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segunda-feira, 24 de abril de 2023

CLAQUETE ESPECIAL 15 ANOS DO CLYBLOG - Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes (parte 1)

 

Cena do inaugural "Os Óculos do Vovô", de 1913,
há 110 anos
Quando, em março de 1913, o cineasta e ator luso-brasileiro Francisco Santos levou pela primeira vez ao público de Pelotas, no extremo Sul do Brasil, “Os Óculos do Vovô”, é de se supor que soubesse estar marcando uma era. Aquilo que então chamavam de “atualidades” já trazia a semente de mais do que isso: era o nascer de uma indústria, a indústria do entretenimento. Mas mais do que este aspecto produtivo e mercadológico, aquilo era “arte”. Isso, talvez Santos supusesse com maior assertividade. Uma espécie nova, ainda em construção, experimental, mas instigante e visivelmente muito promissora de arte: o cinema. 

O que o pioneiro do cinema brasileiro talvez não suspeitasse era que aquilo que ele empreendera com muito custo através da Guarany Films, sua produtora, fosse se tornar tão longevo e, por que não dizer, exitoso. Pois uma coisa pode-se afirmar do cinema brasileiro: mesmo várias vezes acometido por crises econômicas, políticas, culturais e ideológicas em um país jovem historicamente falando, jamais lhe faltou criatividade e perseverança. As condições nem sempre favoráveis, quando não dribladas, foram inclusive combustível para a geração neo-realista ou a cinema-novistas e udigrudi, para citar três exemplos.

Glauber: genialidade marcante
para o cinema brasileiro
E se são raros os casos de abastamento, por outro lado nunca se deveu nada a outros polos, inclusive bem mais endinheirados como a Europa, o Japão e os Estados Unidos. De gênios, podemos entabular Glauber, Peixoto e Mauro. De documentaristas, o talvez maior de todos: Coutinho. De obras revolucionárias, “Limite”. De divisores-de-águas modernos: “Cidade de Deus”. De obras-primas, “O Pagador de Promessas” e “Eles não Usam Black Tie”. Isso sem falar na brasilidade exposta em diversos filmes, às vezes de forma absolutamente orgânica, algo impossível de ser copiado, reproduzido e, em certa medida, até explicado noutras paragens. Como legendar diálogos como os de “A Hora e a Vez de Augusto Matraga” ou “Amarelo Manga” sem perder consistência e poética?

Tem isso e mais um monte de coisas. Afinal, em 110 títulos cabe bastante diversidade. Longas de ficção, documentários de maior ou menor duração, filmes mudos, curtas-metragens ficcionais, fitas P&B e coloridas, audiovisuais feitos para TV, gêneros diversos, produções do início do século 20 e outras recentes. Tem, sim, um pouco de tudo. Como diz Caetano Veloso sobre o cinema brasileiro: “Visões das coisas grandes e pequenas que nos formaram e estão a nos formar”.

Dizem que montar listas é uma forma de, além de divertir-se dando classificações aos próprios gostos, apreender tudo aquilo que se vê. E é tanta coisa que já se viu!... Aqui, a tentativa lúdica é de resgatar preferências de forma a dar uma noção subjetiva do que é cinema brasileiro em minha visão. Porém, também contemplar o crítico, que pode ponderar a consideração a medalhões, mas entende suas relevâncias. Recai aqui aquela “justificativa” dos preteridos. Muita coisa fica de fora, infelizmente, a contragosto do próprio autor da classificação. Impossível não citar pelo menos 10 deles: “Di”, “Pacarrete”, “O Palhaço”, “Linha de Passe”, “Os Primeiros Soldados”, “Porto das Caixas”, “O Homem do Ano”, “Chuvas de Verão”, “Alma Corsária” e “Inocência”. E teriam mais.

Cena de "Os Primeiros...", um dos célebres não-incluídos na lista

Diferirá de outras listas semelhantes? Claro, e isso que é o bom. O exercício aqui é justamente este: louvar a produção nacional em sua diversidade e preservar a memória de um dos cinemas mais inspirados do mundo, mesmo sem nunca ter ganho um Oscar de Filme Internacional. Importante? Sim, mas não é tudo, pois há muito mais abundância do que reconhecimento. E se são 110 anos, então, que sejam 110 títulos, lançados em partes e em ordem inversa. De início, os últimos 20 colocados já mostram essa riqueza. Têm desde clássicos do Neo Realismo e do Cinema Novo, passando por filme da retomada e produções da Embrafilme a dignos representantes do cinema atual feito no País. Então, partiu ordenar filmes representativos desta história mais que centenária como parte das celebrações pelos 15 anos do Clyblog!.

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110. “O Grande Mentecapto”, Oswaldo Caldeira (1986)

Das melhores comédias do cinema nacional, filme mineiro que, na linha de “Verdes Anos”, direcionou a produção a outros Estados que não Rio e SP, e que sedimentou a geração TV Pirata (Diogo Vilella, LF Guimarães, Regina Casé) numa história de Fernando Sabino ao mesmo tempo deliciosa, cômica, poética e aventuresca. Um dos finais de filme mais bonitos do cinema brasileiro. Trilha do Wagner Tiso marcante. Melhor Filme pelo júri em Gramado e concorreu em Cuba, Canadá e EUA.






109. “Meu Nome não é Johnny”, Mauro Lima (2008)
108. “O Grande Momento”, Roberto Santos (1959)
107. “Canastra Suja”, Caio Sóh (2018)
106. “Marighella”, Wagner Moura (2021)
105. “Verdes Anos”, Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil (1984) 



101. “Dois Córregos - Verdades Submersas no Tempo”, de Carlos Reichembach (1999)
102. “Os Cafajestes”, Ruy Guerra (1962) 
103. “O Homem que Copiava”, Jorge Furtado (2003)
104. “A Hora da Estrela”, Suzana Amaral (1985) 


100. “O Auto da Compadecida”, de Guel Arraes (2000)

No início doa anos 2000, o cinema brasileiro fechava seu ciclo de maiores dificuldades estruturais com um sucesso de crítica e público (2 mi de expectadores). Guel, que havia construído uma carreira alternativa na dramaturgia através da televisão desde a TV Pirata e aperfeiçoando-a ao longo dos anos, chegou pronto ao seu primeiro longa, baseado na peça de Ariano Suassuna. Difícil ver uma trupe tão grande de ótimos atores/atuações juntos: Selton, Nachtergaele, Nanini, Denise, Diogo, Lima, Virgínia, Goulart... todos, todos impagáveis. João Grilo e Xicó formam uma das melhores duplas de personagens do cinema nacional. Comédia divertida – mas também dramática – com o pique de edição e cenografia de Guel. Um clássico imediato.




