No ano em que a Netflix vem com força na disputa pelo Oscar, somando entre suas quatro produções, quinze nomeações, uma delas, "A Balada de Buster Sruggs" conta com ninguém menos que os já oscarizados Irmãos Coen, à frente do projeto. Com três indicações, esta antologia de western traz, em seis episódios, alguns dos mais característicos e tradicionais elementos do gênero como gatilhos rápidos, duelos, assaltos a banco, enforcamento, caravanas, indígenas, corrida do ouro, caçadores de recompensa tudo ao melhor estilo dos irmãos Coen que, por sinal, são especialistas em westerns, sejam eles contemporâneos e mais urbanos como "Fargo", "Arizona Nunca Mais" ou o premiado "Onde os Fracos Não têm Vez", como um faroeste tradicional como "Bravura Indômita", refilmagem deles para o clássico de 1969.
Tom Waits, como o obstinado prospector, faz um dos melhores episódios do filme.
Pontuado com o habitual humor-negro da dupla, o conjunto de historietas adaptadas dos livros vai do cômico ao trágico, do absurdo ao realista, do trivial ao inusitado em histórias que, cada uma à sua maneira, com seus méritos, seus personagens, conquistam a atenção do espectador. O caubói bom de gatilho e de música, que dá nome ao filme, no primeiro conto é cativante; a historia da solteirona que perde o irmão e o cachorro durante a caravana entre Estados é de cortar o coração; e a do garimpeiro, vivido brilhantemente por Tom Waits, é um carrossel de emoções, indo desde uma simpatia e torcida pelo personagem, até chegar a uma revolta pelo oportunismo do bandido que espera à espreita pelo ouro fácil.
A bem da verdade, embora todos sejam interligados pela época e pelo ambiente, a consolidação do Oeste americano, o filme como um todo, fica devendo um pouco de unidade. As histórias são instigantes, interessantes mas a variedade de situações, sem um laço em comum, faz com que pareça, de certa forma, mais um conjunto de episódios independentes do que uma obra fechada.
Salvo este probleminha, vale a pena assistir "The Ballad of Buster Scruggs". É gostoso, é divertido, é bem dirigido, é envolvente. Um fã de cinema e admirador da obra dos Coen, provavelmente, não ficará decepcionado. Aos menos avisados, no entanto, é bom avisar: não vale a pena se apegar muito aos personagens. Os Coen não costumam poupar seus protagonistas.
O simpático Buster Scruggs é bom de gatilho e de gogó.
Agora sim posso declarar o meu ponto de vista sobre "Bravura Indômita". Ainda não
tinha assistido ao primeiro filme, que foi dirigido por Henry Hathaway, em
1969. Em 2010, foi filmado o remake
dos irmãos Joel e Ethan Coen. O filme gerou críticas positivas, mas nem todo
mundo gostou e as semelhanças entre ambas produções são grandes. A fotografia
do primeiro filme, que foi quase todo filmado com luz de outono, é esplêndida e
brilhante, muitas vezes parece saída de um quadro de época. Creio eu que John Wayne
deva ter amado filmar "Bravura", pois o ator passava o tempo todo
bebendo de verdade, algo que já era normal em seus filmes. Muitos dizem que seu
personagem era uma paródia de si mesmo, tanto que lhe deu o único Oscar da
carreira, merecido, é claro, e com muito álcool.
Outro ponto a destacar do longa de Hathaway, o qual não
canso de repetir, é sobre a habilidade do Duke com o cavalo. Em diversas cenas
isso é explícito, inclusive na cena final em que ele pula uma cerca alta,
dispensando o dublê. A forma como ele manejava as armas demonstra certamente
que em outra vida ele foi um cowboy
de verdade. Todo o elenco desse filme é ótimo, da maravilhosa atriz adolescente,
Kin Darby, a um iniciante Dennis Hopper e o já careca Robert Duvall.
trailer "Bravura Indômita" (1969)
cartaz da versão dos
irmãos Cohen, de 2010
Na versão dos Cohen,
praticamente idêntica em história ao de Hathaway, os diretores dão seu pitaco
estilístico e o deixam mais "sujo", mas não menos violento e satírico
que o primeiro. Depois de assistir, cheguei à conclusão que Jeff Bridges é o único
ator neste planeta que conseguiria com seu estilo errante e versátil estar à
altura de Wayne para reviver o personagem de "Rooster" Cogburn. Pena
não ter sido tão reconhecido, porque ele também merecia o Oscar. E o filme foi
indicado a vários prêmios, perdeu em quase todos. Hailee Steinfeld que fez a
menina Mattie Ross no segundo filme, e está no meu panteão das grandes atuações
femininas do cinema atual. O elenco também conta com os bons atores Matt Damon
e Josh Brolin.
Resumindo, os filmes são diferentes mas ao mesmo tempo
parecidos. Hoje, revendo pela ótica dos Coen, os diretores e produtores foram
muito corajosos e ousados ao fazer um remake
que muitas vezes se sai melhor que o original, acertaram em tudo, desde a
escolha dos atores a toda equipe técnica, que foi indicada para um penca de
Oscar. Voto final: em direção, prefiro os Coen; roteiro, os Coen; entre Wayne e
Bridges, dá empate; fotografia, fico com o de 1969; Mattie Ross, meu voto vai
para Haillee Stenfield; Ranger La Boeuf, vitória de Glen Campbell; e sobre os
dois filmes, ambos são ótimos.
Duelo dos bons esse! Jogo sem favorito. Pode dar qualquer coisa. Duas gerações diferentes em campo, estilos até parecidos de jogo e muita qualidade em ambos os lados. O time do original conta com um cracaço: John Wayne. Uma daquelas lendas do futebol, digo... do cinema. Até dava seus problemas fora de campo, às vezes dentro dele também, é verdade. Era meio chegado numa manguaça e consta que em muitas cenas que filmou, interpretando um personagem, por sinal, beberrão, o mercenário "Rooster" Cogburn, estaria mesmo um tanto... por assim dizer, mamado. Isso é que é craque! Fugia da concentração, ia pra balada, chegava bêbado, jogava bêbado e ainda acabava com o jogo. Dúvida? O cara SÓ faturou o Prêmio de Melhor do Mundo da FIFA daquele ano, ou melhor, digo, o Oscar da Academia exatamente por causa dessa atuação. Mas do outro lado o melhor jogador do adversário, Jeff Bridges, embora não tenha alcançado ainda a condição de lenda como o outro, pra pouca coisa não serve e, só pra não deixar por menos, também tem sua Chuteira de Ouro, ou melhor, sua estatueta dourada na prateleira. Se o prêmio não foi conquistado pelo mesmo papel, ao menos foi por um personagem tão pé-de-cana quanto Cogburn, em "Coração Louco". Grande enfrentamento mas o Duke, leva pequena vantagem não só pelo confronto direto, a estatueta conquistada no filme em que os dois interpretam o mesmo papel, como pelo jeitão pronto de caubói, pelo manejo das armas, pela montaria... Não tem como ganhar do maior caubói das telonas de Hollywood. 1x0 no placar para o antigo "Bravura Indômita". Mas o filme de 1969 não tem muito tempo pra comemorar pois no confronto entre as Mattie Ross, a personagem que recorre ao velho federal para encontrar o assassino de seu pai, embora Kim Darby esteja ótima também, a atriz da da refilmagem, Hailee Senfield, consegue se destacar com uma atuação verdadeiramente diferenciada. Desarma, passa bem, distribui a jogada e ainda aparece na frente pra fazer o gol de empate. 1x1 no placar. Os coadjuvantes, cada um de seu lado, seguram as pontas com qualidade garantido o equilíbrio do jogo. Ambos os LaBoeuf, Glen Campbell, no original, e Matt Damon, no remake, mandam bem e nenhum consegue se destacar muito sobre o outro. Se de um lado temos brilhando o jovem, mas já careca e rodado, Robert Duvall como Ned Pepper, do outro temos Josh Brolin fazendo um desprezível Tom Chaney, e o placar assim continua em igualdade.
trailer "Bravura Indômita" (1969)
trailer "Bravura Indômita" (2010)
Mas aí vem a fotografia do Bravura '69, com seus tons outonais como que saídos de um quadro e coloca o time de Hathaway em vantagem de novo. Uma pintura de gol! Reta final de jogo. Essa é a hora pr'a gente ver quem tem garrafa vazia pra vender, quem tem café no bule. E é exatamente a hora em que aparece o dedo do treinador. Os irmãos Coen fazem uma mexida tática importante mudando sutilmente alguns elementos de roteiro e deixando o seu time mais agressivo e conseguem o empate no finalzinho! Que jogo é esse??? Emoção até o fim. Haja coração! Mas não há tempo pra mais nada. O juiz sopra o apito aponta o meio de campo e é fim de papo. Temos o primeiro empate no Clássico é Clássico (e vice-versa) do ClyBlog.
