Curta no Facebook

Mostrando postagens classificadas por data para a consulta wenders. Ordenar por relevância Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens classificadas por data para a consulta wenders. Ordenar por relevância Mostrar todas as postagens

terça-feira, 5 de outubro de 2021

"O Segundo Rosto", de John Frankenheimer (1966)


Eu dilacerado

Sondar as profundezas da natureza humana é uma das mais recorrentes propostas do cinema de autor. Neste universo, há inúmeros títulos que abordam o tema sob enfoques dos mais diversos. Determinados cineastas, no entanto, tomam este tipo de temática quase como uma obsessão – o que lhes faz soar formalmente ainda mais freudianos. O cinema europeu, mais dado a estes instigantes “intrincamentos psicologizantes”, tem em Bergman uma referência indissociável, mas ainda há Antonioni, Wenders, Resnais, Buñuel, Fassbinder e alguns outros. No cinema americano a prática de levar a câmera ao divã é mais incomum, porém, por sorte, não inexistente. Inspirado no cinema marginal americano dos anos 40-50 (Penn, Aldrich, Ray), no expressionismo alemão e pelas vanguardas dos anos 60 e 70 – que tomavam os corações de jovens cineastas pelo mundo todo àquela época –, o norte-americano John Frankenheimer (1930-2002) muito perseguiu em seus filmes a temática psicanalítica. Seu mais assertivo feito é, entretanto, “O Segundo Rosto” (Seconds, EUA, 1966), uma brilhante metáfora sobre a perda de identidade e a dilaceração do indivíduo na sociedade moderna.

Um dos livros mais importantes do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, “Modernidade e Holocausto”, traz, através da visão crítica e ampla peculiar do autor, a ideia de que os sintomas da Solução Final da Segunda Guerra Mundial ultrapassam o castigo aplicado ao povo judeu (o que já seria, contudo, suficientemente trágico). Para ele, as implicações do massacre praticado pelo regime nazista se estendem às esferas política, sociológica e psicológica com tal força que se torna, ainda hoje, problema não só de judeus, mas de não-judeus, de ocidente e oriente; da sociedade moderna como um todo. Trata-se, obviamente, de um fenômeno maligno, mas cujos fatores psicossociais formadores não são necessariamente perversos, visto que pautado no tripé da burocracia moderna, da eficiência racional-tecnológica e da mistificação – aspectos que, convenhamos, isoladamente, não inspiram essencialmente maldade. 

Nesta linha, “O Segundo Rosto” traz à tona, num enredo envolto em mistério, ficção-científica e surrealismo, um dos resultados psicossociais dos efeitos devastadores que o genocídio impregnou no inconsciente coletivo: a divisão do “eu”. Afinal, a Crise dos Mísseis havia ocorrido há apenas 4 anos, a cisão entre as “Alemanhas” estava no auge e a Guerra Fria era “compensada” pelos Estados Unidos num conflito injustificável no Vietnã. Tal tensão fica explícita na construção do personagem-protagonista (s?). Na história, um homem de meia idade, John Hamilton (maravilhosamente interpretado por John Randolph), vice-presidente de um banco, vive com a esposa numa confortável casa de subúrbio. Angustiado e insatisfeito com sua vida burocrática e repetitiva, contrata uma empresa especializada em "renascimentos". A organização forja sua morte e, após avançados procedimentos cirúrgicos, faz com que ele renasça na figura de Anthiocus Wilson (Rock Hudson), um pintor de sucesso cuja história toda pré-programada ele, agora renovado por fora, terá de se incubar “por dentro”. Claro, não sem enormes desafios psicológicos.

Cena de "Seconds":  modernidade e Holocausto

Frankenheimer concebeu um filme revolucionário, inspirador de grandes realizadores como David Cronenberg e Roman Polanski, de quem se vê em vários trabalhos elementos pescados de “O Segundo Rosto”. A relação carne/alma, recorrente discussão na obra de Cronenberg – “A Mosca” (1986) e “Crash” (1996), por exemplo –, é explorada numa brilhante metáfora no filme: a “companhia de renascimentos” usa como fachada um frigorífico. A utilização das perturbações mentais como elemento narrativo é também típica do cinema tanto de Cronenberg quanto de Polanski, que de “O Segundo Rosto” se valeu bastantemente para compor os roteiros e a atmosfera sombria de suspenses psicológicos como “O Bebê de Rosemary” (1968) e “O Inquilino” (1976).

De fato, “O Segundo Rosto” inova e surpreende. Começa com a hipnótica abertura do mestre Saul Bass, designer alemão que revolucionou o modo de apresentar os filmes ao adicionar, com técnica e criatividade, o conceito do filme já nos subtítulos, e cujos créditos iniciais de obras-primas como “Um Corpo que Cai”, “O Homem do Braço de Ouro” e “Cabo do Medo”, assinadas por ele, são um espetáculo à parte. Em “O Segundo Rosto”, Bass se vale de imagens em hipercloses distorcidas de um rosto casadas com a tensa música de outro mestre, Jerry Goldsmith, dando a tônica do que virá no decorrer da trama. 

A marcante abertura assinada por Saul Bass


As interpretações são outro destaque, principalmente a de Rock Hudson, cuja mente perturbada consegue-se penetrar pelo espectador a ponto de causar uma quase náusea. Perversão, culpa, alucinação, medo, inocência; está tudo ali, embaraçado. As figuras que, por paranoia ou não, aterrorizam o mundo de Anthiocus parecem saídas de um tenebroso sonho, lembrando as caracterizações feitas por Orson Welles em “O Processo” (1962). 

Afora o roteiro, eficiente e preciso, equilibrando densidade e didática, a direção e a fotografia merecem aplausos. O olhar de Frankenheimer é cirúrgico, usando os elementos fílmicos com precisão e clareza de objetivos. A câmera, por exemplo, é um artifício para, independente da forma como é empregada, transmitir desequilíbrio, seja em movimentos bruscos – como na fascinante cena inicial na estação (presa à altura da cabeça do ator, esta técnica de hiperrealismo ainda é muito usada hoje, na publicidade, por exemplo, para fortalecer a proximidade física do espectador com o “objeto” filmado) –, seja em enquadramentos fixos, ora em angulações distorcidas e inclinadas, ora aproveitando-se da profundidade de campo proporcionada pela lente objetiva.

O "eu" dividido: simbologia
do espelho como terror
A propósito disso, a fotografia expressionista em P&B assinada pelo chinês James Wong Howe, outro craque de Hollywood que modificou a forma de fotografar em audiovisual, é um dos pontos mais marcantes do filme, tendo concorrido, inclusive, ao Oscar daquele ano. Não só o uso da perspectiva funciona como ressignificação da complexidade psicológica do protagonista como, igualmente, os closes nas texturas rugosas das peles, nas gotículas de suor que escorrem do rosto, no brilho artificial da íris dos olhos. Foco e desfoco andam juntos o tempo todo, e a composição dos cenários, às vezes propositadamente poluída de elementos visuais, reforçam o deslocamento psicológico de Hamilton-Anthiocus no mundo em que vive – embora o termo “viver” não seja propriamente o mais adequado nesta situação.

Falando em terminologias, este é outro fator expressivo no que se refere à metalinguagem que o filme suscita. O título original pode ser traduzido tanto como “segundo” ou “outro”, pontuando o conceito de dualidade marcante da obra, quanto por “segundos”, numa referência à passagem do tempo, seja este imagético ou físico, real ou psicológico, cronológico ou anacrônico. Outro termo que merece atenção é o “renome” que o protagonista recebe: Anthiocus. Ora: se alguém que busca reinventar-se na modernização forçada de suas feições e biografia recebe um nome etimologicamente referido a “antigo”, é porque alguma coisa está errada! Na sua nova vida, o agora artista, amante de uma linda jovem, conviva da alta classe burguesa e bonito feito um Deus submerso num novo inferno, na verdade, não se desfez daquele velho Hamilton que há dentro dele e cuja casa à art nouveau sempre pareceu um museu – e dos gélidos. Sua profissão de artista plástico, como o "Pintor da vida moderna" de Baudelaire – cuja existência servia para transpor à tela o momento presente –, soa como uma irônica metalinguagem da abstração da realidade pelo cinema enquanto arte.

Duas cenas de "Seconds": influência expressionista
nas imagens distorcida e aterradoras

Este Fausto revisitado, como bem associou o crítico cinematográfico francês Jean Tulard, tem tudo a ver com as crias que o fantasma do Holocausto produziu e produz. Se pensarmos que a pós-modernidade em que vivemos hoje é fruto da modernidade e de que, embora o mundo globalizado e a era digital signifiquem um novo paradigma repleto de novas significações, a própria recentidade história do pós-Guerra intui que problemáticas advindas com este período não tenham sido ainda esgotadas. Tudo bem em se renovem os questionamentos; mas, conforme assinala Bauman, sofre-se ainda, como o personagem de “O Segundo Rosto”, do mal-estar característico da crise da modernidade, impelido pelo também recente advento da psicanálise, pela queda do materialismo histórico e pela quebra do Estado clássico. O resultado é a perda de direção e a criação de um grande “nada”, o qual se impõe à frente de tudo. Alguma semelhança com a falta de critérios e distinções morais da família, da sociedade, do Estado de Direito que se vê hoje?