99. “Tudo Bem”, Arnaldo Jabor (1978)
98. “O Lobo Atrás da Porta”, Fernando Coimbra (2013)
97. “Iracema, Uma Transa Amazônica”, Jorge Bodanzky e Orlando Senna (1976) 
96. “A Rainha Diaba”, Antonio Carlos da Fontoura (1974)
95. “Os Saltimbancos Trapalhões”, J. B. Tanko (1981)



94. “A Casa de Alice”, Chico Teixeira (2007)
93. “Macunaíma”, Joaquim Pedro de Andrade (1969)
92. “A Idade da Terra”, Glauber Rocha (1980) 
91. “O Anjo Nasceu”, Julio Bressane (1969) 


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Xande de Pilares - “Xande Canta Caetano” (2023)

 

“Quando não genocidam as nossas crianças elas crescem e têm grandes chances de se tornar, no futuro, um Xande de Pilares, por exemplo. Que estupendo cantor ele se confirma neste álbum que não me canso de ouvir”.
Ricardo Aleixo, poeta, músico e ativista negro

"Canto e imagino que todo o povo, toda 'gente quer ser feliz, gente quer respirar ar pelo nariz' e levar a paz." 
Xande de Pilares, em carta aberta sobre “Xande canta Caetano”


O povo preto não pode nunca deixar de estar alerta. Mãe Bernadete, Moa, Amarildo, Júlio César, Genivaldo, Moïse, Sandro. Marielle Franco. Seja pela força do Estado, seja pelo braço armado do Estado, seja pela conivência do Estado, seja pela incompetência do Estado. No Brasil, o genocídio negro vem de séculos, desde os navios tumbeiros. E quando crias negras nem sequer têm a chance de conhecerem a vida? João Pedro, Heloísa, Miguel, Eloá, Thiago, Ágatha, Maria Eduarda, Kauã, Alice, Emilly, Rebecca. Chacinados da Candelária.

Acontece que, há séculos também, este mesmo povo preto massacrado e açoitado, embora submetido à pior das condições humanas, a escravidão e o aniquilamento, resiste. Resiste e dança, tal como um personagem essencial para esta análise um dia disse: "com uma graça cujo segredo nem eu mesmo sei". 

Alexandre Silva de Assis, ou Xande de Pilares, nascido no suburbano Morro da Chacrinha e que leva no nome outro bairro pobre da Zona Norte do Rio de Janeiro, é fruto deste milagre da resistência. Criado nas rodas de samba de Ramos, Cachambi, Madureira, Pilares – o Pagode do Boleiro, o da Beira do Rio, o Pagofone, o da Geci, o Compasso da Vila, o Risco de Vida, a Adega do Sambola –, chegou ao estrelato aos 22 com o Grupo Revelação na onda pagodeira dos anos 90. Sobreviveu e se desenvolveu. Solo, lançou, entre outros, discos com títulos nada despropositados: “Esse Menino Sou Eu” e “Perseverança”. Aos 53, então, Xande valeu-se da desatenção do sistema racista para cunhar um disco que já nasce, assim como ele e seus milhões de irmãos, valoroso e celebrável. “Xande Canta Caetano” é daquelas raras obras que não precisam da permissão do tempo para se tornarem essenciais. Já vem ao mundo assim.

Vários motivos levam o disco a ser especial. A começar pelo homenageado, cuja gigantesca e assombrosa obra em tamanho e importância garante um set-list de alta qualidade. Segundo: a ideia surgiu de um convite do próprio Caetano Veloso, aceita com certo temor pela responsabilidade por parte de Xande, mas assumida com reverência, respeito e entrega pelo mesmo. Terceiro, a ousadia de trazer para o seu chão, o samba, até mesmo aquilo que não é samba na roupagem original. E quarto e principal: o primoroso resultado final. São apenas 10 faixas, que levam o canto emocionado e gabaritado de Xande para canções do baiano – muitas delas, clássicos do cancioneiro brasileiro – em versões personalíssimas e inspiradas.

Xande demonstra ser um grande fã de Caetano já na escalação do repertório. Uma seleção de quem conhece a fundo aquilo a que está se dedicando. Mas sobretudo e artisticamente falando, um entendimento do que se conecta com ele como intérprete. Fora o fato de ser um disco de duração curta e exata – como os da MPB dos velhos tempos do long player, incluindo os de Caetano –, o repertório torna-se um dos diferenciais do disco. Xande optou por músicas não óbvias do farto cancioneiro caetaneno, mesmo podendo recorrer a uma maior facilidade. Não seria nenhum crime, por exemplo, aproveitar sambas consagrados como “Desde que o Samba é Samba”, "Saudosismo", “Sampa” ou “Sem Samba não Dá”. Ou, quem sabe, sambas convictos do compositor: "Festa Imodesta", "A Voz do Morto", "Samba em Paz", "Força de Imaginação", esta parceria com a "dona do samba" D. Ivone Lara? Diminuiria a margem de erro. Mas não. Xande ousou – e acertou. A se ver pela surpreendente escolha de “Muito Romântico”, que abre o disco numa tocante versão da canção feita para a voz perfeita de Roberto Carlos em 1977 e gravada pelo autor apenas posteriormente. Samba puxado no cavaquinho, instrumento-base de Xande aprendido naquelas tais rodas de samba de outrora, nos botequins da vida. No talento trazido acorrentado da África pelos ancestrais, dos batuques sincréticos na senzala.

Pois outro jovem preto que driblou o sistema genocida é corresponsável por este feito: Ângelo Vitor Simplício da Silva, mais conhecido como Pretinho da Serrinha. Igualmente rebento dos pagodes da vida, das quadras de escola de samba, do ouvido absoluto e do talento nato. Pretinho é quem, além de produzir o disco com a mais alta competência e tocar nada menos que 24 instrumentos nas gravações, assina todos os arranjos, estes capazes de operar o milagre de fazer com que músicas de estruturas rítmicas variadas soem naturalmente sambas tal tivessem sido assim desde sempre. “Luz do Sol”, o emocionante tema escrito por Caetano para a trilha sonora do filme “Índia, A Filha do Sol”, de 1982, de uma balada melancólica vira, simplesmente, um samba-canção de muito bom gosto na tradição de Cartola e Paulinho da Viola.

