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segunda-feira, 1 de abril de 2024

Debate filme "Bagdad Café", de Percy Adlon - Canal Cinema de Peso


Tem compromissos que são muito mais do que isso: são momentos de prazer. Imagina, então, eu, cinéfilo e apreciador de uma boa mesa, sentar pra bater um papo com amigos por quase 2 horas sobre o filme que eu mais gosto ever?! Os desejos se realizam, e foi isso que a galera do canal Cinema de Peso, comandada por meus colegas de Accirs Criba Aquino, Lauro Arreguy e Chico Izidro, me proporcionarem.

A saborosa e descontraída conversa, regada ao ótimo chop da Cervejaria Pohlmann, que nos recebeu, mais uns petiscos e uma deliciosa pizza da casa, teve como tema central o cult "Bagdad Café", do cineasta alemão Percy Adlon, meu filme preferido desde que o assisti pela primeira vez, em 1988, um ano depois de seu lançamento mundial. Como Criba bem observou, conseguimos destrinchar a obra, admirada por todos nós: direção, fotografia, trilha sonora, atuações, temática, motivações. E ainda ganhei uns mimos superlegais da galera.

Eu com os meninos: Chico, Criba e Lauro da esq. para a dir.

Uma coincidência melancólica motivou ainda mais o debate sobre "Bagdad Café" (ou "Out of Rosenheim", título alternativo dado em referência ao megasucessso da mesma época "Out of India", "Passagem para a Índia", de David Lean). Duas semanas antes da gravação - e após já ter escolhido este título para o episódio - Percy Adlon morreu. Claro que, desta forma, o encontro se tornou também uma homenagem a ele, autor de outros poucos mas belos filmes, como "Estação Doçura" e "Um Amor Diferente". Embora menos gabaritado que outros cineastas alemães (Wenders, Lang, Fassbinder, Murnau, Herzog), Adlon foi muito assertivo e dono de um belo estilo cinematográfico, que muitas vezes remete a estes conterrâneos.

Pessoalmente, o convite para participar do videocast me fez refletir sobre o porquê da prevalência justo deste pequeno conto filmado há tanto tempo em minha vida de cinefilia. O que justifica o amor a este filme mesmo tendo eu visto, conhecido e me apaixonado por tantos outros filmes ao longo destes quase 35 anos? Abismei-me com "Fahrenheit 451", "A Paixão de Joana D'Arc", "O Ano Passado em Marienbad", "A Marca da Maldade", "A Última Gargalhada", "Cabra Marcado para Morrer", "Parasita", "Sindicato de Ladrões". Pra citar apenas alguns dos que tive contato depois de "Bagdad Café", e nenhum o supera pra mim. A resposta é que não há uma explicação racional, pensada. "Bagdad Café" é aquele filme que me arrebata por todas as suas características juntas. Simples.

Mas o bate-papo foi muito mais do que isso que descrevo - ou mesmo diferente. Por isso, vale a pena assistirem. O Cinema de Peso e o filme, claro.

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Os presentinhos do Cinema de Peso, a começar por essas
lindas impressões dos cartazes originais

...bolach'e'nha...

...adesivos...

...e a caneca!


E o episódio do vídeocast do Cinema de Peso


Daniel Rodrigues

sábado, 9 de março de 2024

“Dias Perfeitos” , de Wim Wenders (2023)



INDICADO A
MELHOR FILME INTERNACIONAL


Teria muito para falar de Wim Wenders, de qualquer filme de sua extensa filmografia, de sua carreira, do namoro de seus filmes com a filosofia, das diversas fases e projetos diferentes, das obras-primas. Mas o que talvez dê mais prazer e uma alegria até ingênua é falar sobre a realização de um filme japonês de Wim Wenders. “Dias Perfeitos” é, acima de tudo, uma dessas delícias que cinéfilos admiram: um filme de um cineasta de um país realizado noutro e com total propriedade. Porque, sim, “Dias Perfeitos” é um filme japonês, produzido com verba japonesa, falado em japonês, com atores japoneses e cheio de referências ao cinema japonês. E um baita de um filme.

“Dias Perfeitos” acompanha com extrema delicadeza a história de Hirayama (Koji Yakusho, lindo e atorzaço), um homem de meia idade reflexivo que vive de forma modesta como zelador e limpando banheiros em Tóquio. Sua rotina é revelada ao espectador através da música que ouve, dos livros que lê e da apreciação das árvores, suas três paixões. À medida que os dias Hirayama avançam, encontros inesperados começam a surgir e passam a revelar um passado escondido, que jogam luz sobre os porquês da solidão, da fuga e da busca de sentido na vida moderna.

Wenders assumidamente faz uma homenagem e referencia seus mestres do Oriente: Akira Kurosawa, Kenji Mizoguchi e, principalmente, Yasujiro Ozu, sua grande paixão talvez apenas equiparável a Michelangelo Antonioni. É do Ozu de “A Rotina Tem seu Encanto” e “Era uma Vez em Tóquio”, cineasta já perscrutado por Wenders no documentário poético “Tokyo-Ga”, de 1985, que ele extrai o senso contemplativo de “Dias...”. Seja na extensão sem pressa do transcorrer das cenas, seja na posição baixa da câmera em determinadas tomadas, quase ao chão, seja na apreciação natural da ação, aproveitando o som direto e sem “interferência” de trilha sonora.

Tomada quase no chão ao estilo Ozu

Por falar em música, aliás, são elas que ajudam a conduzir o filme. Ou melhor: pontuá-lo. A bela seleção de K7s do personagem, a qual ele ouve no carro pelas ruas e avenidas de Tóquio (Otis Redding, Lou Reed, Nina Simone, Patti Smith, só coisa boa) geralmente indo ou voltando do trabalho, demarcam não apenas a busca dele por “dias perfeitos” como, igualmente, o conduzem a praticamente encontrá-los ao final. Como uma trilha que acompanha momentos da vida e traduz emoções. 

Como em “Paris, Texas”, “O Estado das Coisas” e “Além das Nuvens“, Wenders dá ao “decurso do tempo” (para usar outro título de filme seu) a forma e a estética, que se fundem. Mais uma vez captando com muita pertinência o espírito da terra em que se apropriou, o cineasta atribui aos silêncios (o “ma” da cultura oriental) uma função primordial para transmitir sentimentos de culpa, sofrimento, medo, frustração, angústia e, porque não, também de alegria. Em compensação, os diálogos são extremamente bem aproveitados, precisos como um golpe samurai. Vários são realmente tocantes, como o breve reencontro com a irmã abastada e de vida triste, que vai à sua humilde casa resgatar a filha, fugida de casa e de sua realidade para ter alguns dias de harmonia com o tio que tanto gosta.

Hirayama com a sobrinha: momentos
de contemplação e harmonia
A dialética entre o arcaico e o moderno é, contudo, o centro da trama. Isso faz remeter, mais profundamente analisando, a uma forma de se colocar no mundo. O anacronismo do tipo de música e a mídia que Hirayama tanto apreciava é um símbolo de algo em extinção, mas capaz de gerar uma genuína conexão do ser humano com a arte, embora isso não faça mais tanto sentido num mundo cada vez mais digitalizado e fragmentado. A busca por si próprio no isolamento e na circunspecção faz lembrar filmes em que este foi o refúgio existencial de personagens na procura pelo sentido da vida, casos de “Nascido e Criado”, de Pablo Trapero, “O Turista Acidental”, de Lawrence Kasdan, e o próprio “Paris, Texas”. Porém, assim como nestes exemplo, “Dias...”, em suas propositais repetições de cenas e na progressão emocional do protagonista ao longo da história, vota numa solução humana para as dificuldades. Perfeição não existe.

