folk francês de Paris se aproximarem da tecno de Londres, do blues de St. Louis, do jazz de Chicago, do soul de Detroit, da polca Tcheca e até do baião nordestino!

McAnuff no palco do MIMO
sob a luz de Jah
A cada execução, íamos nos surpreendendo cada vez mais. Era uma melhor atrás da outra! Em “Garden of Love”, música de trabalho do disco, McAnuff remete ao fraseado de Bob e Tosh enquanto Fixi imprime-lhe um ar de folclore escandinavo, o mesmo com “1, 2, 3”, cujo riff de gaita é tão perfeitamente mantido que parece eletrônico, tal como a batida da percussão. “You and I”, funk com seu riff curto e repetitivo, é um James Brown afrobeat com ares de Jamiroquai e PIL. “Wha Dem Say”, outra espetacular, cadenciada e lírica, permitiu a McAnuff soltar o gogó sobre uma performance quase jazzística da dupla de instrumentistas. Já “Johnny” (personagem recorrente nas canções regueiras) é um misto de reggae e blues que, mais uma vez, deu a McAnuff a oportunidade de pôr o groove pelos pulmões, o que conquistou de vez a parcela do público que ainda se intimidara com o frio da noite de Ouro Preto.

A partir dali, com o público definitivamente cativado, foi só manter a mesma qualidade e alma. Exatamente o que aconteceu com “Heart of Gold”, de construção esquisita mas altamente pop; “A New Day”, linda, sustentada só no piano; e “Let Him Go”, com a qual o vocalista chamou a plateia para acompanhar no canto e nas palmas. Ainda “Things Happen”, drum’n’bass bem jazzy e minimalista e, para cair ainda mais nosso queixo, “Don’t Give Up” na qual Fixi simplesmente mandou no piano, na abertura, os acordes de “O Guarani”, do compositor brasileiro erudito Carlos Gomes!

No bis, mais surpresas. Depois de uma balada emocionante, tocaram, com ciência do que estavam fazendo, “If You Look”, um lindo baião-Gonzaga, que cresce no seu decorrer para se transformar em um trance atmosférico e sideral. Que musicalidade, que energia, que multiplicidade de ritmos. Se existe a world music, é aquilo que vimos. Momento realmente especial ter vivido aquilo sob a neblina cinematográfica da noite de Ouro Preto, atmosfera que nos impele, inevitavelmente, a certa sensação de ilusão. Chegamos a nos perguntar: “foi verdade?”. “O que o destino, Deus, Jah, quis nos dizer com o cancelamento do show de Corea, com aquela identificação de olhares que tivemos com McAnuff à tarde, e para coroar, com o maravilhoso show que assistimos?” Talvez as respostas nos faltem. Mas que foi verdade, foi. E foi demais.