E o que dizer de “Qualquer Coisa”, que, de portenha, passa a ganhar ares de sambolero com direito a bandolim de Hamilton de Holanda? Até mesmo o hit “Tigresa”, outro não-samba originalmente, é vestido por uma elegante roupagem em que Xande desfila extensão vocal e fraseados num samba lânguido e sensual. Palmas, aliás, para outro preto: Diogo Gomes – mais uma de história linda de superação e perseverança –, que capricha no arranjo de metais.

videoclipe de "Tigresa", da Araguaia Filmes

Assim como “Tigresa”, “Alegria, Alegria” é outro clássico inconteste de Caetano relido no álbum. Porém, ainda mais improvável achar samba naquela marchinha psicodélica. Pois Xande/Pretinho conseguiram, e com louvor. Das melhores do álbum, um dos hinos do movimento tropicalista, defendida pelo autor no memorável Festival da Canção de 1967, transforma-se em um misto de samba rural e afoxé em que o violão do craque Carlinhos 7 Cordas prevalece. Xande, cuja memória ainda preserva da infância as festas da Folia de Reis nas comunidades em que viveu, evidencia neste samba raiz uma atmosfera que talvez até Caetano nem percebera que sua música continha.

Outra nada óbvia – e mostra do quanto Xande caprichou na pesquisa interna à música do homenageado – é “Diamante Verdadeiro”, composta por Caetano para a mana Maria Bethânia e que abre o disco de maior sucesso da carreira dela, “Álibi”, de 1978. Como se encarnasse Moreira da Silva, Xande faz o diamante reluzir verdadeiramente como um samba-de-breque. Na sequência, para uma das mais pessoais e bonitas de todo o repertório de Caetano, “Trilhos Urbanos”, o que poderia ser equivocado se torna ainda mais assertivo. Resgatando no marcante som dos atabaques e do cavaquinho o xirê de candomblé e o samba-de-roda do Recôncavo Baiano, terra-natal de Caetano, a dupla Xande e Pretinho constrói uma das mais belas músicas de todo o disco e, quiçá, da década no Brasil. O bom-senso não recomendaria que o incomum “refrão de assovio” da original de Caetano fosse reproduzido. A solução? Um coro feminino cantarolando a melodia de “Retirantes”, de Caymmi, que faz remeter imediatamente à célebre canção-tema da novela “Escrava Isaura”, presente na memória afetiva de todo brasileiro. Sacada de mestres, astúcia de uma raça que sobrevive com graça para além das desgraças.

Formando a tríade com os maiores cantores da MPB presenteados por Caetano com sua criatividade ímpar, Xande, que passara por Roberto e Bethânia, agora chega a vez de Gal Costa, mencionada na faixa anterior por seu canto de "Balancê". E fazendo jus a um repertório pinçado com sensibilidade, ele versa ainda “O Amor”, que Caetano, sobre a poesia revolucionária do poeta russo Maiakovski, deu para a voz cristalina de Gal em 1981. A mais samba, mas nem por isso menos desafiadora, é “Lua de São Jorge”, uma reverência a ao guerreiro Ogum em ritmo de pagode. Salgueirense, Xande celebra também a escola a qual pertence, devota do mesmo santo, tão vermelha e branca quanto ele. Não à toa os metais e o agogô desenham toda a melodia, afinal, está se falando do “senhor da metalurgia”.

Mas ainda mais revolucionária é a que encerra: “Gente”, o grito humanista mais pungente de Caetano. Difícil escutá-la e não ir às lágrimas, como ocorreu com o próprio Caetano ao ouvi-la pela primeira vez. Xande, com sua história pessoal e representatividade, cantando em clima de samba-enredo essa ode às pessoas simples, apropriando-se dela, reverbera em muitas dimensões do tecido social brasileiro. “Gente pobre arrancando a vida com a mão”. Quanto potência e significado versos como estes ganham ao saírem de sua boca: “Não, meu nêgo, não traia nunca essa força, não/ Essa força que mora em seu coração”.

“Xande Canta Caetano” é, sem pestanejar, o melhor álbum lançado no Brasil em 2023, um presente aos brasileiros para um festivo ano em que o país se livrou do fascismo e vislumbrou novamente a esperança na democracia, no respeito ao outro e no amor. Brasileiros como Ricardo Aleixo, Jorge Furtado, Pena Schmidt, Martha Medeiros, Nizan Guanaes e Moysés Mendes pensam o mesmo. Na mesma lógica de enumerar nomes como na música "Gente", podem-se adicionar tranquilamente a Francisco, Zezé, Gildásio, Renata, Agripino, Dolores ou João, como a poética sugere, outros nomes, tal Pretinho, tal Diogo. Tal Xande. Foi deixarem o negro existir, deu nisso: amor e arte, as armas contra a iniquidade capazes de transformar o mundo. Afinal, gente é pra brilhar como brilha Alexandre Silva de Assis. Não pra morrer de fome, de bala ou pela invisibilidade.

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videoclipe de "Gente", da Araguaia Filmes


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FAIXAS:
1. “Muito Romântico” - 3:16
2. “Luz do Sol” - 3:44
3. “Qualquer Coisa” (participação: Hamilton de Holanda) - 3:00
4. “Tigresa” - 3:59
5. “Alegria, Alegria” - 2:56
6. “Diamante Verdadeiro” - 3:14
7. “Trilhos Urbanos” (Música incidental: “Retirantes”, Dorival Caymmi) - 3:22
8. “Lua de São Jorge” - 3:01
9. “O Amor” (Caetano Veloso / Ney Costa Santos / Vladimir Maiakovski) - 3:37
10. “Gente” - 3:55
Todas as composições de autoria de Caetano Veloso, exceto indicadas


Daniel Rodrigues

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

“Filme sobre um Bom Fim”, de Boca Migotto (2014)






Ando escrevendo bastante sobre Porto Alegre e sobre o Bom Fim especialmente nos últimos tempos. Talvez não seja acaso, pois a considerar os sentimentos que venho nutrindo pela cidade, mais para mal do que para bem, ter assistido ao documentário “Filme sobre um Bom Fim” deve significar alguma coisa. Tanto para bem quanto para mal. Para bem, porque é um barato conhecer mais da história, identificar-se e ouvir os depoimentos de quem presenciou e viveu os períodos heroicos do famoso “Bonfa”. Para mal é que, infelizmente, minhas queixas e decepções se confirmam nas de outras pessoas – e não qualquer uma, mas as que ajudaram a escrever a biografia cultural recente da cidade.