Embora torça para isso, dificilmente Wenders levará o Oscar de Filme Internacional. Sem o gigante “Anatomia de uma Queda” na disputa, uma vez que a produção francesa ganhadora da Palma de Ouro em Cannes concorre somente ao de Melhor Filme ao lado de favoritos como “Oppenheimer” e “Vidas Passadas”, o caminho para o elogiado longa alemão (mas um tanto superestimado) “A Zona de Interesse” vencer está facilitado. Porém, só o fato de ver no páreo um “Junger Deutscher” como Wenders, um verdadeiro esteta e revolucionário do cinema moderno, é quase que um prêmio adiantado a ele e a toda uma geração. Herzog, Schlöndorff, Fassbinder, Von Trotta, Kluge: estão todos representados com esta indicação. E não só eles, mas também, no caso, Ozu, Kurosawa, Mizogushi, Imamura, Oshima. Porém, talvez nem Wenders dê tanta importância a uma conquista como esta. Afinal, mesmo com o reconhecimento a uma obra de meio século como a dele, a Academia está longe de ser perfeita. Assim como os dias.

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trailer de "Dias Perfeitos", de Wim Wenders



Daniel Rodrigues


segunda-feira, 10 de abril de 2023

Philip Glass – "Koyaanisqatsi - Life Out of Balance - Original Soundtrack Album from the Motion Picture" (1983)

 

Versões da capa da trilha do filme
lançadas entre 1983 e 2009
Ko.yaa.nis.qatsi (da língua Hopi), n. 1. Vida louca. 
2. Vida turbulenta. 
3. A vida se desintegrando. 
4. Vida desequilibrada. 
5. Um estado de vida que exige outra forma de viver.

"'Koyaanisqatsi' permite que você experimente a aceleração e a densidade da sociedade moderna de uma nova maneira. Ele convida você a considerar a benevolência da tecnologia e a noção de progresso no mundo em que vivemos. Um mundo fora de equilíbrio".
Philip Glass


Um dos principais pensadores sobre a relação homem/meio ambiente dos tempos atuais, o cineasta alemão Werner Herzog disse, certa vez, que o engano da humanidade reside na falta de controle desta sobre seu próprio desenvolvimento. A ciência, a tecnologia, os avanços são soltados aos borbotões, numa corrida frenética desenvolvimentista que, a rigor, ninguém sabe onde vai dar. Suspeita-se, contudo, pois a natureza vem há tempos dando seus sinais. Se a Rio 92, há pouco mais de 30 anos ensinou o mundo a adotar a linguagem antes apenas restrita meramente à "ecológica", inserindo no seu vocabulário termos como “sustentabilidade”, “ESG”, “responsabilidade socioambiental” e afins, a agenda sustentável, por outro lado, não avançou tanto assim na prática. Os resultados da COP-27, em 2022, o mais importante e o maior evento já realizado sobre o tema das mudanças climáticas, foram parcos e inconsistentes. A crescente crise de energia, as concentrações recordes de gases de efeito estufa e o aumento de eventos climáticos extremos pelo globo colocam uma interrogação sobre a sociedade: ainda há tempo de reverter este quadro?

O alarme é ainda maior quando se constata que tais indagações urgentes não são de hoje. Há 40 anos uma obra referencial já trazia, com o devido peso e teor denunciativo, a questão do desequilíbrio causado pelo homem à natureza: “Koyaanisqatsi – Uma Vida Fora de Equilíbrio”. O filme do cineasta norte-americano Godfrey Reggio e produzido por Francis Ford Coppola, tornou-se rapidamente um cult movie desde seu lançamento, em 1982, prenunciando a realização de outros dois longas em formato semelhante, "Powaqqatsi - A Vida em Transformação", de 1988, e "Naqoyqatsi", de 2002, todos dirigidos por Reggio. Todos documentários experimentais forjados com imagens espetaculares sobre as consequências da mão humana sobre o Planeta e cuja trilha sonora é assinada pelo genial compositor Philip Glass. Embora a trilogia mereça total audiência, é o primeiro da série aquele que mudou parâmetros tanto do cinema quanto da música moderna. E não se está falando somente da música de vanguarda ou “erudita”, mas, sim, da música pop. Isso porque a trilha sonora de “Koyaanisqatsi”, lançada em disco um ano depois do filme, passou a servir de referência a publicidade, cinema e demais produtos sonoros e audiovisuais com que se deparam milhões de pessoas todos os dias ao acessarem seus celulares ou ligarem um aparelho de TV.

Entretanto, é a pungência da proposta de “Koyaanisqatsi”, inédita até então em formato e proposta, que a faz uma obra referencial. Meio sinfonia, meio ópera, meio vídeoarte, “Koyaanisqatsi” tem uma narrativa até simples comparado à complexidade de sua trilha sonora e de sua montagem. Os povos originários, com sua sabedoria inata e imaterial, prenunciam que o homem caminha para o próprio cadafalso. A natureza, pujante, apresenta-se em sua majestade quase intocada. Porém, integra inevitavelmente esta mesma natureza uma espécie animal que soube valer-se de artifícios biológicos e etológicos para perpetuar sua sobrevivência e passar a supostamente comandar o rumo da biosfera: um tal de homo sapiens. Este ser é capaz de, por meio de sua interferência negativa sobre a natureza e com a justificativa de progresso da própria espécie, desequilibrar todo o sistema vital. Após uma enganosa escalada desenvolvimentista, a realidade de destruição e desrespeito com a Mãe-Terra cobra o preço e os as profecias ancestrais se concretizam tragicamente.

Uma das versões de poster
do filme de Reggio
Com a ajuda do Polyrock Kurt Munkacsi na produção, Glass desembaraça esta narrativa em brilhantes 13 peças/faixas onde, absolutamente integrado com o corpo imagético do filme, não desaproveita com sua ensemble nem os ruídos de multidão e o momento de créditos finais para musicar. Tudo muito orgânico. A faixa título, um sinistro canto nativo em tom baixo, acompanhado de um órgão igualmente denso, pronuncia apenas o próprio título: “Koyaanisqatsi”. Aqui já começa a genialidade atemporal de Glass, compositor talhado na vanguarda minimalista dos Estados Unidos da geração anos 60, mas que sempre soube conciliar esta visão contemporânea à tradição musical secular. Nesta abertura, ao mesmo tempo em que se escutam aborígenes encavernados, é possível identificar traços do canto gregoriano, criado à época do cristianismo primitivo, a meados do século VII. Já “Organic” acompanha os impactantes planos aéreos de cânions e rios através de sons leves e anunciativos. “Clouds”, porém, adiciona a esta solenidade sons refletidos e longilíneos acordes de clarinete, dando maior tensão e grandiosidade à música. É a natureza em sua imponência. 

Imponência ameaçada, contudo. “Resource”, colada à anterior, quebra de vez a linha sonora e adiciona sons eletrônicos em repetições mecânicas e contínuas. O bicho-homem chegou. A paisagem das montanhas é desfigurada por explosões e máquinas pesadas, que trazem consigo o pretenso progresso. Para isso, Glass engendra sons nervosos e automáticos. O teclado vira sirenes gritantes sustentadas por intensas sessões de cordas. Não é mais a natureza que emite sons: é a consequência da mão humana, com suas máquinas implacáveis e sem alma. A pequena orquestra, fervorosa, corre para dar conta da velocidade da tecnologia simbolizada pelos teclados. Fábricas soltam seus vapores poluidores. Extensos campos são invadidos por estruturas de ferro e metal. Rios são desviados deu seu curso. Uma bomba explode em fogo sob o olhar indefeso de uma árvore...

Todas as maravilhas que o homem cria agora estão à disposição para consumo. Carros, aviões, estradas, arranha-céus. A fantástica “Vessels” aprofunda o conceito denunciativo de “Resource” ao manter a base minimalista, mas adicionando-lhes poderosas vozes. E não mais as vozes dos povos originários do início da obra, mas corais bem mais clássicos, com tons agudos e variações de escala expressando autodevoção e fascínio. É o ser humano, crendo-se Deus e apaixonado pela própria inteligência. E não há mais freio a tamanha adulação: quer-se cada vez mais e mais apressadamente. Dentro da mesma faixa, Glass promove outra quebra brusca de ritmo e passa a empregar uma conjugação do órgão, flautas e as mesmas vozes deslumbradas em células sonoras repetidas em cinco tempos para representar o frenesi do trânsito de automóveis, símbolo da indústria capitalista. Só que o compasso se torna ainda mais frenético, começando a sair do apreensível, justo quando imagens de equipamentos bélicos são mostradas. Nenhuma coincidência.

