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segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Ravi Coltrane – 3º Canoas Jazz Festival – Parque Getúlio Vargas - Canoas/RS (24/11/2013)



foto: Paulo Moreira
Cheguei atrasado ao terceiro dia do Canoas Jazz Festival e só vi o final do show do octeto de Luizinho Santos. Mas o que vi só me confirmou o que eu já sabia: que iria ser uma excelente apresentação. Vi todas as outras vezes em que o octeto se apresentou e eles nunca fizeram nada menos do que um concerto espetacular. Peço desculpas ao Luiz e à Bethy por esta falta grave, porém, involuntária da minha parte. Vi inteiro, porém, o show de Alegre Correa. Este guitarrista de Passo Fundo morou fora do Brasil durante muito tempo e agora está de volta à Floripa. No palco com ele, um quinteto, com destaque absoluto para Uilian Pimenta, um pianista que vai dar muito o que falar. No repertório, canções compostas pelo guitarrista que abrem espaço para todos os integrantes da banda solarem. O problema, em minha opinião, é o próprio Alegre que insistiu em fazer vocalises acompanhando seus solos de guitarra em TODAS as músicas, deixando-as umas iguais às outras. Além disso, o som não favoreceu, deixando o líder da banda com um volume abaixo do que se esperava. A aparição de Jorginho do Trompete na última música ajudou a levantar o astral, pois tocou um solo muito bom no flugelhorn.
A coisa começou a esquentar quando o baterista Kiko Freitas subiu ao palco com seu trio, integrado pelo mestre Paulo Russo no baixo acústico - uma verdadeira instituição musical do Brasil - e o não menos exímio pianista gaúcho radicado no Rio, Rafael Vernet. Começando com "Beautiful Love", do repertório do Bill Evans Trio, logo se viu que a magia iria se instalar na próxima hora e não deixaria a cena. De "Prenda Minha", tocada no baixo de Russo, até "Piano na Mangueira", tivemos um concerto memorável. Uma aula de musicalidade e de empatia entre os três integrantes. Kiko até exagerou, iniciando uma versão de "Someday My Prince Will Come" com um solo de bombo legüero! Agora, todos estão esperando por um registro do trabalho deste grupo.
Bem, pra finalizar o "filho do homem" merece um capítulo à parte. Acompanho o trabalho de Ravi Coltrane desde 2000, quando o vi tocar no Free Jazz Festival. Sempre o considerei um bom saxofonista, que conseguia fugir da sombra acachapante de seu pai, um dos pilares do jazz moderno. Mas confesso que não estava preparado para revê-lo com a maturidade e a desenvoltura com que se apresentou em Canoas. Acompanhado por um quarteto formado por excelentes músicos (David Virelles, ao piano, Hans Glawichnig, no baixo acústico, e o impressionante Johnathan Blake na bateria), Ravi desfilou sua técnica exuberante, tanto no sax tenor quanto no soprano.

Mas parecia que faltava alguma coisa. De repente, foi como se o espírito do pai se apossasse de seu filho. Respondendo a este estímulo, reinterpretou "For Turiya", composta por Charlie Haden para Alice Coltrane, mãe de Ravi e uma figura importantíssima na sua escolha pela música, quando a dúvida ainda o acometia. E para mostrar que está em paz com o legado de seu pai, Ravi e seu grupo fizeram no bis uma versão monumental da clássica "Giant Steps", canção definidora do trabalho solo de Trane no início da década de 60. O público saiu de Canoas flutuando. E esperando a confirmação da quarta edição do festival.
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O que me mobilizou a ir ao Canoas Jazz Festival especialmente foi para ver Ravi Coltrane. Embora seja grande fã de jazz, poucas atrações me motivariam a ir a um ponto fora de Porto Alegre tão contramão. Mas desde que soube, através do Paulo Moreira, que Ravi Coltrane viria, não pensei duas vezes. Valia a pena.
Isso tudo porque Ravi é nada mais, nada menos do que pode se chamar de, como Paulo bem disse aqui, “o filho do homem”, e este homem se chama John Coltrane. Não à toa as quase invariáveis referências que faço a ele em meus textos musicais aqui no ClyBlog, pois o saxofonista é, para mim, o maior jazzista e um dos maiores músicos que já baixaram por estas bandas a qual chamamos de planeta Terra. Um mito na correta acepção da palavra. Eu e Leocádia Costa, que (não podia ser diferente) estava lá comigo, nutre como eu uma profunda admiração por sua obra, com a qual mantemos uma relação quase religiosa. Ver seu filho, o também jazzista, também saxofonista, também band leader (e muito parecido fisicamente com o pai) era uma ocasião especial.
Confesso que, por conhecer pouco do trabalho de Ravi, mesmo tendo ciência de que não são a mesma pessoa Ravi e John, fui com certo medo de me frustrar não sei exatamente com o quê: se em ser algo que não me tocasse tanto; que me desse a impressão de ser ele apenas uma farsa com um sobrenome que garante o credibilidade; que fosse tecnicamente perfeito, mas seco de emoção. Sei lá.
Mas, depois do excelente show de Kiko Freitas Trio, os temores foram embora na primeira execução de Ravi e seu trio. Irreparável. Ravi, como os bons virtuoses do jazz, é o próprio equilíbrio entre técnica e coração. O que se ouve em mestres do sax tenor como Dexter Gordon, Wayne Shorter, Coleman Hawkins, Sonny Rollins ou Joe Henderson vê-se claramente nele. Como, de forma exímia, foi seu pai, incomparável tanto pelo motivo óbvio, o de ser outra pessoa, quanto pelo de ser o maior ícone do jazz mundial. Ravi, no entanto, alinha-se a estes mestres que inclui John, dando uma bela continuidade e evolução ao que todos já construíram.
Show lindo e tocante, principalmente nas bem destacadas por Paulo, "For Turiya", tema enlevado e elevado cujo tema é, por si só, cheio de desvelos e assimetrias. Agora imaginem o improviso de Ravi? Espetacular, de tirar do chão. Extasiante. Aliás, este último é o termo que pode ser empregado para o bis do show, quando Ravi e sua maravilhosa banda retornaram para executar uma arrepiante “Giant Steps”. Num compasso mais acelerado e até mais pulsante que a clássica versão de 1959, não só parecia que John Coltrane havia baixado ali, em plena Canoas, como que Wynton Kelly assumira o piano, Jimmy Cobb as baquetas e Paul Chambers o baixo. Ao final, foi interessante ver o público quase sem acreditar no que presenciou demorando em sair da frente do palco mesmo depois de os músicos se despedirem totalmente.
Realmente essa sensação de deleite se manteve, ainda mais para mim e Leocádia, que compartilha comigo a admiração pelos Coltrane pai e, agora, filho. É das coisas mais bonitas ver esse tipo de laço que só a consanguinidade e a relação pai-filho suportam, ainda mais quando esta se expressa em uma arte tão elevada e grandiosa.

segunda-feira, 24 de julho de 2017

The Miles Davis Quintet - "Cookin'" (1957)



“Eu estava tocando o meu trompete e liderando a melhor banda do mercado, uma banda criativa, imaginativa, sobretudo coesa e artística”. Miles Davis, em 1956

“A tremenda coesão, o suingue impetuoso, a absoluta exaltação e a emoção controlada, presentes nos melhores momentos do quinteto de Davis, foram captados nesta gravação. [Philly Joe] Jones disse que essas sessões são as melhores já realizadas por Davis. Estou inclinado a concordar.” Revista Down Beat, em 1957

Há o mito de que o artista precisa de compenetração e tempo para que a inspiração venha. Pelo menos para Miles Davis, essa lógica não era uma máxima. Na metade dos anos 50, já gozando da aura de lenda que havia se tornado – aquele que tocou com Charlie Parker, que formava bandas invejáveis, que descobrira talentos e revolucionara o estilo ao legar-lhe o cool jazz no início daquela década –, Miles tocava muitos projetos ao mesmo tempo. Além das temporadas nos bares noturnos e da participação em festivais, ele gravara, entre 1955 e 1957, nada menos que 17 álbuns. Muito disso se deve ao fato de que ele atendia a duas gravadoras ao mesmo tempo. Contratado a preço de ouro pela Columbia em 1955, ele bem que poderia dispensar sua então gravadora, a Prestige Records. Mas preferiu encarar. Foi daí que, para dar tempo de cumprir o acordado, surgiram os quatro dos seis históricos álbuns pelo selo de Bob Weinstock, todos registrados numa maratona de apenas duas sessões de gravação nos estúdios Van Gelder, em Nova York, em 11 de março e 26 de outubro de 1956: “Relaxin’”, “Workin’”, “Steamin’” e o irrepreensível “Cookin’”.

