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domingo, 9 de janeiro de 2022

DOSSIÊ ÁLBUNS FUNDAMENTAIS 2021




O velho Wayne de olho no trono dos Beatles
Chegou a hora da verdade! A hora dos número. Mais um ano se foi e é chegada a hora de fazer aquele habitual levantamento dos álbuns que entraram para a seleta galeria dos Fundamentais do Clyblog. Lembrando sempre que, na verdade, a seção não tem por objetivo promover disputa ou qualquer tipo de comparação entre artistas e obras, mas a gente mesmo fica curioso para saber quais as marcas e quantitativos e aí, então, levantamos e, em forma de ranking, passamos para vocês. 

2021 foi o ano do jazz nos ÁLBUNS FUNDAMENTAISÁLBUNS. Das 29 obras destacas na nossa seção de discos, 11 foram do refinado estilo norte-americano. Se aproveitando desse predomínio, neste período, o craque Wayne Shorter encostou definitivamente no pessoal de cima. Ainda não alcançou os Beatles, que continuam liderando, mas, junto com seu companheiro de sopro, Miles Davis, que também chegou nas cabeças, já começam a botar uma certa pressão nos rapazes de Liverpool. A propósito da Terra da Rainha, curiosamente no último ano, não tivemos NENHUM artista britânico teve discos incluídos na nossa seção. as ações ficaram basicamente divididas entre norte-americanos e brasileiros, com destaque para o primeiro japonês na lista, o versátil Ryuichi Sakamoto.

No que diz respeito aos brasileiros, Caetano Veloso que dividia a liderança com Jorge Ben, agora toma a frente isoladamente por conta pela participação no disco "Brasil", com João Gilberto, Bethânia e Gilberto Gil. Mas  a disputa está tão apertada quanto no internacional e qualquer disco aqui, disco ali, no ano que chega, pode mudar o panorama.

Entre as décadas com mais obras mencionadas, os anos 70 continuam imbatíveis, embora o ano que aparece mais vezes seja o de 1986. Chama atenção que cada vez mais é inevitável que seja reconhecida a qualidade e se projete a relevância de trabalhos recentes, o que faz com que venham aparecendo com mais frequência, em maior número e cada vez mais fresquinhos, como foi o caso do recém lançado "Carnivore", do Body Count, que mal nasceu  e já figura entre os melhores.

Então, vamos aos números que é o que interessa. Chegou a hora da verdade!


  • The Beatles: 6 álbuns
  • David Bowie, Kraftwerk, Rolling Sones, Pink Floyd, Miles Davis e Wayne Shorter: 5 álbuns cada
  • Talking Heads, The Who, Smiths, Led Zeppelin, Bob Dylan, John Coltrane e John Cale*  **: 4 álbuns cada
  • Stevie Wonder, Cure, Van Morrison, R.E.M., Sonic Youth, Kinks, Iron Maiden, Lee Morgan e Lou Reed**: 3 álbuns cada
  • Björk, Beach Boys, Cocteau Twins, Cream, Deep Purple, The Doors, Echo and The Bunnymen, Elvis Presley, Elton John, Queen, Creedence Clarwater Revival, Herbie Hancock, Janis Joplin, Johnny Cash, Joy Division, Madonna, Massive Attack, Morrissey, Muddy Waters, Neil Young and The Crazy Horse, New Order, Nivana, Nine Inch Nails, PIL, Prince, Prodigy, Public Enemy, Ramones, Siouxsie and The Banshees, The Stooges, U2, Pixies, Dead Kennedy's, Velvet Underground, Metallica, Dexter Gordon, Philip Glass, Body Count, Faith No More, McCoy Tyner, Vince Guaraldi, Grant Green e Brian Eno* : todos com 2 álbuns
*contando com o álbum  Brian Eno e John Cale , ¨Wrong Way Out"
**contando com o álbum Lou Reed e John Cale,  "Songs for Drella"



PLACAR POR ARTISTA (NACIONAL)

  • Caetano Veloso: 6 álbuns*
  • Jorge Ben: 5 álbuns **
  • Gilberto Gil*  **: 5 álbuns
  • Tim Maia e Chico Buarque: 4 álbuns
  • Gal Costa, Legião Urbana, Titãs, Engenheiros do Hawaii e João Gilberto*  ****: 3 álbuns cada
  • Baden Powell**, João Bosco, Lobão, Novos Baianos, Paralamas do Sucesso, Paulinho da Viola, Ratos de Porão, Roberto Carlos, Sepultura e Milton Nascimento**** : todos com 2 álbuns 

*contando com o álbum "Brasil", com João Gilberto, Maria Bethânia e Gilberto Gil
**contando o álbum Gilberto Gil e Jorge Ben, "Gil e Jorge"
*** contando o álbum Baden Powell e Vinícius de Moraes, "Afro-sambas"
**** contando o álbum Stan Getz e João Gilberto, "Getz/Gilberto"
**** contando com os álbuns Milton Nascimento e Criolo, "Existe Amor" e Milton Nascimento e Lô Borges, "Clube da Esquina"



PLACAR POR DÉCADA

  • anos 20: 2
  • anos 30: 3
  • anos 40: -
  • anos 50: 19
  • anos 60: 96
  • anos 70: 138
  • anos 80: 116
  • anos 90: 89
  • anos 2000: 13
  • anos 2010: 15
  • anos 2020: 2


*séc. XIX: 2
*séc. XVIII: 1


PLACAR POR ANO

  • 1986: 22 álbuns
  • 1977: 19 álbuns
  • 1969 e 1985: 17 álbuns
  • 1967, 1972, 1973 e 1976: 16 álbuns cada
  • 1968 ,1970 e 1991: 15 álbuns cada
  • 1971, 1979, 1980 e 1991: 14 álbuns
  • 1965, 1975 : 13 álbuns
  • 1965 e 1992: 12 álbuns cada
  • 1964, 1966, 1987,1989, 1990 e 1994: 11 álbuns cada
  • 1978: 10 álbuns



PLACAR POR NACIONALIDADE*

  • Estados Unidos: 192 obras de artistas*
  • Brasil: 139 obras
  • Inglaterra: 114 obras
  • Alemanha: 9 obras
  • Irlanda: 6 obras
  • Canadá: 4 obras
  • Escócia: 4 obras
  • México, Austrália, Jamaica, Islândia, País de Gales: 2 cada
  • Japão, País de Gales, Itália, Hungria, Suíça, França, Bélgica, Rússia, Angola e São Cristóvão e Névis: 1 cada

*artista oriundo daquele país
(em caso de parcerias de artistas de páises diferentes, conta um para cada)

sábado, 8 de janeiro de 2022

83 anos da Blue Note - Os 10 discos preferidos

Entre as gravadoras, o nome Blue Note é certamente o mais mencionado entre todos aqui no blog quando falamos de música. Mais do que qualquer outro selo do jazz, como Atlantic, Impulse!, Columbia ou ECM, ou mesmo da música pop, como Motown, Chess, Factory e DefJam, a Blue Note Records já foi destacada em nossas postagens em pelo menos um cem número de vezes, aparecendo em diversos de nossos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS como informação essencial para, inclusive, a essencialidade das próprias obras. Não à toa. O selo nova-iorquino, que completou 83 anos de fundação esta semana, feito encabeçado pelos produtores musicais Alfred Lion e Max Margulis nos idos de 1939, transformou-se, no transcorrer das décadas, num sinônimo de jazz moderno de alta qualidade e bom gosto.