Entre os Rooster Cogburn, pequena vantagem para John Wayne sobre Jeff Bridges por ter levado o Oscar pela atuação no filme.
Se o original de Henry Hathaway é um clássico consagrado,
a máxima que dá nome a esta seção vale para os filme dos Coen.
Certos marcos temporais não se completam à toa. Em cinema, fenômeno com pouco mais de um século de existência e menos ainda de indústria, décadas contam muito em ternos de significado, ainda mais numa nação jovem como a brasileira. Por isso, diz muito o fato de, há 40 anos, o cinema brasileiro ter perdido Glauber Rocha, principal artífice do Cinema Novo e autor de obras essenciais para a formação do cinema nacional, entre os quais “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de 1964. Primeiro grande marco do Cinema Novo, esta obra divisional é o produto mais pungente de uma rica leva da produção cinematográfica brasileira motivada por um contexto histórico-social e político implosivo nutrido por abissais contradições. Entre a modernidade nacionalista dos tempos pós-Vargas e a embrionária globalização, havia, em mesma proporção, o alarme pelo alto índice de desigualdade social e a forte tensão de forças políticas que resultaria no Golpe Civil-Militar daquele mesmo fatídico ano de lançamento de “Deus e o Diabo...”.
Incandescentes como o sol que assola a terra destas duas forças, a materialização destas motivações em aspectos fílmicos e narrativos dão à obra de Glauber, seguidamente considerada difícil e cerebral, uma representação estética possível de ser revisitada à luz de produções atuais do cinema nacional. A perspectiva pop que traz “Jesus Kid”, de Aly Muritiba, recentemente exibido – e premiado – no Festival de Cinema de Gramado, entreabre, quase 60 anos depois, portas escancaradas com fúria e poesia por Glauber e sua geração. O filme de Muritiba busca explorar artifícios pop já experimentados com êxito anteriormente, numa tentativa digna de estabelecer diálogo com um público aberto a esta abordagem e, principalmente, com condições de transmissão/replicação das propostas discursivas de “vanguarda” na sociedade, a fatia jovem-adulta dos chamados “formadores de opinião”.
Antes mesmo de rodar “Deus e o Diabo...”, Glauber, um iniciante cineasta e ativo crítico de cinema, exaltava em seu “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro”, editado em 1963, o potencial “popular” do Cinema Novo. A ideia dos jovens realizadores do movimento era engendrar um cinema de autor que refletisse a alma de um povo, fosse econômica ou esteticamente. Para isso, vestiam suas obras de características ora muito próprias, mas também de natureza “pop” comuns na acepção mais abrangente do termo. A exemplo do que observava com entusiasmo no cinema de colegas como Paulo César Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade e Nelson Pereira dos Santos, Glauber trazia para seu olhar elementos “pop” dentro de seu contexto cultural, histórico e social, como o cinemão norte-americano, a fragmentação sequencial dos quadrinhos a e correlação entre erudito e folclórico – visto, por exemplo, na trilha sonora de “Deus e o Diabo...” dotada de Villa-Lobos e dos cantos de violeiro de Sérgio Ricardo. Igualmente, estão-lhe presentes o cinema de Sergei Eisenstein, Humberto Mauro, John Ford, Luis Buñuel e Roberto Rosselini, todos, à exceção do primeiro, vivos e ativos à época. Elementos que faziam sentido num contexto de “popficação” nos anos 60. Glauber e seus correligionários entendiam que cabia aos autores do cinema uma visão formativa desta inserção de propostas cultas no tecido social. Transformar a alta cultura em hits deglutíveis.
filme"Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha
O uso de elementos “pop” no cinema brasileiro maturou-se ao longo das décadas juntamente com a produção audiovisual nacional. Porém, embora tenha ganho em experiência e até em condições econômicas, alguns ensinamentos parecem ter se dispersado. Em “Jesus Kid”, justamente por seus méritos técnicos, essa inconsistência fica bem evidente. De caprichadas fotografia e direção de arte, o filme de Muritiba se esvazia, por outro lado, naquilo que, certamente, mais almejou realizar, que é uma narrativa de apelo pop. Fugindo do padrão comum, mas também sem recair na proposta alternativa, este formato tenta criar um espaço simbólico que comporta ideias modernas capazes de gerar identificação com o público, sendo um destes recursos a alusão a produtos “do mercado”. Estética e formalmente, “Jesus Kid” apropria-se de referências diretas dos filmes “Barton Fink - Delírios de Hollywood”, de Joen e Ethan Coen (1991), “Cidade dos Sonhos”, de David Lynch (2002) e bastante de Quentin Tarantino, desde os westerns “Os Oito Odiados” (2015) e “Django Livre” (2013) ao episódio de “Grande Hotel” (1995).
Acontece que “Jesus Kid”, mesmo que tenha atingido sua assimilação junto a quem intenta dirigir-se, apresenta duas grandes travas que o impedem de alçar: uma estrutural e outra formal. A começar, o roteiro. Baseado num romance do celebrado escritor Lourenço Mutarelli, o que se verteu das páginas para a construção audiovisual parece ter se descompassado, haja vista, principalmente, o ritmo apressado dos acontecimentos e encadeamentos do filme. Saliente-se: ritmo frenético numa narrativa não pressupõe falta de respiros, visto que a psique do espectador comum – inclusive, o de simpatia ao dito “pop” – carece da tradicional alternância de estados psicológicos da dramaturgia clássica. Subverter isso é optar pelo caminho alternativo, o que está longe de ser-lhe a intenção.
Enquadramento e tonalidades semelhantes de "Jesus Kid" com "Barton Fink": referências diretas
Tanto Tarantino quanto os Coen, os cineastas cujas obras são as mais referidas em “Jesus Kid”, sabem bem disso, pois são conhecidos pelo apreço ao exercício de extensão-distensão da narrativa. O primeiro, com seus longos diálogos preparativos para clímaces; já os irmãos Coen, pelo consciente uso dos espaços vazios visual e narrativamente. Por que, então, pegar-lhes emprestado justo o mais superficial, a estética? Impossível não entender isso como um subterfúgio (pouco assertivo) de atração quase publicitária para a obra. A tarantinesca resolução do filme brasileiro, igualmente, não peca pelo tom satírico ou pela bizarrice – aceitáveis dentro da trama – mas pela falta de preparo a um momento tão importante para a história, visto que o espectador é colocado até ali constantemente num indistinto frenesi de imagens e ações.
Miklos: atuação que enfraquece o filme
Este mesmo raciocínio pode ser aplicado ao outro aspecto analisável de “Jesus Kid”, que é ligado à sua forma: a escolha de Paulo Miklos como protagonista para o papel do escritor Eugênio. Não é difícil perceber que, já no primeiro diálogo, fica evidente o despreparo técnico deste para com os recursos cênicos, visto que recai sobre ele a responsabilidade de sustentar um papel cômico, trágico e cheio de nuanças, difícil até para um ator profissional. Resposta a qual Miklos, ator não-profissional, fatalmente não dá. Mesmo espirituoso e carismático, falta-lhe olhar, falta-lhe tempo de articulação, falta-lhe consciência de movimentos. Se a estratégia era se valer, como na publicidade e seus “garotos-propaganda”, da figura pop de um conhecido astro da música, havia de se avaliar que, como ator, este desempenhou bem no cinema apenas 20 anos atrás em “O Invasor”, de Beto Brant (1997), justo quando teve, conceitualmente, liberdade de uma atuação naturalista dentro da “marginalmente” que o papel exigia, o que supunha desvencilhar-se de balizamentos técnicos. Para “Jesus Kid”, no entanto, a opção por Miklos prejudica sobremaneira todo o andamento, visto que a história se centra no escritor ao qual ele interpreta. Não é difícil imaginar algum ator profissional assistindo o filme e lamentando pelo desperdício de um roteiro promissor.