“Pruitt Igoe” ensaia um adagio que tenta reduzir tanta impulsividade. Porém, já é impossível. A própria música, à medida que avança, vai ganhando corpo e novas formas de tensão, principalmente quando se veem as assombrosas imagens de prédios de arrabalde inteiros sendo implodidos para dar lugar ao mentiroso circo do capital. A confusão da percepção de tempo é trazida com alta sensibilidade em “SloMo People”, onde pessoas ora parecem formigas numa multidão movida em altíssima velocidade, ora estão num igualmente artificial slow-motion, como o título bem sugere. De propósito, elas nunca são enquadradas tal como a realidade é. Sutilmente, Glass impõe um compasso de dois tempos, os quais simbolizam o passo de um caminhar. Passos lentos, aliás, supondo que algo está claramente descompassado. 

O compositor mantém a estrutura dual para iniciar aquele que é o mais chocante tema de “Koyaanisquatsi”: “The Grid”. Agora, perde-se de vez o controle do destino. Usando sua assinatura sônica, os sistemas de ostinatos rítmicos (motivos ou frases musicais sempre repetidos). tal como em "Rubric", das "Glassworks", de um ano antes, Glass põe agora, inversamente ao que fez antes, as flautas e piccolos sobre uma base de sintetizador grave e num ritmo convulsivo. Enquanto isso, na tela, são expostos vídeos super acelerados de carros, fábricas, supermercados, filas, telas. Movimentos tão velozes que formam traços de luzes incompreensíveis ao olho do espectador. São minutos de imagens carregadas, labirínticas, mostrando a loucura da vida cotidiana de uma metrópole. A música, por sua vez, soa vertiginosa e espiral. As vozes reaparecem com as mesmas frases e variações delas para intensificar e ratificar a lógica narrativa. Sufocante, mas genial.

cena do filme com a trilha de "The Grid": a corrida maluca da vida moderna

A breve “Microchip” (em que inteligentemente Reggio traça um comparativo de imagens de satélite das cidades com as de estruturas destas minúsculas peças de silício, as quais compõem a “alma” dos artefatos digitais) funciona como um movimento larghetto, que reequilibra o andamento. Afinal, impossível andar mais rápido do que aquilo. Este breve “knee”, no entanto, é a deixa para que Glass volte àquilo que motivou toda a obra desde o começo: a tal profecia. Criador e criatura, é o homem que tem o bônus e o ônus dos próprios atos. Assim, a música se torna um andante, porém a construção melódica começa a parecer errática. As repetições, antes simétricas, independentemente se num compasso moderado ou ligeiro, agora se tornam quebradas, inconclusas. Como uma máquina que apresentou defeito e passa a funcionar mal. Forma-se uma sucessão de sons em que as repetições denotam a prisão a que o homem se colocou: não é mais possível sair daquele círculo, que vai e volta, sem se resolver. As vozes, então, passam a conviver e a se confundirem: o coral se aproxima agora do cantochão gregoriano e o canto ancestral retraz, convicto, aquilo que já avisava: “Koyaanisquatsi”.

A cena final, um extenso plano sequência de um acidente com um ônibus espacial, profetiza, através de sua crítica ao desenvolvimento a qualquer custo, o famoso acidente com a Challenger em 1986, quando, 73 segundos após o seu lançamento, a espaçonave explodiu em pleno ar, matando todos os sete astronautas tripulantes. Para este derradeiro ato, Glass emudece todos os outros instrumentos e opta por manter apenas o órgão, que agora não tem mais caráter tecnológico, mas sim litúrgico, como uma missa fúnebre. O morto? Claro, o próprio homem. 

Assim como Herzog, o paleontólogo e biólogo evolucionário britânico Henry Gee, editor sênior da revista científica Nature, tem uma visão nada alentadora do que pode acontecer com o planeta. Aliás, no caso de Gee, ainda mais pessimista. Segundo ele, se a humanidade seguir a tendência atual, a espécie humana corre sérios riscos de entrar em extinção ou, pelo menos, ser reduzida a um número bem restrito de indivíduos. A se ver pelo atraso em se tomar medidas efetivas, o prognóstico não pode ser diferente. Isso fica escancarado quando se vê que, quatro décadas atrás, Reggio e Glass já se uniam para lançar este manifesto fílmico-sonoro em que a simbiose entre imagem e música simboliza justamente a necessidade de integração homem-natureza. Um não pode viver sem o outro. Se hoje a ideia de motivos sônicos desta trilha são largamente imitados para inumeráveis produtos audiovisuais, de comerciais de televisão a jogos de videogame, de posts em redes sociais a outras trilhas para cinema, a mensagem ecológica que a obra traz bem que poderia ser copiada também. Visionário, o filme previa com assombrosa clareza uma série de questões hoje em pauta na sociedade moderna. E embora em seu decorrer sejam cantados outros versos (principalmente, no último movimento), “Koyaanisqatsi” se resume basicamente a este termo exótico, mas que traduz o mais óbvio e essencial alerta: se não houver uma radical mudança de comportamento planetária, este “mundo em desequilíbrio” está com dias contados. E o homem também.

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FAIXAS:
1. “Koyaanisqatsi” - 3:27
2. “Organic” - 4:57
3. “Clouds” - 4:38
4. “Resource” - 6:36
5. “Vessels” - 8:13
6. “Pruitt Igoe” - 7:51
7. “Pruitt Igoe Coda” - 1:17
8. “Slo Mo People” - 3:20
9. “The Grid – Introduction” - 3:24
10. “The Grid” - 18:06
11. “Microchip” - 1:47
12. “Prophecies” - 10:34
13. “Translations & Credits” 2:11
Todas as composições de autoria de Philip Glass

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Minhas 5 atuações preferidas do cinema

Brando: imbatível
Recebi do meu amigo e colega de ACCIRS Matheus Pannebecker o convite para participar de uma seção do seu adorável e respeitado blog Cinema e Argumento. A missão: escolher três atuações que me marcaram no cinema. Ora: pedir isso para um cinéfilo que adora elaborar listas é covardia! Claro, que topei. Não só aceitei como, agora, posteriormente à publicação do blog de Matheus, amplio um pouquinho a mesma listagem para compor esta nova postagem. Não três atuações inesquecíveis, mas cinco. 

Obviamente que ficou de fora MUITA coisa digna desta mesma seleção: Michel Simon em “Boudu Salvo das Águas” (Jean Renoir, 1932), Lima Duarte em “Sargento Getúlio” (Hermano Penna, 1983); Steve McQueen em “Papillon” (Franklin J. Schaffner, 1973); Marília Pêra em “Pixote: A Lei do Mais Fraco” (Hector Babenco, 1981); Toshiro Mifune em “Trono Manchado de Sangue” (Akira Kurosawa, 1957); Klaus Kinski em “Aguirre: A Cólera dos Deuses” (Werner Herzog, 1972); Fernanda Montenegro em “Central do Brasil” (Walter Salles Jr,, 1998); Dustin Hoffman em “Lenny” (Bob Fosse, 1974); Sharon Stone em “Instinto Selvagem” (Paul Verhoven, 1992); Al Pacino em “O Poderoso Chefão 2” (Francis Ford Coppola, 1974)... Ih, seriam muitos os merecedores. Mas fiquemos nestes cinco, escolhidos muito mais com o coração do que com a razão.