O conceito, aliás, já está impregnado nas caprichadas e conceituais artes dos discos, como nas capas emblemáticas de Reid Miles, as fotos de Francis Wolff e, por vezes, a participação de designers convidados, como Burt Goldblatt, Jerome Kuhl e, nos anos 50, um então jovem artista visual de Pittsburgh chamado Andy Wahrol. Tudo encapsulado pela mais fina qualidade sonora e técnica, geralmente gerenciada pelas hábeis mãos do engenheiro de som Rudy Van Gelder em seus mágicos estúdios Englewood Cliffs, em New Jersey, outro emblema de qualidade associado à marca Blue Noite.

Mas, claro, o principal é a música em si. Musicalmente falando, a gravadora em diferentes épocas reuniu em seu elenco nomes como Horace Silver, Herbie Nichols, Lou Donaldson, Clifford Brown, Jimmy Smith, Kenny Burrell, Jackie McLean, Freddie Hubbard, Donald Byrd, Wynton Marsalis, Andrew Hill, Eric Dolphy, Cecil Taylor, Hank Mobley, Lee Morgan, Sonny Clark, Kenny Dorham, Sonny Rollins e tantos outros. Há, inclusive, os que lhe tiveram passagem rápida, mas que, mesmo assim, não passaram despercebidos, como Miles Davis, nos primeiros anos de vida do selo, ou Cannonball Adderley e John Coltrane, que em seus únicos exemplares Blue Note, no final dos anos 50, deixaram marcas indeléveis na história do jazz.

Pode-se dizer sem medo que pela Blue Note passaram bem dizer todos os maiores músicos do jazz. Se escapou um que outro – Charles Mingus, Chet Baker, Albert Ayler, Ahmad Jamal – é muito. Outros, mesmo que tenham andando por outras editoras musicais, tiveram, inegavelmente, alguns de seus melhores anos sob essa assinatura, tal Wayne Shorter, Dexter Gordon e McCoyTyner.

Tanta riqueza que a gente não poderia deixar passar a data sem, ao menos, destacar alguma lista como gostamos de fazer aqui. Melhor, então: destacamos cinco delas! Para isso, chamamos nossos amigos jornalistas – e profundos conhecedores de jazz – Márcio Pinheiro e Paulo Moreira, contumazes colaboradores do blog, para darem, juntamente conosco, Cly e eu, suas listagens de 10 discos preferidos da Blue Note Records. Ainda, para completar, puxamos uma seleção feita pelo site de música britânico JazzFuel, em matéria escrita pelo jornalista especializado em jazz Charles Waring no ano passado. A recomendação, então, é a seguinte: não compare uma lista com outra e, sim, aproveite para ouvir ou reouvir o máximo possível de tudo que cada uma traz. Garantia de que as mais harmoniosas notas azuis vão entrar em sua cabeça.


Márcio Pinheiro
Jornalista

2 - Eric Dolphy - "Out to Lunch" (1964)
3 - Grant Green - "The Latin Bit" (1962)
4 - Herbie Hancock - "Takin' Off" (1962)
6 - Joe Henderson - "Mode for Joe" (1966)
7 - John Coltrane - "Blue Train" (1958)
9 - Ron Carter - "The Golden Striker" (2002)
10 - Sonny Rollins - "Newk's Time" (1959)



Paulo Moreira
Jornalista

1 - Thelonious Monk - "Genius Of Modern Music Vols. 1 e 2" (1951/52) 
3 - Eric Dolphy - "Out to Lunch"
4 - John Coltrane - "Blue Train"
5 - Bud Powell - "The Amazing Bud Powell Vol. 1 e 2" (1949/51)
6 - Art Blakey And The Jazz Messengers - "Moanin'" (1959)
8 - Sonny Clark - "Cool Struttin'" (1958)
10 - Grant Green - "The Complete Quartets With Sonny Clark" (1997)
Mais Três Discos Bônus: 
11 - Freddie Hubbard & Woody Shaw - "The Freddie Hubbard And Woody Shaw Sessions" (1995)
12 - Hank Mobley - "The Turnaround" (1965)
13 - James Newton - "The African Flower" (1985)


Cly Reis
Arquiteto, cartunista e blogueiro

1. Cannonball Aderley - "Sonethin' Else"
3. Horace Silver - "Song for My Father"
4. Lee Morgan - "The Sidewinder"
8. Wayne Shorter - "Speak No Evil"
9. Herbie Hancock - "Maiden Voyage" 


Daniel Rodrigues
Jornalista, radialista e blogueiro

1 - Herbie Hancock – "Maiden Voyage" (foto)
2 - Cannonball Adderley - "Somethin Else"
3 - Lee Morgan - "The Sidewinder"
4 - Wayne Shorter - "Night Dreamer"
5 - Grant Green - "Matador"
6 - McCoy Tyner - "Extensions"
7 - Horace Silver - "Song for my Father"
8 - John Coltrane - "Blue Train"
9 - Dexter Gordon - "Go"
10 - Cecil Taylor - "Unit Structures" (1965)


Charles Waring
Jornalista da JazzFuel

1 - Bud Powell – "The Amazing Bud Powell (Vol 1)" (1949)
2 - Clifford Brown – "Memorial Album" (1956)
3 - Sonny Rollins – "A Night At The Village Vanguard" (1957)
4 - John Coltrane – "Blue Train"
5 - Art Blakey and The Jazz Massangers – "Moanin’" 
6 - Kenny Burrell – "Midnight Blue" (1963)
7 - Horace Silver – "Song For My Father" 
8 - Lee Morgan – "The Sidewinder" 
9 - Eric Dolphy – "Out to Lunch"
10 - Herbie Hancock – "Maiden Voyage" 

 Daniel Rodrigues

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Música da Cabeça - Programa #241


Como diz aquela canção: "Negro é a soma de todas as cores". Na Semana da Consciência Negra, a gente se veste de orgulho e africanidade ao som de Moacir Santos, John Coltrane, Steely Dan, Pixies, Noel Rosa e mais. Ainda tem no "Cabeça dos Outros" o punk empoderado das Clandestinas, a homenagem aos 80 anos de João Nogueira no "Palavra, Lê" e um salve à imortalidade de um dos maiores homens negros desse planeta: Gilberto Gil. Afro mas universal, o MDC desta semana começa às 21h na afirmativa Rádio Elétrica. Produção, apresentação e punho em riste: Daniel Rodrigues. #consciencianegra #semanaconsciencianegra #20denovembro #diadaconsciencianegra


Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Black Alien - “Abaixo de Zero: Hello Hell” (2019)

 

"Quem precisa de correntes de ouro pra ser Gustavo?/
Quem precisa de correntes de ferro pra ser escravo?"
Da letra de "Área 51"

“Eu sou o agora.”
Da letra de "Que nem o meu Cachorro"

Após os Racionais MC’s terem aberto a porteira para o novo rap brasileiro nos anos 90, uma questão se formou: identificar este gênero musical dentro do contexto da música brasileira. Por incrível que pareça, não foi aquele que lançou a principal interrogação pós-“Sobrevivendo no Inferno” quem matou a charada. Se Marcelo D2 foi quem propôs encontrar “a batida perfeita”, a qual pressupunha uma junção do estilo marginal e urbano norte-americano com o samba brasileiro, coube a outro ex-Planet Hemp ser o verdadeiro achador deste formato próprio de um hip hop que respondesse aos anseios de seus criadores e de um novo mercado fonográfico no Brasil: Black Alien. Não é de se estranhar, afinal Gustavo de Almeida Ribeiro sempre se diferenciou dentro da Planet. Enquanto os outros integrantes exauriam o discurso do “Legalize Já!”, este carioca de São Conrado mostrava-se conectado com uma infinidade de referências como jazz, literatura, psicanálise, pós-punk e cinema cult, visão “extrapunk/extrafunk” que lhe dava mais condições de perceber além, de ver que o grito libertário da geração pós-Ditadura deveria ser necessariamente mais amplo. Tanto foi coerente e certeiro que, em seu primeiro disco solo, “Babylon By Gus Vol. 1 – o Ano do Macaco”, de 2004, foi ele quem, na esteira de Sabotage e seu "Rap É Compromisso!", de três anos antes, encontrou a tal batida perfeita. Chegava-se, enfim, ao que se pode chamar de rap brasileiro.