Mas comecemos pela parte boa. Dirigido por Boca Migotto, com fotografia competente de Bruno Polidoro, “Filme...” resgata de forma bastante eficiente a história do Bom Fim, bairro boêmio (muito mais no passado do que hoje) que, no final dos anos 60 até o início dos anos 90 – ou seja, percorreu basicamente toda a época do Regime Militar no Brasil – foi ponto de confluência das mais ricas manifestações artísticas de Porto Alegre. Numa narrativa tradicional, cronológica e construída com base em depoimentos de figuras-chave entremeados de imagens de arquivo e locações coerentes, o filme cumpre muito bem o objetivo ao qual se presta: evidenciar a importância do bairro enquanto arcabouço de toda uma cena que, por diversos motivos (nem sempre lógicos), se criou em torno deste.

Bares lotados na movimentada Osvaldo Aranha dos anos 80.
Começa de forma bem poética e veneradora ao fazer um paralelo entre o documentário e o longa “Deu pra ti, Anos 70” (de Nelson Nadotti e Giba Assis Brasil, de 1981) repetindo um plano-sequência em que uma câmera (digital, no atual; Super 8, no antigo), como um ponto-de-vista de um passageiro da janela de um ônibus que sai do viaduto da Conceição, saindo do Centro da cidade, em direção à consagrada Osvaldo Aranha, avenida principal do Bom Fim, percorrendo-a de ponta a ponta. É a partir dessa cena que Migotto constrói toda a genealogia cultural e sociopolítica que se manifestou ali, desde a época da “Esquina Maldita”, nos anos 60, até o seu declínio, nos anos 90, quando a pressão imobiliária e a ação política esvaziaram física e emocionalmente a movimentação em prol da “família e dos bons costumes”. Aspectos como a delimitação geográfica do bairro, suas origens e fisionomia arquitetônica dão suporte para, partindo de depoimentos bastante ricos e bem estruturados, contar como o cinema, o teatro, a música, o rádio, a boemia e, principalmente, a ação de vários personagens ajudou a criar uma cena de absoluta democracia e diversidade que chegou ao ápice nos anos 80, quando a Osvaldo fechava para receber até 5 mil pessoas aos finais de semana. Todas bebendo, curtindo, andando, trocando (coisas lícitas ou não) e tendo como ponto principal os bares, tanto os de antigamente (Copa 70, Lola, Escaler, João) quanto os de ainda hoje (Ocidente, Lancheria do Parque, Mariu’s).

Dessa trajetória, muito legal ver como se deu o surgimento da galera do cinema (Carlos Gerbase, Giba, Jorge Furtado, Werner Schünemann, Marcos Breda), embrião da Casa de Cinema de Porto Alegre e do atual cinema gaúcho. As cenas dos primeiros filmes, “Deu pra ti...”, “Inverno” e meu amado “Verdes Anos”, bem como o ambiente em que foram filmados, são resgatados de maneira bonita, mostrando a paixão com a qual se dedicavam a rodá-los, bem como as referências estéticas novas que trouxeram. Igualmente, passa pelas sessões de cinema nos saudosos Baltimore e Bristol; pelas funções do teatro: montagem de “Deu pra ti, Anos 70” (diferente do filme mas quase simultânea a este) e a formação dos grupos Terreira da Tribo, Vende-se Sonhos e GTI; da rádio: a já saudosa Mary Mezzari e Mauro Borba falando da Ipanema FM; e da tevê, em que programas revolucionários como Quizumba e Pra Começo de Conversa, da TVE dirigida por Cândido Norberto, deram espaço para os roqueiros malucos, bem como para os primeiros trabalhos jornalísticos e audiovisuais de gente renovadora como Furtado e Eduardo Bueno (Peninha).

Edu K, figura essencial na movimentação cultural da cidade.
Mas é especialmente legal ver que tudo se construiu a partir da juventude, motivo pelo qual todos os momentos são muito ligados ao rock, seja o pop de Nei Lisboa, o rockabilly d’Os Cascavelletes, o hardcore d’Os Replicantes ou o pós-punk do De Falla. Nisso, interessante notar a devida reverência à figura de Edu K como pioneiro e agitador cultural e a liderança de Gerbase não só no cinema, mas na cena rock. Engraçado e saboroso ouvi-lo dizer que, à época da formação da banda, notara o desconforto do colega de cinema Giba Assis Brasil, que não apreciava a barulheira e inaptidão técnica dos Replicantes, inclusive a de Gerbase com as baquetas. Ele explica: “O negócio é que eu não queria tocar bateria: eu queria era bater naquilo”.

E a parte ruim? Nada que se refira à qualidade do filme, mas justamente quanto à conclusão que o próprio levanta: a de que Porto Alegre estagnou culturalmente. Isso fica claro no final, seja em forma de provocação, como fizera Peninha desafiando que o provassem que o momento áureo do Bom Fim significara de fato um “movimento cultural”, seja em depoimentos mais moderados, nos quais se ouve e/ou se subentende expressões como “estagnação”, “desdém” e “descontinuidade”. O próprio filme é um exemplo: mesmo sendo um sucesso garantido de público (a sala estava lotada, o que se repete desde sua estreia), levou sofridos 10 anos para ser aprovado na lei de incentivo do município, e isso por causa de muita insistência. 

Peninha, ferino e hilário.
Tristes constatações que, mais tristemente ainda, coferem com as minhas. E não somente as dos últimos tempos, mas a da real validade de produtos artísticos porto-alegrenses endeusados aqui mas que, num contexto geral (e no comparativo com as coisas boas daqui mesmo), são bastante fracas. Carlos Eduardo Miranda ainda tentar argumentar que bandas como De Falla e Graforréia Xilarmônica influenciaram o rock brasileiro dos anos 90, porém (e aí se entende o fundamento da provocação lançada por Peninha), está longe de poder ser considerado um movimento cultural de sotaque gaúcho. Cabe ao próprio Gordo Miranda finalizar num depoimento romântico de que, um dia, quiçá, se repita um momento tão efervescente e interessante na cidade.