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Marlon Brando
“O Poderoso Chefão" (Francis Ford Coppola, 1972)
Há momentos na história da humanidade que a arte sublima. É como um milagre, uma mágica. Isso, não raro, provêm dos grandes gênios que o planeta um dia recebeu. Sabe Jimi Hendrix tocando os primeiros acordes de “Little Wing”? Pelé engendrando o passe para o gol de Torres em 70? A fúria do inconcebível de Picasso para pintar a Guernica? A elevação máxima da arte musical da quarta parte da Nona de Beethoven? Na arte do cinema este posto está reservado a Marlon Brando quando atua em “O Poderoso Chefão”. Assim como se diz que nunca mais haverá um Pelé ou um Hendrix ou um Picasso, esse aforismo cabe a Brando que, afora outras diversas atuações dignas de memória, como Vito Corleone atingiu o máximo que uma pessoa da arte de interpretar pode chegar. Actors Studio na veia, mas também coração, intuição, sentimento. Tão assombrosa é a caracterização de um senhor velho e manipulador no filme de Coppola que é quase possível se esquecer que, naquele mesmo ano de 1972, Brando filmava para Bertolucci (em outra atuação brilhante) o sofrido e patológico Paul, homem bem mais jovem e ferinamente sensual. Pois é: tratava-se, sim, da mesma pessoa. Aliás, pensando bem, não eram a mesma pessoa. Um era Marlon Brando e o outro era Marlon Brando.

cena inicial de "O Poderoso Chefão"



Giulieta Masina
“A Estrada da Vida” (Federico Fellino, 1954)
“A Estrada da Vida” é sem dúvida um dos grandes filmes de Federico Fellini. Sensível, tocante e levemente fantástico. Nem a narrativa linear e de forte influência neo-realista – as quais o diretor foi se afastando cada vez mais no decorrer de sua carreira em direção a uma linguagem mais poético e surrealista – destaca-se mais do que considero o ponto alto do filme: as interpretações. À época, Fellini se aventurava mais nos palcos de teatro e nas telas, basta lembrar do lidíssimo papel de “deus” no episódio dirigido pelo colega Roberto Rosselini no filme “O Amor” (1948). Talvez por essa simbiose, e por ter contado com o talento de dois dos maiores atores da história, Anthony Quinn (maravilhoso como Zampano) e, principalmente, da esposa e parceira Giulieta Masina na linha de frente, “A Estrada da Vida” seja daquelas obras de cinema que podem ser considerados “filme de ator”. Considero Gelsomina a melhor personagem do cinema italiano, o que significa muita coisa em se tratando de uma escola cinematográfica tão vasta e rica. Não se trata de uma simplória visão beata, mas o filme nos põe a refletir que encontramos pessoas assim ao longo de nossas vidas e, às vezes, nem paramos para enxergar o quanto há de divino numa criatura como a personagem vivida por Giulieta. Reflito sobre a passagem de Jesus pela Terra, e o impacto que sua presença causava nas pessoas e o que significava a elas. Se ele não era “deus”, era, sim uma pessoa valorosa entre a massa de medíocres e medianos. Gelsomina, com sua pureza e beleza interior quase absurdas, parece carregar um sentimento infinito que poucas pessoas que baixam por estas bandas podem ter – ou permitem-se. E é justamente essa incongruência que, assim como com Jesus, torna impossível a manutenção de suas vidas de forma harmoniosa neste mundo tão errado. Tenho certeza que foi por esta ideia que moveu Caetano Veloso a escrever em sua bela canção-homenagem à atriz italiana, “aquela cara é o coração de Jesus”.

cena de "A Estrada da Vida"



Leonardo Villar
“O Pagador de Promessas” (Anselmo Duarte, 1960)
Sempre quando falo de grandes atuações do cinema, lembro-me de Leonardo Villar. Assim como Giulieta, Brando, Marília, Toshiro, De Niro, Pacino, Emil ou Lorre, o ator brasileiro é dos que foram além do convencional. Aqueles atores cujas atuações são dignas de entrar para o registro dos exemplos mais altos da arte de atuar. Sabe quando se quer referenciar a alguma atuação histórica? Pois Leonardo Villar fez isso não uma, mas duas vezes – e numa diferença de 5 anos entre uma realização e outra. Primeiro, em 1960, ao encarnar Zé do Burro, o tocante personagem de Dias Gomes de “O Pagador de Promessas”, o filme premiado em Cannes de Anselmo Duarte (na opinião deste que vos escreve, o melhor filme brasileiro de todos os tempos). Na mesma década, em 1965, quando vestiu a pele de Augusto Matraga, do igualmente célebre “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, de certamente o melhor filme do craque Roberto Santos rodado sobre a obra de Guimarães Rosa. Dois filmes que, soberbamente bem realizados não o seriam tanto não fosse a presença de Villar na concepção e realização dos personagens centrais das duas histórias. Ainda, personagens literários que, embora a riqueza atribuída por seus brilhantes autores, são - até por conta desta riqueza, o que lhes resulta em complexos de construir em audiovisual - desafios para o ator. Desafios enfrentados com louvor por Villar.

cena de "O Pagador de Promessas"



Emil Jannings
"A Última Gargalhada" (F. W. Murnau, de 1924)
Falar de Emil Jannings é provocar um misto de revolta e admiração. Revolta, porque, como poucos artistas consagrados de sua época, ele foi abertamente favorável ao nazismo, tendo sido apelidado pelo próprio Joseph Goebbels como o "O Artista do Estado". Com o fim da Guerra, nem o Oscar que ganhou em Hollywood em 1928 por “Tentação da Carne”, o primeiro da Melhor Ator da história, lhe assegurou salvo-conduto no circuito cinematográfico, do qual foi justificadamente banido.  Porém, é impossível não se embasbacar com tamanho talento para atuar. O que o ator suíço faz em “A Última Gargalhada”, clássico expressionista de F. W. Murnau, de 1924 é digno das maiores de todo o cinema. Que personagem forte e cheio de nuanças! A expressividade teatral, comum às interpretações do cinema mudo, são condensadas pelo ator numa atuação que se vale deste exagero dramatúrgico a favor da construção convincente de um personagem inocente e puro de coração. Com apenas 40 anos Jannings, que alimentava pensamentos fascistas, transfigura-se num idoso bonachão e humano. E tudo isso sem “pronunciar” nenhuma palavra sequer! Joseph Von Steiberg ainda o faria protagonizar um outro grande longa alemão, o revolucionário “O Anjo Azul”, em que contracena com a então jovem diva Marlene Dietrich, mas a mácula nazi não o deixaria alçar mais do que isso. Para Jennings, a última gargalhada foi dada cedo demais.

cena de "A Última Gargalhada"



Robert De Niro
"Touro Indomável" (Martin Scorsese, 1980)
Têm atuações em cinema que excedem o simples exercício da arte dramática, visto que representam igualmente uma prova de vida. Foi o que Robert De Niro proporcionou ao interpretar, em 1980, o pugilista ítalo-americano Jake LaMotta (1922-2017) em “Touro Indomável”, de Martin Scorsese. Desiludido com os fracassos que vinha acumulando desde o sucesso de crítica “Taxi Driver”, de 4 anos antes, o cineasta só vinha piorando a depressão com o uso desenfreado de cocaína. Somente uma coisa podia lhe salvar. A arte? Não, os amigos. De Niro, a quem Scorsese havia confessado que não iria mais rodar jamais na vida, convenceu-o a aceitar pegar um “último” projeto, que contaria a biografia do “vida loka” LaMotta. Claro, o ator, parceiro de outros três projetos anteriores de Scorsese, se responsabilizaria pelo personagem principal. Por sorte, o destino provou a Scorsese que ele estava errado em sua avaliação negativa e o recuperou para nunca mais parar de filmar. “Touro...”, uma das principais obras-primas da história cinema, é não só o melhor filme do diretor quanto a mais acachapante das atuações de De Niro. As “tabelinhas” dele com Joe Pesci, a qual o trio repetiria a dose nos ótimos “Os Bons Companheiros” e “Cassino”, começaram ali. Prova da capacidade de mergulho de um ator no corpo de um personagem, De Niro vai do físico de atleta, parecendo muito maior do que ele é de verdade, à obesidade de um homem decadente e alcoólatra. Fora isso, ainda tem a tal cena de quando LaMotta é preso em que, numa crise de fúria, ele esmurra a parede da cela, cena na qual De Niro, tão dentro do personagem, de fato quebra a mão.“Eu não sou um animal!”, bradava. Eu diria que é, sim: um “cavalo”, daqueles de santo que recebem dentro de si entidades.