Acontece que, se a batida é perfeita, as quebradas são tortas. O cara que abriu as portas para que viessem a público os novíssimos talentos do rap brasileiro, como Criolo, Emicida, Rincon Sapiência e Baco Exu do Blues, levou mais de uma década para lançar um segundo trabalho, o irregular “No Princípio Era o Verbo – Babylon by Gus, Vol. II”. Neste meio tempo, Criolo já havia colocado o gênero de ponta-cabeça com o revolucionário “Nó na Orelha”, em que abria um paradigma como há décadas não se via na música brasileira, Emicida reinventava o discurso da negritude, Rincon retornava às raízes da África para forjar uma nova poesia nagô e Baco elevava o estilo ao nível de art-rap como apenas ousaram MF Doom e Beastie Boys. Black Alien parecia haver perdido o passo, perdido o tempo da batida. Alguma coisa haveria de estar imperfeita – e estava. A dependência química, hábito da adolescência, tomava dimensões indesejáveis na vida do músico a ponto de lhe atrapalhar a carreira e a produção artística. A ponto de quase o deixar à sombra de seus discípulos.

Só que, como diz o próprio Black Alien: “Não ir pra frente é retrocesso, nada que vale a pena é fácil”. Precisou, então, descer abaixo do nível zero e dar um alô para o diabo para que ressurgisse. Limpo das drogas e de tudo que não lhe interessava, Black Alien, como a fênix, lança, 17 anos depois da estreia solo, seu terceiro e melhor álbum: o corajoso e autorreferencial “Abaixo de Zero: Hello Hell”. Coeso, tal grandes discos da MPB do passado tem curta duração, o suficiente para apresentar, em menos de 10 faixas, uma música altamente impactante e bem produzida feita basicamente a quatro mãos com o produtor carioca Papatinho nas composições, beats, samples e programações. Black Alien desfila, com uma poesia áspera e sofisticada, visto que rica em figuras de linguagem e rimas rebuscadas (dos tipos emparelhada, coroada, preciosa, entre outros), versos confessionais e conscientes sobre drogas, religiosidade, existência e política, mas sem cair no enfadonho. Pelo contrário. "Área 51", que abre o disco, manda ver em versos brilhantes como estes: “Invicto no fracasso, invicto no sucesso/ A gata mia, boemia aqui não me tens de regresso/ De boa aqui na minha, não foi sempre assim, confesso/ Levitei em excesso, neve tem em excesso/ A costela quebrada me avisa quando eu respiro/ A favela e a quebrada te avisam quando me inspiro”. E o refrão é impagável: “Vim pesadão ninguém vai me ‘dirrubá’/ E problema com pó quem tem é o dono do bar”.

Outra joia confessional, o charme-soul “Carta pra Amy” nem precisa mencionar a homenageada em sua letra para dar o recado. Versos doloridos e inspiradíssimos aprofundam a ideia central do disco, elevando a reflexão a questões existenciais e da religiosidade (“Jurei por Deus que ia acertar as contas/ E aí lembrei que é Deus quem acerta as contas/ Ele acerta no início, no meio, e no fim das contas”). Mas sempre com a visão catalisadora, como nesta passagem em que traz a banda de David Byrne como referência: “Vencer a mim mesmo é a questão/ Questão que não me vence/ Minha cabeça falante fala pra caralho/ E aí my talking head stop makin’ sense”. Usa este mesmo último verso, aliás, para criar outra analogia, numa rima indireta com o nome Byrne: "No confinamento as paredes são minhas páginas de cimento/ Babylon burn." Sem deixar, ainda, de alfinetar a demagogia dos ex-companheiros de grupo (“Quando legalizarem a planta/ Qual vai ser o seu assunto? Cara chato”), Black Alien guarda para o refrão o mais alto nível poético e literário em que conjuga Bob Marley, William Faulkner e C.J. Young num tempo: “Mostre-me um homem são e eu o curarei/ You’re runnin and you’re runnin’ and you’re runnin’ Away/ Não posso correr de mim mesmo/ Eu sei, nunca mais é tempo demais/ Baby, o tempo é rei/ Em febre constante e o dom da cura/ Nem mais um instante sem o som e a fúria”.

A dissonante “Vai Baby” literalmente descontrói o compasso para problematizar a questão do sexo neste novo contexto de vida longe das drogas. Mais uma vez, contudo, a veia poética faz com que Black Alien não recorra a um artifício óbvio, mencionando o filme “Mais e Melhores Blues”, de Spike Lee (1990), para representar, numa metonímia, a ideia do casamento entre erotismo e música negra. “Quero mais e melhores blues/ Com água sob os pés, sobre a cabeça, céus azuis/ Mais e melhores jazz, mais e melhores Gus/ Só de tá na busca, eu tô além do que eu supus”. Passo além dentro da própria obra de Black Alien, lembra em temática “Como eu te Quero”, sucesso de seu primeiro disco, porém noutro nível de maturidade.

Outra pungente, "Que Nem o Meu Cachorro", com um belo e circunspecto riff jazzístico de piano, fala da força de vontade para manter-se sóbrio, num esforço artístico e pessoal de autorreconhecimento. Black Alien diz a si mesmo: não esquecer para não reincidir. “Bem-vindo ao meu lar, cuidado pra não tropeçar, a mesa ainda tá aqui, porém mudei certezas de lugar”, alerta. A animalização causada pela dependência química (“Tô que nem o meu cachorro no domínio do latim”) é suplantada pela consciência do “só por hoje”, “pois”, como diz a letra, “a zona de conflito é minha zona de conforto, e a estrada pro inferno se desce de ponto morto, então parou com a zona”. E finaliza: "Não tô nem aí, nem lá, tô bem aqui, além do que se vê/ Se vêm baseado no passado, só há um resultado: 'Cê' vai se fuder.”

Referência direta ao cool jazz e a Dave Bruback, “Take Ten” adiciona ao relato pessoal a crítica ao sistema: “Quem me viu, mentiu, país das fake News/ Entre milhões de views e milhões de ninguém viu”. Além disso, estão num mesmo caldeirão John Coltrane, Disney, Dr. Jekyll Mr. Hyde e Jimi Hendrix e anáforas geniais como estas: “Hoje cedo no Muay Thai de manhã/ Outros tempos, só Deus sabe onde ia tá de manhã/ O cara vai ter pra adiantar de manhã/ Praticava o caratê de rá-tá-tá de manhã”. 