Cena de "Brilho Eterno...":
poesia do inconsciente
Fugir, então: eis a solução! Este “eu” que, do século passado para cá, de tão massacrado, não está mais se achando. “Eu” que se reduziu a suas meras limitações na filosofia existencialista; “eu” de um K. de “O Processo” de Kafka, que não sabe para onde vai e nem porque; “eu” que perde-se no labirinto das veleidades e da estética, como o hedonista fotógrafo Thomas de “Blow Up” (Antonioni, 1966); ou aquele “eu” lisérgico, marginal e impulsivamente desistente do sistema de Jack Kerouac, Para onde correr, se só há o nada em qualquer direção em que se vá? O jeito é reinventar-se – mesmo que artificialmente. Mais recente, o poético “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças” (Michael Gondry, 2004) navega por mares bem parecidos com o de “O Segundo Rosto”. Neste lindo romance psicológico da era digital, Joel (Jim Carrey) vive um marido magoado por sua esposa Clementine tê-lo, como nos computadores, deletado de sua mente. Resolve, então, retribuir na mesma moeda. No decorrer da operação na “clínica”, Joel percebe que, na verdade, não quer excluí-la de sua vida, e sim manter em sua memória os momentos em que estiveram felizes. A partir disso, ele enfrenta uma incrível luta mental para que essas memórias continuem vivas dentro de si.

O conflito em que esses personagens se consumem e os leva a uma divisão de si mesmos está, em ambos os filmes, diretamente ligada à relação com suas mulheres. Elas lhes são o espelho de suas identidades. Analisando o filme Frankenheimer, a esposa de Hamilton-Anthiocus exerce um papel fundamental na trama, tanto no início da história, no descompasso entre eles, quanto no desfecho, quando se reafirma este desafino. Embora o objeto espelho seja recorrente no cinema para expressar duplicidade, divisão, diferenciação, afastamento, ruptura etc, a repetição deste no decorrer de “O Segundo Rosto” é ludicamente deliciosa ao mostrar a “distorção” da imagem tanto de Hamilton quanto de Anthiocus. Há, porém, na cena crucial do diálogo entre o ele e sua (ex) esposa na casa em que viviam, onde é ela quem se vê refletida e não se “reconhece”, tal como ocorre com o (ex) marido a todo instante, antes e depois da cirurgia.

"O Inquilino" de Piolanski:
dissociação do "eu"
A formação do “eu” no olhar do “outro”, de acordo com o psicanalista francês Jacques Lacan, inicia na infância na relação do ser humano com os sistemas simbólicos fora dele mesmo. O que ele chama de "fase do espelho" é quando a criança, não possuindo qualquer autoimagem como uma pessoa "inteira", vê-se ou "imagina" a si própria refletida, figurativamente, no "espelho" que é o olhar do outro. Só aí ela pode se ver como uma "pessoa inteira". Mas o que ocorre quando este “espelho” está “quebrado”? Outro famoso psicanalista, o suíço C. J. Jung, disse que “não se cura a dissociação dividindo-a, mas dilacerando-a”. No já citado “O Inquilino”, o personagem principal, num processo semelhante ao de Anthiocus, a certa altura, questiona-se: caso mutilassem partes de seu corpo, poder-se-ia, mesmo assim, ele e suas partes continuarem se chamando pelo mesmo nome? Despedaçado, sua angústia está em perder a “unidade” de sua alma, de ser um mero “inquilino” dentro de si mesmo.

Embora  este sujeito complexo e problemático esteja sempre partido, ele passa a vivenciar sua própria identidade como se ela estivesse reunida e "resolvida", como resultado da fantasia de si mesmo que ele formou naquele espelho em cacos. Aspectos tão profundos da psique humana e do inconsciente coletivo encontram, por sorte, leito na obra de autores do cinema americano como Frankenheimer (e aí se podem citar também Allen, Scorsese, Eastwood e Altman), coisa que o cinema de outras partes do mundo, infelizmente, muitas vezes não tem tanto poder em atingir um público maior valendo-se de recursos semelhantes. Apesar de pessimista, a visão de Frankenheimer supõe um alarme, um apontamento do erro de nossa pós-modernidade de que fugir de si esvazia e dilacera.

********

trailer de "O Segundo Rosto"


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

"O Medo do Goleiro Diante do Pênalti", de Wim Wenders (1972)



O que eu estou fazendo aqui? Qual o sentido disso tudo? Qual a minha importância dentro de tudo isso? Quem nunca se perguntou essas coisas em algum momento da vida? Bom, o certo é que o recomendável não é começar a pensar sobre essas coisas durante um jogo de futebol e, ainda mais quando se é goleiro. Em "O medo do goleiro diante do pênalti", o arqueiro Joseph Block, já um tanto desligado da partida que está disputando, leva um gol, vai reclamar do juiz, é expulso, pega suas coisas, dá o fora do pequeno estádio onde o jogo se realiza e, a partir de então, começa a vagar sem rumo, sem saber bem o próximo passo. Nisso, acaba se envolvendo com a bilheteira do cinema que frequenta, acaba a assassinando sem nenhum motivo, vai parar numa cidade interiorana e, de certa forma, passa a se esgueirar da polícia, mas, no fundo, talvez, querendo ser apanhado, descoberto, como que dizendo, "Olhem para mim!". Uma espécie de ânsia contida, domada, em mostrar a todo mundo que o goleiro não é importante apenas quando a bola vai nele. Ele faz parte do jogo mesmo quando a bola está em outras partes do campo.
O filme, a estreia do alemão Wim Wenders em longa-metragens, pode parecer um tanto lento e parado para muitos espectadores, mas é o ritmo adequado imposto pelo diretor de modo a criar essa comparação com a função solitária do futebol, fazendo de seu protagonista, na maior parte do tempo, um observador, e com esse tipo de condução, fazer notar, de forma muito sutil, as mudanças que nele ocorrem.
No fim das contas, especialmente pela cena final, o filme de Wenders nos leva à reflexão de que, no fundo, a vida não passa de um pênalti e cabe a nós, como goleiros, conhecer o batedor, fazer a leitura da linguagem corporal dele para adivinhar ou lado da batida ou, simplesmente, ter a sorte de cair pro canto certo. E aí, será que você pega o seu?

Aquele posto solitário no campo, aquela bola entrando...
Qual o sentido de tudo isso? Qual o sentido de... TUDO?




por Cly Reis

segunda-feira, 17 de maio de 2021

“Nosferatu: Uma Sinfonia do Horror”, de F. W. Murnau (1922) vs. “Nosferatu: O Vampiro da Noite”, de Werner Herzog (1979)

 

Seja no futebol ou no cinema, têm enfrentamentos que se pode dizer que metem medo. Colocar frente a frente os dois “Nosferatu”, as adaptações mais conhecidas do romance de horror “Drácula”, do escritor britânico Bram Stocker, é um desses que dá aquele frio na espinha mesmo antes de a partida começar. Qual time é mais “mordedor”? Qual deles “ataca” mais? Qual saberá se valer melhor do “elemento surpresa”? Qual escola conseguirá superar a outra? Indagações que os comentaristas se fazem, mas que ninguém sabe ao certo as respostas até o certame ser definido ali, dentro das quatro linhas, olho no olho, dente por dente.

 Os retrospectos das duas equipes são de amedrontar qualquer adversário. São duas forças do futebol alemão, inegavelmente. De um lado, aquela que é considerada a obra-prima do Expressionismo Alemão: “Nosferatu: Uma Sinfonia do Horror”, de F. W. Murnau, de 1922. Produto do período Entre-Guerras, é um ícone máximo de uma escola de cinema, incorpora uma série de inovações, tanto técnicas (como o uso do contraste negativo, a expressividade do jogo de luz e sombra, a cenografia distorcida, a maquiagem carregada) quanto narrativas, tornando-se referência para todo e qualquer filme de terror até os tempos atuais. Do outro, “Nosferatu: O Vampiro da Noite”, de Werner Herzog, de 1979, a versão muito bem elaborada pela leitura de outra referencial escola cinematográfica, mas esta do pós-Guerra, o Novo Cinema Alemão, do qual o cineasta, um dos grandes expoentes, tinha como parceiros de movimento nomes como Win Wenders, Margarethe Von Trotta, Volker Schlöndorff e Rainer Werner Fassbinder.

Mas por que se lê “Nosferatu” e não “Drácula” nos uniformes? Porque, na década de 20, oito anos após a morte de Bram Stocker, a família do escritor não queria ceder os direitos para a obra ser filmada. Além da mudança do título, o vampiro titular se tornou o Conde Orlock na a primeira versão. Jonathan Harker foi rebatizado para Thomas Hutter, Lucy Harker tornou-se Ellen Hutter e Abraham Van Helsing virou Professor Bulwer. Nos anos 70, com esse impasse superado, Herzog consegue utilizar os nomes originais, mas mantém o roteiro (e o título) do filme mudo. Ambos, porém, são baseados na trama do livro “Drácula”: um homem faz uma viagem de negócios para um fantasmagórico castelo, onde o vampiro quer seduzir sua noiva. Em ambos há também o acréscimo de alguns elementos para mudar um pouco a obra original e, claro, disfarçar a inspiração, como a ideia de que a luz do sol mata os vampiros.