cena de "Touro Indomável"


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 17 de maio de 2021

“Nosferatu: Uma Sinfonia do Horror”, de F. W. Murnau (1922) vs. “Nosferatu: O Vampiro da Noite”, de Werner Herzog (1979)

 

Seja no futebol ou no cinema, têm enfrentamentos que se pode dizer que metem medo. Colocar frente a frente os dois “Nosferatu”, as adaptações mais conhecidas do romance de horror “Drácula”, do escritor britânico Bram Stocker, é um desses que dá aquele frio na espinha mesmo antes de a partida começar. Qual time é mais “mordedor”? Qual deles “ataca” mais? Qual saberá se valer melhor do “elemento surpresa”? Qual escola conseguirá superar a outra? Indagações que os comentaristas se fazem, mas que ninguém sabe ao certo as respostas até o certame ser definido ali, dentro das quatro linhas, olho no olho, dente por dente.

 Os retrospectos das duas equipes são de amedrontar qualquer adversário. São duas forças do futebol alemão, inegavelmente. De um lado, aquela que é considerada a obra-prima do Expressionismo Alemão: “Nosferatu: Uma Sinfonia do Horror”, de F. W. Murnau, de 1922. Produto do período Entre-Guerras, é um ícone máximo de uma escola de cinema, incorpora uma série de inovações, tanto técnicas (como o uso do contraste negativo, a expressividade do jogo de luz e sombra, a cenografia distorcida, a maquiagem carregada) quanto narrativas, tornando-se referência para todo e qualquer filme de terror até os tempos atuais. Do outro, “Nosferatu: O Vampiro da Noite”, de Werner Herzog, de 1979, a versão muito bem elaborada pela leitura de outra referencial escola cinematográfica, mas esta do pós-Guerra, o Novo Cinema Alemão, do qual o cineasta, um dos grandes expoentes, tinha como parceiros de movimento nomes como Win Wenders, Margarethe Von Trotta, Volker Schlöndorff e Rainer Werner Fassbinder.

Mas por que se lê “Nosferatu” e não “Drácula” nos uniformes? Porque, na década de 20, oito anos após a morte de Bram Stocker, a família do escritor não queria ceder os direitos para a obra ser filmada. Além da mudança do título, o vampiro titular se tornou o Conde Orlock na a primeira versão. Jonathan Harker foi rebatizado para Thomas Hutter, Lucy Harker tornou-se Ellen Hutter e Abraham Van Helsing virou Professor Bulwer. Nos anos 70, com esse impasse superado, Herzog consegue utilizar os nomes originais, mas mantém o roteiro (e o título) do filme mudo. Ambos, porém, são baseados na trama do livro “Drácula”: um homem faz uma viagem de negócios para um fantasmagórico castelo, onde o vampiro quer seduzir sua noiva. Em ambos há também o acréscimo de alguns elementos para mudar um pouco a obra original e, claro, disfarçar a inspiração, como a ideia de que a luz do sol mata os vampiros.

Schreck e Kinski: vampiros de atuações matadoras
Mas chega de pré-jornada. Vamos, de fato, à jornada em si, aquela que vai da pacata Wisborg rumo à assustadora mansão nos Montes Cárpatos. Depois daquele papo motivacional nos vestiários (“quero ver todo mundo dar sangue hoje!”, “vâmo entrar mordendo!”, “se passar por ti, gadunha!”, etc.), é hora de enfrentar aquele friozinho na barriga e entrar em cena de vez. A bola (fita) vai rolar! Poucos minutos decorrem e já se percebe que o jogo vai ser, como diz na linguagem do futebol, “pegado”. Esquemas espelhados em campo: marcação no cangote do adversário, mas sem perder a qualidade quando vão pra frente. O filme de Murnau começa fazendo o contraste necessário da proposta expressionista: cenário bucólico e iluminado ao mostrar a vida de Hutter antes de chegar à Transilvânia, local onde a atmosfera, agora sombria, sem profundidade e claustrofóbica, se transforma em algo sinistro, gótico. Já Herzog prefere adicionar ao expressionismo o qual homenageia aspectos barrocos do período medieval em que a trama transcorre, seja na fotografia e direção de arte quanto no aspecto cênico, retirando um pouco da carga romântica típica do expressionismo (os arroubos emocionais, as expressões exageradas) e incluindo maior naturalidade às interpretações. Futebol moderno, mais prático. Estratégias que mostram estilos diferentes: um mais cru, mais objetivo; o outro, mais elaborado, mais híbrido e, assim, o placar permanece no zero.

O páreo segue duro quando se fala dos atores que interpretam Conde Orlock/Drácula: Max Schreck e Klaus Kinski. Igual Luis Suárez na Copa de 2014, os dois disputam cada centímetro do gramado na base da dentada! Imbuído do espírito expressionista de uma interpretação mais teatral e hiperbólica, o ator do primeiro simplesmente cria um ícone do cinema. Além dos olhos esbugalhados, da maquiagem distorcedora e da expressão de mistério, seu trabalho corporal compõe o personagem: gestos lentos, passos curtos, costas curvadas, mãos contorcidas, semblante esquelético e braços colados ao corpo (como que recém saído do caixão). No entanto, Kinski não fica para trás. Ele – com quem Herzog havia rodado anos antes o excelente mas traumático “Aguirre: A Cólera dos Deuses”, em que Kinski quase enlouqueceu a equipe a ao próprio cineasta com ataques de sua própria cólera – usa sua fúria natural para assimilar o que Schreck lhe legara, porém valendo-se muito bem de um elemento ao qual o outro não tinha condições de aproveitar à época da primeira realização: a comunicação sonora. Kinski, que é louco mas não é bobo, dota seu vampiro de voz e de sons guturais e animalescos, que o fazem parecer ainda mais com um assombroso morcego. Não disse que era páreo duro? Nem a destreza cênica de Kinski, entretanto, é capaz de superar a invenção de uma forma de atuar e a marcante personificação de um mito da cultura ocidental quando se fala em histórias de terror. Afinal, o que seria de um Freddie Krugger ou dos filmes de zumbis se não fosse esse grotesco vilão? Sim: Schreck mostra os dentes e marca o primeiro. E não dá pra dizer que foi descuido da defesa, não! Foi, sim, total habilidade do atacante. 1 x 0 pra “Nosferatu” de 22.

Acontece que, como deu pra perceber, o remake não veio só pra reverenciar, mas para disputar palmo a palmo. E qual a tática que usa para isso? Valorizar o que tem de diferencial. Bruno Ganz e Isabelle Adjani como casal Harker é um desses pontos, e quase marcam gol. Momento de pressão do time mais jovem (se é que dá pra falar disso de um cara como Drácula, com 200 anos de idade). Os atores são um elemento do esquema tático que se soma ao uso da cor desmaiada da foto de Jörg Schmidt-Reitwein e da trilha da banda krautrock Popol Vuh, constantes colaboradores de Herzog àquele época e corresponsáveis pelo climatização sonora de seus filmes. No volume de jogo, “Nosferatu” de 1979 empata a partida: 1 x 1.

 

O pavor das mocinhas Greta Schröder (como Ellen Hutter) e Isabelle Adjani (Lucy Harker)

Mas o primeiro “Nosferatu” não se intimida e segue propositivo, assustando (literalmente) a cada vez que chega na área. Time entrosado, em que os jogadores trocam passes em silêncio, sem trocar uma palavra sequer. Mas nem precisa! Eles cercam o adversário quando estão sem a bola, diminuindo os espaços. E quando vão pra cima, meus amigos! É bola na trave, é sequência de escanteios, é defesa daquelas sobrenaturais do arqueiro, é salvada do zagueiro e cima da linha. Na gíria futebolística: “Nosferatu” bota terror! Eis então que o longa mudo desempata novamente a partida com a sequência da chegada de Orlock com o navio cheio de ratos trazendo a peste à cidade, momento em que não apenas impressionam as cenas dele andando pelas ruas com o caixão nos braços quanto o filme de Murnau se vale de efeitos visuais bem ousados para sua época. 