Sensual e picante como já havia trazido em “Vai Baby”, “Au Revoir”, no entanto, também reflexiona a relação amorosa imbricando-a com a passagem do tempo e, novamente, o sentimento de atenção ao presente: “Não tem como saber sem ir/ Aonde a gente vai chegar/ Au revoir/ Mais e melhores blues/ Assinado Guzzie”. Como diz Fernando Brant em naqueles versos clássicos: “O trem que chega é o mesmo trem da partida”. Já a tocante "Aniversário de Sobriedade" relembra com distanciamento o Gustavo “fundo do poço” para que o mesmo não seja esquecido. Que letra! Ao mesmo tempo forte, autocrítica e filosófica e na qual Black Alien cita até Nietsche. Metalinguística, referencia a sua própria obra “Babylon By Gus” para escancarar seu comportamento no passado e o quanto isso o fez desperdiçar oportunidades: “Vishh!!!/ Meu ‘cumpadi’ que fase/ Me olho no espelho ‘mas Gustavo, o que fazes?’/ Cadê as letras?/ Esqueceu da caneta/ Fica só cheirando em cima do CD de bases/ Os beatmakers, os melhores do país/ E eu só vou pra Jamaica pra acalmar o meu nariz/ Mete a venta e não produz/ Bye bye Gus, babylon by trevas volume zero, sem luz”. No estúdio com ele e Papatinho, ainda Julio Pacman nos teclados e o suingado solo de sax de Marcelo Cebukin.

Black Alien reserva para o fim de um disco irretocável aquilo que desde a Planet foi seu forte, que é a crítica social. Porém, “Jamais Serão” traz esta verve agora filtrada pelo "despertar temporão" do novo Gustavo, percorrendo uma lógica que vai do particular para o público. Tradução da era Temer, que havia se instaurado com o golpe político-jurídico à época da feitura de “Abaixo de Zero...”, a música astuciosamente prevê que o pior ainda viria no governo Bolsonaro. No entanto, alerta com esperança que "presidentes são temporários". E sentencia: "música boa é pra sempre/ esses otários jamais serão".

Rap, trap, reggae, funk, rock, charme, soul, jazz e R&B. Deu para perceber que não se fala de samba? Pois é: Black Alien não só achou a “batida perfeita” acalentada por D2 quanto, ainda, desmistificou que rap no Brasil precisa ser “tropicalizado”. A se ver por um estilo pós-moderno e de origem suburbana que é, não haveria de precisar abrasileirar-se para se tornar essencialmente brasileiro visto a semelhança socioantropológica que une as nações de diáspora negra. Com uma sonoridade quase doméstica e despida de rodeios – ao contrário do caminho tomado por D2, Emicida e, principalmente, Criolo, que evoluiu para um som além do próprio rap – o feito de Black Alien conquistou o Prêmio Multishow como Disco do Ano e foi eleito o Melhor Álbum pelo Prêmio APCA de Música Popular. “Abaixo de Zero...”, no entanto, mostrou muito mais do que um encontro classificatório para as prateleiras de lojas ou playlists de streaming. O principal achado não estava fora, mas dentro do próprio artista. Afinal, Black Alien entendeu que ele é “o agora”.

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FAIXAS:
1. "Área 51" - 2:46
2. "Carta pra Amy" - 4:23
3. "Vai Baby" - 2:57
4. "Que Nem o Meu Cachorro" - 3:31
5. "Take Ten" - 2:33
6. "Au Revoir" - 3:27
7. "Aniversário de Sobriedade" - 2:45
8. "Jamais Serão" - 2:59
9. "Capítulo Zero" - 1:27
Todas as composições de autoria de Black Alien e Papatinho

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OUÇA O DISCO:

Daniel Rodrigues

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Lee Morgan - “The Gigolo” (1965)

 

“Eu fiquei com raiva por ela ter feito aquilo com um amigo meu e alguém que contribuiu tanto em sua vida curta à nossa música, mas também senti compaixão, porque aquela era a mulher que havia lhe tirado da lama e tornou possível ele voltar a ser artista.” 
Paul West, baixista de jazz e amigo de Lee Morgan

Como no rock, a história do jazz também é marcada por astros que tiveram uma passagem muito breve sobre o palco da vida. Se é comum lembrar-se de Jim Morrison, Janis Joplin, Kurt Cobain e Amy Winehouse, no gênero mais norte-americano de todos não é muito diferente. Eric Dolphy, Albert Ayler (mortos aos 34 anos), Wynton Kelly (40), John Coltrane (41) e Django Reinhardt (43) são exemplos de músicos de jazz que tiveram suas trilhas abreviadas seja por questões de saúde, seja por alguma tragédia, caso este de outro grande nome do jazz: Lee Morgan. O enfant terrible do trompete, que, aos 17 anos, já assombrava Nova York com seu virtuosismo e confiança, foi assassinado quando tinha apenas 33 por um tiro desferido propositalmente pela própria esposa. Morgan, assim, viveria pouco mais de uma década após sua estreia. Tempo suficiente, contudo, para gravar 20 álbuns próprios, vários deles memoráveis e sem os quais é impossível contar a trajetória do jazz moderno, como “The Cooker” (1958), “Search For The New Land” (1966) e “Live At The Lighthouse” (1971). Além destes, outro indispensável trabalho de Morgan deste período mágico é “The Gigolo”, de 1965.

Tal um roqueiro, a vida intempestiva de Morgan refletia-se na sua arte para bem e para mal. Junto à genialidade, convivia a dependência de heroína, tristemente comum entre os músicos de jazz da época. Em meados dos anos 60, já alçado a grande talento do seu instrumento depois de Miles Davis, Morgan quase sucumbiu às drogas. Quem o salvou foi aquela que pode ser considerada seu “bálsamo maligno”: a esposa Helen, que anos mais tarde, ironicamente, seria também sua algoz. Mulher negra, independente e de vida difícil, foi ela, para quem tinha 13 anos de diferença, que recolheu da sarjeta o jovem Morgan. Afeiçoaram-se e casaram-se, o que não quer dizer, no entanto, que tenham vivido às mil maravilhas. Entre o amor e o ódio, a convivência entre os dois, abastecida por momentos bons mas também por ciúmes e traições, oscilava, o que aparecia na música de Morgan conforme a situação. “The Gigolo”, desta fase, não poupa em ironia, visto que faz uma sarcástica referência à conturbada e dúbia relação dele com Helen, que mais do que somente amante, também lhe era empresária e quase uma mãe adotiva. Um relacionamento tão controverso, que parecia por vezes que ele aproveitava-se dela como um gigolô.

Graças a ela, porém, Morgan entrava nos estúdios Van Gelder, em New Jersey, em 1º de julho daquele ano de cara e pulmões limpos e com um supergrupo formado por Bob Cranshaw (baixo), Billy Higgins (bateria), Harold Mabern Jr. (piano) e Wayne Shorter (sax tenor). A boa fase fica explícita no memorável tema de abertura: “Yes I Can, No You Can't”. Um animado e suingado jazz-funk, fusão a qual Morgan já havia sido um dos precursores desde “The Sidewinder”, de um ano antes, gravada posteriormente, inclusive, pelo pai da soul, James Brown. Modernidade, porém, sem perder a elegância bop aprendida nos night clubs nova-iorquinos desde os anos 50 em bandas como a Orquestra Dizzy Gillespie, a Hank Mobley Quintet e a Jazz Massangers, nas quais tocou antes de alçar seu próprio voo. Shorter, virtuoso, abre os trabalhos de solo, seguido pelo próprio Morgan, que tem a “cozinha” mais eficiente da sua carreira em operação: um incrível Higgins não poupando pratos, rolos e batidas firmes marcando o ritmo; Mabern Jr., reverenciando o blues nos teclados; e Cranshaw, outro craque, fazendo o baixo mexer os quadris.