Schreck e Kinski: vampiros de atuações matadoras
Mas chega de pré-jornada. Vamos, de fato, à jornada em si, aquela que vai da pacata Wisborg rumo à assustadora mansão nos Montes Cárpatos. Depois daquele papo motivacional nos vestiários (“quero ver todo mundo dar sangue hoje!”, “vâmo entrar mordendo!”, “se passar por ti, gadunha!”, etc.), é hora de enfrentar aquele friozinho na barriga e entrar em cena de vez. A bola (fita) vai rolar! Poucos minutos decorrem e já se percebe que o jogo vai ser, como diz na linguagem do futebol, “pegado”. Esquemas espelhados em campo: marcação no cangote do adversário, mas sem perder a qualidade quando vão pra frente. O filme de Murnau começa fazendo o contraste necessário da proposta expressionista: cenário bucólico e iluminado ao mostrar a vida de Hutter antes de chegar à Transilvânia, local onde a atmosfera, agora sombria, sem profundidade e claustrofóbica, se transforma em algo sinistro, gótico. Já Herzog prefere adicionar ao expressionismo o qual homenageia aspectos barrocos do período medieval em que a trama transcorre, seja na fotografia e direção de arte quanto no aspecto cênico, retirando um pouco da carga romântica típica do expressionismo (os arroubos emocionais, as expressões exageradas) e incluindo maior naturalidade às interpretações. Futebol moderno, mais prático. Estratégias que mostram estilos diferentes: um mais cru, mais objetivo; o outro, mais elaborado, mais híbrido e, assim, o placar permanece no zero.

O páreo segue duro quando se fala dos atores que interpretam Conde Orlock/Drácula: Max Schreck e Klaus Kinski. Igual Luis Suárez na Copa de 2014, os dois disputam cada centímetro do gramado na base da dentada! Imbuído do espírito expressionista de uma interpretação mais teatral e hiperbólica, o ator do primeiro simplesmente cria um ícone do cinema. Além dos olhos esbugalhados, da maquiagem distorcedora e da expressão de mistério, seu trabalho corporal compõe o personagem: gestos lentos, passos curtos, costas curvadas, mãos contorcidas, semblante esquelético e braços colados ao corpo (como que recém saído do caixão). No entanto, Kinski não fica para trás. Ele – com quem Herzog havia rodado anos antes o excelente mas traumático “Aguirre: A Cólera dos Deuses”, em que Kinski quase enlouqueceu a equipe a ao próprio cineasta com ataques de sua própria cólera – usa sua fúria natural para assimilar o que Schreck lhe legara, porém valendo-se muito bem de um elemento ao qual o outro não tinha condições de aproveitar à época da primeira realização: a comunicação sonora. Kinski, que é louco mas não é bobo, dota seu vampiro de voz e de sons guturais e animalescos, que o fazem parecer ainda mais com um assombroso morcego. Não disse que era páreo duro? Nem a destreza cênica de Kinski, entretanto, é capaz de superar a invenção de uma forma de atuar e a marcante personificação de um mito da cultura ocidental quando se fala em histórias de terror. Afinal, o que seria de um Freddie Krugger ou dos filmes de zumbis se não fosse esse grotesco vilão? Sim: Schreck mostra os dentes e marca o primeiro. E não dá pra dizer que foi descuido da defesa, não! Foi, sim, total habilidade do atacante. 1 x 0 pra “Nosferatu” de 22.

Acontece que, como deu pra perceber, o remake não veio só pra reverenciar, mas para disputar palmo a palmo. E qual a tática que usa para isso? Valorizar o que tem de diferencial. Bruno Ganz e Isabelle Adjani como casal Harker é um desses pontos, e quase marcam gol. Momento de pressão do time mais jovem (se é que dá pra falar disso de um cara como Drácula, com 200 anos de idade). Os atores são um elemento do esquema tático que se soma ao uso da cor desmaiada da foto de Jörg Schmidt-Reitwein e da trilha da banda krautrock Popol Vuh, constantes colaboradores de Herzog àquele época e corresponsáveis pelo climatização sonora de seus filmes. No volume de jogo, “Nosferatu” de 1979 empata a partida: 1 x 1.

 

O pavor das mocinhas Greta Schröder (como Ellen Hutter) e Isabelle Adjani (Lucy Harker)

Mas o primeiro “Nosferatu” não se intimida e segue propositivo, assustando (literalmente) a cada vez que chega na área. Time entrosado, em que os jogadores trocam passes em silêncio, sem trocar uma palavra sequer. Mas nem precisa! Eles cercam o adversário quando estão sem a bola, diminuindo os espaços. E quando vão pra cima, meus amigos! É bola na trave, é sequência de escanteios, é defesa daquelas sobrenaturais do arqueiro, é salvada do zagueiro e cima da linha. Na gíria futebolística: “Nosferatu” bota terror! Eis então que o longa mudo desempata novamente a partida com a sequência da chegada de Orlock com o navio cheio de ratos trazendo a peste à cidade, momento em que não apenas impressionam as cenas dele andando pelas ruas com o caixão nos braços quanto o filme de Murnau se vale de efeitos visuais bem ousados para sua época. 

Não leva muito tempo, porém, e o desafiante, num contra-ataque, digamos, “letal”, altera o placar mais uma vez! Que jogo histórico estamos presenciando! Mais do que histórico: secular! Aproveitando-se exatamente desta sequência do desembarque da nau pesteada a Wisborg, que corresponde ao 4º ato do filme original, o professor Herzog intensifica ainda mais a atmosfera fantástica e põe milhares de ratos a invadirem as ruas da cidade. Que coisa apavorante! Isso é que se chama de povoar o campo do adversário! O jogo está indo para seus 15 minutos finais e o que se vê no marcador é 2 x 2. Tudo igual mais uma vez. Os ânimos vão ficando cada vez mais nervosos. O juiz, ao perceber as entradas estão cada vez mais fortes e que dos dois times, que têm tendência a machucar, estão querendo tirar sangue do adversário, distribui alguns cartões para colocar um freio. Se não a coisa descamba, Arnaldo!


Filmes "Nosferatu" completos: de 1922 e de 1979





Acontece que time que sabe que é grande não se amedronta fácil. O filme de Murnau sabe que representa não só um marco no cinema mundial como, em termos históricos, artísticos e sociológicos, uma síntese dos tempos pré-nazismo. A psicanálise, a industrialização e, principalmente, a 1ª Guerra, traumatizaram o mundo dos anos 20. A Alemanha, inferiorizada e pobre, tinha nas diversas correntes artísticas daquele período manifestos desta conturbação. Um deles, dos mais bem sucedidas enquanto forma de arte, é justamente o Expressionismo Alemão, o que se vê em obras como esta ou “O Gabinete do Dr. Caligari” (1919), “As Mãos de Orlac” (1924), “Fausto” (1926) e “Metrópolis” (1922). Dá pra dizer que “Nosferatu” de Murnau não é apenas um filme: trata-se da invenção de uma escola, da demarcação de um estilo, da mais profunda manifestação artística de uma real onda sombria a qual não só se intuía como, infelizmente, se concretizaria no Holocausto anos depois.

A inigualável cena da sombra 
subindo a escada
Não tem como segurar um time desses, né? Pois é o que acontece. A “sinistra” qualidade técnica do filme dos anos 20, como a montagem precisa, o uso mimético dos planos de câmera e a adequação da luz à simbologia cênica fazem o time crescer para cima da sua vítima. A cena de Orlock subindo as escadas e levando a mão à maçaneta da porta da casa de sua pretendida, como se apenas a sombra agisse, é daquelas jogadas que somente os grandes ousam. O cinema noir até hoje agradece por esta cena, sem a qual dificilmente este movimento cinematográfico existiria. Além disso, o aspecto altamente erótico, que envolve desejo, medo e morte, outra ousadia que certamente impacta mais em um filme do início do século para um mais ao final deste. Herzog, um técnico honesto e sensato, no fundo sabe que seu lugar na história cinematográfica é de um renovador e não de pioneiro como o seu adversário, a quem ele reverencia. Por isso, ciente do seu tamanho, Herzog não se mete a besta em “copiar” a cena com o seu Conde Drácula, e é justo nesse detalhe que a partida se define: 3 x 2 para o clássico “Nosferatu”. E está fechado o caixão!

Planos parecidos em jogo de esquemas táticos espelhados:
bem acima, cena da aparição de Nosferatu no navio;
abaixo, o vampiro sai da tumba; ratos, muitos ratos,
levam a peste para a cidade; por fim, a luz do sol,
mortal para um vampiro que salva os homens
da criatura das trevas.


Num confronto tenso, com sustos para os dois lados, 
defesas mordedoras e ataques afiados como caninos, 
“Nosferatu: O Vampiro da Noite” faz um jogo de igual 
pra igual com o seu original, “Nosferatu: Uma 
Sinfonia do Horror”. Mas a camiseta – ou melhor, 
a capa – pesa nessas horas, e nos 10 minutos 
finais, quase ao apagar das luzes (ou seria ao
“acender das luzes” quando mata o vampiro... 
ah, sei lá!), o clássico de Murnau se impõe 
como grande obra-prima da história do cinema 
e crava! Opa, o placar, não os dentes! 
Não pensem que, no entanto, por ser disputada, 
a partida foi feia, desleal ou tenha partido para a
 violência gratuita. Não! Muita qualidade 
para os dois lados, agressividade na medida certa 
e atuações dignas de duas escolas campeãs. 
Placar justo em um clássico bem jogado.