Não leva muito tempo, porém, e o desafiante, num contra-ataque, digamos, “letal”, altera o placar mais uma vez! Que jogo histórico estamos presenciando! Mais do que histórico: secular! Aproveitando-se exatamente desta sequência do desembarque da nau pesteada a Wisborg, que corresponde ao 4º ato do filme original, o professor Herzog intensifica ainda mais a atmosfera fantástica e põe milhares de ratos a invadirem as ruas da cidade. Que coisa apavorante! Isso é que se chama de povoar o campo do adversário! O jogo está indo para seus 15 minutos finais e o que se vê no marcador é 2 x 2. Tudo igual mais uma vez. Os ânimos vão ficando cada vez mais nervosos. O juiz, ao perceber as entradas estão cada vez mais fortes e que dos dois times, que têm tendência a machucar, estão querendo tirar sangue do adversário, distribui alguns cartões para colocar um freio. Se não a coisa descamba, Arnaldo!


Filmes "Nosferatu" completos: de 1922 e de 1979





Acontece que time que sabe que é grande não se amedronta fácil. O filme de Murnau sabe que representa não só um marco no cinema mundial como, em termos históricos, artísticos e sociológicos, uma síntese dos tempos pré-nazismo. A psicanálise, a industrialização e, principalmente, a 1ª Guerra, traumatizaram o mundo dos anos 20. A Alemanha, inferiorizada e pobre, tinha nas diversas correntes artísticas daquele período manifestos desta conturbação. Um deles, dos mais bem sucedidas enquanto forma de arte, é justamente o Expressionismo Alemão, o que se vê em obras como esta ou “O Gabinete do Dr. Caligari” (1919), “As Mãos de Orlac” (1924), “Fausto” (1926) e “Metrópolis” (1922). Dá pra dizer que “Nosferatu” de Murnau não é apenas um filme: trata-se da invenção de uma escola, da demarcação de um estilo, da mais profunda manifestação artística de uma real onda sombria a qual não só se intuía como, infelizmente, se concretizaria no Holocausto anos depois.

A inigualável cena da sombra 
subindo a escada
Não tem como segurar um time desses, né? Pois é o que acontece. A “sinistra” qualidade técnica do filme dos anos 20, como a montagem precisa, o uso mimético dos planos de câmera e a adequação da luz à simbologia cênica fazem o time crescer para cima da sua vítima. A cena de Orlock subindo as escadas e levando a mão à maçaneta da porta da casa de sua pretendida, como se apenas a sombra agisse, é daquelas jogadas que somente os grandes ousam. O cinema noir até hoje agradece por esta cena, sem a qual dificilmente este movimento cinematográfico existiria. Além disso, o aspecto altamente erótico, que envolve desejo, medo e morte, outra ousadia que certamente impacta mais em um filme do início do século para um mais ao final deste. Herzog, um técnico honesto e sensato, no fundo sabe que seu lugar na história cinematográfica é de um renovador e não de pioneiro como o seu adversário, a quem ele reverencia. Por isso, ciente do seu tamanho, Herzog não se mete a besta em “copiar” a cena com o seu Conde Drácula, e é justo nesse detalhe que a partida se define: 3 x 2 para o clássico “Nosferatu”. E está fechado o caixão!

Planos parecidos em jogo de esquemas táticos espelhados:
bem acima, cena da aparição de Nosferatu no navio;
abaixo, o vampiro sai da tumba; ratos, muitos ratos,
levam a peste para a cidade; por fim, a luz do sol,
mortal para um vampiro que salva os homens
da criatura das trevas.


Num confronto tenso, com sustos para os dois lados, 
defesas mordedoras e ataques afiados como caninos, 
“Nosferatu: O Vampiro da Noite” faz um jogo de igual 
pra igual com o seu original, “Nosferatu: Uma 
Sinfonia do Horror”. Mas a camiseta – ou melhor, 
a capa – pesa nessas horas, e nos 10 minutos 
finais, quase ao apagar das luzes (ou seria ao
“acender das luzes” quando mata o vampiro... 
ah, sei lá!), o clássico de Murnau se impõe 
como grande obra-prima da história do cinema 
e crava! Opa, o placar, não os dentes! 
Não pensem que, no entanto, por ser disputada, 
a partida foi feia, desleal ou tenha partido para a
 violência gratuita. Não! Muita qualidade 
para os dois lados, agressividade na medida certa 
e atuações dignas de duas escolas campeãs. 
Placar justo em um clássico bem jogado.






Daniel Rodrigues

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Chico Buarque - "Vida" (1980)

O disco de uma vida



 

“Vida, minha vida/ Olha o que é que eu fiz?”
Versos iniciais da música “Vida”

“- Parecia que aquele disco branco marcava já um Chico mais sereno...
- Já vejo diferente. Vejo um disco bastante angustiado. Se a gente continuar dividindo o trabalho, você vai ter, desde ‘Construção’ até ‘Meus Caros Amigos’, toda uma criação condicionada ao país em que eu vivi. Tem referências a isso o tempo todo. Existe alguma coisa de abafado, pode ser chamado de protesto.”
Entrevista de Chico Buarque à Rádio Eldorado, em 1989

No final dos anos 90, Porto Alegre presenciou um encontro histórico e inédito na Casa de Cultura Mario Quintana de duas figuras icônicas da cultura brasileira: Luis Fernando Verissimo e Chico Buarque. Mais do que as falas inteligentes e bem humoradas vindas de ambos, no enquanto, uma imagem captada pelas câmeras que registravam o bate-papo entre o gaúcho e o carioca ficou marcada em minha memória já que eu, igual a milhares de outros porto-alegrenses menos afortunados, contentava-me em assistir pela televisão por não poder estar presente devido à rápida lotação do evento preenchida dias antes. A imagem era a de um espectador da plateia, que carregava em seu colo um LP de Chico. Com a capa um tanto surrada pelos anos de fabricação e, certamente, constante uso na vitrola de sua casa, era com ela que iria enfrentar uma quilométrica fila após o evento para ganhar um autógrafo do autor. 

Não sei se conseguiu os valiosos garranchos, mas este moço, um homem de uns 30 e poucos anos, ouvia compenetrado a conversa daqueles dois geniais artistas, concentração esta que fazia com que a expressão do seu rosto se assemelhasse com a da capa do disco que portava como uma relíquia: um primeiro plano em tom sépia-esverdeado sobre um árido fundo branco do rosto de um Chico Buarque maduro, na faixa dos 40 anos, com o olhar igualmente sério e penetrante desenhado pelas mãos habilidosas de Elifas Andreato. Aquele lance fortuito em meio a uma atração infinitas vezes mais importante formava, contudo, uma duplicidade bastante simbólica para aquela situação. O jeito como o rapaz segurava o disco, com as duas mãos, com tamanha devoção e carinho, como que a um filho, como se realmente carregasse uma vida consigo, dava a dimensão da significância do encontro, da existência daqueles dois imortais e da obra de Chico. Da importância sentimental do referido disco para aquele fã e para outros igualmente a ele que ali estavam ou não. Quer dizer, meu caso.