Escrita por Shorter – que dificilmente não deixa sua marca com alguma composição própria em trabalhos dos colegas, compositor profícuo que é – é o saxofonista que improvisa por cerca de 3 min dos pouco mais de 5 da faixa. Mabern Jr. também participa para, somente quase ao final, Morgan, generoso e com espírito de grupo, não ofuscar o parceiro e apenas dividir com ele um duo entre sax e trompete. Saborosa, daquelas de acompanhar estalando os dedos, “Speedball” vem na sequência, com seu riff encantador e seus detalhes de leve quebra das frases. O band leader, nesta, toma a frente no solo: limpo, bem pronunciado, engendrado com a máxima integridade de um músico em boa forma física e mental. 

Muito bem apropriada por Morgan, a música de Styne e Cahn, que dá título ao álbum, carrega complexidades harmônicas muito distintas, inclusive um toque hispânico pouco visto no trabalho do trompetista até então, talvez o que menos tenha aderido de sua geração a esta tendência, que fez a cabeça dos jazzistas a partir da segunda metade dos anos 50. Modal intenso, "The Gigolo" é daquelas que tiram o ouvinte do chão. E que solo de Morgan! Em tom alto, ele exercita tudo o que sabe (viradas, ataques, escalonamentos, vibratos), enquanto o grupo talentosamente mantém por trás uma base quase tão solística quanto. Shorter também se esmera no improviso, elevando ainda mais a atmosfera emotiva, algo que ele sabe muito bem fazer. Após mais um chorus, Morgan volta para, aí sim, arrebentar tudo de vez.

Mesmo não sendo um rocker, Morgan tinha muito do espírito jovem destes, pois também sabia quebrar padrões. É o que ele faz com sutileza com “You Go To My Head”, uma tradicional balada, que ganha, na versão do criativo e subversor trompetista, um tom mais inconstante e lírico como ele próprio o era em vida. Sem perder o romantismo, Morgan e sua trupe dão ao número um improvável clima cadenciado, boper, que redimensiona o charme desse standart. Como Coltrane fez com “My Favourite Things”, transformando um singelo tema infanto-juvenil em um jazz modal arrebatador, Morgan aplica a mesma inventividade ao capturar para si o cerne do tema da dupla Gillespie e Coots e recriá-lo. Um final de disco com o tamanho da revolução que Morgan legou ao jazz.

Ceifada prematuramente por um acontecimento trágico, assim como a de vários ídolos do rock, a vida de Lee Morgan guarda essa dubiedade muitas vezes típica dos grandes: uma capacidade que parecia infinita, não fosse a implacável finitude material. Como nos romances ou na mitologia, vida e morte, beleza e terror, amor e ódio se entrelaçam para deixar para sempre algo maior do que o convencional. Como lembra Shorter, falando com carinho do colega e parceiro: “Quando gravávamos, sempre havia a ideia de que aquilo duraria para sempre, de que o que escolhemos perdurará”.

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FAIXAS:
1. “Yes I Can, No You Can't” (Lee Morgan) - 7:23
2. “Trapped” (Wayne Shorter) - 5:57
3. “Speedball” (Morgan) - 5:29
4. “The Gigolo” (Jule Styne, Sammy Cahn) - 11:01
5. “You Go To My Head” (Haven Gillespie, J. Fred Coots) - 7:20

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Daniel Rodrigues

segunda-feira, 28 de junho de 2021

Dexter Gordon - "One Flight Up" (1964)

 

“Não sei se houve algum significado especial no título deste álbum mas, de qualquer forma, poderia ser interpretado apropriadamente como o significando de que os pretendentes avançaram num voo em criatividade, que seus voos de fantasia são mais livres do que nunca sob os céus de Paris. Juntos, os cinco oferecem uma demonstração esplêndida de como falar a língua internacional do jazz.”
Leonard Feather, do texto original da contracapa do disco

Quase chegada a metade dos anos 60, Dexter Gordon já estava consagrado como um gigante do jazz norte-americano. Saxofonista "à moda antiga", carregava no corpanzil de 1,96m a estatura de mitos do sax tenor que o antecederam, como Coleman Hawkins, Charlie Parker, Lester Young e Ben Webster. Nem a aparição àqueles idos de jovens talentos do instrumento, como John Coltrane, Sonny Rollins, Joe Henderson e Wayne Shorter intimidavam o velho músico. Menos ainda as inovações sonoras e conceituais pareciam abalá-lo. Free Jazz? Avant Garde? Pós-bop? Creative jazz? Não importava. Confiante e em plena forma, seguia na sua linha clássica como um dos precursores do bebop.

O período em que esteve na Blue Note é o melhor recorte desta boa fase. Após anos pulando entre os selos Decca, Savoy, Jazzland e outros – sem, contudo, estabelecer-se em nenhum deles –, ele emenda, entre 1961 e 1966, uma série de sete álbuns memoráveis como "Doin' Alright", "Dexter Calling" e o aclamado "Go", constante invariavelmente em listas de obras fundamentais da história jazz. Todos no melhor estilo hard-bop, sua jurisdição. Somado a isso, recebe a acolhida de braços abertos da Europa, que, assim como para com diversos outros nomes do jazz, o idolatrava. Muda-se para Paris e vive um momento iluminado na – e pela –“Cidade Luz”. A confiança era tamanha que, para sustentar toda a envergadura de Dex, fosse física ou musical, precisava de tanto chão que não cabia nem nas dimensões territoriais de Estados Unidos e França juntas. Por isso, não era se de estranhar que passasse a também pisar novos terrenos. Foi o que fez em "One Flight Up", de 1964, passo firme do músico nos domínios do jazz moderno. 

Mas como estreitar a ponte entre Novo e Velho Mundo? Levando seus músicos para gravar no Barclay Studios, em Paris, ora. Aos 41 anos, assimilando como um garoto os preceitos do jazz modal – os quais haviam se tornado comuns ao repertório jazzístico havia uns 5 anos pelas mãos, principalmente, de Miles Davis e Dave Bruback –, Gordon, como vinha procedendo já de trabalhos anteriores, rodeia-se de uma banda que casa juventude e experiência: os conterrâneos Donald Byrd, ao trompete (32 anos); Kenny Drew, piano (36); e Art Taylor, bateria (30), mais o dinamarquês Niels-Henning Orsted Pedersen (de apenas 18 anos), ao baixo. O conjunto lhe dá, ao mesmo tempo, suporte à sua verve solística admirável e o municia desse ímpeto modernizante. O resultado é uma química perfeita entre o veterano saxofonista e grupo em apenas três faixas, todas irretocáveis.

E se é pra aderir àquelas que se apresentavam como novas formas, então que seja, literalmente, com grandeza. "Tanya" é isso: 18 min e 21 seg que preenchem o lado A com a fluidez controlada das escalas modais, o que não impede (até ressalta, aliás) as capacidades de improviso. Gordon, be-bopper nato acostumado a números extensos como os que executava nos night clubs desde os anos 40, destrincha um solo magnífico em que alia seu tradicional lirismo a um vigor renovado. Mas o band leader não monopoliza o espaço, dando igual prestígio a seus companheiros, a se ver pela participação de Byrd, autor da música, e um ainda mais inspirado Drew. Isso sem falar na linha de baixo marcante de Pedersen, das melhores performances do gigante de quatro cordas que o jazz já presenciou, digna de um Ron Carter, Paul Chambers ou Dave Holland.