Sabemos que não se repetirá.

A Casa de Cinema ganhou relevância nacional e mudou para melhor o cinema e a televisão brasileira a partir dos anos 90; porém, não formou escola. Do rock gaúcho, por motivos diferentes, grandes bandas surgiram, mas nenhuma engatou uma carreira contínua e de real expressão nacional – fora os Engenheiros do Hawaii, que rumaram para longe demais da capital – ou, muito menos, internacional. Do teatro, a monopolização dos mesmos nomes para, pateticamente, não apresentarem nada de novo desde aquela época. Só posso concluir que tudo isso é junção de fatores psicossociais, como falta de antevisão e renovação, pouco-caso para com o seu semelhante, um sentimento de superioridade intelectual injustificável e a crise econômica que se arrasta há anos no Estado. Mas tudo, na verdade, não seria importante se não faltasse de fato um quesito: qualidade. Ter, tem; mas só em algumas frentes e que não são suficientes para formar algo que se possa intitular propriamente como porto-alegrense.

No entanto, até as constatações negativas de “Filme...” são méritos do filme, que não temeu em mostrá-las ou escondê-las num endeusamento pró causa abordada, como acontece em alguns filmes do gênero (o às vezes parcial “Lóki”, a respeito do mutante Arnaldo Baptista, ou "O Sal da Terra", que parece não abordar o que realmente deve). O formato clássico de documentário, aliás, é o mais recomendável quando o próprio tema fala por si como neste caso. Inventar narrativas “poéticas” ou “modernas” nem sempre é um bom caminho, pois se pode cair no erro de diluir o principal, que é a história que se está querendo contar. Menos é mais em documentário. Afora isso, as reveladoras falas de gente como Juremir Machado da Silva, Polaca, Fiapo Barth, Cikuta, Biba Meira, Luciana Tomasi e os já citados Nei, Gerbase, Werner, Peninha, Mary, entre outros, são de grande identificação a quem sempre esteve ligado à cena alternativa de Porto Alegre de uma forma ou de outra como eu.

Impossível não mencionar que, ainda por cima, assisti à sessão acompanhado de Leocádia, que nasceu no Bom Fim e morou lá alguns anos da infância, e na presença da radialista Kátia Suman, com quem já tive momentos marcantes na minha trajetória como jornalista e ser cultural da cidade, desde quando a ouvia na Ipanema até momentos presenciais, como no Clube do Ouvinte que apresentei na rádio, em 1994, ou o Sarau Elétrico, que participei como autor em 2012, em pleno Ocidente. Simbólico, no mínimo.


trailer de "Filme sobre um Bom Fim"



domingo, 27 de novembro de 2022

Live Museu do Festival de Cinema de Gramado - Homenagem a Sirmar Antunes (24/11/2022)


Tive a honra de mediar, dias atrás, a convite do meu amigo e colega de profissão e de ACCIRS Matheus Pannebecker, uma live promovida pelo Museu do Festival de Cinema de Gramado em homenagem ao ator Sirmar Antunes. Na ocasião, durante a Semana da Consciência Negra, pude intermediar uma conversa muito proveitosa com a cineasta Mariani Ferreira e a educadora e integrante do Coletivo Sanfoka - Valorização da Diversidade Cultural Lis Reis. 

Com quase 50 anos de carreira no cinema e no teatro, Sirmar, falecido em agosto deste ano, dias antes da realização do 50º Festival de Cinema de Gramado, do qual ele tanto é uma referência quanto, igualmente, participaria como jurado, foi um dos mais queridos e competentes homens do audiovisual gaúcho. 

Na live, pelo Instagram do Museu, Mariani e Lis trouxeram seus olhares afetivos e conscientes tanto sobre Sirmar quanto a condição da pessoa negra nos seus meios e na sociedade como um todo. A própria existência e exemplo de Sirmar, aliás, deu este lastro para que o tema se aprofundasse. Chamou-me atenção, além das próprias falas das convidadas, a capacidade de enxergar a questão da negritude pela ótica da coletividade e da ancestralidade. 

Particularmente, tenho grande apreço pela figura de Sirmar tanto como ator preto quanto por sua importância referencial no cinema gaúcho que aprendi a gostar desde os anos 80. É ele quem interpreta o Sargento de “O Dia em que Dorival Encarou a Guarda”, de 1986 (Jorge Furtado e José Pedro Goulart), filme especial em minha trajetória como cinéfilo e crítico de cinema, tanto por ter me apresentado a ele quanto por ser um dos filmes mais pungentes sobre o racismo que já assisti. Esta obra, inclusive, me motivou a escrever, em 2020, uma resenha crítica após o episódio de racismo na live da Associação Profissional de Técnicos Cinematográficos do Rio Grande do Sul (APTC-RS) sobre o filme “Inverno”, e que envolveu, aliás (mas não coincidentemente, por mais triste que seja) a própria Mariani. Várias conexões.

Enfim, confiram o vídeo, que vale a pena.

SOBRE MARIANI FERREIRA
É roteirista, diretora e produtora. Começou sua carreira como trabalhadora doméstica, estudou jornalismo, foi crítica de cinema e redatora e diretora de publicidade. Atualmente trabalha como roteirista na TV Globo. Seu filme de estreia, o curta-metragem de ficção “Léo", foi exibido em diversos festivais pelo mundo. Mariani também é produtora executiva e roteirista do documentário “O Caso do Homem Errado”. Também é roteirista da sitcom “Necrópolis”, exibida pela Netflix, e diretora do curta-metragem "Rota", que ganhou Menção Honrosa do Júri do 49º Festival de Gramado e o Prêmio Canal Brasil de Curtas no Cabíria Festival de 2021. Em 2022, estreia duas séries das quais é criadora e roteirista, a animação "Os Pequenos Crononautas" e o drama histórico "Filhos da Liberdade".

SOBRE LIS REIS
Educadora da rede de Gramado, trabalha com consciência vocal desde 2009. Participa como cantora em espetáculos da região desde 2004. Atuando como  oficineira em pontos de cultura e de grupos teatrais nas cidades de Canela e Gramado. Integrante do coletivo Sankofa.

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Assista: https://www.instagram.com/p/ClXH8zPh_XB/ 


Daniel Rodrigues

terça-feira, 26 de abril de 2016

15 filmes essenciais de prisão



Assim como os de gângster ou que retratam a Segunda Guerra Mundial, os filmes de prisão são bastante atrativos. Até mesmo os mais puramente aventurescos, como “Condenação Brutal”, com Sylvester Stallone, ou “A Rocha”, com Sean Connery, se estiverem passando na TV te puxam para que se assista pelo menos um pouco ou mesmo daquele ponto até o final. De fato, os filmes sobre sistema prisional guardam uma magia especial. Talvez porque, assim como os de gângster ou Segunda Guerra, muitas vezes se baseiem em fatos reais. Quando não, são tão passíveis de verdade quanto um verídico, haja vista a identificação que seus personagens geram junto ao espectador ou mesmo pelas barbaridades que geralmente denunciam, sejam ficção ou não. Não raro estão em jogo os mais basais direitos humanos.

Desta forma, busquei listar 15 títulos bem abrangentes e interessantes sobre o tema. De produções europeias a asiáticas, passando pelos cinemas brasileiro (bem representado), argentino e, claro, norte-americano, que domina largamente neste quesito. Desde clássicos do passado até os dias de hoje, os Estados Unidos são imbatíveis em filmes de prisão. Valeu entrarem filmes não apenas de penitenciária – embora sejam a maioria – mas também de cadeias comuns e de prisioneiros de guerra. De presos políticos, como nos essenciais “A Confissão” (Costa-Gavras) ou “Pra Frente, Brasil” (Roberto Farias), ficaram para uma outra seleção. Como valeu apenas longas-metragens, merece menção honrosa “O Dia em que Dorival Encarou a Guarda”, curta-metragem de Jorge Furtado e José Pedro Goulart, uma obra-prima que, inclusive, completa 30 anos de seu lançamento em 2015.

Sem ordem de preferência, a condição foi a de que a história se passe, se não inteiramente, pelo menos a maior parte do tempo dentro das celas, sendo-lhes um elemento narrativo preponderante. Assim, ficaram de fora ótimos exemplares como “Dançando no Escuro”, de von Trier, “O Último Imperador”, de Bertolucci, ou “Batismo de Sangue”, de Helvécio Ratton, que têm, sim, sequências em prisões, mas relatam muito mais do que isso em suas tramas. No nosso caso, não basta: tem que estar encarcerado mesmo, atrás das grades, em cana, no xadrez, detido, vendo o sol nascer quadrado. Então, “teje preso” a esses 15 títulos essenciais sobre prisão:


- “O Homem de Alcatraz”, de John Frankenheimer (“Birdman of Alcatraz” - EUA, 1962)
Com a mão do craque John Frankenheimer, diretor que nunca se omitiu de mostrar mazelas do sistema norte-americano e nem de aprofundar aspectos psicológicos muitas vezes relegados à superficialidade, este filme traz a realidade de uma penitenciária típica dos Estados Unidos a partir de um conflito entre o pragmatismo e o humanismo. Um prisioneiro (Robert Stroud, por Burt Lancaster) condenado pelo assassinato de dois homens passa a vida na cadeia. Lá se torna um autodidata sobre pássaros, sendo reconhecido mundialmente como uma grande autoridade no assunto. Mas, apesar de demonstrar regeneração e um intelecto superior, o Estado se recusa a libertá-lo.






- “O Processo de Joana D’arc”, de Robert Bresson (“Procès de Jeanne D´Arc” - FRA, 1962)
 A austeridade e sobriedade de Robert Bresson emprestam ao filme uma narrativa absolutamente austera, desde o uso de atores não-profissionais até o centramento exclusivo aos documentos oficiais sobre o caso, passado no século XV. Para muitos o grande filme do diretor, “O Processo...” mostra outro tipo de prisão, a religiosa, uma vez que a iluminada Joana era considerada bruxa pelas visões e percepções espirituais que tinha naturalmente. Com rigor, Reconstituiu a prisão, o julgamento e a execução da mártir.






- “Fugindo do Inferno”, de John Sturges (“The Great Escape” - EUA, 1963)
Clássico filme de prisão de guerra à época da Segunda Guerra e baseado em fatos reais. Aliados tentam fugir de um campo de concentração alemão, o Stalag Luft III, considerado como o mais seguro do gênero. Elenco impagável com Steve McQueen, James Garner, Richard Attenborough, Charles Bronson, James Coburn, entre outros feras. Globo de Ouro de Melhor Filme de Drama.









- “Rebeldia Indomável”, de Stuart Rosemberg (“Cool Hand Luke” - EUA, 1967)
Filme impactante e com a excelente atuação de Paul Newman, que faz o rebelde e inconsequente Luke Jackson. Preso, ele recusa-se a obedecer as regras do local e ganha o respeito dos demais presidiários por sua valentia e malandragem. Insiste em fugir, mas a cada nova recaptura as punições são mais severas, aumentando constantemente o ódio entre ele e os guardas. Indicado ao Oscar, Newman não levou este, que foi para o ator coadjuvante, George Kennedy. Porém, em 2003, seu personagem Luke foi escolhido pelo American Film Institute (AFI) como o trigésimo maior herói dos filmes norte-americanos.







Dustin Hoffman e Steve McQueen
em "Pappilon"
- “Papillon”, de Franklin Schaeffner (EUA, 1973)
Obra-prima ainda pouco valorizada, esta superprodução é dos filmes mais realistas e impactantes do gênero. Conta a história verídica de Henri Charrière (Steve McQueen, novamente encarcerado), conhecido como Papillon, que, apesar de reclamar inocência da acusação de assassinato, é condenado à prisão perpétua e enviado para cumprir a sentença na Guiana Francesa, na Ilha do Diabo, num presídio de segurança máxima. A direção de Schaeffner não deixa nada às escuras: as torturas, a fome, as punições, a desumanidade do presídio, está tudo ali. McQueen, impecável, assim como Dustin Hoffman (o amigo francês Dega). Incrivelmente, recebeu apenas indicações no Oscar e Globo de Ouro, mas não levou nada. Das injustiças históricas.




- “O Expresso da Meia-Noite”, de Alan Parker (“Midnight Express” - ING, 1978)
Dos mais impactantes e dramáticos filmes do gênero, passa-se, ao contrário das jaulas superequipadas dos Estados Unidos, numa insalubre e insana prisão da Turquia. O saudoso Brad Davis interpreta magistralmente Billy Hayes, um estudante norte-americano que é pego traficando drogas num aeroporto de Istambul. Não só vai parar numa prisão degradante, onde é torturado física e psicologicamente, como ainda recebe como exemplo uma pena mais rigorosa que o normal. Parker, em ótima fase, leva o espectador a entrar num mundo de introspecção e loucura, dando um sentido metafórico e simbólico ao título. Oscar de Melhor roteiro adaptado, de Oliver Stone, e de Melhor Trilha Sonora, com os marcantes temas synth-pop de Giorgio Moroder.




- “Alcatraz – Fuga Impossível”, de Don Siegel (“Escape from Alcatraz” - EUA, 1979)
Para muitos, o maior filme de penitenciária já realizado, o que não é nenhum absurdo. Ápice da parceria entre Siegel e Clint Eastwood, que interpreta Frank Morris, um condenado que tem várias tentativas de fugas em seu histórico e é enviado para a prisão de segurança máxima da Ilha de Alcatraz, conhecida por não deixar nenhum preso fugir ou sair vivo numa escapada. Porém, obstinado e calculista, Frank vê os pontos vulneráveis de Alcatraz e, com a ajuda de alguns outros internos, cria uma rota de fuga perigosa e improvável. Não tem como não torcer pelo bandido!




- “Furyo – Em Nome da Honra”, de Nagisa Oshima (“Merry Christmas, Mr. Lawrence” - JAP/ING/NZL, 1983)
Raro filme do sempre profundo Oshima, que reúne dois gênios da música como atores: David Bowie (em sua melhor atuação no cinema) e Ryuichi Sakamoto, que assina também a ótima trilha. Na Segunda Guerra, num campo de concentração na Ilha de Java, o prisioneiro inglês Jack Celliers (Bowie) provoca um conflito quando decide não obedecer às rígidas regras do capitão Yonoi (Sakamoto), insolência repudiada com violência. Porém, o oficial inglês se mantém irredutível, o que enfurece ainda mais o capitão. Interessante reflexão sobre orgulho, honra e os limites humanos tanto físicos quanto psicológicos.






Sônia Braga nos lances oníricos
do filme.
- “O Beijo da Mulher Aranha”, de Hector Babenco (BRA/EUA, 1984)
Um dos cineastas mais talentosos vivos, Babenco está nesta lista com dois filmes. Um deles é este até então raro acerto de coprodução brasileira com os EUA, uma vez que, quando se fazia, prevalecia o poderio yankee. Com equilíbrio, Babenco consegue fazer com que Milton Gonçalves e José Lewgoy ficassem no mesmo nível de William Hurt (Oscar de Melhor Ator pela atuação) e Raul Julia, sem falar, claro, na participação mais que especial de Sônia Braga. As sequências em que Hurt e Julia contracenam na cela são históricas em diálogos e afinação entre atores, pois, além de talentosos, nota-se que estão muito bem dirigidos.




- “Memórias do Cárcere”, de Nelson Pereira dos Santos (BRA, 1984)
Prêmio da crítica em Cannes e Melhor Filme em Moscou (quando o evento ainda era importante), este épico do cinema brasileiro é uma aula de construção narrativa, a qual dialoga metalinguisticamente o tempo todo com a obra de memórias escrita por Graciliano Ramos, quando este fora preso na vida real pelo governo Getúlio Vargas. Ainda, atuações impecáveis de Carlos Vereda, José Dumont, Tonico Pereira, os saudosos Jofre Soares e Wilson Grey e da jovem Glória Pires. Cenas memoráveis, como a “transmissão” da Rádio Libertadora dentro do quartel, o momento da deportação de Olga Benário e a ajuda dos presos a esconderem os escritos do  suposto livro, entre outras várias. 





- “Barrela: Escola de Crimes”, de Marco Antonio Cury (BRA, 1990)
Daqueles filmes que tem tudo para ser monótono, mas o roteiro, as atuações e a direção são tão bons que formam uma obra coesa. O texto teatral de Plínio Marcos se encaixa com densidade à adaptação cinematográfica, sustentada no jogo certo de distribuição das falas de cada personagem (todos MUITO nem construídos) e nas atuações intensas de cada um dos atores. São seis presos condenados a longas penas e confinados numa cela onde cada qual disputa seu espaço. A situação se torna mais angustiante quando junta-se a eles um jovem de classe média preso durante briga. Frustração, tristeza, humilhação, autoproteção. Plínio Marcos tece tudo isso numa teia em que coabitam o amor mais profundo e inalcançável ao abandono concreto e degradante.






- “Um Sonho de Liberdade”, de Frank Darabont (“The Shawshank Redemption” - EUA, 1994)
Junto com “Alcatraz”, disputa o posto de grande filme de prisão da história. Emocionante, toca em temas fortes como morte, amizade, religião, injustiça e desejos essenciais do ser humano. Em 1946, Andy Dufresne (Tim Robbins), um bem sucedido banqueiro, tem a sua vida radicalmente modificada ao ser condenado por um crime que nunca cometeu, o homicídio de sua esposa e do amante dela. É mandado para a Penitenciária Estadual de Shawshank, para cumprir pena perpétua. Lá, conhece muita gente, desde o corrupto e cruel agente penitenciário, o prisioneiro Ellis Boyd Redding (Morgan Freeman), com que faz amizade, e até Al Capone, que cumpria sua pena lá depois de ser pego por Elliot Ness. Figura na lista dos 100 melhores filmes de todos os tempos pelo AFI.



- “Carandiru”, de Hector Babenco (BRA, 2003)
Outro de Babenco, este ainda mais imerso na questão prisional. Ao contrário de “O Beijo...”, entretanto, faz o movimento narrativo inverso: parte do ambiente social para o da prisão, estabelecendo uma permanente comotivação entre os dois espaços – física e psicologicamente. De narrativa moderna, faz com estes paralelismos um dos melhores filmes nacionais da primeira década dos anos 2000, estabelecendo diversos atores que se tornariam astros nos anos seguintes, como Rodrigo Santoro, Lázaro Ramos, Wagner Moura e Caio Blat. A história, baseada no best seller do médico e escritor Dráuzio Varella, culmina no fatídico Massacre de 1992. Filmaço.