O long play em questão completa 40 anos de lançamento neste conturbado 2020, e ouvi-lo hoje, como em todas as inúmeras vezes que o fiz ao longo dessas quatro décadas - tal como aquele rapaz com o qual me identifiquei -, redimensionam sua simbologia, sua importância, sua contundência. Não foi sem querer que Chico escolhera, em 1980, chamá-lo de “Vida”. 19º álbum de carreira do cantor, compositor, dramaturgo e escritor, é também o primeiro no qual ele pode, minimamente, falar sobre si e sobre os irmãos sufocados pelas ditaduras que assolavam a América naqueles idos ainda mais conturbados do que hoje. Chico vinha de anos de uma ferrenha perseguição pelos militares, com peças de teatro empasteladas, apresentações sabotadas, letras censuradas e projetos cancelados, o que prejudicava sobremaneira a concepção de qualquer obra por inteiro que intentasse. Foi assim durante todo os anos 70, a ponto de inviabilizar totalmente um disco de própria autoria havia uns 4 anos. O álbum de versões “Sinal Fechado”, de 1974, de título nada desavisado, e o “Disco da Samabaia”, de 1978, uma coletânea de sobras de alguém que não conseguia completar um repertório novo, são a materialização do mais próximo do possível de um artista que queria trabalhar. Mas não só: queria também a liberdade sequestrada.

Mas eis que chega a roda-viva e carrega o destino pra lá. Vladimir Herzog e Stuart Angel são assassinados pela polícia, celebra-se a missa ecumênica na Sé, a corrupção começa a corroer o Estado, a crise do petróleo afeta a economia mundial, dentre outros diversos fatores. Tudo isso faz com que o desgastado governo militar sinta a necessidade de afrouxar as mordaças. E para quem vinha de uma quase total censura, a Lei da Anistia, de 1978, era suficiente pra se celebrar. É neste impulso de renovação das esperanças democráticas que Chico decide exaltar a existência nesta obra em homenagem – mas também, em revisão – à sua própria e a de todos os brasileiros. Um disco que versa sobre o tempo, do começo ao fim. Um disco sobre vidas.

Detalhe da contracapa
do disco: a identidade
das digitais e da 3x4
de quando foi preso na 
adolescência, que lembra
as fotos de presos
políticos da Ditadura
A proposta é inequívoca, tanto que é ela, a memorável faixa-título, uma de suas melhores em todos os tempos, que abre o disco. Crítica e autocrítica, “Vida” já seria um marco na carreira de Chico pela inerente simbologia. Mas a canção, em letra e música, vai além. A melodia, num ritmo rumbado, é densa mas absolutamente sensível. Arranjada por Francis Hime, que lhe impõe uma orquestração dramática e ares melancólicos com o trompete de Maurílio nos primeiros acordes, tem ainda o violão erudito de Arthur Verocai e uma intensa percussão comandada por Chico Batera, que se exalta conforme o decorrer – conforme a “vida” passa. Já a letra é de uma honestidade e consciência tocantes, poucas vezes atingida na tão rica música brasileira: "Vida, minha vida/ Olha o que é que eu fiz/ Deixei a fatia/ Mais doce da vida/ Na mesa dos homens/ De vida vazia/ Mas, vida, ali/ Quem sabe, eu fui feliz”. Chico, amadurecido e fortalecido, questiona-se, e não apenas defende-se ou lamenta. 

O uso das metáforas relativas ao “mar” (“barco”, “cais”, “vela”) e ao “palco” (“cortinas”, “luz”) deixa clara a virada de pagina na biografia de Chico, em pleno curso de escrita – como, aliás, é a vida. “Infinitas cortinas com palcos atrás”. O futuro incerto, o destino a se perseguir. O artista que passou pelo autoexílio, o jovem bonito revelado nos festivais, o genial letrista, o herdeiro intelectual dos Buarque de Hollanda, o boleiro, o homem do teatro e do cinema, o parceiro de Tom e de Vinicius, o Julinho da Adelaide, o malandro, o pensador de voz política... Chico tornara-se definitivamente, pela força das vidas e das mortes, as verídicas e as simbólicas, um artista adulto, que deixava para trás todos estes Franciscos, mas abarcando-os como experiência vivida. É o que dizem os versos da canção: “Toquei na ferida/ Nos nervos, nos fios/ Nos olhos dos homens/ De olhos sombrios/ Mas, vida, ali/ Eu sei que fui feliz.”. A mínima permissão política faz com que Chico se permita "tocar nas feridas", denunciando do jeito que dava as barbáries promovidas pela ditadura ao fazer referência às torturas (feridas, nervos, fios, olhos). 

Os acordes finais de “Vida” dão este alerta tenebroso. Inconclusos e em tom grave, deixam uma angustiante sensação de que o pior ainda não havia acabado. Afinal, o retorno à liberdade seria “lento e gradual”, como anunciava a Anistia. Levaria ainda quase uma década para o Brasil se ver livre dos milicos no poder, e esse cenário fazia com que continuasse sendo difícil para o autor de “A Banda” compor um álbum autoral sem percalços. O jeito era fazer como vinha procedendo havia alguns trabalhos: se não tinha condições de montar um repertório completamente novo, a solução era aproveitar sua versatilidade e pescar aqui e ali composições espalhadas em outros projetos, como para o cinema e teatro, ou feitas para os amigos. E o mais incrível disso é que, assim como foi com “Meus Caros Amigos”, de 1976, onde teve de se valer de tal expediente, o resultado final é excelente. Dos 12 números de “Vida”, quase 100% têm origem anterior ou análoga ao disco. 

O artista em 1980,
 fotografado por Thereza
Eugenia: maturidade
A própria faixa-título é extraída da peça “Geni”, situação igual à canção seguinte, a sensível e melodiosa “Mar e Lua”. Como classifica o jornalista Márcio Pinheiro, a “melhor música sobre suicídio duplo da música brasileira”, narra de forma altamente poética o trágico destino de duas mulheres amantes cujo amor não é admitido“naquela cidade distante do mar” e que “não tem luar”. Chico falando de uma relação homossexual novamente, como já o tinha feito na censurada “Bárbara”, da trilha da peça “Calabar”, de 1973, cujo sulco dos vinis havia sido literalmente riscado pela censura no momento em que se pronunciavam os versos “de nós duas”... Agora, conquistava o direito de falar com todas as letras sobre um tema tabu sem cortarem-lhe violentamente a fala. Mais uma pequena vitória de uma democracia clamante.

Igualmente, na linha de reaproveitamentos, “Bastidores”, imortalizada na voz de Cauby Peixoto, o qual foi presenteado por Chico com a canção para seu álbum “Cauby Cauby Cauby”, daquele ano, e que se tornou o maior sucesso na carreira do tarimbado cantor. Chico, no entanto, mesmo sem o poderio vocal de Cauby, desempenha muito bem a própria criação, num samba-canção cadenciado e rascante. Impossível não fazer relação com a faixa inicial quando se ouve Chico cantar os famosos versos: “Chorei, chorei/ Até ficar com dó de mim”. Seria um momento de autocompaixão?

Das novas, destacam-se a bonita “Já Passou”, em que o hábil compositor harmoniza a extensa e cacofônica palavra “catatônico” com a maior naturalidade – assim como faria semelhantemente poucos anos mais tarde com outro vocábulo cabeludo, “paralelepípedo”, na emblemática “Vai Passar” –, e “Deixa a Menina”. Esta última, aliás, nem tão nova assim. É um samba em resposta a “Sem Compromisso”, de Geraldo Pereira, de 1956, que Chico havia cantado em seu último álbum de estúdio, “Sinal Fechado” - aquele em que, em protesto, decidira gravar apenas outros autores (inclusive, um tal de Julinho da Adelaide...). Aqui, Chico encarna o sambista malandro, mas com a classe composicional que lhe é peculiar num arranjo que inclui o clarinete de Botelho e o violão de Octávio Burnier. 