Há de se entender, contudo, que a caminhada para um cinema de apelo “pop-cult” no Brasil, a exemplo do que outros polos mundiais produzem, principalmente os Estados Unidos, está em pleno curso. Desde que “Deus e o Diabo....” iluminou este caminho, títulos importantes para essa viragem como “O Bandido da Luz Vermelha” (Rogério Sganzerla, 1969), “A Rainha Diaba” (Antonio Carlos da Fontoura, 1974) e “Faca de Dois Gumes” (Murilo Salles, 1989) evoluíram em linguagem e aproximaram os conceitos “brutos” da vanguarda para a massa. Mais proximamente, o cinema pós-retomada dos últimos 30 anos captou bem este espírito a exemplo de “Cidade de Deus” (Fernando Meirelles e Katia Lund, 2002), a franquia “Tropa de Elite” (José Padilha, 2007 e 2010), “Fim de Festa” (Hilton Lacerda, 2019) e o talvez mais bem-sucedido de todos nesta linha: “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho (2019). Todos entenderam o que Glauber avaliava como essencial a uma obra de cinema que se pretende popular: cada um à sua medida, dosa discurso e poesia. Equilíbrio difícil, porém, o que talvez explique a inconstância de obras desta potência e natureza no Brasil. Linguagem em cinema também é continuidade da prática.
Se custou a Glauber e ao Cinema Novo o preço muitas vezes da incompreensão, é curioso perceber como o movimento serviu para emancipar o cinema nacional justamente no aspecto que teve menos êxito, que foi o de representar e dialogar com o público – ou o mais amplo possível deste. Como acontece em processo semelhante na música erudita para com a música pop, as bases lançadas pela primeira passam por tamanho burilo que, quando chegam aos ouvidos da massa, pouco se identifica de seus arrojados acordes geradores. A Glauber, especialmente, homem de poucas concessões e cujo cinema intensificou-se em complexidades alegóricas cada vez mais ao longo dos anos, ficou a pecha de alguém genial, mas de ínfima aceitação e entendimento popular. Independentemente disso, faz quatro décadas que Glauber Rocha deixou, dentre outros legados, as bases de um “cinema pop” para o Brasil sob uma perspectiva doméstica. É justo e genuíno, então, buscá-lo e aperfeiçoá-lo. Talvez, contudo, seja preciso ainda que bata muito sol sobre esta terra para que o diabo da inovação e o deus do gosto popular se harmonizem.
Jane Campioné uma cineasta que, mais do que somente pela qualidade de seus filmes, é por si só uma figura marcante para a história do cinema. Além de ser a segunda entre cinco mulheres nomeadas para o Oscar de Melhor Direção, foi a primeira cineasta feminina da história a receber a Palma de Ouro do Festival de Cinema de Cannes por seu marcante “O Piano”, em 1993. Mas é fato também que, guardada sua importância representativa, a talentosa diretora neozelandesa acumula bons feitos e outros nem tanto. Porém, invariavelmente voltados à visão da mulher no cinema. Desde seu primeiro e referencial “Um Anjo em Minha Mesa” (1990), que retrata a sofrida vida real da escritora Janet Frame, passando pelo inconsistente “Em Carne Viva” (2003) ou em seu celebrado “O Piano”, um dos melhores filmes dos anos 90, a figura feminina é sempre desafiada a situações as quais só mesmo uma mulher para expressar. Em “Ataque dos Cães”, seu novo filme, curiosamente, no entanto, este “lugar de fala” se desloca, visto que não é a personagem feminina quem o protagoniza. Aliás, não há um único protagonista, e isso talvez seja justamente o grande trunfo da produção, que põe Campion novamente na mira do Oscar com o filme com mais indicações em 2022, doze. Mas o longa a leva a se destacar mais uma vez, porém agora por um outro mérito, que é o de inscrever a obra numa importante ressignificação do tão simbólico - e questionável - gênero faroeste.
“Ataque...” se passa numa rústica Montana dos anos 20 em que os irmãos Phil (Benedict Cumberbatch) e George (Jesse Plemons) possuem uma das maiores fazendas da região. Quando George se casa em segredo com a viúva Rose (Kirsten Dunst), dona de uma pequena pensão em que vive com o sensível filho Peter (Kodi Smit-McPhee), a cumplicidade familiar entra em jogo. Phil, de postura rígida e sedutora, faz o possível para atrapalhar a vida de Rose e de Peter, a quem ele cria certa obsessão. Apoiado pelos vaqueiros em suas zombarias, ele não pretende parar até criar conflitos maiores. No entanto, a investida do caubói leva a rumos inesperados – principalmente, para ele próprio.
A trama, construída em capítulos – o que dá ao filme um caráter autoral a exemplo do que fizeram com propriedade Kubrick, Godard e Tarantino – vale-se dos conceitos não só da feminilidade, mas também de masculinidade e da homossexualidade para dissolver mitologias e criticar estereótipos. Em uma sociedade bruta como a do Velho Oeste dos Estados Unidos, em que os instintos se sobrepõem, principalmente a tudo que for de natureza sensível e “feminina”, Campion põe em xeque a macheza do famoso homem “durão”, bem como subjetiva a fraqueza do homossexual e, realista, não inventa nenhuma falsa imagem de uma mulher forte e corajosa diante de uma condição social irrespirável. Tempos antigos, inspirações atuais.
trailer de "Ataque dos Cães"
O longa, embora não seja genial, é muito bem engendrado, uma vez que sabe dispor os elementos narrativos econômica e gradativamente, o que mantém a atenção do espectador que venceu os primeiros 20 minutos de história e diálogos naturalmente (e propositalmente) ainda vagos. Alguns méritos são evidentes. Faroeste sem um disparo de pistola sequer, o filme consegue manter a sensação de tensão quase permanentemente – seja pelo temperamento explosivo de Phil, pela iminência da doença dos animais ou pelo mistério que as montanhas do extremo Norte dos Estados Unidos guardam. O elemento sonoro-musical é outro ponto bem tratado, quase uma chave que liga dois mundos, o selvagem e o desenvolvido, isso tanto na trilha sonora invariavelmente dissonante, assinada pelo Radiohead Jonny Greenwood, quanto nas músicas incidentais.
Fica claro que não é por acaso que Jane escolheu o faroeste como metáfora para refletir ideologicamente a sociedade atual. Embora não seja novidade a tentativa de Hollywood de mostrar que os brutos também amam, é inegável que o gênero mais yankee do cinema representa em boa medida a ideologia que os Estados Unidos vendem ao mundo, arraigado em boa parte em concepções machistas e patriarcais. Isso explica porque o western, enquanto símbolo cultural e hipérbole dessa ideologia, tenha perdido o passo ao galopar paralela e anacronicamente com o desenvolvimento sociocultural de sua nação. Neste processo, sofreu um considerável desgaste ao longo das décadas até quase sumir das telas nos anos 80-90, salvo por um clássico temporão, "Os Imperdoáveis", de Clint Eastwood (1992) . Hoje, sua revitalização só poderia vir em forma de crítica. O protagonismo de um caubói negro na refilmagem de "Sete Homens e Um Destino" (Fuqua, 2016), a descrença na natureza humana de “A Balada de Buster Scruggs” (irmãos Coen, 2018) e a feminização do herói valentão de “Cry Macho” (Eastwood, 2021) juntam-se a “Ataque...” nessa tendência de um olhar racional e reflexivo sobre a sociedade e seus padrões. O rei está nu e não se fazem mais John Wayne como antigamente. Ainda bem.
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Cão que ladra forte por Cly Reis
Tenho que admitir que tinha um certo preconceito quanto a filmes dirigidos por mulheres. Jane Campion era uma exceção. Desde o primeiro momento, com seu brilhante "O Piano", vencedor da Palma de Ouro em Cannes, em 1995, a diretora neozelandesa conquistou meu respeito e admiração. Agora, quando soube que seu novo filme, "Ataque dos Cães" era um faroeste fiquei bastante intrigado sobre como funcionaria um gênero tão rústico e pesado nas tão delicadas e talentosas mãos desta diretora. Certamente não poderia se tratar de um western convencional. E, efetivamente, não o é. Além de não ser exatamente um faroeste dentro dos moldes tradicionais, nem a época é exatamente a dos conflitos mais brutais e ignóbeis do oeste americano como duelos, assaltos a diligências ou corrida por ouro. "Ataque dos Cães" se passa no final dessa era sem lei, é o início da "civilização", onde há vaqueiros, há revolveres, há cavalos, mas também há homens de terno que administram as fazendas, a caneta muitas vezes resolve mais do que a bala e o automóvel começa a dividir espaço com as montarias, sinalizando um novo tempo.