Daniel Rodrigues

segunda-feira, 1 de março de 2021

20 filmes para entender o cinema brasileiro dos anos 2000

 

Enfim, a bonança. Depois de gramar por décadas entre crises e bons momentos, com as políticas pró-cultura do Governo FHC bem continuadas pelo de Lula, o cinema brasileiro finalmente vive, nos anos 2000, sua década de maior valorização e intensidade produtiva. E com isso, principalmente, a liberdade criativa limitada ora politicamente, como no período da ditadura, ou pela míngua, quando pagou os pecados na Era Collor, explode em riqueza. Não necessariamente de dinheiro – afinal, está se falando de um país recém-saído da pecha de Terceiro Mundo e recém combatendo um mal chamado “fome”. Mas, com certeza, riqueza de criatividade e diversidade. 

Como todo momento histórico, porém, existe um marco. Símbolo da nova fase do cinema brasileiro, os anos 2000 viram um fenômeno chamado “Cidade de Deus” promover uma guinada na produção nacional a ponto de estabelecer um novo padrão estético e ser capaz de reintegrá-la ao circuito internacional, seja na ficção ou no documentário. O Brasil chegava ao Oscar - e não de Filme Estrangeiro, mas na categoria principal. Junto a isso, novos realizadores, polos e produtoras pediam passagem junto a velhos cineastas, que se adaptavam à nova fase. Enfim, depois de agonizar, o cinema brasileiro, como a fênix, revive e prova que é um dos mais criativos e belos do mundo.

Dada a quantidade amazônica de boas realizações, provenientes desde o Sul até o Norte, certamente esta é a década mais difícil de se selecionar apenas 20 títulos. Ou seja: fica muita coisa boa de fora. Talvez não tão importantes quanto os revolucionários filmes dos anos 60, como “Terra em Transe” e “O Bandido da Luz Vermelha”, ou das produções maduras dos 70 e 80, tais como “Bye Bye, Brasil” ou “Nunca Fomos tão Felizes” – ou até das resistentes e brilhantes noventintasCentral do Brasil” ou “Dois Córregos” –, as duas dúzias de obras geradas na abundante primeira década do século XXI são a representação de um país em que as políticas públicas e o incentivo à cultura deram certo, definindo um novo modus operandi na produção audiovisual brasileira. Pode-se, enfim, passar a dizer expressão com segurança: “cinema da retomada”.




01 - “O Invasor”, de Beto Brant (2001) - Para começar de vez a década, nada melhor que um filme marcante. O terceiro longa de Brant avança na sua estética orgânica e tramas que dialogam com a literatura (roteiro do próprio autor Marçal Aquino) para contar a história de três amigos sócios em uma empresa, que entram em crise entre si. Para resolver uma “questão”, contratam o matador Anísio (Paulo Miklos, impecável), mas acabam por comprar uma maior ainda. Não deu outra: abocanhou vários prêmios, entre estes Melhor Filme Latinoamericano em Sundance, Melhor Filme no Festival de Recife e vários em Brasília, entre eles direção, trilha sonora, prêmio da crítica e ator revelação para Miklos. 



02 - “O Xangô de Baker Street”, de Miguel Faria Jr. (01) - Sabe o caminho para as coproduções reaberto por Carla Camuratti e os Barreto na década anterior? Resultou, entre outras obras, no divertido e brilhante “O Xangô...”, baseado no best-seller de Jô Soares. A invencionice de contextualizar um thriller de Sherlock Holmes em plena Rio de Janeiro do final do século XIX dá muito certo na adaptação de Faria Jr., que equilibra muito bem atores estrangeiros (Joaquim de Almeida, Anthony O'Donnell, Maria de Medeiros) com craques brasileiros (Marco Nanini, Cláudio Marzo, Cláudia Abreu e o próprio Jô, que faz uma ponta). Produção de um nível como raras vezes se viu no cinema brasileiro até então. Vencedor de alguns prêmios no Brasil e no exterior, com destaque para a direção de arte de Marcos Flaksman e figurino da dupla Marilia Carneiro e Karla Monteiro. 



03 - “Lavoura Arcaica”, de Luiz Fernando Carvalho (01) - LF Carvalho, principal responsável por levar o cinema de arte para a TV brasileira ainda nos anos 90, quando produziu séries e especiais para a Globo em que rompia com os preguiçosos padrões do audiovisual tupiniquim, pôs pela primeira vez sua estética arrojada e fortemente sensorial nas telonas com “Lavoura”. E o fez já desafiando-se ao adaptar o barroco e difícil texto de Raduan Nassar, feito que realizou com brilhantismo. Exemplo em aulas de cinema, principalmente pela fotografia (Walter Carvalho) e montagem (do próprio diretor). Interpretações igualmente marcantes, como a do protagonista Selton Mello, de Simone Spoladore e do craque Raúl Cortez. Mais de 50 prêmios internacionais e nacionais e elogios rasgados da Cahiers du Cinéma. Usar-lhe o termo “obra-prima” não é exagero.



04 - “Bufo & Spallanzani”, de Flávio Tambellini (01) - Filme policial com há muito não se via no cinema brasileiro. Aqui, ainda com a ajudinha do próprio autor da história, Rubem Fonseca, com a mão hábil de Patricia Melo. Várias qualidades a destacar, como as atuações de José Mayer, Tony Ramos e Maitê Proença. Mas o toque noir moderno muito bem conduzido por Tambellini – estreante na direção de longa, mas já um importante produtor, responsável por filmes-chave do cinema nacional como “Ele, O Boto” e “Terra Estrangeira” – e captado na fotografia de Bruno Silveira também se sobressai. Ainda, revelou o ex-Legião Urbana Dado Villa-Lobos como um exímio compositor de trilha sonora, dando a medida certa para a atmosfera de submundo urbano da trama. Prêmios em Gramado e no Festival de Cinema Brasileiro de Miami.




05 - “Madame Satã”, de Karim Ainouz (02) - Como década importante que foi, alguns filmes dos anos 00 concentraram mais de um aspecto emblemático para essa caminhada do cinema brasileiro. O primeiro longa de Ainouz é um caso. Além de trazer à cena o talentoso cineasta cearense, revelou um jovem ator baiano que conquistaria o Brasil todo no cinema, TV e teatro: Lázaro Ramos. Mas não só isso: resgata a eterna Macabea Marcélia Cartaxo, revela também Flávio Bauraqui e ainda abre caminho para as cinebiografias de personagens negros importantes, mas por muito tempo esquecidos pelo Brasil racista, como o precursor do transformismo e da exuberância do Carnaval carioca João Francisco dos Santos. Festivais de Chicago, Havana, Buenos Aires e claro, Brasil, renderam-lhe diversos prêmios  entre Filme, Diretor, Ator, Atriz, Arte, Maquiagem e outros.


06 - “Carandiru”, de Hector Babenco (02) - Há o emblemático “Pixote”, o premiado “O Beijo da Mulher-Aranha” e o apaixonante “Ironweed”, mas não é nenhum absurdo afirmar que a obra-prima de Babenco é este longa, magnificamente adaptado do Best-seller do médico Dráuzio Varella. Trama coral, como raramente se vê no cinema brasileiro, amarra diversas histórias com talento e sensibilidade de alguém realmente imbuído de um discurso humanista e antissistema como o do cineasta. Revelou Wagner Moura, Ailton Graça e Caio Blat, reafirmou Lázaro e Rodrigo Santoro, reverenciou Milton Gonçalves. Fotografia de Walter Carvalho mais uma vez esplêndida e trilha de André Abujamra, idem. Mas o que impressiona – e impacta – é o tratamento dado ao texto e a edição cirúrgica de Mauro Alice. Indicado em Cannes e Mar del Plata, venceu Havana, Grande Prêmio Cinema Brasil, Cartagena e outros.




07 - “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles e Kátia Lund (02) - Talvez apenas “Ganga Bruta”, “Rio 40 Graus”, “Terra em Transe” e “Dona Flor e Seus Dois Maridos” se equiparem em importância a “Cidade...” para o cinema nacional. Determinador de um “antes” e um “depois” na produção audiovisual não apenas brasileira, mas daquela produzida fora dos grandes estúdios sem ser relegada à margem. Pode-se afirmar que influenciou de Hollywood a Bollywood, ajudando a provocar uma mudança irreversível nos conceitos da indústria cinematográfica mundial. Ou se acha que "Quem quer Ser um Milionário?" existiria para o resto do mundo sem antes ter existido "Cidade..."? O cineasta, bem como alguns atores e técnicos, ganharam escala internacional a partir de então. Tudo isso, contudo, não foi com bravata, mas por conta de um filme extraordinário. Autoral e pop, “Cidade...” é revolucionário em estética, narrativa, abordagem e técnicas. Entre seus feitos, concorreu ao Oscar não como Filme Estrangeiro, mas nas cabeças: como Filme e Diretor (outra porta que abriu). Ao estilo Zé Pequeno, agora pode-se dizer: "Hollywood um caralho! Meu nome agora é cinema brasileiro, porra!".