Fôlego recuperado, o segundo lado do álbum traz "Coppin' the Haven", escrita por outro membro da banda, o pianista Kenny Drew. Suingue com alma de blues e bossa nova, casa a classe do bebop com texturas modernas, a se ver pelo toque destacado da bateria de Taylor, potente e sem discrição nas investidas na caixa como faziam os contemporâneos Elvin Jones e Tony Williams à época. Sinais de que os gêneros pop como o a soul, o rock e a música étnica já contaminavam o ambiente jazzístico. E Gordon os assimila com generosidade madura. A se destacarem ainda os solos – além do de Gordon, impecável – de Byrd ao trompete, forte e pronunciado, e de Drew ao piano, habilidoso em conduzir o improviso e não esquecer de manter a base.

O disco finaliza com um popular song de 1939 cujos acordes o jazz já havia incorporado havia anos. Aí, sai da frente, que Dexter Gordon vem com um show de interpretação! É a balada "Darn that Dream", imortalizada na voz de Billie Holliday e gravada por Miles Davis em seu clássico "Birth of the Cool", de 1949. Com Gordon e seu quarteto, o standart se redimensiona, ganhando uma amplitude onírica invejável que somente tenoristas daquela estirpe são capazes. Quanta fineza e sensibilidade! Notas e acordes saem elegantes, altivos e esguios como o seu emissor.

Apenas em 1976, de volta à terra natal, terminaria a temporada europeia de Gordon, a qual, além de extensa, findava-se absolutamente produtiva, ajudando a reforçar a mitologia em torno do lendário artista. “One...” é um retrato desta fase áurea, a verdadeira Conexão França do jazz. Só mesmo um gigante como Gordon para plantar com tamanha autoridade e firmeza um pé em cada continente.

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FAIXAS:
1. "Tanya" (Donald Byrd) - 18:18
2. "Coppin' the Haven" (Kenny Drew) - 11:17
3. "Darn That Dream" (Eddie DeLange, Jimmy Van Heusen) - 7:30
4. "Kong Neptune” (Dexter Gordon)*
*Faixa-bônus da versão em CD remasterizada de 2015

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Daniel Rodrigues

quinta-feira, 17 de junho de 2021

“Sergio Mendes no Tom da Alegria”, de John Scheinfield

 

E dizer que eu virava a cara para Sergio Mendes... Visão totalmente equivocada a minha, como se, para ser músico, precisasse necessariamente ser um prolífico compositor. De fato, esso não é o caso de Mendes, pianista que erigiu sua carreira em grande parte sobre o repertório de outros autores elaborando engenhosos arranjos que unem sofisticação harmônica à satisfação pop. Foi isso que ele fez com maestria em temas como “Mais Que Nada”, do Jorge Ben, “Água de Beber”, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, e "Fool on the Hill", dos Beatles, por exemplo, para citar três clássicos de seu cancioneiro. Mas parecia-me insuficiente, pois dava-me a impressão de que tanto sua obra era menor por causa disso quanto seu êxito se dava justamente pelo critério muitas vezes simplista do público norte-americano. Superados meus preconceitos e já admirador da obra de Mendes há algum tempo, assisti com muito prazer a “Sergio Mendes no Tom da Alegria”, documentário dirigido e roteirizado por John Scheinfield, premiado documentarista norte-americano afeito aos registros audiovisuais de músicos como John Coltrane, Herb Albert, John Lennon e Bing Crosby.

A produção gringa, no caso de Mendes, se justifica plenamente. Desde que o Regime Militar o afugentou do Brasil dias após o Golpe de 1964, o músico, que já tinha contatos e nutria certo respeito na terra de Charlie Parker já da época em que a bossa nova estourara por lá no início dos anos 60 (havia gravado, em 1963, por exemplo, um disco em parceria com Cannonball Adderley), decide fazer as malas e seguir carreira por lá. E dá muito certo. Depois de alguma batalha inicial na nova terra, sua inteligência musical o condicionou a criar a Brasil 66, banda que contava com músicos brazucas e ianques e com a qual gravou nove discos entre 1966 e 1971 de estrondoso sucesso. Com o grupo, Mendes juntava a brasilidade do samba e a levada do jazz e da soul, criando um híbrido até então inédito que virou cult. Os gringos, desde então, o reverenciam - até mais do que os brasileiros. Nessa lista de admiradores, estão Quincy Jones, Herb Albert, Lani Hall, John Legend e Black Eyed Peas.

Mendes e sua Brasil 66:a música
brasileira ganha os EUA
A abordagem do documentário se dá pelo olhar estrangeiro, mas mantém o tempo todo ligação com o Brasil. Isso porque, mesmo tendo se integrado tão bem ao mercado norte-americano, sua música e referências sempre foram essencialmente brasileiras e latinas. Aliás, isso é o que lhe diferenciou num momento pós-bossa nova em meados dos anos 60, quando mundo ansiava por uma continuidade ao caminho aberto por Tom, João Gilberto e outros. Como dizem Nelson Motta e Boni em depoimento, o sentimento com relação à Mendes à época em que ele começara a fazer sucesso nos Estados Unidos era o de que ele havia “vencido”, ou seja: um brasileiro que conseguira achar a química certa para levar a cultura do Brasil mundo afora sem deturpá-la, e sim, adaptando-a. Entre os feitos de Mendes está o de praticamente ter sido o primeiro artista do mítico selo A&M Records, então iniciante e pelo qual o próprio Tom gravaria anos mais tarde discos históricos da segunda fase da bossa nova.

No que toca ao filme, essa visão de fora tem suas vantagens e desfavorecimentos. O que não é tão bom é o tom meio didático, principalmente do início da fita, quando é necessário explicar “o que é bossa nova” ou “o que foi o Golpe Militar”, o que, ao invés de ampliar o entendimento, resultam numa generalização um tanto superficial. Não que um documentário não deva explicar, mas é possível partir de um ponto menos simplório. Porém, nada que comprometa, até porque as virtudes do longa compensam, como a disponibilidade de um rico material audiovisual e fotográfico – o apreço documental que norte-americanos têm muito mais em relação a várias outras nações, a começar pela brasileira – e, principalmente, o acesso a entrevistados. Não que seja impossível a uma equipe brasileira chegar a fontes estrangeiras – vejam-se os docs “Milton Nascimento: Intimidade e Poesia” e "O Dia que durou 21 Anos", exitosos nesta ponte EUA-Brasil – mas, convenhamos: quem mais conseguiria com facilidade que alguém como o ator Harrison Ford (responsável, no início da carreira, pela construção do estúdio de Mendes em Los Angeles) desse depoimento que não fosse conterrâneo seu? Fora isso, é mais fácil agregar à obra fontes do Brasil estando nos Estados Unidos do que o contrário.

“Sergio Mendes no Tom da Alegria” - trailer

Essa fronteira entre EUA e Brasil que o filme se põe ao documentar um artista com um pé em cada extremo da América também traz coisas curiosas. A visão dos norte-americanos é a principal delas. Muito bonito de ver, por exemplo, a reverência de Quince e Will.I.Am ao colega brasileiro. Este último, inclusive, faz um comentário interessante próximo ao fim do longa, quando, falando da longevidade do trabalho de seu ídolo, diz que, durante sua trajetória, vários presidentes entraram e saíram e ele continua ativo. Will.I.Am´, porém, está referindo-se a presidentes dos Estados Unidos e não do Brasil, raciocínio que, obviamente, só poderia vir de um norte-americano.