Trabalhar a “toque de caixa” para Miles e sua banda não era um problema. Pelo contrário: acostumados com a simultaneidade de projetos e ao ritmo corrido da indústria do jazz, isso os estimulava a por para fora a liberdade criativa e a encontrar soluções rápidas em meio à pressão pelo resultado. Afinal, não se tratava de qualquer conjunto. A The Miles Davis Quintet era, simplesmente, a melhor banda daqueles efervescentes anos do jazz. Formava-se por Paul Chambers, no baixo; Red Garland, ao piano; Philly Joe Jones; nas baquetas; e John Coltrane, soprando seu genial sax tenor. Esse time, comandados pelo trompete sofisticado e pela liderança nata de Miles, é o responsável pela feitura de “Cookin’”, que, assim como os outros três da Prestige, completa 60 anos de lançamento.
Elegância. É o que melhor define a versão de “My Funny Valentine”, que abre o disco. Um solo sensualíssimo de Miles serpenteia sobre a melodia de ritmo cadenciado oferecido pelas vassourinhas na caixa de Joe Jones e pela condução compassada de Chambers. Ao final do improviso, nota-se a melodia tomando um feitio suingado e suavemente alegre. Prenúncio do apurado solo que Garland despeja sobre o piano, salpicando notas ligeiras e saltitantes nas teclas brancas, uma de suas características. Miles volta a assumir a frente, o que faz com que o ritmo envolvente e harmonioso retorne para, numa total sintonia de todos, finalizarem o tema brilhantemente. Se “My Funny Valentine” com Frank Sinatra é talvez a maior referência pop desta canção, a da Miles Davis Quintet ganha o título de “a mais cool” certamente.

É Garland quem puxa "Blues by Five", composição sua. Um jazz bluesy irresistível como os que Miles tinha grata preferência. Depois de o trompete entoar inteligentemente sequências espaçadas mas firmes, é a vez de Coltrane dar as caras pela primeira vez. Um solo em séries lógicas e com certo suingue, mas demarcando seu estilo intenso, com notas arremessadas, sobreposições e leves dissonâncias. Garland, aqui com total propriedade dada a autoria, novamente esbanja suingue e delicadeza. Chambers não deixa por menos, escalonando no baixo um gostoso solo. Ao final, antes da conclusão, é Joe Jones quem mostra as armas, improvisando rolos e combinações tomadas de balanço na conjunção caixa/bumbo/tom-tom/chipô/pratos.

"Airegin", diferentemente das anteriores, dá uma guinada mais desafiadora à obra, haja vista sua composição intrincada que prenuncia o jazz modal aperfeiçoado por Miles dois anos dali no célebre “Kind of Blue”, o mesmo que Coltrane faria já como front band em “My Favourite Things”. Isso se nota quando Miles, que dá a largada nas improvisações, articula, de tempo em tempo, o solo sobre uma escala modulada, a qual se mantém paralelamente enquanto o trompete flutua naquele espaço/tempo. Isso tudo encapsulado por um jazz ágil, que exige a habilidade dos músicos aprendida nos night clubs nova-iorquinos. E, claro, todos se saem impecavelmente bem. O que dizer de Coltrane, particularmente afeiçoado a esse tipo de estrutura harmônica complexa? Ele parece passear com o som de seu sax pela atmosfera, num toque de extrema destreza, sensibilidade e potência. Miles, no seu jeito peculiar de elogiar, disse certa vez que não adiantava dar orientações ao saxofonista, pois ele era mesmo um “filho da puta irrefreável”.

"Tune Up", única composição de Miles, é incendiada pelo fogo do hard bop, mas, igualmente pela elegância e simetria dos sopros quando nos chorus. Joe Jones sustenta um compasso aligeirado na combinação entre caixa e pratos, enquanto o band leader desvela um solo entre o cool e a tradição do be bop. Coltrane, por sua vez, entra logo em seguida e não deixa por menos, num toque encadeado e elevando a tonalidade. Garland pede passagem com seu piano, intervindo lindamente enquanto Trane ainda improvisa. Até que sua vez chega, e ele parece celebrar os mestres Nat King Cole, Bud Powell e Ahmad Jamal. Joe Jones, endiabrado, entra na roda de solos para fazer uma rápida – mas de tirar o fôlego – dobradinha com Miles.

O engenheiro de som Rudy Van Gelder não corta o take e eles engatam em "Tune Up" outro standart do jazz assim como “My Funny...”: "When Lights are Low", de Benny Carter e Spencer Williams, de 1936. Num clima contemplativo parecido com a da faixa de abertura, eles mudam a rotação anteriormente intensa para um jazz cheeck to cheeck. Um solo deslumbrante de Miles, longo e expressivo, é prosseguido pelo de Coltrane, o qual também executa suas combinações por um bom tempo. Carregado, áspero, impetuoso, como é particular do saxofonista. Com suavidade e precisão, Garland encaminha o desfecho do número, que o líder Miles se encarrega de concluir.

O feito do “quinteto clássico” é ainda hoje, seis décadas transcorridas, praticamente inigualável. Se sim, foi conseguido bem dizer somente pelo próprio Miles quando este formara o “segundo grande quinteto”, entre 1964 e 1968 com Herbie Hancock (piano), Ron Carter (contrabaixo), Tony Williams (bateria) e Wayne Shorter (sax). “Na minha opinião, a intricada complexidade de ligação entre as mentes daqueles músicos jamais foi igualada por qualquer outro grupo”, escreveu o crítico musical Ralph Gleason anos 17 depois do lançamento da tetralogia da Prestige, da qual “Cookin’” é, se não o melhor, um dos mais celebrados por crítica e público. Hoje, 60 anos depois, o disco continua soando cristalino e atemporal. Agora, imagine se Miles Davis tivesse se concentrado! Nem dá pra pensar no que sairia.

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FAIXAS
1. My Funny Valentine (Lorenz Hart/Richard Rodgers) - 6:04
2. Blues by Five (Red Garland) - 10:23
3. Airegin (Sonny Rollins) - 4:26
4. Tune Up (Miles Davis)/When the Lights Are Low (Benny Carter/Spencer Williams) - 13:09

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OUÇA

Daniel Rodrigues

sábado, 19 de novembro de 2011

John Coltrane - "My Favourite Things" (1961)



"John [Coltrane] era como um visitante a este
planeta.
Ele veio em paz e o deixou em paz."
Albert Ayler,
saxofonista norte-americano


Eu poderia falar aqui da importância de John Coltrane para a história do jazz.
(Ou tentar falar)
Ou mais, poderia falar da sua relevância para a história da música.
Eu poderia falar da relação de Coltrane com o saxofone e de sua deste artista para a consagração deste instrumento.
Poderia ressaltar todas as qualidades técnicas deste fantástico instrumentista.
Poderia tentar explicar suas grandes virtudes, seu estilo, características, mas como não sou um especialista, e sim apenas um apreciador, por certo, não conseguiria explanar tudo com precisão.
Poderia até...
Bom...
Poderia um monte de coisas.
Mas não vou.
Queria falar-lhes do disco "My Favourite Things" de 1961, mas... o que poderia dizer dele?
Falar da banda?
Do repertório de regravações de clássicos?
Porter, Gershwin, Rogers...? Hum...
Deixa pra lá.
Apenas dir-lhes-ei que "My Favourite Things" é uma daquelas obras que parecem preencher a alma d'a gente. Uma daquelas coisas que parecem não estar sendo tocadas por seres humanos. Que por vezes chega a parecer fazer-nos ficar em vias de desfalecer ou talvez, também, e não raro, sem nenhum aviso, fazer-nos apanharmo-nos inadvertidamante com lágrimas nos olhos.
Ah,
Dos meus favoritos.

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FAIXAS:
1."My Favorite Things" (Richard Rodgers) — 13:41
2."Everytime We Say Goodbye" (Cole Porter) — 5:39
3."Summertime" (George Gershwin) — 11:31
4."But Not for Me" (Gershwin) — 9:34

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Ouça:
John Coltrane My Favourite Things


Cly Reis

sábado, 8 de janeiro de 2022

83 anos da Blue Note - Os 10 discos preferidos

Entre as gravadoras, o nome Blue Note é certamente o mais mencionado entre todos aqui no blog quando falamos de música. Mais do que qualquer outro selo do jazz, como Atlantic, Impulse!, Columbia ou ECM, ou mesmo da música pop, como Motown, Chess, Factory e DefJam, a Blue Note Records já foi destacada em nossas postagens em pelo menos um cem número de vezes, aparecendo em diversos de nossos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS como informação essencial para, inclusive, a essencialidade das próprias obras. Não à toa. O selo nova-iorquino, que completou 83 anos de fundação esta semana, feito encabeçado pelos produtores musicais Alfred Lion e Max Margulis nos idos de 1939, transformou-se, no transcorrer das décadas, num sinônimo de jazz moderno de alta qualidade e bom gosto.

O conceito, aliás, já está impregnado nas caprichadas e conceituais artes dos discos, como nas capas emblemáticas de Reid Miles, as fotos de Francis Wolff e, por vezes, a participação de designers convidados, como Burt Goldblatt, Jerome Kuhl e, nos anos 50, um então jovem artista visual de Pittsburgh chamado Andy Wahrol. Tudo encapsulado pela mais fina qualidade sonora e técnica, geralmente gerenciada pelas hábeis mãos do engenheiro de som Rudy Van Gelder em seus mágicos estúdios Englewood Cliffs, em New Jersey, outro emblema de qualidade associado à marca Blue Noite.

Mas, claro, o principal é a música em si. Musicalmente falando, a gravadora em diferentes épocas reuniu em seu elenco nomes como Horace Silver, Herbie Nichols, Lou Donaldson, Clifford Brown, Jimmy Smith, Kenny Burrell, Jackie McLean, Freddie Hubbard, Donald Byrd, Wynton Marsalis, Andrew Hill, Eric Dolphy, Cecil Taylor, Hank Mobley, Lee Morgan, Sonny Clark, Kenny Dorham, Sonny Rollins e tantos outros. Há, inclusive, os que lhe tiveram passagem rápida, mas que, mesmo assim, não passaram despercebidos, como Miles Davis, nos primeiros anos de vida do selo, ou Cannonball Adderley e John Coltrane, que em seus únicos exemplares Blue Note, no final dos anos 50, deixaram marcas indeléveis na história do jazz.

Pode-se dizer sem medo que pela Blue Note passaram bem dizer todos os maiores músicos do jazz. Se escapou um que outro – Charles Mingus, Chet Baker, Albert Ayler, Ahmad Jamal – é muito. Outros, mesmo que tenham andando por outras editoras musicais, tiveram, inegavelmente, alguns de seus melhores anos sob essa assinatura, tal Wayne Shorter, Dexter Gordon e McCoyTyner.

Tanta riqueza que a gente não poderia deixar passar a data sem, ao menos, destacar alguma lista como gostamos de fazer aqui. Melhor, então: destacamos cinco delas! Para isso, chamamos nossos amigos jornalistas – e profundos conhecedores de jazz – Márcio Pinheiro e Paulo Moreira, contumazes colaboradores do blog, para darem, juntamente conosco, Cly e eu, suas listagens de 10 discos preferidos da Blue Note Records. Ainda, para completar, puxamos uma seleção feita pelo site de música britânico JazzFuel, em matéria escrita pelo jornalista especializado em jazz Charles Waring no ano passado. A recomendação, então, é a seguinte: não compare uma lista com outra e, sim, aproveite para ouvir ou reouvir o máximo possível de tudo que cada uma traz. Garantia de que as mais harmoniosas notas azuis vão entrar em sua cabeça.


Márcio Pinheiro
Jornalista

2 - Eric Dolphy - "Out to Lunch" (1964)
3 - Grant Green - "The Latin Bit" (1962)
4 - Herbie Hancock - "Takin' Off" (1962)
6 - Joe Henderson - "Mode for Joe" (1966)
7 - John Coltrane - "Blue Train" (1958)
9 - Ron Carter - "The Golden Striker" (2002)
10 - Sonny Rollins - "Newk's Time" (1959)



Paulo Moreira
Jornalista

1 - Thelonious Monk - "Genius Of Modern Music Vols. 1 e 2" (1951/52) 
3 - Eric Dolphy - "Out to Lunch"
4 - John Coltrane - "Blue Train"
5 - Bud Powell - "The Amazing Bud Powell Vol. 1 e 2" (1949/51)
6 - Art Blakey And The Jazz Messengers - "Moanin'" (1959)
8 - Sonny Clark - "Cool Struttin'" (1958)
10 - Grant Green - "The Complete Quartets With Sonny Clark" (1997)
Mais Três Discos Bônus: 
11 - Freddie Hubbard & Woody Shaw - "The Freddie Hubbard And Woody Shaw Sessions" (1995)
12 - Hank Mobley - "The Turnaround" (1965)
13 - James Newton - "The African Flower" (1985)


Cly Reis
Arquiteto, cartunista e blogueiro

1. Cannonball Aderley - "Sonethin' Else"
3. Horace Silver - "Song for My Father"
4. Lee Morgan - "The Sidewinder"
8. Wayne Shorter - "Speak No Evil"
9. Herbie Hancock - "Maiden Voyage" 


Daniel Rodrigues
Jornalista, radialista e blogueiro

1 - Herbie Hancock – "Maiden Voyage" (foto)
2 - Cannonball Adderley - "Somethin Else"
3 - Lee Morgan - "The Sidewinder"
4 - Wayne Shorter - "Night Dreamer"
5 - Grant Green - "Matador"
6 - McCoy Tyner - "Extensions"
7 - Horace Silver - "Song for my Father"
8 - John Coltrane - "Blue Train"
9 - Dexter Gordon - "Go"
10 - Cecil Taylor - "Unit Structures" (1965)


Charles Waring
Jornalista da JazzFuel

1 - Bud Powell – "The Amazing Bud Powell (Vol 1)" (1949)
2 - Clifford Brown – "Memorial Album" (1956)
3 - Sonny Rollins – "A Night At The Village Vanguard" (1957)
4 - John Coltrane – "Blue Train"
5 - Art Blakey and The Jazz Massangers – "Moanin’" 
6 - Kenny Burrell – "Midnight Blue" (1963)
7 - Horace Silver – "Song For My Father" 
8 - Lee Morgan – "The Sidewinder" 
9 - Eric Dolphy – "Out to Lunch"
10 - Herbie Hancock – "Maiden Voyage" 

 Daniel Rodrigues

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Dexter Gordon - "Go" (1962)



“Minha vida é a música.
Meu amor é a música.”
fala de Dale Turner,
personagem vivido por Dexter Gordon
no filme “Por Volta da Meia Noite”



Quem é amante de jazz e afeito às comparações futebolísticas a diversos outros assuntos, vai concordar: se Miles Davis é o Pelé e John Coltrane o Garrincha do jazz, Dexter Gordon é o Nilton Santos. Miles por conta da longevidade e quantidade de gols feitos nas diferentes eras em que atuou. Coltrane pela meteórica e decisiva passagem, marcada pela genialidade, pela paixão por sua arte e pela habilidade jamais igualada. Gordon, por sua vez, poderia ter o mesmo apelido que o zagueiro do Botafogo e das duas primeiras seleções brasileiras campeãs mundiais: “enciclopédia”. O saxofonista era um craque do jazz.

Atravessando em atividade da fase áurea ao declínio do gênero, dos anos 40 aos 90, o californiano Dexter Keith Gordon estudou clarinete aos 13 anos e na adolescência já dominava o sax tenor. Só na primeira década como músico profissional já somava passagens pelas bandas de Louis Armstrong, Nat “King” Cole, Lionel Hampton, Ben Webster, Lester Young e nas orquestras de Fletcher Henderson e Billy Eckstine, esta última, com a qual tocou para gente do calibre de Sarah Vaughan e Dizzy Gillespie. Ainda nos anos 40, gravou pela Savoy, ao lado dos colegas Wardell Gray e Teddy Edwards, discos revolucionários que se tornariam referência para a então nova geração de saxofonistas tenores, entre os quais Coltrane e Sonny Rollins. Como se não bastasse, na década seguinte, o jovem alto e galante foi também um dos precursores de outra revolução: o estilo mundialmente assimilado chamado bebop.

Chegado aos anos 60, na faixa dos 30 e já com toda essa bagagem, mesmo não sendo uma celebridade de massas (o que cantores como Frank Sinatra e Tony Bennett cumpriam com autoridade), era evidente que o passe de Dexter Gordon estava valorizado. Pois o produtor Alfred Lion resolveu bancar. Em 1961, chama-o para seu selo, Blue Note, no qual permanece por quatro anos. O crème de la crème dos sete álbuns gravados por Gordon neste período é “Go!”, de 1962. Com a companhia de uma estelar “cozinha”, formada pelo requintado pianista Sonny Clark, o ágil baterista Billy Higgins e o flexível baixista Butch Warren, Gordon usa de toda sua maestria e compõem um disco impecável, considerado um dos melhores de todos os tempos da discografia jazz. Virtuose e dono de um estilo abarcante – no qual se ouviam facilmente a fineza de Armstrong, a pulsação de Charlie Parker, a sutileza de Young e a potência de Coleman Hawkins – é possível derivar do seu fraseado a tradição e a modernidade. Ele, que havia passado pela descoberta do swing, pelo estouro das big bands e pelo advento do cool e do bebop, junta tudo isso de uma forma absolutamente natural e híbrida.

Nesse clima abre a literalmente saborosa “Chees Cake”, única composição do álbum de autoria de Gordon. Acordes de baixo anunciam o começo, somando-se a este a bateria, marcada no prato de ataque. É quando vem Gordon com seu vigoroso e elegante sopro, extraído de pulmões possantes guardados em sua parruda caixa torácica. O riff, dos mais marcantes do cancioneiro jazz. Desenvolve-se um solo extenso e gostosamente inventivo, rebuscando o bebop e o recheando-lhe com novos temperos, que coloca a canção no limiar entre o cool e o hard bop. Clark assume brevemente em um notável solo antes de Gordon retornar para a segunda intervenção. Nova maravilha. Fluxo altamente vibrante e suingado, com uma engenhosa escolha das notas e escalas que só poderiam sair de um ”decano” como Gordon.

"Guess I'll Hang My Tears Out to Dry", na sequência, é um verdadeiro convite à melancolia e ao romantismo da noite nova-iorquina. Balada de ouvir dançando agarradinho ou para afundar as mágoas num copo de bourbon sem gelo. Linda. O soprar de Gordon é seguro e cheio, mas não menos lânguido e introspectivo, como quem está escutando o próprio coração e reproduzindo-o em sons. É possível sentir cada nota, cada sentimento. O sax se alonga em sua conversa com os apaixonados e/ou descornados, tomando-lhe quase 4 minutos. Dá um passe para que Clark faça, com habilidade, mate no peito e ponha no chão. O pianista faz um afago nas teclas, enquanto Higgins vaporiza a atmosfera com uma levada nas escovinhas tendo como companheiro para isso Warren serpenteando as cordas. Mas não dura muito tempo a vez do trio, pois Gordon “retoma a bola” para finalizar a canção repetindo frases e retomando as mesmas ideias amorosas de seu sax. Junto a "Blue in Green", de Miles, “Round Midnight”, com Chet Baker, “Naima”, de Coltrane, “Like Someone in Love”, com Ella Fitzgerald, está entre as 10 grandes baladas jazz da história.

"Second Balcony Jump" vem para elevar o ânimo num jazz bluesy animado e gracioso. Nada menos que 3 minutos e 40 de um improviso solto e ininterrupto de muita expressividade e agilidade de Gordon. Como nas anteriores, é Sonny Clark quem tem a primazia do segundo solo, o qual faz com absoluta destreza de quem “chuta” com as duas valendo-se da liberdade dada pelo líder. Gordon reaparece já dentro da área para finalizar com uma mais curta improvisação em que ratifica sua presença. Higgins dá um breve solo antes do saxofonista terminar o número brincando ao executar o clássico desfecho: “pam-pam-ram-ram-pam/ pam pam!”.

Sintonizado com um ritmo latino que se fazia novo nos Estados Unidos e que tomava o gosto dos músicos estrangeiros, uma tal de bossa-nova, Gordon traz uma feliz interpretação do clássico “Love for Sale”. Assim como Stan Getz, Charlie Byrd, Henri Mancini, Vince Guaraldi e outros impressionados com as inovações harmônicas e melódicas levadas a eles principalmente por conta da trilha do filme “Orfeu Negro”, de 1959 (o disco “Bossa Nova at Carnegie Hall”, o definitivo carimbo internacional da bossa-nova, seria gravado no final daquele ano), o saxofonista entra no gingado brasileiro e tece uma malemolente versão para a música de Cole Porter. Muito ajudado pela marcação sambada de Higgins. Clark, visivelmente movido pelo piano de Tom Jobim, é outro a entrar no espírito bossa-novista. Gordon, por sua vez, dá um show de manutenção dos tempos durante o riff, soltando a criatividade e apuro nos improvisos. Clark, por sua vez, vive aqui seu mais inspirado solo, engenhoso dentro dos tempos circulares que encadeia.

"Where Are You?" é mais uma balada para morrer de amor. As pronúncias seguras de sentimento do sax impressionam pela elasticidade e controle dos tempos, realizando leves atrasos, ataques carregados e modulações, todas precisas. Por volta dos 3 minutos e 30, Gordon intensifica a emotividade ao subir um tom. Prenúncio de uma breve pausa para o mais uma vez sutil e inteligente dedilhado de Clark, envolto num clima de nightclub, de fumaças de cigarro e cheiro de trago no ar, forjada pela condução de Higgins e Warren. “Go!” finaliza com a sibilante "Three O'Clock in the Morning", a qual começa com o piano marcando o tique-taque do relógio nas agudas teclas pretas. São três da manhã e é possível enxergar um casal enamorado passeando feliz e bêbado pelas ruas desertas da Big Apple entrando de bar em bar e alheios a qualquer coisa que não seu affair. É assim que o disco se encerra: na felicidade inebriada da boemia da Village Vanguard.

A lenda em torno de Dexter Gordon não terminaria em “Go!”. Um pouco pela desvalorização de “velhos” como ele em detrimento dos jovens ases do free-jazz e da avant-garde ­– sem falar nos astros pop ascendidos naquela década, quase hegemônicos na indústria fonográfica de então –, um pouco para se isolar por conta do vício em heroína, o músico norte-americano refugia-se na Europa. Lá é redescoberto e passa a viver em Paris e em Copenhague, onde vira a celebridade que não tinha sido até então. Torna à terra natal somente em 1976, quando é recebido com honras. Afinal, não é todo dia que se tem de volta o herdeiro de Armstrong, Parker, Hawkins e Young. Passados o estouro do rock ‘n’ roll, acalmado o fervor dos anos hippies e assimilada a hibridização do jazz com o rock – a esta época já haviam morrido Coltrane, Lee MorganJimi HendrixJanis Joplin e iam-se já seis anos do rompimento dos Beatles –, Dexter Gordon finalmente ocupa seu lugar dentro de casa.

Ainda, quatro anos antes de morrer, aos 63, roda, com o cineasta francês Bertrand Tavernier, o memorável filme “Por Volta da Meia-Noite” (1986), em que protagoniza o papel justamente de um saxofonista de jazz norte-americano autoexilado em Paris, onde é ovacionado. A abordagem dos problemas com drogas e álcool, os desajustes familiares e a saudade do ninho demonstrada pelo personagem tornam o filme bastante autobiográfico, mesmo que a história se baseie também em parte na trajetória de dois dos mestres de Gordon: Young e Bud Powell. A aura mítica que se cria em torno do alter-ego de Gordon, Dale Turner, é tão natural quanto a sua interpretação de si mesmo no longa: os gestos entre o charmoso e o ébrio, a voz naturalmente rouca, a fala pausada, o sorriso maroto, o porte altivo preservado da juventude. Pela atuação, o músico chegou a concorrer ao Oscar de Melhor Ator naquele ano. Não precisou nem vencer para reforçar o mito do então último expoente da gênese do jazz, gênero do qual ele foi, se não o maior como um Pelé ou o mais genial Coltrane, o exemplar mais completo como Nilton Santos. De modo que “Go!” não é simplesmente um disco: é um “golaço!”.
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FAIXAS
1. "Cheese Cake" (Dexter Gordon) - 6:33
2. "Guess I'll Hang My Tears Out to Dry" (Jule Styne/Sammy Cahn) - 5:23
3. "Second Balcony Jump" (Billy Eckstine/Gerald Valentine) - 7:05
4. "Love for Sale" (Cole Porter) - 7:40
5. "Where Are You?" (Jimmy McHugh/Harold Adamson) - 5:21
6. "Three O'Clock in the Morning" (Dorothy Terris/Julian Robledo) - 5:42

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quinta-feira, 26 de março de 2020

McCoy Tyner - "The Real McCoy" (1967)



"Sabe, acabei de ouvir 'The Real McCoy', talvez pela primeira vez desde que o fiz. Eu ainda tinha o álbum original embrulhado em celofane. Mas alguém estava me dizendo que esse era um dos melhores discos, então tirei o celofane e o ouvi. Fiquei surpreso. Uau! Nós realmente chegamos lá". 
Ron Carter, em entrevista de 2007

É interessante perceber como McCoy Tyner, morto recentemente, é recorrentemente mais lembrado por sua participação no lendário “quarteto mágico” de John Coltrane do que pela própria carreira solo. Motivo há, uma vez que a fase em que tocou por seis anos juntamente com Elvin Jones (bateria) e Jimmy Garrison (baixo) para o autor de “A Love Supreme” é tão marcante não apenas para o jazz, mas para a música do século XX, que se faz inevitável a associação. Porém, Tyner é, seguramente, mais do que isso. Mesmo que para a maioria dos músicos seja mais do que suficiente ter feito parte de gravações épicas como as dos discos “Giant Steps”, “Crescent” e o próprio “A Love...”, Tyner, obteve, para além disso, o feito de ser considerado em vida o mais influente pianista do jazz ao lado de Bill Evans. E com merecimento próprio.

Se este reconhecimento veio por conta também da contribuição ao grupo de Coltrane, com quem teve sua primeira experiência importante como músico na primeira metade dos anos 60, muito mais se deve àquilo que ele inovou e legou a todos os pianistas que lhe sucederam. Seu estilo, que une técnica e classicismo à intuição criativa do blues, o fez dar um passo à frente de sua geração. Se Evans foi centro harmônico para a invenção do jazz modal, Tyner concebeu uma nova forma de estruturá-lo. Nas ambiências dada à escala modal, nas quartas justas ou aumentadas na mão esquerda, típicas suas, ou o uso do cromatismo nos improvisos e os famosos voicings, em que brincava com os espaçamentos e duplicações de notas. E o fazia lindamente através de seu dedilhado sensível e preciso. Coração e mente em plena integração com a música.

Além das participações em bandas outros ilustres jazzistas, como Wayne Shorter, Grant Green, Lee Morgan e Bobby Hutcherson, Tyner construiu, ao longo de quase 60 anos, uma discografia invejável, pautada, desde o início, pela maturidade musical. “Inception”, de 1962, seu primeiro solo, é uma prova clara disso. Nos anos seguintes, grava outros álbuns mas mantendo-se, em paralelo, no quarteto de Trane, com quem não apenas gravava em estúdio como excursionava para shows. Porém, foi no mesmo ano em que o amigo saxofonista morreria, em julho, que o cúmplice Tyner deu a si, dois meses antes, como que pressentindo a impermanência da vida, a abertura para algo realmente próprio e descolado da figura mítica de Coltrane. Era a sua mais bem acabada obra até então: o corretamente intitulado “The Real McCoy”. Experiente e sob uma nova perspectiva como band leader, ele junta-se aos craques Ron Carter (baixo), Lou Donaldson (sax alto) e novamente a Jones para dizer ao mundo quem, de fato, era aquele pianista por trás das maravilhas coltraneanas.

O autorreconhecimento de Tyner começa com a liberdade bop de "Passion Dance", tomada, como o nome diz, de amores intensos e ritmo. Tyner convoca o time com astúcia e intensidade, mantendo a vibração lá no alto. Mas nessa é o parceiro Jones, insano na bateria, quem mais se destaca, tanto que é ele quem revela o solo mais impressionante da música.

Seguindo a linha de buscar um olhar interior, nada mais adequado que recorrer à “contemplação”. Mas “Contemplation”, faixa seguinte, é mais do que só a sugestão do título: são 9 minutos de conexão com o reconhecimento da beleza que se tem dentro de si. Que elegância assombrosa! As baquetas mantendo o tempo no prato; o piano, em tremolos e encadeamentos, ambientando sobre uma escala modal; o sax desfilando vivacidade; e o baixo desenhando blues algo dissonante, sem contar com o vaporoso improviso mais para o final da faixa. E o solo do piano, então!? É como se dois pianistas, um severo e outro sonhador, tocassem juntos e ao mesmo tempo. Mas ambos são McCoy Tyner. Um blues enebriado e, ao mesmo tempo, enigmático e sensual, que explica porque o pianista foi o preferido do gênio Coltrane.

Já "Four by Five" começa com Handerson desafiando as notas em busca do improviso perfeito. Se ele não consegue, talvez chegue perto. Mas Tyner e Jones não ficam para trás no virtuosismo e explosão amparados pelo entendimento quase transversal de Carter. Na sequência, o contrabaixo começa lançando um efeito ondulante e sinestésico, enquanto o piano de Tyner polvilha notas soltas e oníricas, que anunciam a introspectiva “Search For Peace”, mais uma busca ao “eu” interior de seu autor. O sax, incrivelmente belo em um tom bastante alto, soa como um trompete, lembrando a economia cool de Miles Davis. Mas Tyner, claro, é quem chama para si o protagonismo, desafiando os limites entre o neo-romantismo e o lirismo melancólico do blues. Carter, na sua, dá um show de andamento, ao seu estilo trastejante.

“Blues on the Corner”, bluesy, levemente dissonante, é praticamente uma síntese do Tyner, o artista e a pessoa,  uma vez que remonta à tradição da música negra norte-americana adicionando-lhe uma visão de modernidade.

Múltiplo, mas a seu modo, Tyner ainda experimentaria o post-bop, o afro-jazz, o jazz fusion, a world  e até a soul. No entanto, sempre enraizado em sua natureza. Ele era o toque inconfundível que seus dedos transmitia, como a união do divino e do mundano, do céu e do inferno, da vida e da morte. Sempre e a todo o momento aquilo que realmente lhe dá nome: piano.

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FAIXAS:
1. "Passion Dance" – 8:47
2. "Contemplation" – 9:12
3. "Four by Five" – 6:37
4. "Search for Peace" – 6:32
5. "Blues on the Corner" – 5:58
Todas as composições de autoria de McCoy Tyner

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Daniel Rodrigues

segunda-feira, 31 de maio de 2021

Miles Davis - "Bags Groove" (1957)

 

"Em fevereiro de 1954, pela primeira vez em um tempo, eu me sentia bem de verdade. Minha embocadura estava firme porque eu vinha tocando todas as noites e tinha finalmente me livrado da heroína. Eu me sentia forte, física e musicalmente. Me sentia pronto para tudo."
Miles Davis

Era incrível a capacidade de Miles Davis para compor grandes bandas. O músico, que completaria 95 anos no último mês de maio e cuja prematura morte completará três décadas em setembro, desde que se tornara um jovem band leader, aos 22, no final dos anos 40, estabelecera tal protagonismo. Após alguns anos de “escola” aprendendo teoria musical na Julliard School mas, principalmente, tocando na banda de Charlie Parker, o grande revolucionário do jazz, o homem que pôs o gênero de ponta-cabeça diversas vezes ao longo de meio século, em menos de 10 anos de carreira solo e menos de 30 de idade já era considerado uma lenda no meio jazz nova-iorquino. Além de lançar discos referenciais, como “Birth of the Cool” (1949/50), cujo nome fala por si, e a trilogia hard-bopCookin’/ Relaxin’/ Steamin’” (1956), o trompetista tinha um tino especial também para agregar a si outros talentos, formando grupos às vezes tão inesquecíveis quanto seus álbuns. Tanto veteranos, como Charles Mingus, Art Blakey e Max Roach quanto então novatos, como Gerry Mulligan, John Coltrane, Herbie Hancock e Tony Williams, eram recrutados por Miles, um líder natural.

Era tanto prestígio de Miles já à época, que ele mantinha contrato com duas gravadoras, Blue Note e Prestige, e estava em vias de assinar com outra: a Columbia. Toda essa autoridade permitiu que, em “Bags Groove”, de 1957, ele pudesse contar não com uma, mas duas bandas. E, diga-se: bandas de dar inveja a qualquer front man. O disco reúne duas sessões de gravação ocorridas em 1954 no famoso estúdio Van Gelder, em Nova York: a 29 de junho e a 24 de dezembro. Para cada uma, Miles teve escalações estelares. Acompanhando-o na segunda delas estão, além dos velhos parceiros Percy Heath, ao baixo, e Kenny Clarke, na bateria, ninguém menos que Milt 'Bags' Jackson, nos vibrafones, membro da inesquecível Modern Jazz Quartet e a maior referência deste instrumento na história do jazz, e Thelonious Monk ao piano, considerado um dos maiores gênios da música do século XX. Duas referências do jazz bebop e ambos tocando pela primeira vez com o trompetista. 

O disco começa com outra característica de Miles fazendo-se presente, que é a de não apenas estar ao lado de músicos de primeira linha como, principalmente, saber tirar o melhor proveito disso. As duas versões da faixa-título, de autoria do próprio Milt, são tão solares que fazem esquentar o frio nova-iorquino daquela véspera de Natal. O estilo solístico de Miles e sua liderança no comando da banda, atributos totalmente recuperados por ele naquele 1954 depois de um longo e tortuoso período de vício em heroína, ficam evidentes em seus improvisos inteligentes, econômicos e altamente expressivos. 

Mas não é apenas Miles que brilha, visto que tudo na música “Bags...” abre espaço para diálogos. A elegância característica do estilo de Miles se reflete no soar classudo do vibrafone de Milt. Poder-se-ia dizer tranquilamente que a faixa, por motivos óbvios, além da autoria e da autorreferência, é dele, não fosse estar dividindo os estúdios com Miles e Monk. Este último, por sua vez, conversa tanto com a elegância peculiar dos dois colegas quanto, principalmente, no uso inteligente e econômico das frases sonoras. No caso do pianista, mais que isso: precisão – e uma precisão singular, pois capaz de expressar sentimento.

Capa do disco com Rollins,
que corresponde ao
lado B de "Bags Groove"
O repertório do álbum se completaria com outra gravação ocorrida meses antes, só que num clima totalmente contrário: em pleno calor do verão junino da Big Apple, Miles entra em estúdio amparado por Clarke novamente, mas agora tendo ao piano outro craque das teclas, Horace Silver. Mas ao invés do vibrafone percussivo de Milt, agora a sonoridade complementar muda para outro sopro: o vigoroso saxofone tenor de Sonny Rollins. Substituições feitas, qualidade mantida. Como um time que não se afeta com a intempéries e sabe mudar as peças mantendo o mesmo esquema vitorioso, 

Os quatro números restantes são fruto da sessão feita para “Miles Davis With Sonny Rollins”, de 1954 (este, lançado naquele ano mesmo), quando Miles, que já havia trabalhado rapidamente com o saxofonista três anos antes, apresentava-o, então com 24 anos, como jovem promessa do jazz. E se o lado A de “Bags...” tinha como autor não Miles, mas seu parceiro Milt, a segunda parte também era praticamente toda assinada por Rollins. “Airegin”, um bop clássico, é o resultado do entrosamento dos dois. Miles gostou tanto do tema, que o regravaria no já referido “Cookin’” com Coltrane, no sax, Red Garland, ao piano, Paul Chambers, baixo, e Philly Joe Jones, na bateria. O mesmo acontece com “Oleo”, um gostoso jazz bluesy, que Miles aproveitaria no repertório de outro disco memorável daquela época, “Relaxin’”, e com o qual contou com a mesma “cozinha” de “Cookin’”.

“Bags...” tem ainda outra de Rollins, a inspiradíssima “Doxy” e sua levada balançante, que não muito tempo dali se tornaria um clássico do cancioneiro jazz, interpretada por monstros como Coltrane, Dexter Gordon e Herb Ellis. Completam o repertório dois takes do standart “But Not For Me”, de Gershwin. Classe pouca é bobagem. 

Isso tudo, acredite-se, antes de Miles ter lançado aquele que é considerado sua obra-prima, “Kind of Blue”, de 1959, a criação do jazz modal e com o qual contou com Coltrane, Bill Evans, Cannoball Adderley, Jimmy Cobb e Wynton Kelly. Antes de ter tocado com o infalível quarteto Williams, Hancock, Wayne Shorter e Ron Carter, noutro passo fundamental para o jazz. Muito antes de ter feito “In a Silent Way” e “Bitches Brew”, as revoluções do jazz fusion em que teve, além de Hancock, Shorter e Williams, outros coadjuvantes ilustres como Chick Corea, Joe Zawinul e John McLauglin. Como talvez nenhum outro músico do jazz, Miles tinha a capacidade de reunir os diferentes e saber extrair disso o melhor. De unir verão e inverno e torná-los a mesma estação. “Bags...” é uma pontinha de tudo isso que Miles fez e representou para o jazz e a música moderna. E haja bagagem para conter tanta história e tantos talentos orbitando ao redor do planeta Miles Davis!

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FAIXAS:
1. "Bags' Groove" (Take 1) (Milt Jackson) - 11:16
2. "Bags' Groove" (Take 2) - 9:24
3. "Airegin" (Sonny Rollins) - 5:01
4. "Oleo" (Rollins) - 5:14
5. "But Not for Me" (Take 2) (George Gershwin/ Ira Gershwin) - 4:36
6. "Doxy" (Rollins) - 4:55
7. "But Not for Me" (Take 1) - 5:45


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Daniel Rodrigues

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Miles Davis - "Kind of Blue" (1959)

"Quem é tocado por essa música [de Kind of Blue] muda para sempre. E se torna melhor do que é."
 Herbie Hancock



Fui convidado pelo autor deste blog a escrever a resenha sobre “Kind of Blue”, de Miles Davis, de 1959, simplesmente o disco de jazz de maior sucesso e vendagem de todos os tempos, tendo ultrapassado tranquilamente, mais de meio século depois de seu lançamento, a marca de 6 milhões de cópias vendidas em todo o mundo. Volume este que continuará crescendo certamente, tendo em vista que diariamente exemplares de “Kind of Blue” são adquiridos por novos e antigos fãs. Eu mesmo sou mais um dentre esta multidão de admiradores.
 Então, diante de tal missão, perguntei-me: o que dizer deste fenômeno, uma obra que perdura a tanto tempo e da qual, principalmente, gosto tanto? Como dimensionar sua evidente inspiração a toda uma geração de artistas? Ou, ainda, explicar de que forma a gama de aspectos musicais e não musicais que “Kind of Blue” abarca, trazendo de vez para a música moderna as influências de culturas folclóricas, como os sons orientais, africanas ou hispânicos, e misturando tudo isso ao groove latino, à música erudita e a tradição negra americana? Como jornalista, uma das regras básicas da minha profissão é a de manter imparcialidade sobre o que se está analisando. O que fazer, então, quando se está na posição de crítico e amante ao mesmo tempo?
 A solução que achei foi a de me entregar à genialidade deste disco, perceptível a cada faixa, a cada solo, a cada fraseado de trompete, a cada base de piano, a cada vibração de corda do baixo, a cada ataque do saxofone. “Kind of Blue” já impressiona de cara pela “cozinha”. O quinteto formado por Miles tinha nada mais nada menos que o baixo seguro de Paul Chambers, a bateria swingada e elegante de Jimmy Cobb, o sax alto cheio de sentimento e alma gospel de Cannonball Adderley, o piano “branco” e mezzo-erudito de Bill Evans, o trompete genial e inteligentemente comedido do próprio Miles e o sax tenor do talentosíssimo John Coltrane, que, talvez, comporte todos esses elementos e mais um pouco. Trata-se da melhor banda de Miles, comparada somente a seu supertime de 1969, que contava com feras como Chick Corea, Herbie Hancock, Wayne Shorter e Ron Carter. O fato é que os quatro músicos que acompanharam Miles em “Kind of Blue” tornaram-se ou se solidificaram depois do álbum como alguns dos grandes nomes da história do jazz (incluindo aí Red Garland, que tocou piano em uma das faixas), mas principalmente Coltrane, que revolucionou o estilo, disco a disco, até a sua morte, em 1967.
 Mas e o disco? Bem, “Kind of Blue” começa com a célebre “So What”, um blues cadenciado e cheio de swing onde aparece pela primeira vez na história da música um negócio que Miles Davis vinha desenvolvendo (parte conscientemente e outra não) há mais ou menos uma década: o jazz modal. Embora se trate de uma invenção técnica, facilmente distinguida por músicos, para leigos como eu também não é difícil de reconhecer. Ou, pelo menos, “sentir” a diferença. O jazz modal – diferentemente da loucura criativa do be-bop, que aproveitava todas as escalas musicais ao extremo, ou do free-jazz, livre em concepção, como o título sugere – propunha uma, digamos, “simplificação programada” do jazz. Assim, as melodias eram compostas em escalas (por módulos = modal), o que gera uma base em que há poucas mudanças de notas mas, ao mesmo tempo, dá uma vasta liberdade aos solistas, que não precisam improvisar somente dentro do tradicional tempo 1-2-3-4. Um pequeno detalhe, mas uma verdadeira revolução que influenciou todo o jazz, soul, pop e rock que viria a seguir – isso, para ficar só nas contribuições à música, sem falar do cinema, artes plásticas, cênicas, etc.
 “So What”, com sua memorável abertura do diálogo entre baixo e piano, é, assim, um marco do jazz modal, formato que Miles e seu quinteto empregaram em todas as cinco faixas do álbum. E “So What” guarda ainda uma outra curiosidade. Nela, a visão pop do caleidoscópico Miles se evidencia: ouvindo com atenção, dá para perceber que sua base de sopros no chorus é idêntica a de “Cold Sweat” (veja o vídeo), de James Brown (a quem o jazzista admirava), considerado o primeiro funk da história. Porém, exceto por um detalhe: as notas estão na ordem inversa.
 O disco segue com outro jazz “blueseado”: “Freddie Freeloader”, tema que contém o talvez mais impressionante solo já tocado por Coltrane. Depois do número elegante de Miles, Trane entra literalmente rachando com toda emoção e potência, vazando o som do seu sax para todos os microfones do estúdio e obrigando o operador da mesa a reduzir o volume manualmente na hora. O que seria uma falha na gravação para um artista comum, fazendo com que se repetisse a sessão, por causa da sensibilidade de Miles ficou assim mesmo e assim se eternizou.
 A lindíssima balada “Blue in Green” vem na sequência, uma provável parceria de Miles com o Evans onde o pianista conduz a melodia. Bem, “melodia” não é bem o termo certo. Criada sob a linha modal de notas cool que variam em poucas escalas, e com claras influências eruditas emanadas do piano quase clássico de Evans, “Blue in Green” não tem uma melodia propriamente dita. Não fica evidente um acorde básico ou um riff. Mesmo assim, sua aura é tão palpável que quem a escuta jamais se esquece de como ela é.
 Outra pérola inesquecível de “Kind of Blue” é a hipnótica e sensual “All Blues”, na qual se veem nuanças hispânicas, afro e da vanguarda erudita. Nela, o piano mantém constantemente um trinado que parece com marimbas espanholas tremulando, enquanto os sopros executam o chorus lentamente, em longos e lânguidos riffs fraseados que definem a base do tema. Para matar a pau, o Miles inicia uma segunda frase melódica com um longa nota, que se estende, parecendo dar asas à canção. Ajudado pelo som de escovinhas raspando no tarol, o famoso som repetido do piano gera uma sensação mágica de circularidade, muito bem traduzida para o audiovisual pelas lentes de Spike Lee, no filme "Mais e Melhores Blues" de 1990.
 A obra-prima finaliza com outra de ares ibéricos: “Flamenco Sketches”, tão rica e densa musical e conceitualmente que serviu de inspiração não para mais uma música, mas para um disco inteiro de Miles Davis chamado “Sketches of Spain”, de 1960. É mole ou quer mais?

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 Antes e depois de “Kind of Blue”, Miles Davis revolucionou a música moderna uma porção de vezes. Por isso, vale destacar pelo menos duas obras que se incluem nesta lista e que foram importantes na formação do jazz modal que desembocaria em “Kind of Blue”: “Walkin’” e “The Birth of the Cool”, ambos de 1954.

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 Como todo grande disco, um “The Dark Side of the Moon”, do Pink Floyd, ou “Exile on Main Street”, dos Rolling Stones, “Kind of Blue” carrega lendas. Uma delas – e que se constatou ser verdade quase 40 anos depois – é a de que a gravação impressa em milhões de exemplares e que se popularizou no mundo todo por décadas estava milésimos de segundo mais lenta que o normal, pois se tratava da cópia extraída de uma master com um leve defeito. Hoje, é possível adquirir a versão corrigida, mas muitos veem nesta falha um toque divino, mantendo-se fiéis ao registro “original”.

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O livro sobre a história da obra-máxima
de Davis
O autógrafo do mestre Hermeto
no livro do 'parceiro' Miles
 Para finalizar, dia desses encontrei no Aeroporto de Porto Alegre o compositor e multi-instrumentista brasileiro Hermeto Pascoal. Pedi-lhe um autógrafo no primeiro papel que vi, meu livro, o que ele prontamente atendeu. Para não lhe dar a impressão de que gastaria tinta em qualquer papel, eu, na minha ignorância, comentei que estava lhe dando para assinar uma obra que abordava o tema música: era “Kind of Blue: A História da Obra-prima de Miles Davis”, do jornalista americano Ashley Kahn. Afinal, jazz e Hermeto Pascoal é quase a mesma coisa, né? O “albino Hermeto” (que de fato não enxerga muito bem, como disse Caetano Veloso), comentou-me, então, com toda simplicidade que conhecera Miles Davis no final dos anos 60, e que tocara junto com ele. (!) Não só: que justo o para mim tão mitológico Miles havia gravado duas canções dele, Hermeto, em um disco que ele não lembrava ao certo o título e de quando datava (vejam só!). Enfim, estupefato pelo desapego do genial Hermeto busquei no Google e encontrei o tal disco: chama-se “Live Evil”, de 1967, considerado por alguns como um álbum “demoníaco”. Quem quiser conhecer, benza-se antes de ouvir. Cruz-credo!

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Ouça:
Miles Davis Kind Of Blue



por Daniel Rodrigues





Daniel Rodrigues é jornalista formado pela PUC/RS, curioso e pesquisador de música, é aberto a todos os estilos demonstrando, contudo, especial interesse e conhecimento pelo jazz. Também, por incrível que possa parecer, direciona grande parte de suas atenções ao punk-rock, suas origens e vertentes, estilo sobre o qual inclusive baseou o tema de sua tese de diplomação relacionando-o com a evolução da moda.
Daniel além de tudo isso é meu irmão e foi integrante comigo da banda 'punk-putaria-core', HímenElástico.

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Ornette Coleman – “The Shape of Jazz to Come” (1959)



"Ornette é um dos meus astronautas favoritos"
Wayne Shorter


“’Kind of Blue’ era um álbum bonito, delicado,
mas não lembro de ele ter realmente
virado minha cabeça na época.
 Então, quando Ornette surgiu,
 ele de fato soava como se
 pertencesse a uma outra era, 
a um outro planeta.
A novidade estava ali”.
Joe Zawinul



Chego ao meu 50° ÁLBUM FUNDAMENTAL por um motivo especial. Embora todos os discos sobre os quais escrevi sejam caros a mim, quando percebi que chegava a essa marca não queria que fosse apenas mais um texto. Tinha que ser por um motivo especial. Escreveria sobre os artistas brasileiros a quem ainda não resenhei: Chico BuarqueEdu LoboMilton NascimentoPaulinho da Viola? Ou das minhas queridas bandas britânicas, como The CureThe SmithsCocteau Twins, Echo and The Bunnymen? De algum dos gênios da soul, Gil Scott-Heron, Otis Reding, Curtis Mayfield, que tanto admiro? Do para mim formativo punk rock (Stranglers, Ratos de Porão, New York Dolls)? Obras consagradas de um Stravinsky ou alguma sinfonia de Beethoven? Outro de John Coltrane ou Miles Davis? Nenhum desses, no entanto, me pegava em cheio. A resposta me veio no último dia 11 de junho, quando o saxofonista norte-americano Ornette Coleman deu adeus a esse planeta. Aos 85 anos, Coleman morreu deixando não apenas o mérito da criação do free-jazz como uma das mais revolucionárias obras do jazz. A cristalização da proposta de inovação musical – e espiritual – de Coleman veio pronta já em seu primeiro disco, o memorável “The Shape of Jazz to Come”.