08 - “Amarelo Manga”, de Cláudio Assis (02) - Quando Lírio Ferreira e Paulo Caldas rodaram “Baile Perfumado”, em 1996, já era o prenúncio de uma geração pernambucana que elevaria o nível de todo o cinema brasileiro poucos anos depois. O principal nome desta turma é Cláudio Assis. Dono de uma estética altamente própria e apurada, ele expõe como somente um recifense poético e realista poderia as belezas e as feiuras da sua cidade – nem que para isso tenha que extrair beleza da feiura. Texto e atuações impactantes, que dialogam com o teatro moderno e a escola realista. Injusto destacar alguma atuação, mas podem-se falar pelo menos de Jonas Bloch, Matheus Nachtergaele e Leona Cavalli. Presente nos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos da Abraccine, ainda levou Brasília, CineCeará, Toulouse e o Fórum de Cinema Novo do Festival de Berlim. Mas os pernambucanos estavam apenas começando...



09 - “Edifício Master”, de Eduardo Coutinho (02) - A retomada do cinema brasileiro trouxe consigo velhos militantes, como Babenco e Cacá Diegues, mas fez um bem especial ao maior documentarista do mundo: Eduardo Coutinho. O autor do melhor documentário brasileiro de todos os tempos, “Cabra Marcado para Morrer”, engrena uma série de realizações essenciais para o gênero, que se redescobre pujante e capaz num Brasil plural após uma década de redemocratização. Coutinho inicia sua trajetória no então novo século com esta obra-prima, pautada como sempre por seu olhar investigativo e sensível, que dá espaço para o “filmado” sem impor-lhe uma pré-concepção. Afinal, para que, já que o próprio ato de filmar exprime esse posicionamento? Melhor doc em Gramado, Havana, Margarida de Prata, APCA e Mostra de SP.


10 - “O Homem que Copiava”, de Jorge Furtado (03) - Já era de se esperar que o exímio roteirista e diretor gaúcho, que ajudou a dar novos padrões ao cinema de curtas e à televisão brasileira nos anos 90, chegasse inteiro quando rodasse seu primeiro longa. Não deu outra. Sucesso de bilheteria e crítica, com uma trama cativante, “O Homem...” resumo muito do que Furtado já evidenciava no cinema do Rio Grande do Sul (roteiro ágil e fora do óbvio, referências à cinema e literatura, universo pop, trato na direção de atores, cuidado na trilha) e adiciona a isso uma “brasilidade” que espantou – claro! – os próprios gaúchos, com o baiano e negro Lázaro Ramos protagonizando uma história na embranquecida Porto Alegre. Grande Prêmio Cinema Brasil, Havana, Montevidéu, APCA e outros. 



11 - “Estamira”, de Marcos Prado (04) - Dentre as dezenas de documentários realizados na década 00, um merece especial destaque por sua força expressiva incomum: "Estamira". Certamente o que colabora para esta pungência do filme do até então apenas produtor Marcos Prado, sócio de José Padilha à época, é a abordagem sem filtro e nem concessões da personagem central, uma mulher catadora de lixo com sério desequilíbrio mental, capaz de extravasar o mais colérico impulso e a mais profunda sabedoria filosófica. A própria presença da câmera, aliás, é bastantemente honesta, visto que por vezes perturba Estamira. Obra bela e inquietante. Melhor doc do FestRio, Mostra de SP, Karlovy Vary e Marselha, além de prêmios em Belém, Miami e Nuremberg.


12 - “Tropa de Elite”, de José Padilha (07) - Já considerado um clássico, “Tropa” divide opiniões: é idolatrado e também taxado de fascista. O fato é que este é daqueles filmes que, se estiver passando na tela da TV, é melhor resistir aos 10 segundos de atenção, por que se não inevitavelmente se irá assisti-lo até o fim esteja no ponto em que estiver. O filme de Padilha une o cinema com assinatura e um apelo pop, o que rendeu ao longa mais de 14 milhões de espectadores e um dos personagens mais emblemáticos do nosso cinema, capitão Nascimento - encarnado por um brilhante Wagner -, comparável a Zé Pequeno de “Cidade”, Zé do Burro de “O Pagador de Promessas” e Getúlio de “Sargento Getúlio”. Consolidando o melhor momento do cinema nacional, a exemplo de “Central do Brasil” 10 anos antes, “Tropa” fatura Berlim.



13 - "Santiago",
de João Moreira Salles (07) - O atuante empresário e banqueiro João Moreira Salles, desde muito envolvido com cinema como o irmão Waltinho, já havia realizado aquele que poderia ser considerada a sua obra essencial, "Notícias de uma Guerra Particular", de 1999. Porém, foi quando ele voltou sua câmera para si próprio que acertou em cheio. Diz-se um olhar interior, porém, quebrando-se a "quarta parede" de forma incomum e subjetiva, uma vez que o personagem principal não é ele mesmo, mas o homem que dá título ao filme: o culto e enigmático mordomo espanhol da abastada família Salles, que cuidara dele e de seus irmãs na idílica infância. Misto de memória, confissão, resgate sentimental, registro antropológico e, claro, cinema em essência. A locução sóbria mas presente do irmão Fernando, a estética p&b, as referências ao cinema íntimo de Mizoguchi e as lembranças de um passado irrecuperável dão noção da força metalinguística que o filme carrega. 
Vários prêmios e presença nos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos da Abracine.



14 - “Estômago”, de Marcos Jorge (07) - Aquela expressão "conquistar pelo estômago" talvez não se adapte muito bem a este peculiar filme que junta suspense, drama, comédia e certa dose de escatologia. A abordagem dada por Marcos Jorge ao criativo roteiro justifica o título ao pautar as relações e as atitudes pelo instintivo, pelo animalesco. Assim, comida, sexo, sangue e poder se confundem, reelaborando a ideia de quem conquista quem. Por falar em conquista, aliás, o cineasta estreou emplacando o filme brasileiro mais premiado no Brasil e no exterior em 2008-2009, vencedor de 39 prêmios, sendo 16 internacionais.


15 - “Batismo de Sangue”, de Helvécio Ratón (07) - Um dos diversos ganhos do cinema brasileiro dos 00 foi a possibilidade de lançar um olhar renovado e compromissado sobre a história recente do País. Enquanto na esfera política se avançava com a criação da Comissão da Verdade, o cinema acompanhava este movimento politizador e brindava o público com obras dotadas de urgência, dentre estes muitos documentários, mas algumas ficções. O melhor resultado desta confluência é “Batismo”, fundamental filme sobre os frades dominicanos que se engajaram na guerrilha contra a ditadura militar nos anos 60 no Brasil, entre eles, Frei Betto, autor do livro que inspira o longa. Dialogando com os corajosos mas necessariamente limitados "Brasil: Um Relato da Tortura" e "Pra Frente, Brasil", exibe tal e qual as sessões de tortura promovidas nos anos de chumbo. Mas isso seria limitar a obra: com excelentes atuações, é tenso, tocante e dramático sem perder o ritmo nunca. Melhor Diretor e Foto pro craque Lauro Escorel em Brasília.



16 - “A Casa de Alice”, de Chico Teixeira (07) - Assistir um filme como “A Casa” num país cuja produção cinematográfica por muitos anos se valeu de um olhar machista sobre a condição da mulher como foram as pornochanchadas é perceber que, enfim, evoluiu-se. A abordagem sensível aos detalhes e as atuações realistas (mais uma vez, Fátima Toledo e seu método) dão ao filme de Chico ares de cult, mais um dos exemplos estudados nas cadeiras de faculdades de cinema. Filhos, marido, lar, trabalho, mãe... tudo se reconfigura quando os “móveis” da casa começam a se desacomodar: o desejo sexual, a maturidade, a autorrealização. Por que não? A historicamente inferiorizada mulher de classe média, no Brasil anos 00 emancipa-se. Carla Ribas excepcional no papel principal, premiada no FestRio, Mostra de SP, Miami e Guadalajara.



17 - “Ainda Orangotangos”, de Gustavo Spolidoro (2007) - O cinema gaúcho da primeira década do novo século não se resumiu à entrada da turma da Casa de Cinema ao círculo de longas nacional. Surgiam novos talentos imbuídos de ideias ainda menos tradicionais e renovadoras, como Gustavo Spolidoro. Em seu primeiro e marcante longa ele capta a intensidade e a veracidade de uma Porto Alegre ainda "longe demais das capitais", mas que, como toda metrópole, não para - literalmente. O filme, um exercício ousado de plano-sequência, tem até em seus “erros” técnicos qualidades que o alçam a cult, influenciando outros realizadores como Beto Brant e cenas independentes de cinema noutros estados brasileiros. Melhor Filme em Milão e em Lima, que deu Melhor Ator (Roberto Oliveira), e Prêmio Destaque do Júri em Tiradentes. Sabe os oscarizados "Birdman" e "1917". feitos em plano-sequência? Pois é: devem a "Ainda Orangotangos" mesmo que não saibam.




18 - “Meu Nome não É Johnny”, de Mauro Lima (08) - Outra joia do cinema nacional, filme que melhor aproveita o versátil Selton, total condutor da narrativa ao interpretar o junkie “curtidor”, mas profundamente depressivo João Estrella. A história real de sexo, drogas e rock n roll (e tráfico também) remonta um período de curtição lisérgica da juventude classe média carioca dos anos 80, ora aventura, ora comédia, como a própria história mostra, envereda para o drama. Tudo na medida certa. Filme de sequências impagáveis, como a briga na cadeia com os africanos e a entrega de cocaína na repartição pública. Além de Miami, ABC, ACIE e outros, levou pra casa uma mala cheia no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro.



19 - “O Mistério do Samba”, de Carolina Jabor e Lula Buarque (08) - O gênero documentário algumas vezes veste-se de pompas antropológicas. Como a âncora Marisa Monte diz no disco que produziu da Velha Guarda da Portela 9 anos antes deste filme, registrar a obra desses nobres artistas do subúrbio é perpetuar uma parte da cultura popular quase em extinção. Parecia premeditar que, nos anos seguintes ao filme, morreriam sete integrantes do grupo, todos de adiantada idade e vida dura, semelhantemente com o que ocorrera com os membros da banda de outro doc parecido em natureza e grandeza: "Buena Vista Social Club" (Win Wenders, 99). Na hora certa, a dupla de diretores conseguiu por suas câmeras a serviço de uma história cheia de poesia e que conta-se por si. Memoráveis cenas dos pagodes na quadra da escola, algumas das mais emocionantes do cinema brasileiro. Seleção oficial de Cannes e Grande Prêmio Vivo em 2009.



20 - “Linha de Passe”,
de Walter Salles Jr. (08) - 
Waltinho é, definitivamente, dos principais nomes do cinema brasileiro moderno. Responsável por manter o então raro alto nível da produção cinematográfica do Brasil nos anos 90, emplacando o cult “Terra Estrangeira” e o primeiro Urso de Ouro em Berlim do País com “Central do Brasil”, nos anos 2000 ele já havia chegado ao máximo que um cineasta pode alcançar: sucesso em Hollywood. Porém, a vontade de contar histórias de nobres pessoas comuns o faz voltar à terra natal para realizar essa linda trama coral, tocante e reveladora, abordando algo por incrível que pareça não tão recorrente nos enredos justo do cinema brasileiro: o futebol. Não levou Palma de Ouro, mas foi aplaudido por nove minutos durante o Festival de Cannes, além de ganhar o de melhor atriz pela atuação de Sandra Corveloni. Parte dos méritos vai pra Fátima Toledo, que aplica seu método ao elenco com alta assertividade.




**********************

Como são muitos os marcantes filmes dos anos 2000, vão aí então, outros 20 títulos que merecem igual importância: 

"Babilônia 2000”, de Eduardo Coutinho (01); “Durval Discos”, de Anna Muylaert (02); “Querido Estranho”, de Ricardo Pinto e Silva (02); "Lisbela e o Prisioneiro”, de Guel Arraes (03); “De Passagem”, de Ricardo Elias (03); “O Homem do Ano”, de José Henrique Fonseca (03); “Narradores de Javé”, de Eliane Caffé (04); “Meu Tio Matou um Cara”, de Jorge Furtado (05); “2 Filhos de Francisco”, de Breno Teixeira (05); “Cinema, Aspirinas e Urubus”, de Marcelo Gomes (05);  “Cidade Baixa”, de Sérgio Machado (05); “O Fim e o Princípio”, de Coutinho  (05); “Árido Movie”, de Lírio Ferreira (06); “Depois Daquele Baile”, de Roberto Bontempo (06); “Baixio das Bestas”, de Cláudio Assis (06); “Zuzu Angel”, de Sérgio Rezende (06); “Jogo de Cena”, de Coutinho (07); “Ó Paí, Ó”, de Monique Gardenberg (07);  “Proibido Proibir”, de Jorge Durán (07);  “Antes que o Mundo Acabe”, de Ana Luiza Azevedo (09).

Daniel Rodrigues

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Discos para (e de) quarentena


A Queen, isolada numa
fazenda para gravar sua
obra-prima
Nesse período de isolamento em casa pela Covid-19, de todo lado surgem listas com indicações do que se ler, assistir e, bastantemente, ouvir. De playlists a discos, muitos recorrem à música pra aliviar a barra da clausura forçada. Eu mesmo colaborei com uma seleção recentemente para o site AmaJazz sobre os discos de jazz que 50 pessoas escolheram para escutar na quarentena – o meu, aliás, foi "The Real McCoy", de McCoy Tyner, a pouco resenhado por mim para a seção ÁLBUNS FUNDAMENTAIS aqui do blog.

Mas o que ainda não ouvi falarem são os discos não necessariamente próprios para este momento, mas os FEITOS em isolamento. Seja no estúdio improvisado na própria casa, num apartamento fechado, numa mansão isolada da civilização e até num hospício ou cadeia. Tem de tudo. Não é novidade que artistas em geral busquem essa condição de recolhimento para se concentrar, principalmente quando intentam um projeto novo. Porém, geralmente isso ocorre de maneira controlada e adaptada a um fluxo rotineiro. Aqui, não. Falamos de exemplos da discografia do rock, da MPB, da black music e do jazz concebidos ou gravados em condições extremas de afastamento de qualquer outra coisa que pudesse interferir além da própria criação musical. Tamanho foco não raro acarretou em trabalhos brilhantes, sendo alguns bastante recorrentes em listas de melhores em vários níveis.

Woodland, a casa que viu nascer
"Trout...", da Captain Beefheart
Mesmo que o motivo para se isolar destes discos não seja o de um perigo à saúde como hoje, cada um deles é, a seu modo e motivo, também fruto de um momento necessário de reflexão. Se seguirmos o termo pelo que diz o dicionário, "reflexão", do latim tardio, quer dizer "ato ou efeito de refletir algo que se projeta". Música, assim como toda arte, não é exatamente isso?

Aqui, então, uma listagem que serve como dicas para audição nestes dias com 15 discos cujo processo de isolamento lhes foi essencial para serem concebidos, mesmo que a própria sanidade mental de seus autores tenha sido, em certos casos, comprometida para que isso ocorresse (se é que já não estava). Se a nossa saúde física está em perigo atualmente, a discografia musical, diante dessa (aparente) contradição entre “liberdade” e “prisão”, é capaz de sanas nossas mentes.


*****

1. “Os Afro-Sambas” – Baden Powell e Vinícius de Moraes (1966)
Local: Casa de Vinícius de Moraes, Parque Guinle, Laranjeiras, Rio de Janeiro, Brasil

Já resenhado aqui no blog, é o exemplo clássico na música brasileira de confinamento que deu certo. Mas não um isolamento para ficar limpo ou longe da família e das tentações. Os instrumentos de home office foram o poderoso violão de Baden, o papel e a caneta de Vinícius e um engradado de whisky 12 anos. “Eu fiquei tão entusiasmado que passamos uns três meses completamente enfurnados”, disse Vinícius sobre a temporada em que abrigou Baden em seu apartamento no Parque Guinle, no Rio de Janeiro, para comporem as mais de 50 canções que resultariam n”Os Afro-Sambas”. Depois da concepção, foi só lapidar em estúdio com as intensas percussões, os arranjos e regência do maestro César Guerra-Peixe e as participações vocais do Quarteto em Cy e de Dulce Nunes. Como Cly Reis bem colocou na resenha de 2013, “Os Afro-Sambas” é “uma perfeita mescla de técnica, poesia, brasilidade, africanidade, sincretismo, tradições, folclore e genialidade em um trabalho que leva ao limite a multiplicidade e as possibilidades dentro da linguagem do samba e das vertentes da música brasileira desde suas mais remotas origens”.

OUÇA O DISCO


2. “Music from Big Pink” – The Band (1968)
Local: "Big Pink", West Saugerties, Ulster, Nova York, EUA

Ia tudo bem com os canadenses Robbie Robertson, Rick Danko, Levon Helm, Garth Hudson e Richard Manuel em 1966. Eles formavam o grupo de apoio de Bob Dylan no clássico “Bringing It All Back Home” e revolucionavam o folk rock ao eletrificá-lo de forma inequívoca. Mas o perigo está sempre à espreita. Não demorou muito para que as reações contrárias viessem e as vibrações ruins dos conservadores da música norte-americana afetassem tanto Dylan, que o fizeram se acidentar de moto. Fim da linha? Não, pelo contrário: fase superprodutiva. Com músicas até sair pela orelha, os rapazes da The Band alugam uma casa de cor rosa em West Saugerties, uma pacata vila no Condado de Ulster, em Nova York, e concebem seu primeiro e histórico álbum, metalinguisticamente chamado de “música da grande casa rosa”. Resultado: “Music...”, cuja capa reproduz um óleo da autoria de Dylan, é classificado como 34º melhor disco pela Rolling Stone's entre os 500 maiores de todos os tempos. Não precisa dizer mais nada.


OUÇA O DISCO


3. “Trout Mask Replica” – Captain Beefheart & His Magic Band (1969)
Local: Woodland Hills, Ensenada Drive, Modesto, Califórnia, EUA

O blueser vanguardista Don Van Vliet já havia dado ao mundo do rock dois discos memoráveis com sua Captain Beefheart: Safe as Milk (1967) e Strictly Personal (1968). Mas um filho musical de Frank Zappa como ele jamais se contenta com o que já fizera. Movido por um desejo artístico superior, Vliet fez, então, “Trout...”. Reproduzo o parágrafo que abre a resenha que escrevi em 2013 sobre este disco aqui para o blog, pois vai na essência do que essa obra representa: “Um músico se trancafia em um casarão antigo, só ele e um piano. Ali, compõe 28 peças. Não, não estamos falando de algum pianista de jazz em abstinência de heroína nem de um concertista clássico precisando de isolamento e concentração para criar sua obra-prima. Estamos falando de um disco de rock, tocado com baixo, guitarra, bateria e, solando, clarinetes e saxofones. Tudo sem um acorde sequer de piano. (...) Talvez o trabalho que melhor tenha fundido rock, jazz, blues, folk e erudito, sustenta o status de uma verdadeira ‘obra de arte’, um dos 10 registros mais importantes da música contemporânea ao lado obras de Shostakovitch, Charles Mingus, Velvet Underground e Ligeti.”

OUÇA O DISCO


4. “Gilberto Gil” - Gilberto Gil (1969)
Local: Quartel da Vila Militar, Deodoro, Rio de Janeiro, e domicílio-prisão, Rua Rio Grande do Sul, Pituba, Salvador, Brasil

Antes de “Changin’ Time”, do norte-americano Ike White (que falaremos logo adiante), outro grande disco cunhado em regime de cárcere era produzido, infeliz ou felizmente, no Brasil. Foi em 1969, nos anos de ditadura militar. O que se tem a celebrar desse capítulo triste da história brasileira é que nem a repressão foi suficiente para impedir que a genialidade de Gilberto Gil produzisse um álbum grandioso tanto em qualidade quanto em simbologia e resistência. O supra-sumo do tropicalismo. E ainda num ínterim tenso e degradante. Em prisão domiciliar em Salvador após meses encarcerado no Rio de Janeiro e quatro meses antes de embarcar para o exílio em Londres, Gil lançou mão apenas de seu violão e de sua voz para gravar as bases de todas as músicas que comporiam seu novo álbum. Nove preciosidades que, quando foram parar nas mãos de Rogério Duprat para que este as produzisse e as vestisse com os outros instrumentos e orquestrações, seu autor já estava em pouso forçado no Velho Mundo. O antropólogo Hermano Vianna observa, abismado, que "Gilberto Gil" “é quase um milagre que tenha sido produzido e lançado”. Milagre maior é saber que desse disco há obras como “Aquele Abraço”, “Futurível”, “Cérebro Eletrônico” e “Volks Volkswagen Blues”.

OUÇA O DISCO


5. “Barrett” – Syd Barrett (1970)
Local: Fulbourn Hospital, vila de Fbridbourn, Cambridgeshire, Inglaterra

Syd Barrett é daqueles gênios que nunca bateram muito bem. A capa, desenho dele, denota esse ínterim entre a loucura e a mais graciosa sanidade. Ao mesmo tempo em que produzia coisas incríveis, como a marcante participação (e fundação!) na Pink Floyd, era capaz de cair num estado vegetativo indissolúvel. A esquizofrenia era ainda mais comprometida pelo uso de drogas pesadas. Tanto que, logo depois de “The Piper at the Gates ofDown”, de 1967, o de estreia da banda, Roger Waters e David Gilmour assumiram-lhe a frente. Mas não sem desatentarem do parceiro, que gravaria logo em seguida o também lendário “The Madcap Laughs”. Gilmour, aliás, amigo e admirador, fez o que poucos fariam para manter viva aquela chama: montou um estúdio em pleno manicômio, em que Barrett fora internado, em 1969, para que o “Crazy Diamond” registrasse sua obra mais bem acabada antes que sua mente se deteriorasse e o impedisse disso para sempre. Foi, aliás, exatamente o que aconteceu com Barrett, morto em 2006 totalmente recluso e sem ter nunca mais entrado num estúdio com regularidade. Antes, graças!, deu tempo de salvar “Barrett”, dos discos cinquentões de 2020.

OUÇA O DISCO


6. “Led Zeppelin IV” – Led Zeppelin (1971)
Local: Headley Grance, East Hampshire, Inglaterra

Era comum a galera do rock dos anos 60 e 70 dar umas escapadas sabáticas para ver se conseguiam fugir um pouco burburinho de fãs e executivos e produzir algo que lhe satisfizesse. Acabou sendo o que aconteceu com a Led Zeppelin para a produção daquele que foi seu mais celebrado disco: o “IV” (ou "Four Symbols", ou "ZoSo" ou "o disco do velho”). Em dezembro de 1970, a banda se reuniu no recém-inaugurado Sarm West Studios, em Londres, para a pré-produção de seu até então novo álbum. Só que não. Outra banda, a Jethro Tull, havia chegado primeiro. O quarteto Page/Plant/Bonham/Jones decidiu, então, por sugestão dos integrantes de outra grande banda inglesa, a Fleetwood Mac, finalizar a produção no pequeno estúdio da Headley Grance, uma mansão de pedra de três andares em East Hampshire, no meio do nada, com fama de mal assombrada mas com uma acústica incrível. Prova do acerto na escolha do lugar para a gravação é o som da bateria de Bonham em "When the Leevee Breaks", gravada, com microfones-ambiente na base da escadaria da casa. O resultado é um som trovejante e uma das introduções de bateria mais marcantes de todos os tempos. Fora isso, o local viu nascerem alguns dos maiores clássicos do rock de todos os tempos, como "Black Dog", "Rock and Roll", "Stairway to Heaven" e "Four Sticks".

OUÇA O DISCO


7. “Exile on Main St.” – The Rolling Stones (1972)
Local: Mansão Nellcôte, Villefrance-sur-Mer, Costa Azul, França

Sabe tudo que se fala do caos que foi o set de filmagens de “Apocalypse Now”, do Coppola, com drogas, sexo, atrasos, grana desperdiçada, crises e, claro, o isolamento de toda a equipe  do filme numa floresta quente e úmida? Algo semelhante foram as gravações de Exile...”, dos Rolling Stones. Troca-se apenas a úmida floresta asiática pela da famosa Nellcôte, mansão localizada na mediterrânea Villefrance-sur-Mer, Sul da França, que presenciou, entre 10 de julho a 14 de outubro de 1971, um festival de sexo, drogas e muito, mas muito rock ‘n’ roll. Quase ninguém saía nem entrava, a não ser traficantes e groupies para animar as noites viradas. Os atrasos, como no filme, foram decorrência, o que, aliás, também fez gastar tempo e dinheiro. No que se refere à crise, foi uma financeira que fez a banda fugir da Inglaterra para aquele lugar longe de tudo – principalmente do fisco. Cenário perfeito para sair tudo errado, certo? Se o filme de Coppola venceu a Palma de Ouro e virou o maior filme de guerra de todos os tempos, “Exile...”, a seu tempo, se transformou no melhor disco dos Stones – o que é quase dizer que se trata do melhor disco de rock de todos os tempos.



8. “Rock Bottom” – Robert Wyatt (1974)
Local: Little Bedwyn, vila de Wiltshire, Inglaterra

O segundo disco solo do inglês Robert Wyatt, então baterista da Soft Machine, é outra experiência radical de isolamento forçado. Porém, esta se deu por um motivo limite: um grave acidente. Na noite de 1º de junho de 1973, em uma festa regada a Southern Comfort COM tequila (receita ensinada pelo parceiro de bebedeira Keith Moon), Wyatt, depois de incontáveis doses, não percebeu que saía a pé por uma janela, despencando sem escalas direito do quarto andar rumo ao chão. Ele acordou só no outro dia numa cama de hospital sem movimentar as pernas nunca mais a partir de então. Quando ele finalmente conseguiu se sentar em uma cadeira de rodas, um dos primeiros objetos que encontrou no hospital foi um velho piano na sala de visitas, onde começou a trabalhar no material de “Rock Bottom”, algo como “fundo do poço”. Após um período difícil de adaptação à sua nova condição, ele começou a gravar faixas no início de 1974 em uma fazenda em Little Bedwyn, numa pacata vila de Wiltshire, sudoeste da Inglaterra, alavancando a unidade de gravação móvel da Virgin Records, estacionada no campo do lado de fora da casa. Para o crítico musical e historiador italiano Piero Scaruffi, “Rock...”, cuja soturna arte da capa também é de autoria de Wyatt, é uma das 15 obras mais importantes da música moderna na segunda metade do século XX.