Essa situação histórica não é em vão, não é por acaso. O faroeste de Jane Campion, adaptado do romance do escritor Tomas Savage, é estrategicamente situado nesse recorte histórico de modo a sinalizar para um novo momento no qual não há mais espaço para homens que resolvem tudo na bala. Um novo homem aparece. Na verdade sempre esteve lá, mas agora quer sair. Esse é o conflito que se estabelece em um dos protagonistas, Phil Burbank (Benedict Cumberbatch), um típico vaqueiro, rústico de maus modos e pose de machão, que, além de desaprovar a civilidade do irmão, George, homem do campo como ele, porém mais adaptado aos novos tempos e administrador dos negócio da família, briga contra si mesmo por sentimentos íntimos que, contra sua vontade, o tornam frágil, vulnerável e fazem aflorar coisas que reluta em assumir. O conflito interior se acentua quando Phil tem contato com Peter
Cumberbatch e Smth-McPhee: faroeste com requintes de um drama sensível e perspicaz
(Kodi Smth-McPhee), filho de uma estalajadeira, Rose (Kirsten Dunst), que, para seu desgosto, cai nas graças do irmão que a pede em casamento. O jovem é sensível, talentoso, emotivo e a percepção dessas qualidades por parte do cowboy fazem com que, incapaz de lidar com sua sexualidade, nutra pelo rapaz uma séria antipatia. Por extensão à repulsa pelo garoto, e também por "roubar" seu irmão e pelo fato de, na sua visão, enfraquecer os valores de homem do campo, Phil rejeita a nova cunhada destratando-a, a fazendo sentir-se uma estranha mesmo dentro da própria casa. O filho, o jovem Peter, que não havia ido morar com o casal, num primeiro momento, aproveita o recesso das aulas para passar uma temporada em companhia da mãe em seu novo lar, dando a ela um pouco de conforto naquele território hostil. No entanto, o que era para ser algo positivo acaba sendo mais uma dor de cabeça para Rose quando o cunhado, seu desafeto, por incrível que pareça, acaba se aproximando de seu filho, em parte por implicância, por provocação, mas em parte, também, por ver no rapaz algo parecido consigo e, nessa proximidade, a possibilidade de se libertar e de, minimamente, ser quem desejaria ser. E é nesse quadrilátero que a diretora desenvolve seu filme com engenhosidade e sabedoria para captar e transmitir o perfil psicológico e emocional de cada um de seus personagens principais, com rara sutileza e sensibilidade.
O título em português, embora justificável, de certa maneira, é um tanto infeliz e acaba insinuando uma violência que o filme não possui, o que acaba mais repelindo do que conquistando potenciais espectadores. Sei de gente que não quis ver ainda por conta da sugestão de atrocidade que o nome carrega. Mas não precisa ter medo dos cães. O filme passa longe de ser um bang-bang, um faroeste spaghetti e muito menos um desfile de atrocidades. "Ataque dos Cães" é, na verdade, um drama familiar de quatro pontas, um exame sobre a masculinidade que, no fim das contas, acaba por nos revelar que nem sempre o cão que late mais alto é o mais perigoso.
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Ataque psicológico por Vagner Rodrigues
Uma certa lentidão, uma narrativa arrastada, tudo isso é muito bem compensado com um terceiro ato magnífico. Que filme, senhoras e senhores! "Ataque dos Cães" acompanha os irmãos Phil (Benedict Cumberbatch) e George (Jesse Plemons), que são ricos proprietários da maior fazenda de Montana. Enquanto o primeiro é brilhante, mas cruel, o segundo é a gentileza em pessoa. Quando George secretamente se casa com a viúva local Rose (Kirsten Dunst), o invejoso Phil faz tudo para atrapalhá-los. O fato do andamento ser mais arrastado e parado foi proposital, mas entendo aqueles que aproveitaram o filme em streaming para dar uma pausa, ir ao banheiro, fazer um lanche, pois realmente fica um pouco cansativo. Um dos aspectos que me tirava um pouco do filme era o modo como o personagem de Jesse Plemons foi utilizado, entrando e sando da história a todo instante. Seus momentos de interação são ótimos, mas ele acaba aparecendo bem pouco, e fiquei com a impressão de que poderia ter sido melhor aproveitado. Já que estamos falando dos personagens, é simplesmente impossível falar do filme e não citar as grandes atuações. O elenco como um todo está inspirado. Começando pelo próprio, já citado Jesse Plemons (George) que, se por um lado é o que tem menos tempo de tela, por outro, quando aparece é cirúrgico. Poucas falas, mas muito é dito com seu olhar. Kirsten Dunst (Rose) fazia tempo que não via atuar tão bem. A dor, a confusão mental que essa mulher passa, você sente tudo. Kodi Smit-McPhee (Peter), é o segundo personagem mais importante da trama e a forma como ele muda o filme e também como cria os elos das pessoas é o que nos leva às surpresas finais. E ele, Benedict Cumberbatch, tem uma das melhores atuações de sua vida, (se bem que, para mim, ele esta sempre bem). A forma intensa que ele atua, como ela passa aquele ar do cowboy bruto, sujo, quieto, tudo muito natural em um personagem com uma presença enorme, interpretado em uma atuação magnifica. A construção narrativa feita pelo longa é espetacular, desde como os personagens são apresentados passando por como eles vão interagindo entre eles, sendo essas interações repletas de detalhes muito bem colocados.
A fotografia exuberante de "Ataque dos Cães"
E a fotografia, se não for a melhor do ano, certamente é uma das melhores! O jeito como o cenário é construído, os enquadramentos em planos abertos, os detalhes nas composições de cena... Um esplendor. Temos um bom trabalho na construção e desconstrução do cowboy, a forma como longa brinca com nossas expectativas nos induzindo a pensamentos, conduzindo nossa mente para um lado para o outro. Na sequência em que Phill e Peter terminam juntos de construir uma corda de laçar, por exemplo, Jane Campion cria toda uma situação cheia simbolismos e possíveis interpretações (eu tive a minha, depois me conta a sua) que nos prendem a ela de uma maneira incrível, tal qual a tensão criada por um filme de terror psicológico. “Ataque dos Cães” não brinca somente com o psicológico dos personagens porque, sim temos ataques psicológicos fortes no longa que são muito mais agressivos que os físicos. Não vá pensando em ver um “bang-bang”. "Ataque dos Cães" é um filme que não mexe apenas com o psicológico dos personagens, mas com o seu também.
Fui levado a crer, pelo título, que a mesinha seria o centro da trama, algo demoníaco, sobrenatural, amaldiçoado. O diretor Caye Casas bem que astutamente colabora para essa indução começando o filme com um parto, depois entrando com uma cena longa em que um casal, com um bebê do colo, compra a mesa de centro de um vendedor um tanto bizarro e insistente, numa loja meio obscura... A gente logo pensa, "tem coisa aí". Mas não tem! Na verdade, "A Mesa da Sala de Jantar" é mesmo um terror psicológico familiar angustiante e, embora o móvel tenha papel crucial nos acontecimentos, o desenvolvimento todo não se fixa nele. Não vou entrar em detalhes, para quem não tenha assistido, mas, basicamente, um trágico acidente doméstico acontece às voltas com uma mesa de centro recém adquirida e o proprietário do novo móvel, Jesus, se vê sem saída diante das atitudes a tomar antes que a esposa volte do supermercado e das consequências que o incidente, inevitavelmente, virá a ter... mais cedo ou mais tarde. Olha, é impactante, é inquietante, chocante, de roer as unhas. Nos vemos tão ansiosos e sem soluções quanto o perdido e desesperado Jesus. Havia ouvido falar bem desse filme mas ele me surpreendeu além da expectativa.
Pra ter uma ideia do quanto estava bem falado, até o Stephen King elogiou!
E se até o cara que é mestre nesse tipo de coisa gostou, quem seria eu para discordar?
O casal sendo convencido pelo esquisito vendedor e, diante deles, a tal mesinha.
"A Mesa de Café"
Título Original:"La Mesita del Comedor"
Direção:Caye Casas
Com:David Pareja e Estefania de Los Santos
Gênero:Terror Psicológico/Suspense/ Comédia de Humor-Negro
Em junho, eu havia participado de uma sessão comentada sobre o belo “A Primeira Morte de Joana”, da cineasta gaúcha Cristiane Oliveira, na Cinemateca Paulo Amorim da Casa de Cultura Mário Quintana. Na ocasião, extremamente especial, pude discutir o filme com a produtora do longa-metragem Aletéia Selonk, da Okna Produções, a montadora Tula Agnostopoulos e a curadora da Cinemateca Paulo Amorim, minha colega de ACCIRS e de Jornalismo Mônica Kanitz, que me estendeu o convite. Mesmo com o gratificante posterior retorno da própria Cristiane, que mora em São Paulo e não pode comparecer naquele dia – mas assistiu ao vídeo completo do debate –, as correrias dos dias não me permitiram registrar aqui no blog aquele encontro.
Sessão de "A Primeira Morte..." com as parceiras de debate Tula, Mônica e Aletéa
Os meses passaram e um novo convite veio, intermediado pela mesma Mônica mas, desta vez, por ideia do próprio realizador, Giovani Borba, para uma sessão sobre o seu brilhante “Casa Vazia”, filme sobre o qual escrevi no Clyblog. Aliás, esta resenha, replicada nas redes sociais da produtora do longa, Panda Filmes, chegou a Giovani, que o motivou a contar comigo nesta feita. Saborosíssima, diga-se de passagem, seja por poder rever o filme, agora na tela grande, seja pelo contato presencial, seja pela ótima conversa, que transcorreu posteriormente à exibição.
Com a presença de um público enxuto, mas qualificado – entre os quais, um interessado Glênio Póvoas, meu ex-professor de cinema na faculdade e uma referência no que se refere à pesquisa e memória do cinema gaúcho – pudemos discorrer sobre aspectos de “Casa Vazia” muito interessantes e até elucidativos. Um deles é o rol de referências cinematográficas do jovem Giovani, que vai desde cinema iraniano à escola russa. Abbas Kiarostami e John Ford são duas delas. A mim já havia ficado evidentes as alusões aos irmãos Coen, principalmente ao new-western “Onde os Fracos não Têm Vez” (2007) e, especialmente, a Andrei Tarkowsky. A cena do incêndio da casa, chave para a trama de “Casa Vazia”, faz referência direta a de “O Sacrifício” (1986), porém é “O Espelho” (1979) com o qual o filme de Giovani guarda mais cruzamentos, seja na fotografia, nos enquadramentos e nos lances sensoriais.
Outro ponto bastante discutido foi a escolha de elenco e, em especial, a participação de Hugo Noguera, ator não-profissional mas que, nem por isso, atua com maestria – que lhe rendeu, inclusive, prêmio de Melhor Ator no Festival de Gramado de 2022, pelo papel do sofrido Raúl. Giovani contou que sua ideia inicial era de realizar um filme apenas com atores amadores, mas que essa ideia foi se modificando com o andar da pré-produção em razão de uma série de questões. Porém, o papel do protagonista era uma vontade a qual gostaria de não abrir mão de utilizar alguém que não fosse da profissão para que as características rústicas do gaúcho de fronteira restassem preservadas genuinamente. O encontro com Nogueira, homem de forte sotaque “portunhol” na vida real, foi quase por acaso, mas se mostrou certeiro. A obra se desenvolve, sim, a partir das ideias do roteiro do próprio Giovani, mas muito em função da forma de ser e da sensibilidade de Nogueira, que imprimiu, mesmo sem a técnica cênica formal, peculiaridades que ajudaram a formatar a personagem de Raúl. Giovani, como bom diretor, claro, acatou de bom grado tais contribuições.
Aos que não assistiram, “Casa Vazia” é um drama com toques de western, que trata do empobrecimento de regiões agrícolas, tendo no protagonista, um peão de meia idade de traços indígenas e gestos rudes, o retrato social de um típico gaúcho na atual região do Pampa gaúcho, abordando o tema da pobreza no campo e evidenciando a violência e os conflitos sociais, econômicos e psicológicos do personagem principal. Não é somente uma obra apreciável, mas, como bem disse professor Glênio durante a sessão como um entusiasta do filme, "Casa Vazia" é uma das melhores produções do cinema gaúcho contemporâneo, o que, assim como para com "A Primeira Morte...", pode-se já afirmar mesmo com tão pouco tempo de vida de ambos.
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Com Mônica e o talentoso Giovani falando sobre "Casa Vazia"
Foto "oficial" com os três após o rico papo na Cinemateca Paulo Amorim
Um dos trunfos do cinema moderno é o da subversão. Mais do que somente
a criatividade estética trazida pelos cinemas novos ou da reelaboração
narrativa proposta pelos “rebeldes” da Hollywood nos anos 70, o elemento que de
alguma maneira transforma o status quo,
que contraria o esperado pelo inconsciente coletivo, é o que determina com
maior eficiência a ponte entre moderno e clássico em cinema. Afinal, por que
até hoje é tão impactante o pastor assassino de “O Mensageiro do Diabo” ou a
brincadeira com a dualidade de gênero de “Quanto Mais Quente Melhor”, mesmo
ambos os filmes contados em narrativa tradicional? Em “Aquarius”
(2016), o diretor Kleber Mendonça Filho,
diferente do que fizera em seu filme anterior, o ótimo “O Som ao Redor”,
vale-se desta premissa com sucesso ao reelaborar, hibridizando ambas as formas,
significados muito peculiares do universo da história que se propôs a contar,
construindo uma narrativa impregnada desses elementos não raro surpreendendo o
espectador.
O longa conta a história de Clara (Sônia Braga, magnífica), uma
jornalista e crítica de música aposentada. Viúva, mãe de três filhos adultos e
moradora de um apartamento repleto de livros e discos na beira da praia da Boa
Viagem, em Recife, ela se vê ameaçada pela especulação imobiliária quando a
empresa detentora do seu edifício – o emblemático Aquarius – tenta a todo custo
tirá-la de lá para demolir o prédio e construir um empreendimento gigante e pretensamente
moderno. Fiel a suas convicções e sabedora de seus direitos, Clara resiste, não
sem consequências e retaliações.
As praias de Recife, elemento presente nos filmes
de Kleber Mendonça Filho.
Antes de qualquer coisa, impossível dissociar a história de Clara do
momento do Brasil. O embate entre o poder estabelecido do capitalismo e a
resistência do pensamento humanístico, à luz do maniqueísmo ideológico que
tomou o País nos últimos anos, fazem de “Aquarius” um símbolo do cinema
brasileiro da atualidade, o que, em parte, explica o sucesso de bilheteria (mais
de 55 mil pessoas já assistiram). Entretanto, é a forma com que Mendonça Filho
escolha para contar que faz de “Aquarius” uma obra marcante e, talvez, tão
apreciada. Ele vale-se de elementos da cultura de sua terra natal, Pernambuco,
e principalmente da Recife enquanto símbolo de metrópole brasileira, com seus
medos, violências, angústias e neuroses, mas também as benesses: a ligação com
o mar e o mangue, o desenho da cidade, sua rica cultura e suas memórias. Aliás,
memória é o substrato do filme. Contrapondo permanentemente passado e presente,
o diretor suscita a crítica ao perpassar questões imbricadas à sociedade, como
a desigualdade socioeconômica, a “commoditização” dos relacionamentos, a
relação entre gerações e os preconceitos, sejam estes raciais, sociais, de
gênero ou condição física.
É com base nesta visão muito pessoal, a qual não esconde o inimigo nem
exclui o belo, que “Aquarius” se monta. Muitos dos significados vão ganhando
forma à medida que o filme transcorre, às vezes quase uma suspeita inconscientemente
desconsiderada assim que o enigma se dissolve. Como a relação de Clara com seu
sobrinho, a qual, num primeiro momento, pode parecer ao espectador, que ainda
não teve informações suficientes sobre ela (ou melhor: tem informações
suficientemente superficiais para desconfiar do mais vulgar e aparente),
tratar-se de um caso amoroso liberal e promíscuo. A explicação vem sutil, sem
alarde, mas dizendo muito sobre a personagem e a história.
A personagem, aliás, carrega em si outro símbolo: o da mulher
emancipada e independente. De pronto percebe-se que Clara é reconhecida como
profissional. Porém, à medida que se entende melhor, revela-se que ela, no
passado, optou em deixar os filhos ainda pequenos com o pai para não perder a
oportunidade de ganhar a vida no centro do País. De certa forma, um pouco da
própria Sônia Braga, que, de modo a dar a natural continuidade internacional à
sua trajetória já restringida no deficiente Brasil pré-democracia, precisou dar
as costas às críticas “vira-latas” e rumar para a indústria norte-americana –
sem, ao contrário do que lhe acusavam, perder identidade e raízes.
Sônia Braga, magnífica, à frente do famigerado ed. Aquarius"
Estes dois exemplos mostram bem o jogo de ressignificações proposto por
Mendonça Filho. Largamente empregadas por cineastas maduros do cinema moderno,
como os irmãos Coen e Quentin Tarantino, a ressignificação tem o poder de
desfazer mitos e quebrar expectativas, muitas vezes a custa de anticlímaces e
desconstruções do imaginário sociocultural. “Aquarius” mostra não o
relacionamento de uma “tiazona” com um rapazote como propositadamente dá a
entender, mas, sim, uma possível, afetuosa e saudável relação entre tia e
sobrinho. O filme mostra não um estereótipo de heroína vencedora e invencível –
e, por isso, desumanizada e reforçadora da ótica sexista –, mas uma mulher com
suas qualidades e defeitos, com inquietudes e paixões tentando fazer o melhor
na vida.
Maior evidência dessa ressignificação é a cena do nu parcial da
personagem. A mensagem imediata que se transmite, ao vê-la começando a se
despir para tomar banho, é o de que se verá a antiga musa e símbolo sexual
despida agora com idade avançada. “Como estará o corpo de Sônia Braga aos 66
anos? Será que está uma velha gostosa?” Mendonça Filho quebra a lógica rala não
ao confirmar o que se suspeitava no que diz respeito às marcas da idade terem
chegado à Dona Flor. Fazendo emergir outro nível de mensagem, mais profundo e
agudo, mostrando-a com um dos seios amputados, consequência de um câncer da
personagem Clara. Em milésimos de segundo, entremeiam-se o preconceito com o
deficiente físico – algo explorado ainda mais e sem rodeios no decorrer –, com
a mulher “não-jovem”, com a mulher em si.
Interessante notar que, a título de narrativa, o cineasta dá um passo
atrás no que se refere à modernidade na comparação com seu filme anterior.
Enquanto “O Som ao Redor” é uma trama coral ao estilo das de Robert Altman e
Paul Thomas Anderson, “Aquarius”, por se concentrar numa personagem, torna-se
mais linear e anedótico. O que não é nenhum demérito, pelo contrário. Assim
como o cineasta mexicano Alejandro González Iñárritu, que depois de uma
trilogia de sucesso de tramas corais (“Amores Perros”, “21 Gramas” e “Babel”) e
de passar pelo radicalismo de "Birdman" optou acertadamente pelo formato
clássico para realizar "O Regresso", seu grande filme. Mendonça Filho parece de
certa forma e em noutra realidade repetir o recente feito de Iñárritu: iniciar
a carreira explorando uma linha intrincada de narrar para, em seguida,
aperfeiçoar seu estilo e simplificar a narrativa voltando as atenções a um herói/heroína.
Em “Aquarius”, contado em capítulos tal qual a construção literária de Stanley Kubrick e Tarantino – inclusive, com um prólogo, com Clara ainda jovem, em 1980
–, Mendonça Filho equilibra com assertividade a forma tradicional e a moderna
de contar a história.
Outros elementos de ressignificado são compostos de maneira muito
segura pelo diretor, que conduz o filme num ritmo cadenciado, por vezes
poeticamente contemplativo, como um ir e vir da onda do mar da praia. Igual a
“O Som ao Redor”, em “Aquarius” o mar é um olho divino que a tudo enxerga. O
som, inclusive, faz-se presente novamente e, agora, é demarcado pela música. De
Queen a Gilberto Gil, passando por Roberto Carlos e Taiguara, as canções pontuam
o filme do início ao fim, ajudando a construir a narrativa e dando-lhe uma
dimensão tanto documental quanto lúdica. Novamente, Mendonça Filho reelaborando
o passado para trazer luzes ao presente. Na guerra indigna que Clara tem de
deflagrar contra a construtora que quer tomar o prédio sob a égide monetária e
desfazendo o real valor sentimental e simbólico, fica clara a mensagem que o
autor que transmitir: o mundo precisa de mais poesia. Se Cazuza integrasse a
trilha com estes versos de “Burguesia”, não seria nenhum absurdo: “Enquanto houver burguesia não vai haver
poesia”.
Para além da discussão partidária e da polêmica em torno da afronta
direta ao Governo no episódio da classificação etária e da não escolha pelo
título à concorrência ao Oscar de Filme Estrangeiro, o objeto do filme é por si
saudavelmente revolucionário, o que o torna, por esse viés, sim, bastante
político. Como um “Sem Destino” ou “Um Estranho no Ninho”, marcos de uma era logo
ao serem lançados, “Aquarius” está igualmente no lugar e na hora certa, tornando-se
de imediato importante como registro do Brasil do início do século XXI
polarizado ideologicamente. Polarização largamente mais desfavorável do que
proveitosa. A ideia do que Clara representa, “minoria empoderada” e não sujeita
aos preceitos verticais da sociedade machista e ditada pelo dinheiro, celebra
uma verdadeira liberdade de pensamento e conduta cidadã a que tanto se aspira
entre os tantos tabus que hão de serem quebrados. Os novos significados, uma
maneira de pensar despida de pré-concepções e amarras sociais, é o que intentam
aqueles que acreditam em igualdade e fraternidade. Se isso concorda ou discorda
do pensamento de esquerda ou de direita, é outra questão. “Aquarius” é, isso
sim, um libelo da necessária subversão em tempos de intolerância.
Nosso
primeiro colaborador da série Duelo, de entrevistas sobre cinema western e clássicos
da sétima arte, é o capixaba e morador de Niterói, José Eugenio Guimarães.
Zootecnista, Cientista Social e professor universitário de profissão. Cinéfilo
de coração, o cara é dono do ótimo Blog Eugenio em filmes. Além de escrever em
sua page diversos textos sobre várias
fases do cinema, ele é um assíduo colaborador de muitas páginas culturais e
sobre o tema na internet. Eugenio, que veio de uma família de cinéfilos,
assistiu seu primeiro filme bem precocemente, aos dois anos de idade e que
depois não parou mais. Ele mantém aquele costume voraz dos aficionados por
cinema de rever uma grande produção muitas e muitas vezes. Conta que assistiu “No
Tempo das Diligências”, mais de 200! O western é só mais uma de suas grandes
paixões. Nosso entrevistado é também um profundo conhecedor de cinema
independente e um fã declarado do cineasta brasileiro Glauber Rocha. É com ele
que vou ter o imenso prazer de bater um papo cinéfilo nestas linhas cheias de
intensidade e paixão real pelo cinema.
BINO: José Eugenio, não posso deixar de fugir
de uma pergunta meio clichê: qual foi o primeiro grande filme que te impactou, aquele
que vem à tua memória sempre num flash rápido?
John Ford
JOSÉ
EUGENIO: Impacto, mesmo, senti ao ver “No Tempo das Diligências” (“Stagecoach”,
1939), em 1963, aos sete anos. Meu pai, cinéfilo, era assumidamente fordiano. E, certamente, herdei dele
essa paixão pelo cinema de John Ford. Muito antes eu já o ouvia, enquanto fazia
a barba ou tomava banho, rememorar diálogos inteiros de “Como era verde o meu
vale” (“How green was my valley”, 1941), o filme que ele mais preferia do
diretor. Mas a experiência de ver “No tempo das diligências” em tela de cinema,
ainda menino, foi algo que jamais esquecerei. Antes de irmos ao Cine Odeon de
Viçosa/MG, no qual foi exibido, o velho, como bom pai, começou a preparar o meu
espírito para o que eu iria ver. E tudo correspondeu às expectativas. Pareceu
que eu estava sonhando. Durante muito tempo “No tempo das diligências” foi o
meu filme preferido de John Ford. Só fui revê-lo no cinema, pela última vez, em
Belo Horizonte, em 1977, quando entrei na sessão das 14h e só saí ao fim da
sessão das 22h, quase à meia-noite. Então, também o vi nas sessões das 16, 18 e
20h. Cinco sessões ao todo, enfileiradas. Saí do cinema meio tonto, mas
totalmente em paz comigo mesmo. Já vi “No tempo das diligências” mais de 200
vezes. Também já ultrapassei esse número com “Rastros de ódio” (“The searchers”,
1956) e “O homem que matou o facínora” (“The man who shot Liberty Valance”,
1962), ambos também de Ford. São filmes que sempre revejo, nos quais sempre
descubro coisas novas.
B: O primeiro filme que a gente assiste no
cinema é como a primeira transa, algo marcante. Que lembranças tens dessa época?
JE: Comigo
até que não dá para fazer essa relação. Pois o primeiro filme que vi no cinema
foi em 1958. Estava com dois anos. Minha mãe queria ver “Marcelino Pão e Vinho”
(“Marcelino Pan y Vino”, 1955), de Ladislao Vajda, e não tinha com quem me
deixar. Levou-me junto. Segundo ela, fiquei o tempo todo com os olhos
arregalados colados na tela, do começo ao fim. Evidentemente, não guardo
lembranças desse meu batismo no cinema. O que ficou dessa ocasião foram as
canções do filme, usadas por minha mãe para embalar o meu sono enquanto fui
criança de colo. “Marcelino Pão e Vinho” só fui rever em BH, em um
relançamento, quando estava com 21 ou 22 anos. Valeu como experiência afetiva,
afinal estava tendo a oportunidade de ver o filme que inaugurou a minha
cinefilia e que me fez fazer incontáveis birras para voltar ao cinema. Mas o
filme mesmo é decepcionante, muito carola e moralista, uma produção típica da
Espanha franquista afundada num catolicismo tão retrógrado como medieval.
B: Sobre tuas preferências no cinema em geral,
quais escolas tu mais admiras? Fale um pouco delas.
JE: Há
muitas "escolas". Prefiro chamar de movimentos. Mas as que fizeram a
minha cabeça ou ampliaram os meus horizontes na cinefilia são, principalmente,
o Cinema Revolucionário Russo, a Avant Gard Francesa, o Realismo Poético
Francês, o Free Cinema Inglês, o Expressionismo Alemão, o Neorrealismo
Italiano, a Nouvelle Vague Francesa e o Cinema Novo Brasileiro.
Falar um
pouco delas... Vamos lá. Tentarei ser breve.
O Cinema
Revolucionário Russo, por ter sido uma experiência que, ao menos por curtíssimo
tempo, uniu o cinema a um projeto de mudança política e social. Era o cinema no
compasso da revolução, inserido na construção de novos homem e tempo.
Infelizmente, Stálin acabou com tudo isso.
A famosa cena do olho de "Um Cão Andaluz",
de Buñuel e Dalí
A Avant
Gard Francesa, por trazer a abstração, o universo da subjetividade para o
cinema, contaminando-o de poesia, aproximando-o das outras esferas da criação. Poucas
vezes o cinema esteve tão perto do sublime e da ousadia, do rompimento de
convenções, como neste breve período circunscrito aos anos 20.
O Realismo
Poético Francês por investir no lirismo, transitando do otimismo à tragédia em
tão pouco tempo. Praticamente foi um movimento que antecipou a tragédia
europeia instalada com o Nazismo, incorporando, principalmente em seu momento
de auge, a desesperança e o fatalismo.
O
Neorrealismo Italiano por mostrar o melhor do humanismo num momento cravado na
destruição provocada pela Segunda Grande Guerra. Câmeras nas ruas e becos, sob
a realidade do sol ou da noite, acompanhando gente praticamente real,
vivenciando problemas comuns, cotidianos, principalmente os que dizem respeito
à sobrevivência. Então, é um cinema aliado ao exercício da objetividade, mas
sem se esquecer de expressar o que passa em cada particularidade dos seres em
cena.
Já o
Expressionismo Alemão apreende a realidade num momento de incerteza e
dissolução. A Alemanha derrotada na Primeira Guerra entrou numa crise profunda,
não apenas econômica como moral, política e social. A mistura de tudo isso
gerou perplexidade. O fantástico, inclusive o terror, dominaram a cena.
Personagens dementes ou próximas disso davam o tom às narrativas e ações. Não
havia explicações plausíveis para os atos. Quase tudo encontrava motivação numa
ordem transcendental, inatingível, etérea, inexplicável. A poesia, a
psicanálise, a escultura, a pintura eram fortes aliadas da composição cênica. É
como se o cinema se tornasse total, ao englobar todos os demais meios de
expressão e sem esquecer os rumos incertos que a sociedade vinha tomando. Mas
tudo prenunciava o pior, como sabemos.
A Nouvelle
Vague, por sua vez, foi o cinema do NÃO. Não a qualquer convenção, a qualquer
dependência do cinema à literatura e aos estúdios. A liberdade criativa, a
juventude, o espírito de rebeldia dominaram o movimento, que falava
principalmente ao ser e às questões da contemporaneidade. Havia uma autonomia
autoral sem precedentes. As produções eram baratas, filmava-se onde era
possível, o glamour pouco importava.
Um espírito de espontaneidade dava a tônica, algo que Jean-Luc Godard ainda
hoje preserva em seus ensaios fílmicos.
cena de "Acossado" de Jean-luc Godard
O Free
Cinema Inglês é praticamente paralelo e parecido à Nouvelle Vague, mas era
menos etéreo, mais centrado nas questões concretas e prementes da existência.
Dava para sentir os personagens pulsando de forma mais vigorosa e intensa.
No Brasil,
o Cinema Novo, tão radical, com tantos nomes importantes e a vontade de revelar
o país além dos grandes centros, também de maneira independente dos esquemas
industriais, sem muitas preocupações às fórmulas, mas criando outras. Glauber,
maior nome do movimento, era praticamente um cineasta que se reinventava de
filme para filme, até chegar na desconstrução plena da narrativa em seu esforço
tão pouco compreendido de emancipar o olhar. É um provocador que faz falta à
mesmice de agora.
B: Em relação ao western, qual foi a grande contribuição desse
gênero para o cinema mundial?
Antônio das Mortes, personagem de Glauber
inspirado em Ford
JE: Ao cinema
mundial, não sei. Mundial é muita coisa. O que se sabe de concreto é: o western, por mais que muitos lhe torçam
o nariz, foi o gênero que apresentou um tipo de homem que podem ser
caracterizado como o indivíduo em sua forma mais bem acabada, sociologicamente
falando. O cowboy ou seus similares
estavam apoiados única e exclusivamente em suas determinações, desejos e
vontades. É algo específico de uma determinada cultura. Historicamente, não há
precedentes ao tipo em nenhum outro local do mundo. Geralmente as pessoas
estavam vinculadas a alguma estrutura, a uma ordem. O cowboy, não. Goza de uma margem de autonomia sem precedentes. Isso
encantou principalmente as plateias fincadas em organizações sociais mais
tradicionais. Nisso, de certa forma, o modelo inspirou cineastas japoneses,
principalmente Kurosawa. No Brasil, Glauber Rocha, principalmente em “Deus e o
Diabo na Terra do Sol” e "O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro", tem no
personagem Antonio das Mortes uma extensão. Aliás, sabe-se claramente que o
desenho do personagem está inspirado em Ethan Edwards (John Wayne), de “Rastros
de ódio”. Esses filmes de Glauber buscam inspiração nos westerns de Ford, mas sob a capa de um Eisenstein. E há a Itália,
país que sempre valorizou o gênero, tanto que inventou uma variante. Outras
formas de narrativa heroicas contaminadas pelo western pode ser encontradas no cinema popular chinês, por exemplo.
No Brasil, também há os filmes de cangaço, há muito tempo em baixa, com suas
estruturas narrativas também herdadas dos westerns,
principalmente pelo uso do cavalo pelos cangaceiros, algo que não resiste à
menor análise junto à realidade, pois cangaceiro se locomovia a pé. Mas o cowboy, mesmo, é uma experiência única,
ímpar, puramente estadunidense. É o indivíduo moldado naquilo que Weber chamou
de ética protestante – do puritanismo: alguém que apenas presta contas às suas
determinações e vontades.
B: "O Portal do Paraíso" é considerado o filme
que matou o western americano, tudo por seu grande desastre comercial. O western spaghetti também passou por seu período turbulento e, após os anos 70,
também não teve mais o brilho da era do ouro dos Sergio's e companhia. Com todo
esse hiato, raras produções western tiveram destaque no cinema. Um exemplo é “Dança
Com Lobos” e "Os Imperdoáveis", que ganharam muitos Oscar e foram muito bem
recebidos pela crítica. Poucos estúdios e diretores apostam nesse tipo de
produção. Porque você acha que este gênero está tão em baixa nos últimos
tempos?
JE: O western é vítima de vários fatores. Há
primeiro a televisão, que o banalizou com um punhado de séries familiares e
telefilmes de consumo imediato. Também há o politicamente correto. Além do fato
de que os estadunidenses em geral têm certa dificuldade de confrontar um
passado de conquista que não se afigura tão glorioso para a História, dados os
custos humanos do empreendimento. Ainda é muito complicado, para eles, discutir
o genocídio dos índios. É um tema praticamente encoberto de tabu. É uma pena,
pois se há um gênero que pode ser chamado de genuinamente nacional em se
tratando de Estados Unidos, é o western.
Quer queira quer não, mostra como o país foi conquistado e unificado. À medida
que os EUA foram se urbanizando e se industrializando, ficado mais
cosmopolitas, o western foi se
tornado um gênero ultrapassado, uma narrativa que não combina mais com a
realidade, principalmente por revelar uma etapa que se quer esquecer.
B: Tarantino e os irmãos Ethan e Joel Coen parecem ter apostado no western,
cada um a seu estilo. Como você vê a estética e os filmes destes diretores?
Francamente,
em termos estéticos não saberia como responder. Sei que são recicladores, cada
qual à sua moda. São cineastas que têm um modo próprio de expressão mas sem
abrir mão das dívidas a pagar com a tradição. Tanto que seus filmes podem ser
sérias releituras ou, dependendo do momento, também podem ser meros pastiches.
O que me irrita, hoje, é o extremo valor que se dá a esses nomes. Não tanto os
Irmãos Coen, que são brilhantes. Mas faço reservas a Tarantino, não tanto a
ele, que é bom cineasta, mas por ser visto, principalmente pelos setores mais
jovens, como um valor totalmente original. Não é, mesmo. Pode ser mais
barulhento, mas estiloso, mais midiático, mas é também um manipulador em causa
própria, um bom marqueteiro de si mesmo. Em todo caso, vamos ver. Não estou
dizendo que o abomino, muito ao contrário. Apenas revelo o que para mim
desponta como limitações.
B: Se tu tivesses que fazer uma lista de 10
grandes e definitivos westerns de todos os tempos, quais seriam?
Esse
negócio de listar "grandes e definitivos" é problemático. Mas, vamos
lá, com todo o meu perdão às injustiças que certamente cometerei:
1 - No
tempo das diligências (Stagecoach), de John Ford (1939)
2 - Paixão
dos fortes (My Darling Clementine), de John Ford (1946)
3 - Rio
Vermelho (Red River), de Howard Hawks (1948)
4 - O
preço de um homem (The Naked Spur), de Anthony Mann (1953)
5 - Os brutos
também amam (Shane), de George Stevens (1953)
6 - Rastros
de ódio (The Searchers), de John Ford (1956)
O Duke, John Wayne,
em cena de "Rastros de Ódio"
7 -
Galante e sanguinário (3:10 to Yuma), de Delmer Daves (1957)
8 - Onde
começa o inferno (Rio Bravo), de Howard Hawks (1959)
9 - O
homem que matou o facínora (The Man Who Shot Liberty Valance), de John Ford
(1962)
10 - Meu
ódio será sua herança (The Wild Bunch), de Sam Peckinpah (1969)
Puxa,
apenas 10 títulos! Acabei de excluir cerca de 16 outros, que considero
essenciais, da lista. Parece que acabo de cometer pecado mortal.
B: Agora mudando o rumo da conversa. Quando
Redford quando criou Sundance queria dar oportunidade ao cinema independente. Muitos
diretores e produtores beberam nessa fonte que Cassavetes catapultou anos
antes. Que tu acha desse tipo de cinema não tão mainstream? Algum filme ou diretor te chamou atenção
nestes últimos anos?
JE: Esse
tipo de cinema, à margem, é essencial. E aí que vamos encontrar os germes de
renovação, as criatividades. Cinema é indústria e indústria é algo formatado,
que pode ser reproduzido em grande escala. O cinema independente está à margem
disso, pode se afastar das convenções, investir em pesquisas estéticas,
formais, autorais; pode correr riscos com mais facilidade. Pode ousar. Pena que
todo sopro de independência, de rebeldia, acaba, com o tempo — e são raras as
exceções —se incorporando ao mainstream,
ainda mais no cinema americano. Gosto de citar um caso extremo: John Waters,
com seu cinema de guerrilha. Já significou mau gosto. Vide “Pink Flamingos”.
Hoje, é encenado na Broadway. Seus exercícios autorais, fétidos, imorais e
amorais já foram incorporados à industria e refilmados segundo os grandes
esquemas. Vivemos tempos cada vez mais perigosos ao autoral e ao independente.
O capitalismo incorpora tudo, até o que lhe é contrário. Basta ser domesticado,
esquematizado e, claro, dar lucro.
Sobre quem
está chamando a minha atenção nos últimos anos: Sophie Deraspe, Martin Laroche,
XAvier Dolan, Stéphane Lafleur, Robert Morin, Denis Villeneuve, Alexandro
Avranas, Rosario Garcia-Montero, Petra Costa, Peter Webber... deve ter mais
alguém.
B: E sobre as produções Brasileiras e
Latino-Americanas o que você tem a dizer?
JE: Bom...
O cinema brasileiro sempre me interessou, desde que me habituei a vê-lo já na
fase final das comédias da Atlântida. Nós temos um cinema muito bom, diferente,
com valorosos cineastas. No tempo do Cinema Novo éramos uma das cinematografias
mais desafiadores. O cinema brasileiro foi recordista mundial de prêmios em
mostras e festivais internacionais nos anos 70. Penas que os contextos
políticos não ajudaram.
Já vi
muitos filmes mexicanos. Eram exibidos facilmente no Brasil até o começo dos
anos 70. Havia aqui uma representação da PelMex – Películas Mexicanas –, que
fazia a distribuição do que veio a ser conhecido como Cinema de Lágrimas. O
cinema cubano também teve melhores dias entre nós, principalmente o Novo Cinema
Cubano (já velho), dos anos imediatamente posteriores à Revolução.
Pouco
conhecemos das produção dos nossos vizinhos, excluída, atualmente, a Argentina,
que vive um contagiante momento de euforia. Quanto a nós, agora, parece que
estamos prisioneiros do formato ditado pela Globo Filmes. Mesmo assim, não
podemos reclamar, pois temos Jorge Furtado, Fernando Coimbra, Karim Aïnouz, Cláudio
Assis e gente mais velha que ainda está na ativa apesar de todas as
dificuldades.
B: O que tu achas do cinema como ferramenta de
inclusão social?
As
contribuições seriam exatamente a de levar o cinema à população. Tentativa que
não é nova e era praticada em tempos mais generosos e mais fartos de filmes com
temáticas populares e de acesso mais facilitado ao público em geral,
principalmente ao carente de cinema. Nos anos 60 e 70 os cineclubes faziam essa
ponte, levando o cinema à população que nunca o teve. Inclusive estimulando-o a
tomar a câmera como exercício de criação própria. Cheguei a participar um pouco
dessa fase, em meus dias de cineclubismo.
B: Para finalizar, se você se definisse como
pessoa em um filme, qual seria ele, e por quê?
JE: Ah! Não
sei. Certamente seria alguém semelhante aos personagens interpretados pelo
Wilson Grey, pelo Hank Worden, pelo Henry Calvin. Nunca me preocupei com isso.
Mas alguém heroico é que não seria. Estou mais perto do perfil dos perdedores.
Se tivesse que ser um cowboy,
encontraria afinidades com o Monte Walsh vivido pelo Lee Marvin em “Um homem
difícil de matar” (Monte Walsh, 1970), de William Fraker.