Numa narrativa um tanto comum, mas eficiente, “Sergio Mendes no Tom da Alegria” faz uma louvação aos então 80 anos que o artista completara em 2020, pontuando momentos em que este, um apaixonado pela música, reinventou-se. Invariavelmente com um sorriso cativante no rosto, é o próprio Mendes que conta sobre a adaptação inicial a outro país e mercado, a composição do megassucesso AOR “Never Gonna Let You Go”, cantada por Joe Pizzulo e Leza Miller nos anos 80 (sim, é de Mendes!), o renascimento com o disco “Brasileiro”, nos anos 90, a sua redescoberta pela nova geração dos últimos 20 anos para cá e a indicação ao Oscar de Melhor Trilha Sonora por "Rio". Tudo feito com um homenageado em vida, participativo e lúcido, outro bom exemplo que podíamos copiar mais dos norte-americanos.

Sergio Mendes e seu sorriso contagiante: 80 anos de amor pela música


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 7 de junho de 2021

Ron Carter - "Third Plane" (1977)

 

"A frase 'The Sound of Jazz' é cogitada às vezes. Bem, para mim, 'The Sound of Jazz' é Ron Carter tocando quatro compassos em sequência."
Ethan Iverson, pianista de jazz

É inegável a magia dos trios de jazz. The Lester Young & Buddy Rich Trio, The Oscar Peterson Trio e Keith Jarrett Trio fizeram história ao longo das décadas, destacando-se invariavelmente pela união de três músicos afiados e entrosados entre si. Casando a proximidade pessoal e artística com a habilidade instrumental, outro estelar trio juntou-se, em 1977, para um célebre (re)encontro. Ron Carter, um dos baixistas mais aclamados e requisitados tanto do jazz quanto da música moderna – tendo gravado com centenas de músicos de primeira linha, como Miles Davis, Tom Jobim, Thelonius Monk, Gil Scott-Heron e Alice Coltrane – projetava seu nono álbum como band leader. Para tanto, convidou dois velhos conhecidos, ambos lendas da música assim como ele próprio: Herbie Hancock, piano, e Tony Williams, bateria. Acostumado com todos os tipos de formação, Carter havia experimentado de grandes bandas a duo em seus álbuns solo anteriores, mas, por incrível que pareça, ainda não com apenas outros dois acompanhando-o. Não deu outra: a mística do power trio se fez presente e o resultado é um dos mais emblemáticos discos de sua carreira: “Third Plane”.

A influência do Brasil mostra-se tão inegável quanto legítima para quem gravara discos históricos da MPB como “Wave”, de Tom (1967), “Hermeto” (1972), com Hermeto Pascoal, e “Seeds of the Ground”, de Airto Moreira (1971), dentre outros. Hancock e Williams, entretanto, não ficam para trás, haja vista a versatilidade de ambos e, principalmente, a proximidade de Hancock com a música brasileira. Desde 1968, ele já convivia de perto com Milton Nascimento, com quem, um ano antes de "Third...", inclusive, gravara o clássico “Raça”. Com essas influências, a faixa-título inicia o disco, que tem o contrabaixo de Carter comandando as ações. Williams engendra um ritmo sambado elegante, bossa novístico e bluesy ao mesmo tempo. De seu lado, Hancock é capaz de realçar linhas harmônicas que se põem no limite do erudito e da tradição pianística do jazz. Genial. Carter, por sua vez, justifica toda a herança do samba que tão bem aprendeu a carregar. Seu estilo único e expressivo de tocar enche a música de personalidade, o que, para ouvidos minimamente atentos, é impossível não perceber que é o baixista quem está tocando aquele que pode ser considerado um dos sons mais característicos do jazz mundial. 

A classe permanece, mas agora para uma balada romântica vaporosa e, literalmente, aquietadora. A atmosfera sensual de “Quiet Times”, um convite a uma noite de amor ao som de um jazz que parece bater ao ritmo dos corações, ganha ainda mais intensidade no dedilhado ondulante de Carter, que faz o ouvinte sentir cada nota, cada deslizar dos dedos pelo corpo do instrumento. O piano, inebriado, pontua notas e acordes ora dissonantes, ora extremamente oníricos. Tudo isso, enquanto Williams se esmera no acompanhamento das escovinhas sobre a caixa e os pratos.

O entrosamento entre Carter e sua pequena banda é visível e vinha de muito tempo. Eles já haviam se topado quase 15 anos antes, em 1963, quando integraram a banda de Miles Davis que excursionou com o trompetista e o saxofonista George Coleman pelos Estados Unidos e pela Europa. Com Miles, aliás, formariam, com a adição de Wayne Shorter ao sax, aquele que é considerado o melhor grupo de quatro músicos de jazz depois do "quarteto clássico" de Coltrane, responsável por obras memoráveis da segunda metade dos anos 60 como “Smiles”, “E.S.P.” e “Miles in the Sky”. Mais ou menos nesta época protagonizariam, ao lado de mais um craque, Freddie Hubbard, à corneta, outro ícone do jazz: “Empyrean Isles”, de Hancock. Tal química é o que se vê muito bem resolvida no bop moderno “Lawra” e em "United Blues", quando os três aproveitam o tema para lançar sua verve groove.

Novamente a alma brasileira de Carter surge, agora numa bossa nova romântica e classuda no melhor estilo Tom Jobim. É uma original versão para o standart “Stella by Starlight”. Não à toa, o piano de Hancock é que se destaca, reverenciando o "maestro soberano" como ele e Carter fariam em solo brasileiro juntamente com outros vários músicos no show “Tribute to Jobim” do Free Jazz Festival de 1993. Notam-se reminiscências das melodias de “Lígia” e “Ana Luiza”, emblemas da bossa nova jobiniana, mas agora para tematizar outra musa: tom melancólico e lírico e harmonia complexa num tema de paixão desenfreada. Areias de Copacabana na baía de San Francisco. 

O final é tão assertivo quanto juntar em um trio Carter, Hancock e Williams: “Dolphin Dance”, clássico do repertório de Hancock em que repetem o feito de “Maiden Voyage”, de 1965, quando a tocaram acompanhados de Coleman e Hubbard. A escolha do tema passa longe de soar como uma garantia de um bom encerramento, visto que se dedicam a interpretá-la com uma energia e paixão tão tocantes, que a diferenciam da original ou de qualquer outra versão que o tema tenha recebido. Blues, modal, cool, hard. Transformações rítmicas, conjunções harmônicas criativas... tudo se escuta na faixa derradeira de “Third...”, o qual tem como último acorde o sinuoso toque do tão referencial baixo de Carter. Um final perfeito para um disco igualmente irretocável.

Uma das qualidades dos trios de jazz está na superação de uma suposta deficiência: a ausência de um solista. Sem pelo menos um quarto membro, que equilibraria a formação com as três bases mais comuns – piano, baixo e bateria – mais um solo, a banda, com somente três integrantes, geralmente restringe-se apenas a estes instrumentos-base. Quando muito, um sopro, o que implicará, necessariamente, na supressão de algum daqueles três. Ou seja: é mais difícil de se compor a arquitetura sonora. Dessa “dificuldade”, entretanto, sai o trunfo dos grandes trios, que é justamente aproveitar-se desta composição mínima, atribuindo a todos a liberdade de preenchimento do espaço harmônico e solístico. Carter e seus parceiros mostram o quanto isso é possível quando se tem talento e paixão. A seis mãos, o que se escuta é mais do que três músicos dividindo o estúdio: é o atingimento de algo maior, imaterial. Um terceiro plano.