9. “A Night at the Opera” – Queen (1975)
Local: Rockfield Studios, Rockfield Farm, Monmouthshire, País de Gales

A história desse disco é tão legal, que virou uma das melhores sequências do premiado filme “Bohemian Rhapsody” - faixa, aliás, que exprime com grandeza a importância e qualidade ímpar do disco da Queen. Depois do sucesso dos primeiros álbuns com o grupo e recém contratados por uma grande gravadora, a banda sabia que tinha que trazer algo melhor e novo no álbum seguinte. Pois Freddie Mercury, em alta efervescência criativa, convence o restante do grupo a se instalar temporariamente na Rockfield Farm, uma pequena vila no sudeste do País de Gales, longe do burburinho dos fãs e, principalmente, de qualquer influência que o desviasse do objetivo de fazer, sem modéstia, uma obra-prima. Se a gravadora achou ousado demais e houve críticas à mistura de música clássica com rock, não importa. O fato é que “A Night...” logo estourou, entrou para a lista dos mais vendidos e saiu bem àquilo que Freddie intentava: uma obra-prima.



10. “Changin' Times” – Ike White (1976)
Local: Tehachapi State Prison, Tehachapi, Califórnia, EUA

Se o assunto é disco produzido e gravado num ambiente fechado, “Changin’ Times”, de Ike White, vai ao extremo. Músico prodígio, hábil com vários instrumentos e de uma capacidade compositiva sem igual, ele poderia ter sido um dos grandes astros da black music norte-americanos, no nível de James Brown, Isaac Hayes ou Curtis Mayfield. Só que o destino cruel quis que aquele homem negro tão talentoso quanto pobre fosse sentenciado por um homicídio e passasse a maior parte da vida na cadeia. Mas foi dentro de uma, a penitenciária de Tehachapi, uma pequena cidade no interior da Califórnia, que White, em 1976, ajudado por Stevie Wonder e pelo produtor Jerry Goldstein, revelasse ao mundo aquele é um dos melhores discos da música soul de todos os tempos, o acertadamente intitulado “Tempos de Mudança”. Esses dados são adivinhados pelos agradecimentos na capa do álbum ao superintendente Jerry Emoto, do Departamento de Correções da Califórnia, e ao restante da equipe da prisão "sem cuja ajuda esse projeto não poderia ter sido realizado". E não há mais informações sobre Ike White. Nada. Ano passado, o documentário “The Changin' Times of Ike White”, de Daniel Vernon, revelou alguma coisa mais do pouco que se sabe sobre a lenda Ike White. Porém, ouvindo um disco tão maravilhoso quanto este talvez se conclua que seja isso mesmo tudo que se precise saber.



11. “Bedroom Album” – Jah Wabble (1983)
Local: Dellow House, Dellow Street, Wapping, East London, Inglaterra

Dellow House, sito ao logradouro de mesmo nome, área urbana da Grande Londres, código postal E1. Este é o endereço em que o lendário baixista britânico Jah Wabble gravaria um de seus discos mais influentes para a galera do pós-punk, entre eles, Renato Russo, que ovacionava este álbum. Porém, nem mesmo todas essas indicações geográficas são suficientes para apontar precisamente onde o disco fora concebido, produzido e gravado: o próprio quarto de Wabble. Aliás – assim como o já citado disco da The Band – o título, "Bedrom Album", mais claro, impossível. Depois de ter ajudado John Lydon e sua trupe da Public Image Ltd. a definir o som dos anos 80 e 90, Wabble, não dado por satisfeito e dono de uma carreira solo que passa desde a música eletrônica ao free funk, fusion, experimental e new-wave, faz seu o melhor trabalho até hoje. As linhas de baixo graves e mercadas ganham toda a relevância nos arranjos, que tem como aliada a guitarra do parceiro Animal (Dave Maltby). Os outros instrumentos, todos a cargo do dono do quarto. Semelhanças com a sonoridade da P.I.L., há, como na brilhante “City”, nas arábicas “Sense Of History”, “Concentration Camp” e “Invaders of the Heart”. Uma aula de como fazer um disco brilhante sem sair da cama.

OUÇA O DISCO


12. “Blood Sugar Sex Magik” – Red Hot Chili Peppers (1991)
Local: The Mansion, Laurel Canyon, Los Angeles, Califórnia, EUA

A The Mansion, antiga construção na montanhosa Laurel Canyon, em Los Angeles, era lendária e assombrada. Nas décadas de 1960 e 1970, muitos artistas famosos como Mick Jagger, David Bowie, Jimi Hendrix e The Beatles estiveram nela. Conta-se que, nos anos 20, seus donos a abandonaram depois que um homem morreu caindo de sua varanda. Há quem afirme que, quando esteve em seus corredores, as portas se abriam sozinhas. Era o cenário perfeito para que os malucões da Red Hot gravassem "BSSM", seu quinto e mais festejado álbum. Os 30 dias em que Anthony Kiedis, Flea, John Frusciante e Chad Smith se mudaram para a mansão pertencente ao produtor Rick Rubin foram essenciais para que criassem clássicos e hits do rock como "Give It Away", "Under The Bridge", "Suck My Kiss" e "Breaking the Girl". Funk, punk, heavy metal, indie, jazz fusion, pop. Tudo junto e misturado no disco que, junto de “Nevermind”, do Nirvana, fez o rock alternativo sair das cavernas e ir para as paradas.



13. “Wish” – The Cure (1992)
Local: The Manor Studio, Shipton Manor, Oxfordshire, Inglaterra

A The Cure também teve a sua vez de reclusão. Foi para a gravação de “Wish”, de 1991. O trabalho anterior, o celebrado “Disintegration”, foi um sucesso de crítica e público, mas bastante tempestuoso durante as gravações. Último disco com o então integrante formador Lawrence Tollhust, muito desse clima se deve à relação já bastante estremecida dele para com Robert Smith e outros integrantes da banda. Já sem ele, decidem, então, se enfurnar numa mansão em estilo Tudor em Oxfordshire, interior da Inglaterra, a chamada Shipton Manor. Um lugar espaçoso, cheio de espelhos enormes, tapetes persas, lareiras e um enorme mural no átrio. A ideia eram justamente, fugir um pouco de toda a polêmica e as complicações em torno do processo que o Tolhurst movia contra Robert Smith e o grupo. A safra foi frutífera, tanto que rendeu um álbum duplo, o último grande da banda, e com o hit “Friday I’m in Love”, que colocou “Wish” nas primeiras posições em várias paradas naquele ano.



14. “Ê Batumaré” – Herbert Vianna (1992)
Local: Antiga residência dos Vianna, Estrada do Morgado, Vargem Grande, Rio de Janeiro, Brasil

Talvez um desavisado que conheça Herbert Vianna hoje, paraplégico por causa de um acidente sofrido em 2001, pense que “Ê Batumaré”, assim como o disco de Wyatt, seja caseiro por motivos de "força maior". Mas, não. À época, quase 20 anos antes daquele ocorrido trágico, o líder e principal compositor da Paralamas do Sucesso, dotado de todas as funções motoras, estava dando uma guinada sem volta na carreira pela influência da música brasileira em sua música (em especial, do Nordeste). Já se percebiam sinais em discos da banda, como “Bora Bora” (1988) e “Os Grãos” (1991), e se sentiria ainda mais no sucessor “Severino”. Gravado, tocado e cantado inteiramente pelo ele em uma garagem sem tratamento acústico e num equipamento semiprofissional (como está escrito no próprio encarte), ouve-se de Zé Ramalho a Win Wenders, de baião a eletroacústica, de rock a repente, além de instrumentos de diversas sonoridades e timbres e, claro, as ricas melodias que sempre foi capaz de criar. O álbum é o centro desta mudança de paradigma que Herbert trouxe à sua música, à de sua banda e ao rock nacional como um todo. Se à época a imprensa brasileira – sempre pronta para criticar os artistas de casa – recebeu o disco com frieza, considerado-o “experimental” (mentira: eles não entenderam!), nunca mais o rock brasileiro foi o mesmo depois de “Ê Batumaré”.



15. “The Downward Spiral” – Nine Inch Nails (1994)
Local: 10050 Cielo Drive, Benedict Canyon, Los Angeles, Califórnia, EUA

Nos anos 90, o avanço da tecnologia dos equipamentos sonoros dava condições para se montar estúdios portáteis onde quer que fosse. Foi então que o multi-instrumentista norte-americano Trent Reznor pensou: “por que não instalar um em plena 10050 Cielo Drive, a mansão nos arredores de Beverly Hills, Los Angeles, em que, na madrugada do dia 9 de agosto 1969, a família Manson assassinou cinco pessoas, entre elas, com requintes de crueldade, a atriz e modelo Sharon Tate, grávida do cineasta Roman Polanski?” O que para alguns daria arrepios, para o líder da Nine Inch Nails foi motivação. Ali ele compôs o conceitual “The Downward Spiral”, disco de maior sucesso da banda. Reznor, que se mudara para a casa, absorveu-lhe o clima macabro para criar uma ópera-rock cheia de ruídos, distorções e barulho em que o personagem principal passa por solidão, loucura, descrença religiosa e repulsa social. Até o estúdio improvisado ganhou nome em alusão àquele trágico acontecimento: Le Pig, uma referência a uma das mensagens deixadas escritas nas paredes da casa com o sangue dos mortos. Se por sadismo ou mau gosto à parte, o fato é que o disco virou um marco dos anos 90, considerado um dos melhores álbuns da década pouco após seu lançamento por revistas como Spin e Rolling Stone.


Daniel Rodrigues
Colaboração: Cly Reis