Gravado no mesmo ano de 1959 que pelo menos outros dois colossos do jazz moderno – "Kind of Blue", de Miles, arcabouço do jazz modal (agosto), e “Giant Steps”, de Coltrane, a cria mais madura do hard-bop (dezembro) –, “The Shape...”, vindo ao mundo a 22 de maio, não aponta para o lado de nenhum deles. Pelo contrário: engendra uma nova direção para a linha evolutiva do estilo. Nascido no Texas, em 1930, Coleman era daquelas mentes geniais que não conseguiam pensar “dentro da caixa”. No início dos anos 50, já em Nova York, nas contribuições que tivera na banda de seu mestre, o pistonista Don Cherry, ele, saudavelmente incapaz de seguir as progressões harmônicas do be-bop, já demonstrava um estilo livre de improvisar não sobre uma base em sequências de acordes, mas em fragmentos melódicos, tirando do seu sopro microtons e notas dissonantes, arremessadas contra às dos outros instrumentos, contra si próprias. Fúria e espírito. Carne e alma.

Seu processo era tão complexo que, exorcizando clichês, atinge um patamar até psicanalítico de livre associação e reconstrução do inconsciente coletivo, o que levou um dos pioneiros do cool jazz, John Lewis, a dizer: “Percebi que Coleman cunhou um novo tipo de música, mais semelhante ao ‘fluxo de consciência’ de James Joyce do que o entretenimento operado por Louis Armstrong com sua variação sobre uma melodia familiar”. Se na literatura este é seu melhor comparativo, faz sentido colocá-lo em igualdade também a um Pollock nas artes plásticas ou um Luis Buñuel no cinema. Na música, remete, claro, a Charlie Parker e Dizzie Gillespie, mas tanto quanto a compositores atonais da avant-garde como John Cage e György Ligeti.

Em “The Shape...”, a desconstrução conceitual já se dá na formação da banda. Traz o desconcertante sax alto de Coleman, a bateria ensandecida de Billy Higgins, o duplo baixo de outro craque, Charlie Haden (de apenas 22 anos à época), e o privilégio de se ter o próprio Cherry, com sua mágica e não menos desafiadora corneta. Nada de piano! Tal proposta, tão subversiva da timbrística natural do jazz a que Coleman convida o ouvinte a apreciar, assombra de pronto. “Lonely Woman”, faixa que abre o disco, é uma balada fúnebre e intempestiva. O free jazz, consolidado por Coleman um ano depois no LP que trazia o nome do novo estilo, dá seus primeiros acordes nesse brilhante tema. Dissonâncias na própria estrutura melódica, compasso discordante da bateria e um baixo inebriado que parece buscar um plano etéreo, longe dali. Algo já estava fora da ordem, anunciava-se. Coleman e Cherry, pupilo e mestre, equiparados e expondo uma nova construção composicional aberta, incerta, em que a música se cria no momento, numa exploração dramática conjunta.

Na revolução do free jazz, cada membro é tão solista quanto o outro. “Eventually”, um blues vanguardista em alta velocidade, e “Peace”, com seus 9 minutos de puro improviso solto, sem as amarras do encadeamento tradicional, são mostras disso. Cada músico está ligado ao outro primeiramente pelo estado de espírito, não apenas pela habilidade técnica. E eles perdem o apelo momentâneo? Jamais, apenas o centro melódico é outro. Os riffs e o tom estão lá como os do be-bop; a elegância do blues trazida do swing também. Mas o conceito e a dinâmica aplicados por Coleman e seu grupo fazem com que se desviem das formas tradicionais a as diluam, direcionando a uma tonalidade expandida como praticaram Debussy, Messiaen e Stravinsky.

Nessa linha, "Focus on Sanity" se lança no ar inquieta, mas logo freia para entrar o maravilhoso baixo de Haden, suingando, serenando-a. Não por muito tempo: por volta dos 2 minutos e meio, Coleman irrompe e o grupo retorna em ritmo acelerado para seu novo solo da mais alta habilidade de fúria lírica. O mesmo faz Cherry, que entra raspando com o pistão e forçando que o compasso reduza-se novamente. “Foco” e “sanidade”, literalmente. A inconstância desse número dá lugar ao blues ligeiro "Congeniality". Mais “comportada” das faixas, traz, entretanto, a fluência do quarteto dentro de um arranjo em que se prescinde da referência harmônica das cordas – o piano. Pode parecer um be-bop comum, mas, ditado pela intuição e não pelo arranjo pré-estabelecido (tom, escala, variação), definitivamente não é. Fechando o álbum, “Chronology” mais uma vez ataca na desconstrução da progressão acorde/escala. As explosões emocionais súbitas de Coleman e seu modo atritado e carregado de tocar estão inteiros neste tema.

Wayne Shorter, Anthony Braxton, Eric Dolphy, Albert Ayler, Pharoah Sanders e o próprio Coltrane, mesmo anterior a Coleman, não seriam os mesmos depois de “The Shape...”. O fusion e o pós-jazz nem existiriam. Coleman influenciou não apenas jazzistas posteriores como, para além disso, roqueiros do naipe de Jimi Hendrix, Don Van VlietFrank Zappa e Roky Erickson. Ele seguiu aprofundando esse alcance em vários momentos de sua trajetória. No ano seguinte ao de sua estreia, emenda uma trinca de discos, começando pelo já referido “Free Jazz” (dezembro) mais “Change of the Century” (outubro) e “This Is Our Music” (agosto). Em 1971, surpreende novamente com a sinfonia cageana “Skies of America”, para orquestra e saxofone. No meio da década de 70, ainda, adere ao fusion, quando lança o funk-rock “Body Meta” (1976), recriando-se com uma música dançante e suingada.

Além disso, Coleman teve a coragem de legar ao jazz um sobgênero, o que, juntamente com o contemporâneo “Kind of Blue”, referência inicial do jazz modal, ajudou a desafiar conceitos e padrões estabelecidos. O jornalista e escritor Ashley Kuhn, em “Kind of Blue: a história da obra de Miles Davis”, recorda a receptividade de “The Shape...” à época entre músicos e críticos, os quais vários deles (como um dos pioneiros do fusion, o pianista Joe Zawinul), colocavam os dois discos em polos opostos: free jazz versus modal. No entanto, como ressalta Kuhn: “No fim das contas, Coleman e Davis parecem mais filosoficamente compatíveis do que musicalmente opostos: ambos dedicaram suas carreiras a reescrever as regras do jazz”.

Desde que meu amigo Daniel Deiro, que mora em Nova York, disse-me anos atrás tê-lo assistido em um bar da Greenwich Village, fiquei esperançoso de também vê-lo no palco um dia. Não deu. O astronauta do jazz, capaz de fazer quem o ouve também flutuar sem gravidade, deixa como suficiente consolo uma obra gigantesca e densa a ser decifrada, sorvida, descoberta. Como a de um Joyce, Pollock ou Buñuel. Se a função do astronauta é desbravar o espaço, Ornette Coleman cumpriu o mesmo papel através da arte musical, que ele tão bem soube explorar em sua dinâmica atômica e imaterial através da propagação dos sons no ar, na atmosfera. E o fez de forma livre, como bem merece um free jazz. Agora, então, foi ele que se libertou para poder voar sobre outros planetas igual à sua própria música.

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FAIXAS:
1. "Lonely Woman" - 4:59
2. "Eventually" - 4:20
3. "Peace" - 9:04
5. "Focus on Sanity" - 6:50
5. "Congeniality" -  6:41
6. "Chronology" - 6:05

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