Os próprios presos constroem a
narrativa no documentário.
- “O Prisioneiro da Grade de Ferro”, de Paulo Sacramento (BRA, 2003)
Brilhante documentário de Sacramento em que ele coloca os próprios presos a construir com ele o filme, numa cocriação que reforça o realismo documental da proposta. Utilizando as técnicas aprendidas em um curso de filmagem ministrado dentro do presídio, os detentos encarcerados no maior centro de detenção da América Latina, o Carandiru, documentam seu cotidiano, registrando as condições precárias nas quais sobrevivem. Filmado 10 anos após o Massacre do Carandiru, que custou a vida de mais de uma centena de detentos, mostra o quanto uma tragédia como esta promovida pelo Estado não se apaga com facilidade, haja vista as marcas inapagáveis nas pessoas e na sociedade.



- “Leonera”, de Pablo Trapero (ARG – 2008)
Do grande cineasta argentino Pablo Trapero, um dos maiores da atualidade, tem a peculiaridade de contar a vida dentro de uma penitenciária feminina, no caso uma para mães e grávidas sentenciadas. No caso de Julia (a bela e talentosa Martina Gusman), acusada de um crime sem provas, o filme mostra sua adaptação à nova realidade social, o que a transforma intimamente. Porém, seu desejo de fugir dali nunca esmorece, e é isso que a move. Não é o melhor de Trapero, mas guarda várias qualidades de seu cinema.





domingo, 15 de agosto de 2021

O Dia em que a Arte Dramática Brasileira Morreu

 

Em 2007, quando, com diferença de menos de 24 horas, os cineastas Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni faleciam, aquela fatídica virada de 29 para 30 de julho ficou conhecida como o “dia em que o cinema moderno morreu”. Semelhante sensação de perda e de triste coincidência se abateu sobre o mundo das artes dramáticas brasileira entre 11 e 12 deste mês de agosto ao despedirmo-nos de dois ícones: Paulo José e Tarcísio Meira. Poucas vezes em tão pouco tempo foi-se embora tanta beleza, tanta significância, tendo em vista a história de cada um para o cinema, a TV e o teatro brasileiros. Até mesmo na vida pessoal pareceram-se. Um, com 84, o outro, com um ano a mais. Na vida pessoal, amaram com fidelidade poucas mulheres igualmente do seu ciclo de atores: Tarcísio, casado com Glória Menezes por 61 anos; Paulo, viúvo de Dina Sfat e, posteriormente, parceiro da também atriz Zezé Polessa.

Paulo em "O Palhaço":
sensibilidade de veterano
Pertencentes a uma geração rara que forjou as artes cênicas no País, como Paulo Gracindo, Cacilda Becker, Sérgio Brito, Walmor Chagas, Bibi Ferreira e Paulo Autran, Paulo e Tarcísio, por meio desse ímpeto pioneiro, ajudaram a esculpir de certa forma o que conhecemos de Brasil. Tanto que é impensável pensar no teatro, no cinema ou na TV sem lembrar de ambos. Paulo, no teatro, criou o Teatro de Equipe, dirigiu o Teatro de Arena, encenou Guarnieri e Molière. Tarcísio, por sua vez, também forjado nos palcos e Prêmio Shell de Teatro por “O Camareiro”, ia de Shakespeare a Keiser.

Mas é no audiovisual que a carreira tanto de um quanto de outro se fez popular, por vários antagônicos motivos – o que só prova suas versatilidades. Como outro grande das artes cênicas recentemente falecido, o sueco Max Von Sydow, capaz de interpretar Jesus Cristo e um cavaleiro assombrado pelo Diabo, Tarcísio, especialmente, foi da cruz ao inferno. Assim como Sydow, o brasileiro foi o Salvador em “A Idade da Terra”, de Glauber Rocha e, noutro extremo, fez a encarnação do demônio ao interpretar o vilão Hermógenes, de “O Grande Sertão: Veredas”, série dirigida por Walter Avancini para a Globo. Com Paulo, não é tão diferente. Se viveu o angustiado religioso de “O Padre e a Moça”, também vestiu o fanfarrão “Macunaíma”, noutro marco do Cinema Novo. 

"O Padre e a Moça", com Paulo José (1966)

"O Beijo no Asfalto", com Tarcísio Meira (1980)


Tarcisão na atuação
premiada de "A Muralha"
Aliás, não faltaram grandes que os dirigissem. Tarcisão, além dos já citados Glauber e Avancini, encarnou “O Marginal” no ótimo e raro filme de Carlos Manga pós-Chanchada, e protagonizou uma das mais emblemáticas cenas da história do cinema nacional com o “beijo mortal” de “O Beijo no Asfalto”, de Bruno Barreto. Tarcísio, e mais ninguém, teria tamanha autoridade para ser D. Pedro II ou o asqueroso Dom Jerônimo Taveira de “A Muralha” ou o “regenerado” Renato Villar de “Roda de Fogo”. 

Paulo, por sua vez, esteve sob as lentes de Joaquim Pedro de Andrade, Jorge Furtado, Domingos Oliveira, Júlio Bressane... Como não lembrar de seus papéis em “Faca de Dois Gumes”, do Murilo Salles, “O Palhaço”, do Selton Mello, “O Rei da Noite”, do Babenco?... Isso quando não era ele mesmo quem dirigia! Paulo oportunizou algo que une e simboliza a obra desses dois gigantes quando dirigiu, gaúcho como era, a série “O Tempo e o Vento”, da obra de Erico Verissimo, dando a Tarcísio com sabedoria o papel de Capitão Rodrigo, aquele que talvez melhor tenha marcado o ator paulista, mas que, com seu talento, identificou-se profundamente com os gaúchos. 

Considerando que, desta geração nascida por volta dos anos 30 e que erigiu a arte de encenar no maior país da América depois dos Estados Unidos, resta apenas Fernanda Montenegro (vida longa!), não é exagero dizer que esta semana de agosto de 2021 poderá ser lembrada pelo “dia em que a arte dramática brasileira morreu”. 

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PAULO JOSÉ GÓMEZ DE SOUSA
(1937-2021)



TARCÍSIO PEREIRA DE MAGALHÃES SOBRINHO
(1935-2021)



Daniel Rodrigues