De um ano antes e ideada aos "caros amigos" da MPB4 para o indagador disco do quarteto vocal "Bons Tempos, Hein?!", “Fantasia” é mais uma pérola da então pequena safra recente by Chico Buarque. Se “Vida” havia iniciado o lado A do bolachão, esta, uma ode à liberdade individual e, em especial, aos trabalhadores do campo, traz versos que dizem muito sobre os Anos de Chumbo e a eterna necessidade de reforma agrária no Brasil: "Canta, canta uma esperança/ Canta, canta uma alegria/ Canta mais/ Trabalhando a terra/ Entornando o vinho/ Canta, canta, canta, canta”. Sem concessões, Chico expõe seu coração e admite sofrer, mas, assim como a música “Vida” propõe, acredita que a arte redima: “E se, de repente/ A gente não sentisse/ A dor que a gente finge/ E sente/ Se, de repente/ A gente distraísse/ O ferro do suplício/ Ao som de uma canção/ Então, eu te convidaria/ Pra uma fantasia/ Do meu violão”. O convite aberto é aceito por uma constelação de convidados que, literalmente, fazem coro com ele neste manifesto utópico: as manas Cristina Buarque e Miúcha, a sobrinha Bebel Gilberto, o ator Antônio Pedro, o parceiro italiano Sérgio Bardotti, os admiráveis músicos Danilo Caymmi e Markú Ribas, entre outros.

A romântica e triste “Eu te Amo”, em que divide os vocais com Telma Costa, nem parece mais uma reciclagem de quem padecia de pouco material. A luxuosa parceria com Tom Jobim (responsável pelo piano), “crème de la crème” da MPB capaz de legar obras como “Retrato em Branco e Preto” e “Olha, Maria”, não deixa perceber que se trata de uma encomenda do cineasta Arnaldo Jabor para a trilha sonora do filme de mesmo nome. E nem mesmo “De Todas as Maneiras” (dada a Maria Bethânia para seu Disco de Ouro "Álibi", de 1978) e “Qualquer Canção”, consideradas menores no cancioneiro de Chico, tão curtas que parecem vinhetas, passam longe de puxar para baixo a qualidade e a coesão do álbum. Afinal, ainda guardavam-se outras três obras-primas, a começar pelo semba “Morena de Angola”, prova de que Chico estava com a mão encantada se não para ele, para os outros. Igualmente escrita como presente, esta, para Clara Nunes, assim como “Bastidores”, também se transformou num grande sucesso e, assim como ocorreu com Cauby, virou um emblema da cantora mineira.

"Bye Bye, Brasil": marco do cinema
brasileiro genialmente traduzido em
música por Chico
Mais um rescaldo suntuoso: “Bye Bye Brasil”, canção que intitula o filme de Cacá Diegues, noutra contribuição para o cinema e para a filmografia do parceiro, tal como já o fizera em “Quando o Carnaval Chegar” (1972) e “Joana Francesa” (1973). Com maestria, Chico traça uma crônica do Brasil em fase de modernização com todas suas maravilhas e mazelas. Tal como num filme, a música (com coautoria de Roberto Menescal), lança diversos insights, às vezes, aparentemente desconexos, mas que dão condições de o ouvinte visualizar uma cena em que o cenário social, político e cultural são extremamente profundos. Desigualdade social, globalização, analfabetismo funcional, avanço da tecnologia, urbanização desenfreada, solidão e outros aspectos estão todos dispostos e interligados, dando destaque, principalmente, para a inexorável passagem do tempo. Seja na ligação telefônica, fadada a terminar conforme os minutos passam, seja na implacável ação da natureza, nada está sob o controle dos meros mortais. Tudo pertence ao destino. Quase terminando o disco, os versos “as fichas já vão terminar” se ligam imperiosamente ao clamor do tema-mãe do disco, “Vida”: “Arranca, vida/ Estufa, vela/ Me leva, leva/ Longe, longe/ Leva mais”.

Inteligentemente, Chico guarda para a estocada final mais um caso de reuso. “Vida” começava o álbum com uma reflexão na qual apontava a Ditadura como responsável por um caminho tão pedregoso (sem, contudo, abster-se), mas o engraçado baião “Não Sonho Mais”, feito para a trilha do filme “República dos Assassinos”, de Miguel Faria Jr., de 1979, e com a admirável flauta de Altamiro Carrilho, fecha-lhe o ciclo creditando a culpa, sim, aos opressores. Por isso, "engraçado" em termos, pois vai além da inocente brincadeira: trata-se, no fundo, de um desafiador recado aos militares. A história de uma esposa que, castigada pelo marido na vida real, relata-lhe um “sonho” em que ele é atacado impiedosamente pode ser facilmente entendida como uma revolta do povo contra o governo que lhe maltrata. “Vinha nego humilhado/ Vinha morto-vivo/ Vinha flagelado/ De tudo que é lado/ Vinha um bom motivo/ Pra te esfolar”. Detalhe: no sonho, ela estava entre os “esfoladores” que lhe rasgam “a carcaça”, descem-lhe “a ripa”, viram-lhe “as tripa” e comem-lhe os "ovo". “Tu, que foi tão valente/ Chorou pra gente/ Pediu piedade/ E olha que maldade/ Me deu vontade/ De gargalhar”, avisa ela sorrateiramente. Na linguagem chula, pode-se chamar de um “te liga!”.

"Vida" é mais que um disco: é o encontro das duas esferas que compõem a existência: a matéria e o espírito. Realidade e fantasia. Como um totem, suas músicas falam sobre dor e castigo nas mais variadas formas - do amor, da política, da sociedade, da força bruta. Não à toa a palavra "dó" aparece em três letras e "dor" em quatro, sem falar nos desdobramentos ("cravar as unhas", "toquei a ferida", "costas lanhadas", "ferro do suplício", "pediu piedade"). Referências a "sangue", igualmente, como as veias, o pulsar, o coração ou a própria expressão ou radical, ouvida em pelo menos três músicas: "Vida", "Eu te Amo" e "De Todas as Maneiras" - fora os outros sentidos figurados. Por outro lado, "Vida" é, ao mesmo tempo, uma obra de identidade. Aliás, como todo “álbum branco”, sendo este o que Chico intentou realizar e não o que foi obrigado como aconteceu anos antes quando, mais uma vez, a censura tolheu-lhe ao proibir a imagem da capa de seu “Calabar”, reintitulado como “Chicocanta” por força maior. "Vida", assim, é também sinônimo de resistência.

Hoje vendo o meu exemplar de “Vida”, tão surrado e usado como o do rapaz da plateia naquela longínqua tarde em Porto Alegre com Chico e Verissimo, fico imaginando o que ele, meu disco, já presenciou desse Brasil nas quatro décadas que se transcorreram desde que fora parido numa prensa industrial. As Diretas, a queda da ditadura, a redemocratização, duas Copas do Mundo, títulos e morte Senna, impeachments e golpes, Governo Lula, Brasil no Oscar, Lava-Jato, Fora Temer, Bolsonaro... Sim, porque aqueles olhos azuis da capa, mesmo que desenhados, enxergam! Permanentemente abertos, são testemunhas oculares da história recente deste Brasil que, como a vida, ainda está se construindo. Colcha de retalhos de alta qualidade, a feitura de "Vida" é quase milagrosa, tal outros discos célebres da música brasileira do período ditatorial como "Milagre dos Peixes", de Milton Nascimento, ou Gilberto Gil/68. Um milagre da "Vida", que, ao concebê-lo, Chico experencia o clássico dilema que ele próprio havia prenunciado: a gente quer ter voz ativa e no nosso destino mandar, mas eis que chega a roda-viva e carrega o destino pra lá. E não é assim a própria vida?

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Chico Buarque com Tom Jobim e Telma Costa - 
Vídeo de "Eu te Amo" (1980)

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FAIXAS:
1. "Vida" - 3:20
2."Mar e Lua" - 1:50
3."Deixe a Menina" - 2:53
4."Já Passou" - 1:50
5."Bastidores" - 2:27
6."Qualquer Canção" - 1:50
7."Fantasia" - 4:30
8."Eu Te Amo" (Chico Buarque/Tom Jobim) - 4:55
9."De Todas As Maneiras" - 1:50
10."Morena de Angola" - 3:15
11."Bye Bye Brasil" (Buarque/Roberto Menescau) - 4:40
12."Não Sonho Mais" - 3:45
Todas as composições de autoria de Chico Buarque, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:

Daniel Rodrigues