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FAIXAS:
1. "Third Plane" – 5:53
2. "Quiet Times" – 7:52
3. "Lawra" (Tony Williams) - 6:08
4. "Stella By Starlight" (Victor Young/Ned Washington) – 8:26
5. "United Blues" – 3:01
6. "Dolphin Dance" (Herbie Hancock) – 8:20
Todas as composições de autoria de Ron Carter, exceto indicadas


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Daniel Rodrigues

segunda-feira, 31 de maio de 2021

Miles Davis - "Bags Groove" (1957)

 

"Em fevereiro de 1954, pela primeira vez em um tempo, eu me sentia bem de verdade. Minha embocadura estava firme porque eu vinha tocando todas as noites e tinha finalmente me livrado da heroína. Eu me sentia forte, física e musicalmente. Me sentia pronto para tudo."
Miles Davis

Era incrível a capacidade de Miles Davis para compor grandes bandas. O músico, que completaria 95 anos no último mês de maio e cuja prematura morte completará três décadas em setembro, desde que se tornara um jovem band leader, aos 22, no final dos anos 40, estabelecera tal protagonismo. Após alguns anos de “escola” aprendendo teoria musical na Julliard School mas, principalmente, tocando na banda de Charlie Parker, o grande revolucionário do jazz, o homem que pôs o gênero de ponta-cabeça diversas vezes ao longo de meio século, em menos de 10 anos de carreira solo e menos de 30 de idade já era considerado uma lenda no meio jazz nova-iorquino. Além de lançar discos referenciais, como “Birth of the Cool” (1949/50), cujo nome fala por si, e a trilogia hard-bopCookin’/ Relaxin’/ Steamin’” (1956), o trompetista tinha um tino especial também para agregar a si outros talentos, formando grupos às vezes tão inesquecíveis quanto seus álbuns. Tanto veteranos, como Charles Mingus, Art Blakey e Max Roach quanto então novatos, como Gerry Mulligan, John Coltrane, Herbie Hancock e Tony Williams, eram recrutados por Miles, um líder natural.

Era tanto prestígio de Miles já à época, que ele mantinha contrato com duas gravadoras, Blue Note e Prestige, e estava em vias de assinar com outra: a Columbia. Toda essa autoridade permitiu que, em “Bags Groove”, de 1957, ele pudesse contar não com uma, mas duas bandas. E, diga-se: bandas de dar inveja a qualquer front man. O disco reúne duas sessões de gravação ocorridas em 1954 no famoso estúdio Van Gelder, em Nova York: a 29 de junho e a 24 de dezembro. Para cada uma, Miles teve escalações estelares. Acompanhando-o na segunda delas estão, além dos velhos parceiros Percy Heath, ao baixo, e Kenny Clarke, na bateria, ninguém menos que Milt 'Bags' Jackson, nos vibrafones, membro da inesquecível Modern Jazz Quartet e a maior referência deste instrumento na história do jazz, e Thelonious Monk ao piano, considerado um dos maiores gênios da música do século XX. Duas referências do jazz bebop e ambos tocando pela primeira vez com o trompetista. 

O disco começa com outra característica de Miles fazendo-se presente, que é a de não apenas estar ao lado de músicos de primeira linha como, principalmente, saber tirar o melhor proveito disso. As duas versões da faixa-título, de autoria do próprio Milt, são tão solares que fazem esquentar o frio nova-iorquino daquela véspera de Natal. O estilo solístico de Miles e sua liderança no comando da banda, atributos totalmente recuperados por ele naquele 1954 depois de um longo e tortuoso período de vício em heroína, ficam evidentes em seus improvisos inteligentes, econômicos e altamente expressivos. 

Mas não é apenas Miles que brilha, visto que tudo na música “Bags...” abre espaço para diálogos. A elegância característica do estilo de Miles se reflete no soar classudo do vibrafone de Milt. Poder-se-ia dizer tranquilamente que a faixa, por motivos óbvios, além da autoria e da autorreferência, é dele, não fosse estar dividindo os estúdios com Miles e Monk. Este último, por sua vez, conversa tanto com a elegância peculiar dos dois colegas quanto, principalmente, no uso inteligente e econômico das frases sonoras. No caso do pianista, mais que isso: precisão – e uma precisão singular, pois capaz de expressar sentimento.

Capa do disco com Rollins,
que corresponde ao
lado B de "Bags Groove"
O repertório do álbum se completaria com outra gravação ocorrida meses antes, só que num clima totalmente contrário: em pleno calor do verão junino da Big Apple, Miles entra em estúdio amparado por Clarke novamente, mas agora tendo ao piano outro craque das teclas, Horace Silver. Mas ao invés do vibrafone percussivo de Milt, agora a sonoridade complementar muda para outro sopro: o vigoroso saxofone tenor de Sonny Rollins. Substituições feitas, qualidade mantida. Como um time que não se afeta com a intempéries e sabe mudar as peças mantendo o mesmo esquema vitorioso, 

Os quatro números restantes são fruto da sessão feita para “Miles Davis With Sonny Rollins”, de 1954 (este, lançado naquele ano mesmo), quando Miles, que já havia trabalhado rapidamente com o saxofonista três anos antes, apresentava-o, então com 24 anos, como jovem promessa do jazz. E se o lado A de “Bags...” tinha como autor não Miles, mas seu parceiro Milt, a segunda parte também era praticamente toda assinada por Rollins. “Airegin”, um bop clássico, é o resultado do entrosamento dos dois. Miles gostou tanto do tema, que o regravaria no já referido “Cookin’” com Coltrane, no sax, Red Garland, ao piano, Paul Chambers, baixo, e Philly Joe Jones, na bateria. O mesmo acontece com “Oleo”, um gostoso jazz bluesy, que Miles aproveitaria no repertório de outro disco memorável daquela época, “Relaxin’”, e com o qual contou com a mesma “cozinha” de “Cookin’”.

“Bags...” tem ainda outra de Rollins, a inspiradíssima “Doxy” e sua levada balançante, que não muito tempo dali se tornaria um clássico do cancioneiro jazz, interpretada por monstros como Coltrane, Dexter Gordon e Herb Ellis. Completam o repertório dois takes do standart “But Not For Me”, de Gershwin. Classe pouca é bobagem. 

Isso tudo, acredite-se, antes de Miles ter lançado aquele que é considerado sua obra-prima, “Kind of Blue”, de 1959, a criação do jazz modal e com o qual contou com Coltrane, Bill Evans, Cannoball Adderley, Jimmy Cobb e Wynton Kelly. Antes de ter tocado com o infalível quarteto Williams, Hancock, Wayne Shorter e Ron Carter, noutro passo fundamental para o jazz. Muito antes de ter feito “In a Silent Way” e “Bitches Brew”, as revoluções do jazz fusion em que teve, além de Hancock, Shorter e Williams, outros coadjuvantes ilustres como Chick Corea, Joe Zawinul e John McLauglin. Como talvez nenhum outro músico do jazz, Miles tinha a capacidade de reunir os diferentes e saber extrair disso o melhor. De unir verão e inverno e torná-los a mesma estação. “Bags...” é uma pontinha de tudo isso que Miles fez e representou para o jazz e a música moderna. E haja bagagem para conter tanta história e tantos talentos orbitando ao redor do planeta Miles Davis!

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FAIXAS:
1. "Bags' Groove" (Take 1) (Milt Jackson) - 11:16
2. "Bags' Groove" (Take 2) - 9:24
3. "Airegin" (Sonny Rollins) - 5:01
4. "Oleo" (Rollins) - 5:14
5. "But Not for Me" (Take 2) (George Gershwin/ Ira Gershwin) - 4:36
6. "Doxy" (Rollins) - 4:55
7. "But Not for Me" (Take 1) - 5:45


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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues