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terça-feira, 29 de agosto de 2023

Mostra de Curtas-Metragens Gaúchos - 51º Festival de Cinema de Gramado

 

Poesia que Higieniza*

A mostra de curtas-metragens gaúchos tem sido há um tempo uma atração à parte no badalado Festival de Cinema de Gramado. Vencida em sua maior parte a terrível fase da pandemia – prejudicial para produções com mais recursos, quanto mais foi para aquelas de baixo orçamento e menos experiência – os curtas produzidos no Rio Grande do Sul tornaram a tomar corpo e ganhar a devida estatura que merecem. Embora alguma desigualdade em termos de resultados finais, quando não aceitáveis deslizes técnicos, o nível dos 23 filmes concorrentes ao Prêmio Assembleia Legislativa de Cinema – Mostra Gaúcha de Curtas 2023 foi bastante satisfatório e, mais que isso, promissor.

Como vêm se adensando a cada ano, as temáticas antes “marginais”, como LGBTQIAP+, povos originários, capacitismo, xenofobia, entre outros, manifestam-se com potência junto aos realizadores. Caso de “Rasgão”, de Victor Di Marco e Márcio Picoli, que levou Menção Honrosa, em sua narrativa que trata da acessibilidade; ou “O Tempo”, vencedor de Melhor Trilha Sonora (Gabriel Araújo, Nina Fola e Malyck Badu) e Roteiro (Ellen Correa, também diretora), expositor de forma sutil de questões raciais e existenciais. Porém, o que mais chama atenção é o apontamento das lentes para uma visão poética do cinema, o que se observa tanto no rigor formal quanto na liberdade estética.

A intencionalidade de um cinema de poesia, dentro daquilo que Pasolini e Bressane servem de base, sustenta os curtas mais cativantes da mostra. Um deles é “Messi”, um pequeno documentário dirigido por Henrique Lahude e Camila Acosta, que traz o jovem Edu, menino pertencente a uma família moradora da cidade fronteiriça de El Soberbio, limite entre Brasil e Argentina, assistindo a um jogo das Quartas de final da Copa do Mundo 2022 em que o time do craque portenho jogava. A forma como esta tarde é contada, com suas sutilezas e percepções sensíveis, quase anulando a presença da câmera, fazem de “Messi” daqueles filmes aparentemente simples em realização, mas profundos em significados. Não à toa, recebeu o prêmio de Montagem, a cargo de André Berzagui.

"Sabão Líquido" toca em questões atuais
da sociedade gaúcha e brasileira
Outro bom exemplo de poesia cinematográfica é o conciso e forte “Sabão Líquido”, merecedor de uma das principais premiações, a de Melhor Direção para a dupla Fernanda Reis e Gabriel Faccini. Na história, um rapaz imigrante é transportado ilegalmente para o interior do Rio Grande do Sul para trabalhar na falsificação de sabão líquido. Incisivo, o filme toca em questões sociais e políticas muito presentes no Brasil (e no Rio Grande, por supuesto), como o trabalho escravo, a informalidade, a xenofobia e, principalmente, o sentimento de impunidade que o pensamento fascista concede aos exploradores. Tudo numa construção narrativa sabiamente pontual e uma rica fotografia.

Ainda, impossível não citar nesta linha de entendimento poético o belo “Fiar o Vento”, Melhor Fotografia para a também diretora Mari Moraga com suas expressivas imagens e enquadramentos da Lagoa dos Patos e da ancestral arte de fiação com lã de ovelha; e o impactante “Centenário da Minha Bisa”, de Cristyelen Ambrozio. Feminino, profundo, reflexivo. Cinema de arte. O filme trata do caminho ficcional trilhado pela própria Cristyelen – mulher indígena e egressa da primeira turma do curso superior em Tecnologia em Produção Multimídia de uma instituição pública, o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS) –, que redescobre sua bisavó a partir de álbuns de família. Memória e realidade se entrelaçam e se tensionam, num jogo intenso entre os elementos textuais, vídeo-artísticos e sensoriais. Com muita assertividade, a Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (ACCIRS) concedeu-lhe o prêmio de Melhor Curta Gaúcho pelo Júri da Crítica.

trailer do impactante “Centenário da Minha Bisa”, de Cristyelen Ambrozio

De todos, no entanto, aquele que arrebatou público e crítica foi, de fato, o principal vencedor da mostra competitiva: “Concha de Água Doce”, de Lau Azevedo e João Pires. Certa unanimidade se deve, antes de mais nada, à qualidade do curta, seja em narrativa, seja na excelente montagem ou mesmo nas interpretações dos poucos personagens, uma delas o do ator Aren Gallo, que lhe rendeu o troféu de Melhor Ator. Sensível à questão da transsexualidade, o filme traz este tema como ponto central para desencadear uma travessia sem escalas no tempo físico ou emocional, o tempo que está dentro ou fora, o que se guarda no olhar ou na profundeza do mar.

O grande vencedor "“Concha de Água Doce": poesia para
tratar de questões de gênero

A se ver pelo apuro técnico, criatividade e, principalmente, pela assertiva escolha por abordagens que aproveitem as possibilidades estéticas que o cinema suscita, há de se ficar bastante satisfeito com o que o audiovisual gaúcho seguirá promovendo depois de passar por provas de fogo nos últimos anos. Como outro concorrente da mostra de curtas traz, “As Ondas”, e tal como se bradou pelos corredores do Palácio dos Festivais durante os dias de evento, é de se comemorar os novos ventos da cultura brasileira com a entrada do atual governo. A atmosfera já se mostra muito mais respirável e alentadora depois de tanto enxofre empestando o ar. Viva o cinema – e viva a poesia – para promover essa necessária higienização.

*Texto originalmente publicado no site da ACCIRS


Daniel Rodrigues

sábado, 12 de março de 2022

Lançamento do livro “50 Olhares da Crítica Sobre o Cinema Gaúcho” - Coletânea de artigos da ACCIRS


 

E começamos o ano de 2022 com lançamento de livro! E desta vez, não se trata de conto ou ensaio, mas de crítica cinematográfica. O meu tão satisfatório caminho de anos na crítica de cinema se materializa, enfim, em livro, no aguardada primeira obra editada pela Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (ACCIRS) da qual faço parte. Trata-se de “50 Olhares da Crítica Sobre o Cinema Gaúcho”, correalizado pela Opinião Produtora e que tem organização dos colegas e críticos Daniel Feix, Fatimarlei Lunardelli, Ivonete Pinto, Mônica Kanitz e Rafael Valles. O projeto gráfico é de Flávio Ilha, da editora Diadorim, e a apresentação é assinada pela jornalista e crítica Maria do Rosário Caetano.

Este primeiro livro da ACCIRS reúne 50 artigos sobre 50 filmes gaúchos lançados entre as décadas de 1950 e 2020, e cada texto foi escrito por convidados e por um dos membros da associação – entre os quais, yo. Legal que houve a preocupação de não se fazer uma mera eleição dos melhores títulos produzidos no Estado (o que seria, se não impossível, impreciso), mas sim de trazer visões particulares sobre cada obra. Através de perspectivas jornalísticas, ensaísticas e memorialísticas, é possível revisitar títulos famosos da filmografia do Rio Grande do Sul, bem como descobrir projetos esquecidos ou pouco comentados. De aventuras épicas em 35mm a filmes intimistas e de baixíssimo orçamento da era digital, curtas, médias e longas-metragens entraram na seleta que cobre mais de 70 anos do cinema gaúcho.

Não vou dar spoiler  a respeito de qual filme escrevi, até por se tratar agora de um drops e porque, posteriormente ao lançamento - que será no próximo dia 20 - retorno aqui para comentar melhor sobre o livro e também sobre a minha participação da qual tanto me orgulho. Até porque, assim como percebo para com meus colegas de associação, estou curiosíssimo para ler as críticas de todos, bem como saborear (e me surpreender com) cada filme escolhido, cada visão trazida, cada olhar que une a técnica da crítica com um sentimento especial pela obra a qual se está abordando, o que certamente levará a textos muito interessantes - afora, obviamente, a qualidade comprovada da galera no exercício da crítica de cinema. E, claro, também curioso para manusear o volume e ler a mim mesmo, afinal, como disse Chico Buarque certa vez, há o prazer de escrever, mas há também o de ler a si próprio no livro impresso. Se Chico que é Chico confessa isso, sinto-me permitido. Por ora, fico aqui com o serviço para quem quiser prestigiar o evento de lançamento e/ou adquirir a obra, inédita e que valerá muito, afirmo de antemão.

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lançamento do livro “50 Olhares da Crítica sobre o Cinema Gaúcho”
da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (ACCIRS)  
organizadores: Daniel Feix, Fatimarlei Lunardelli, Ivonete Pinto, Mônica Kanitz e Rafael Valles
onde: Sala Radamés Gnattali, Auditório Araújo Vianna (Parque Farroupilha, 685, Porto Alegre).
quando: dia 20/03 (domingo) - 11h
Valor do livro: R$ 50,00*

*Os exemplares poderão ser adquiridos no dia do lançamento e, a partir do dia 21 de março, estarão disponíveis no site da ACCIRS: accirs.com.br


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

4º Curta Caicó - Os Premiados


 
Rio Grande do Norte do Sul, ou do Sul do Norte, tanto faz. Essa foi a ponte que se ergueu através do generoso convite que a Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte (ACCiRN) fez à Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (ACCIRS), a qual sou membro, para, como entidade irmã, integrar conjuntamente o júri da crítica das nove mostras do 4º Curta Caicó, festival de curtas-metragens realizado na cidade de Caicó, na região do Seridó Norte-rio-grandense. Juntamente com outros quatro integrantes gaúchos (Carlos André Moreira, Conrado Oliveira, Roberto Cotta e Rubens Anzolin), topei. Mesmo tendo recentemente participado da maratona de filmes para o júri da crítica do Festival de Cinema de Gramado, valia a pena achar um espacinho na agenda do dia e participar.

Em dupla com o simpático e competente Jonathan DeAssis, da ACCiRN, crítico de cinema de Natal que escreve o interessante Forma Fílmica no Instagram, coube a mim a análise da Sessão Especial, composto por filmes que dialogam com o fazer audiovisual e com a metalinguagem. Dos 10 títulos que avaliamos, todos bem pertinentes à proposta, dois nos saltaram mais à vista e nos motivaram a uma saudável troca de percepções: “Lua” e “Cabeça de Luz”, este segundo, o qual escolhemos como vencedor da mostra.
Imagens do universo plástico
e onírico da artista Lua

“Lua”, de Fábio Salvador (SP), embora não tenha me encantado numa primeira assistida, em razão de observações de Jonathan fez-me rever com outros olhos e apreciar suas qualidades. Trata-se de um documentário sensível e humano de uma jovem fotógrafa cujo nome astral dá título ao filme. Isso, através de uma montagem eficiente e uma fotografia bem condizente com o universo hiper-realista da paulistana Lua Morales. Em especial, a relação com a obra de Vincent Van Gogh e a perturbação mental que lhe era característica é bem interessante para a narrativa, visto que abre o curta com isso, quando ela está em uma plantação de girassóis fotografando um rapaz muito parecido com o pintor holandês. A ansiedade de Lua para captar a luz certa e tudo o que isso simboliza em termos psicológicos de certa forma conduz o filme através das inquietações artísticas e filosóficas dela.

Porém, o que nos pareceu melhor traduzir as intenções de um cinema autorreferenciado ao propor uma discussão instigante entre audiovisual e a forma como o espectador o recebe e o assimila foi, de fato, “Cabeça de Luz”. O filme potiguar de Carito Cavalcanti consegue, em pouco tempo de duração (8 min apenas) o feito que nem longas e nem curtas têm conseguido desde que a pandemia se instaurou, que é saber aproveitar a seu favor o cenário de confinamento de milhões de pessoas e a estética do “novo normal”. Privadas do mundo exterior e do convívio social, a arte – em especial o cinema – é uma das formas de transcender esse limite que se impõe aos corpos físicos. “Cabeça...” arranja um mosaico sensitivo em que vários depoimentos gravados e enviados via celular num ensaio que articula imagens de arquivo e de outras obras, trazendo-as para si e propondo-lhes novos significados, produzindo um fluxo de pensamento onírico cujo poder da imagem, dos sons e das palavras convidam o espectador ao sentir.

O impactante e poético "Cabeça de Luz": proveito da pandemia como linguagem

Ao contrário de todos os outros filmes ou produções televisivas que assisti feitos do ano passado para cá, quando o distanciamento social se impôs e impactou diretamente os processos de gravação, o filme de Cavalcanti não se vale disso como muleta, mas, sim, como proposta narrativa, assimilando os elementos visuais e psicológicos advindos deste período. Se noutras produções havia a tentativa de compensar esse gap realizando filmes com poucos atores e em espaços confinados (não raro, a casa do próprio realizador/protagonista) ou valendo-se dos recursos multitelas da vida cada vez mais virtual em que o mundo se viu obrigado a imergir – deixando, assim, evidentes as deficiências inerentes do momento a uma produção audiovisual minimamente ambiciosa – “Cabeça...” prova o quanto a sétima arte está, na verdade, na mente e nos corações das pessoas.

O festival ocorreu entre os dias 6 e 12 de setembro, então, não tem como se assistirem mais os filmes no momento. Mas quem quiser saber como foi a cerimônia de premiações desta categoria e das outras, dá pra acessar aqui.

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Mostra Nacional
Filme: Inabitável, de Matheus Farias e Enock Carvalho (PE)
Direção: Matheus Farias e Enock Carvalho, por inabitável (PE)
Roteiro: Matheus Farias e Enock Carvalho, por Inabitável (PE)
Fotografia: Gustavo Pessoa, por Inabitável (PE)
Som: Guilherme Cássio, por Tom (RS)
Interpretação masculina: César Ferrario, por Joana (PB)
Interpretação feminina: Luciana Souza, por Inabitável (PE)
Menção honrosa: Elemento Suspeito, de Gustavo Paixão (SP)
Menção Honrosa: Reexisto, de Lethicia Galo e Rodrigo Campos (SP)

Mostra Seridó:
Filme: Fole, de Lourival Andrade (RN)
Direção: Lourival Andrade, por Fole (RN)
Roteiro: Jailson Valentim dos Santos, por Corpos (In)visíveis – Entre o Lixão e o Frei Damião (RN)
Fotografia: Fernando Leão e Zezinho Vídeo, por Fole (RN); e Damião Paz, Henrique José e Meysa Medeiros, por O Photógrafo Zézelino (RN)
Som: Fernando Leão e Pedro Andrade, por Fole (RN)
Interpretação masculina: Mané do Fole, por Fole (RN); e Damião Paz, por O Photógrafo Zézelino. (RN)
Interpretação feminina: Maria das Graças (Gracinha), por Propósito (RN)
Menção Honrosa: Cores da Resistência, de Hylka Rachel (RN)

Mostra Potiguar
Filme: Vai Melhorar, de Pedro Fiúza (RN)
Direção: Pedro Fiúza, por Vai Melhorar (RN)
Roteiro: Pedro Fiúza, por Vai Melhorar (RN)
Fotografia: Pedro Medeiros, por A Terra me disse (RN)
Som: Herisson Pedro, por Nocaute (RN)
Interpretação masculina: Enio Cavalcante por Mais um João e pelo conjunto da obra (RN)
Interpretação feminina: Cássia Damasceno, por Vai Melhorar (RN)

Mostra Nordeste
Filme: Remoinho, de Tiago A. Neves (PB)
Direção: Élcio Verçosa Filho, por Vaudeville (AL)
Roteiro: Tiago A. Neves, por Remoinho (PB)
Fotografia: Diego Garcia, por Vaudeville (AL)
Som: Richard Soares, por Memórias Submersas (PE)
Interpretação masculina: Alexandre Guimarães, por Vaudeville (AL)
Interpretação feminina: Cely Farias, por Remoinho (PB)
Menção Honrosa: A Beleza de Rose, de Natal Portela (CE)
Menção Honrosa: Nossas Mãos São Sagradas, de Júlia Morim (PE)

Júri da Crítica: ACCIRN e ACCIRS
Mostra Nacional: Fragmentos ao Vento: 1945, de Ulisses da Mota (RS)
Mostra Nordeste: Vaudeville, de Elcio Verçosa Filho (AL)
Mostra Potiguar: Hashtag, de Kell Allen (RN)
Mostra Seridó: Propósito, de Adriano Dantas (RN)
Mostra Cine Alvorada: Sobre nossas cabeças, de Suzan Kalik e Thiago Gomes (BA)
Mostra Cine Pax: Rio das Almas e Negras Memórias, de Taize Inácia e Thaynara Rezende (GO)
Mostra Cine São Francisco: Atordoado, eu permaneço atento, de Henrique Amud e Lucas Rossi (RJ)
Mostra Cine Rio Branco: Mãtãnãg, A Encantada, de Shawara Maxakali e Charles Bicalho (MG)
Mostra Sessão Especial: Cabeça de Luz, de Carito Cavalcanti e Fernando Suassuna (RN)

Júri Popular
Mostra Nacional: De mim para você, de Rodrigo Peres (DF)
Mostra Nordeste: Distopia, de Lilih Curi (BA)
Mostra Potiguar: Hashtag, de Kell Allen (RN)
Mostra Seridó: Propósito, de Adriano Dantas (RN)
Mostra Cine Alvorada: 4 Bilhões de Infinitos, de Marco Antonio Pereira (MG)
Mostra Cine Pax: Rio das Almas e Negras Memórias, de Taize Inácia e Thaynara Rezende (GO)
Mostra Cine São Francisco: Elos Positivos, de Eduardo Oliveira (SP)
Mostra Cine Rio Branco: Como um peixe fora d´água, de Arthur Lombriga (BA)
Mostra Sessão Especial: Cine Aurélio, de Kennel Rogis (PE)

Prêmios Especiais
Prêmio de Aquisição Elo Company: Inabitável, de Matheus Farias e Enock Carvalho (PE)
Prêmio Cardume: Ser Feliz no vão, de Lucas Hossi (RJ); e O Homem das Gavetas, de Duda Rodrigues (SP)
Prêmio Místika de Pós-Produção: Vai Melhorar, de Pedro Fiúza (RN)
Prêmio CTAV de Mixagem de som: Vai Melhorar, de Pedro Fiúza (RN)
Prêmio Referência de Contribuição Artística: Zezita Matos e Biró Modesto.


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

52º Festival de Cinema de Gramado - Bastidores e Premiados

 

Assisti de casa a cerimônia de premiação do 52º Festival deCinema de Gramado, o qual pude, ao menos por alguns dias, participar presencialmente de novo ao lado de Leocádia, assim como havíamos feito pela primeira vez em 2022. E desta, além do prazer de estar no maior e mais longevo festival de cinema do Brasil e de encontrar amigos e colegas, teve um sabor especial: foi o meu primeiro à frente da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (Accirs), entidade a qual assumi a presidência há cerca de 2 meses. Isso fez com que, presentemente, pudesse integrar, também ineditamente, o júri do Prêmio Accirs aos curtas-metragens gaúchos, o chamado “Gauchão”, na Mostra Assembleia Legislativa ocorrida no primeiro final de semana do evento.

Juntamente com meus colegas de associação, Adriana Androvandi, André Bozzetti, Carol Zatt, Cristiano Aquino, Mônica Kanitz e Paulo Casa Nova, deliberamos este prêmio da crítica ao agora, uma semana depois, multipremiado “Pastrana”, de Melissa Brogni e Gabriel Motta, tendo em vista que o filme levou também Kikitos na Mostra de Curtas-Metragens Nacionais, incluindo o principal, o de Melhor Filme. O quase solitário destaque que demos a “Pastrana” na mostra gaúcha (recebeu apenas mais o singelo troféu de Melhor Produção Executiva), quando subi ao palco para entregar-lhes o certificado e nosso livro, foi, de certa forma, chancelado na mostra nacional, que, além do grande prêmio, conferiu ainda o reconhecimento por Fotografia e Montagem a esta homenagem para Allysson Pastrana, skatista de downhill, que faleceu em 2018 durante uma competição. 

vídeo da cerimônia de entrega da Mostra de Curtas Gaúchos - Prêmio Accirs


Mas existe ainda mais um fator de especialidade a esta nova participação minha em Gramado. Havia composto o júri da crítica na 49º edição, em 2021, alto da pandemia da Covid-19, o que obrigou a que todo o festival fosse virtual, inclusive a contribuição do grupo do qual estive. Desta feita, no entanto, outra felicidade me aproximou diretamente dos filmes, que foi integrar a comissão de seleção dos curtas-metragens nacionais, empreitada que encarei entre junho e julho ao lado de três competentes mulheres: a atriz e diretora Fernanda Rocha, do Rio de Janeiro; a professora da UFMS Daniele Siqueira, do Mato Grosso, e a cineasta, professora e minha colega de Accirs Daniela Strack.

Cartaz do excelente "Pastrana",
conquistas nas mostras
gaúcha e nacional
Da difícil seleção dos mais de 300 filmes que assistimos e discutimos, dentre os quais muita coisa de alta qualidade, restaram os 12 títulos concorrentes, seleção esta que, aliás, foi mais de uma vez elogiada no palco durante a cerimônia de premiação, o que me deixa bastante orgulhoso. E mais ainda por ver o gaúcho “Pastrana”, um de nossos escolhidos para esta seleção, sair vencedor como há 9 anos não ocorria – principalmente em um ano em que o Rio Grande do Sul foi tão afetado pelas enchentes ocorridas em maio. Somando-se à escolha do público pelo ótimo e tocante “Ana Cecília”, a outra produção gaúcha da mostra de curtas nacionais pareando com filmes do Centro-Oeste, Nordeste, Norte e Sul do país, pode-se considerar uma vitória do cinema gaúcho e do Rio Grande do Sul.

Ainda sobre os pagos daqui, do Prêmio Sedac/Iecine de Longas-Metragens Gaúchos – que celebrou a produção indígena “A Transformação de Canuto”, de Ariel Kuaray Ortega e Ernesto de Carvalho, com o prêmio de Melhor Filme –, não assisti a nenhum deles por não estar mais em Gramado quando de suas exibições, o que desejo fazer em breve assim que estes começarem a rodar nas salas de Porto Alegre. Já em relação aos documentários, que foram exibidos apenas no Canal Brasil e não no Palácio dos Festivais, dois deles perdi, mas vi o vencedor, “Clarice Niskier: Teatro dos pés à Cabeça”, de Renata Paschoal, embora um doc de estrutura convencional, pareceu-me merecedor num primeiro momento.

Por fim, os longas brasileiros. Foi-me possível conferir apenas dois concorrentes quando em Gramado: “O Clube das Mulheres de Negócios”, de Ana Muylaert, que levou somente Prêmio Especial do Júri pelo conjunto do elenco, mas que, a meu ver, se credenciava a, quem sabe, Trilha Sonora ou Atriz (Cristina Pereira); e “Estômago 2: O Poderoso Chef”, de Marcos Jorge, uma coprodução Brasil-Itália totalmente equivocada capaz de deturpar e diminuir o excelente filme original, de 2007, um cult do cinema nacional. Roteiro confuso, inconsistente e banal, que compromete todo o filme, desde seu ritmo narrativo até as atuações, a ponto de apagar aquele que deveria ser o personagem principal, o chef de cozinha agora presidiário Raimundo Nonato, vivido pelo ator João Miguel.

Cena de "Oeste Outra Vez", grande vencedor do ano
Para grande surpresa minha e de muita gente da crítica, “Estômago 2” foi o maior premiado da edição, com 5 Kikitos, dentre os quais – pasmem! – o de Melhor Roteiro. Sinceramente, equivocada a escolha, visto que injustificável para uma história que não se concatena. Até sondei a possibilidade de se estar privilegiando um filme com potencial de bilheteria (deve estrear nos cinemas em 29 de agosto), mas a hipótese se esvaiu rapidamente, tendo em vista que um júri deve valorizar, em respeito ao espectador e ao cinema, um mínimo de qualidade – o que o roteiro de “Estômago 2” deixa muito a desejar. Ainda mais estranho foi, mesmo com uma atuação que não lhe favorece, visto que a história ofusca o próprio protagonista, é Miguel ter dividido o prêmio de Melhor Ator junto com Nicola Siri! O filme ainda, para completar, abocanhou Trilha Sonora, que nada mais é do que a emulação da, esta sim, ótima trilha do primeiro filme. Tudo muito estranho.

Os outros longas não tive, assim como os gaúchos dessa metragem, a oportunidade de assistir, mas ao que parece, pela reação geral, a redenção dos erros de avaliação foram os prêmios da crítica, para “Cidade; Campo”, de Juliana Rojas, e a escolha do grande filme do ano de Gramado: o goiano "Oeste Outra Vez", de Erico Rassi, que realmente se destaca diante dos outros nas poucas cenas que vi. O faroeste à brasileira, que traz uma narrativa centrada em um universo masculino rural, conquistou também os prêmios para Melhor Fotografia e Melhor Ator Coadjuvante, para Rodger Rogério.

Enfim, uma premiação com altos e baixos (como são na maioria), mas que, independentemente disso, não tira de mim a alegria de ter participado de forma tão mais consistente do Festival de Gramado.

A clássica foto final com os premiados

Confira, então, os premiados da edição de 2024:


LONGAS-METRAGENS BRASILEIROS

Melhor filme: ‘Oeste Outra Vez”, de Erico Rassi

Melhor direção: Eliane Caffé, por “Filhos do Mangue”

Melhor ator: João Miguel e Nicola Siri, por “Estômago 2: O Poderoso Chef”

Melhor atriz: Fernanda Vianna, por “Cidade; Campo”

Melhor roteiro: Bernardo Rennó, Lusa Silvestre e Marcos Jorge, por “Estômago 2: O Poderoso Chef”

Melhor fotografia: André Carvalheira, por “Oeste Outra Vez”

Melhor montagem: Karen Akerman, por “Barba Ensopada de Sangue”

Melhor ator coadjuvante: Rodger Rogério, por “Oeste Outra Vez”

Melhor atriz coadjuvante: Genilda Maria, por “Filhos do Mangue”

Melhor direção de arte: Fabíola Bonofiglio e Massimo Santomarco, por “Estômago 2: O Poderoso Chef”

Melhor trilha musical: Giovanni Venosta, por “Estômago 2: O Poderoso Chef”

Melhor desenho de som: Beto Ferraz, por “Pasárgada”

Prêmio especial do júri: “O Clube das Mulheres de Negócios”, de Anna Muylaert

Júri popular: “Estômago 2: O Poderoso Chef”, de Marcos Jorge

Júri da Crítica: “Cidade; Campo”, de Juliana Rojas


CURTAS-METRAGENS BRASILEIROS

Melhor filme: “Pastrana”, de Melissa Brogni e Gabriel Motta

Melhor direção: Lucas Abrahão, por “Maputo”

Melhor roteiro: Adriel Nizer, por “A Casa Amarela”

Melhor ator: Wilson Rabelo, por “Ponto e Vírgula”

Melhor atriz: Edvana Carvalho, por “Fenda”

Melhor trilha musical: Liniker, por “Ponto e Vírgula”

Melhor fotografia: Livia Pasqual, por “Pastrana”

Melhor montagem: Bruno Carboni, por “Pastrana”

Melhor direção de arte: Coh Amaral , por “Maputo”

Melhor desenho de som: Felippe Mussel, por “A Menina e o Pote”

Prêmio especial do júri: “Ponto e Vírgula”, de Thiago Kistenmacher

Júri popular: “Ana Cecília”, de Julia Regis

Prêmio Canal Brasil de Curtas: “Maputo”, de Lucas Abrahão

Menção honrosa

“Ressaca”, de Pedro Estrada

“Via Sacra”, de João Campos

“Navio”, de Alice Carvalho, Larinha R. Dantas e Vitória Real

 "Maputo”, de Lucas Abrahão

 Júri da crítica: “Fenda”, de Lis Paim 


LONGAS-METRAGENS DOCUMENTAIS

"Clarice Niskier: Teatro dos pés à Cabeça”, de Renata Paschoal

 

 LONGAS-METRAGENS GAÚCHOS 

Melhor filme: "A Transformação de Canuto", de Ariel Kuaray Ortega e Ernseto de Carvalho

Melhor Direção: Ariel Kuaray Ortega e Ernseto de Carvalho, por "A Transformação de Canuto"

Melhor Ator: Fabrício Benitez, por "A Transformação de Canuto"

Melhor Atriz: Cibele Tedesco, por "Até que a Música Pare"

Melhor Roteiro: Thais Fernandes, Rafael Corrêa e Ma Villa Real, por "Memórias de um Esclerosado"

Melhor Fotografia: Camila Freitas, por "A Transformação de Canuto"

Melhor Direção de Arte: Adriana do Nascimento Borba, por "Até que a Música Pare"

Melhor Montagem: Jonatas Rubert e Thais Fernandes, por "Memórias de um Esclerosado"

Melhor Desenho de Som: Kiko Ferraz, por "Memórias de um Esclerosado"

Melhor Trilha Musical: André Paz, por "Memórias de um Esclerosado"

Júri Popular: "Infinimundo", de Bruno Martins e Diego Müller 

  

CURTAS-METRAGENS GAÚCHOS - PRÊMIO ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DE CINEMA

Melhor filme; "Chibo", de Gabriela Poester e Henrique Lahude

Melhor direção: Rodrigo Herzog, por "Está Tudo Bem"

Melhor atriz: Jéssica Teixeira, por "Noz Pecã"

Melhor ator: Victor Di Marco, por "Zagêro"

Melhor roteiro: Victória Kaminski e Rubens Fabrício Anzolin, por "Posso Contar nos Dedos"

Melhor fotografia: Eloísa Soares, por "Cassino"

Melhor direção de arte: Denis Souza, Victoria Kaminski e Nadine Lannes Maciel, por "Posso Contar nos Dedos"

Melhor trilha sonora: Edneia Brasão e Pedro Erler, por "Não Tem Mar Nessa Cidade"

Melhor montagem: Marcio Picoli e Victor Di Marco, por "Zagêro"

Melhor desenho de som: Fábio Baltar, por "Flor"

Melhor produção executiva: Graziella Ferst e Marlise Aúde, por "Pastrana"

 

FILMES UNIVERSITÁRIOS - PRÊMIO EDINA FUJII – CIA RIO

“A Falta que Me Traz”, de Laura Zimmer Helfer e Luís Alexandre, da Universidade de Santa Cruz do Sul

 

texto: Daniel Rodrigues
fotos: Daniel Rodrigues, Leocádia Costa e Edison Vara/Festival de Gramado

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Melhores do Ano Accirs 2023


Como ocorre tradicionalmente, a Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (Accirs), da qual faço parte, elegeu os Melhores do Ano, destacados entre produções lançadas em mostras e festivais, no circuito comercial e também em plataformas de streaming. A votação é referente ao ano de 2023, quando a Associação atingiu um grande marco ao celebrar seu 15º aniversário consolidada como uma instituição cada vez mais atuante e importante no ambiente cinematográfico do Rio Grande do Sul e do país.

Dividida em dois turnos, a eleição traz os melhores longas-metragens estrangeiro, brasileiro e gaúcho, além do melhor curta gaúcho do ano. A maioria destes filmes, aliás, fomos reportando aqui no blog ao longo do ano na seção Claquete. Fora desta seleção, a premiação da Accirs entrega, desde sua primeira edição, o Prêmio Luís César Cozzatti, que reconhece filmes, projetos, instituições ou pessoas de destaque no cenário audiovisual gaúcho.

Confira os vencedores do Prêmio Accirs 2023:


Melhor curta-metragem gaúcho: 
"Centenário de Minha Bisa", de Cristyelen Ambrozio

Tocante documentário poético da realizadora indígena Cristyelen Ambrozio, confirmando a escolha da nossa associação que, em agosto, no Festival de Cinema de Gramado, concedemos-lhe o prêmio de Melhor Curta Gaúcho pelo Júri da Crítica. O filme tece diversas camadas simbólicas, desde a visão feminina, a dos povos originários, a necropolítica, a herança cultural. Uma joia de Cristyelen, de quem se espera que rendam novos frutos.





Melhor longa-metragem gaúcho: 
"Casa Vazia", de Giovani Borba

O excelente filme de Giovani Borba, do qual tive a felicidade de participar de um debate em setembro, na Cinemateca Paulo Amorim, ao lado deste jovem realizador e da minha colega de Accirs e coordenadora da cinemateca Mônica Kanitz, era também meu preferido entre os longas gaúchos. Afinal, este thiller gaudério, misto de western e drama fantástico, pode ser visto com um marco do novo cinema no Rio Grande do Sul com obras como "Castanha" e "Mulher do Pai".



Melhor longa-metragem nacional: 
"Retratos Fantasmas", de Kleber Mendonça Filho

Outro documentário entre nossos premiados, e outro documentário de um olhar muito pessoal. Mas aqui, no caso, do grande nome do cinema nacional dos últimos anos, o pernambucano Kléber Mendonça Filho. Para quem acompanha sua obra tão marcante, ver o caminho afetivo percorrido por ele para a composição de seus curtas e, principalmente, os longas urbanos "O Som ao Redor" e "Aquarius", é emocionante e revelador. Foi o filme (mal) indicado a representar o Brasil no Oscar mas, mais uma vez, não ficou entre os selecionados. Não tem mesmo o perfil, pois trata-se de uma obra muito poética para o gosto da Academia.


Melhor longa-metragem estrangeiro: 
"Assassinos da Lua das Flores", de Martin Scorsese

Ah, o velho Scorsese, hein? Já discorri mais amplamente sobre este novo filme do mestre do cinema norte-americano e mundial, mas não custa repetir, que "Assassinos..." é um dos grandes filmes de sua extensa filmografia. A visão revisionista da história "yankee" é não só mais um capítulo em seu importante papel para a reconfiguração dos mitos imperialistas como pertinente para o momento de valorização dos povos originários. Mestre.




Poster do curta "Glênio",
de Luiz Alberto Cassol e
exibido em Gramado
Prêmio Luís César Cozzatti (destaque gaúcho): 
Glênio Póvoas

Glênio Nicola Póvoas é pesquisador, professor, diretor e roteirista, Mestre em Ciências da Comunicação pela USP e Doutor em Comunicação Social pela PUC-RS. Com uma longeva carreira profissional dedicada ao cinema, em especial ao gaúcho, foi um dos principais responsáveis pelo lançamento do Portal do Cinema Gaúcho e assina a coordenação geral do projeto – um grandioso banco de dados sobre nosso cinema, apresentado em 2023. Tive o prazer de ser seu aluno na cadeira de Cinema na faculdade de Jornalismo.





Daniel Rodrigues

sábado, 5 de novembro de 2022

Drops lançamento do livro “50 Olhares da Crítica Sobre o Cinema Gaúcho”, da ACCIRS, na Feira do Livro de Porto Alegre - 05/11/2022





E lá vamos nós para mais uma etapa do lançamento do “50 Olhares da Crítica Sobre o Cinema Gaúcho”! E desta vez onde não poderíamos deixar de estar: na estimada Feira do Livro de Porto Alegre! Depois do lançamento oficial, lá em março, no Araújo Vianna, em Porto Alegre, e do Festival de Cinema de Gramado, em agosto, agora é a vez de celebrarmos este projeto naquele que é o evento cultural-literário mais antigo (e provavelmente, o mais querido) da cidade.

O livro, editado pela Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (ACCIRS), da qual orgulhosamente faço parte como membro fundador e, hoje, secretário, traz uma coletânea de 50 brilhantes artigos sobre 50 filmes gaúchos lançados entre as décadas de 1950 e 2020 no Rio Grande do Sul. Olha: é só texto bom!

Estaremos lá nós membros da ACCIRS em mais de 20, e a previsão do tempo, tão instável nesta época do ano, promete ser boazinha conosco.

Então, quem tiver por POA, aparece lá, que a pena e a tinta já estão aguardando os autógrafos. Depois a gente volta aqui com registros desta tarde, que promete ser ensolarada de sol e de gente bonita.

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lançamento do livro “50 Olhares da Crítica sobre o Cinema Gaúcho”
da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (ACCIRS)  
onde: 68ª Feira do Livro de Porto Alegre (Praça da Alfândega, s/ nº, Centro Histórico - Porto Alegre).
quando: dia 05/11 (sábado) - 15h
organizadores: Daniel Feix, Fatimarlei Lunardelli, Ivonete Pinto, Mônica Kanitz e Rafael Valles
Valor do livro: R$ 50,00*

*Os exemplares poderão ser adquiridos na Feira do Livro ou pelo site da ACCIRS e locais parceiros: accirs.com.br


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 30 de julho de 2020

O dia em que o cinema gaúcho encarou o racismo



O marcante personagem Dorival,
do filme de Furtado e Goulart
A proposital sensação de incompletude que a última tomada de “O Dia em que Dorival Encarou a Guarda”, de Jorge Furtado e José Pedro Goulart, de 1986, deixa para o espectador, parece premeditar uma noção ética a qual o cinema gaúcho irremediavelmente ainda iria se deparar. Naquele meado de anos 80, quando ainda se vivia sob a sombra da ditadura e ansioso por uma democracia que nunca chegava, fazia muito sentido a cena em que o militar vivido por Sirmar Antunes, sem (conseguir) verbalizar uma palavra, minimamente se compraz do encarcerado Dorival (João Acaiabe), homem negro como ele, alcançando-lhe um cigarro após este último ser linchado fisicamente pelos colegas e mais uma vez psicologicamente pela sociedade.

Quem, como eu, um negro que viveu aquela década em Porto Alegre – cidade onde o referido filme foi rodado –, lembrará, por exemplo, que “música de preto” só se escutava na finada Rádio Princesa, dial “oficialmente instituído” para que o hoje tão valorizado samba tivesse onde rodar. Qualquer semelhança com os vissungos e lundus entoados e dançados nas senzalas não é mera coincidência – nem preciosismo semântico, no caso. Tanto o exemplo do filme quanto o da rádio mostram o quanto o silenciamento do negro era preponderantemente estabelecido naqueles idos. Precisaram mais de três décadas para, enfim, começarmos a avançar nesses aspectos. Mas não sem conflito.

Cartaz original
do filme "Inverno",
que motivou a live
da APTC
As reticências imaginárias da cena derradeira do curta de Furtado e Goulart convidavam que alguém continuasse escrevendo aquele texto de barbárie para uma narrativa de transformação. E o avanço social se encarregou disso. Os ventos de indignação provocados pelo episódio George Floyd nos Estados Unidos tomaram tanta força que, mais intensos que um minuano, vieram soprar aqui nas paragens do Rio Grande do Sul. Mais precisamente, na mesma Porto Alegre das senzalas que apartavam tanto o Dorival em sua cela e o samba nas ondas da Rádio Princesa há cerca de 35 anos. E soprou de forma violenta a ponto de desestabilizar antigas estruturas. O recente episódio da live promovida pela Associação Profissional de Técnicos Cinematográficos do Rio Grande do Sul (APTC-RS) sobre o filme “Inverno” (1983), no dia 3 de julho, mediado por Giordano Gio e com a presença de Carlos Gerbase, Luciana Tomasi, Giba Assis Brasil e Luciene Adami (integrantes da equipe) e a realizadora e roteirista Mariani Ferreira, abriu como jamais visto nestas terras um debate sobre dois aspectos que pareciam fadados ao estado de silêncio: a presença de negros no setor audiovisual gaúcho e, o mais grave deles – visto que é a raiz explicadora do primeiro aspecto –, o racismo.

Os parcos números da representatividade negra no setor audiovisual gaúcho falam por si. Sabe-se que o estudo "Diversidade de gênero e raça nos lançamentos brasileiros de 2016", divulgado pela Agência Nacional do Cinema (Ancine) em 2018, embora a defasagem para os dias atuais, não mudou muito de lá para cá. Dos 142 longas exibidos comercialmente no circuito, apenas 2,1% foram dirigidos por homens negros, e sequer um dirigido ou roteirizado por uma mulher negra naquele ano. Em termos históricos, apenas cinco longas foram dirigidos por pessoas negras no Rio Grande do Sul: “Um É Pouco, Dois É Bom” (1970), de Odilon Lopez; “Porto dos Mortos” (2012), de Davi de Oliveira Pinheiro; “Central – O Filme” (2016), de Tatiana Sager e Renato Dornelles; “De Boca em Boca” (2016), de Wagner Abreu; e “O Caso do Homem Errado” (2017), de Camila de Moraes.

A exemplo do já mencionado curta-metragem de Furtado e Goulart, a intencionalidade de mudança não precisa vir necessariamente de pessoas negras. Até é bom que não seja sempre assim. Além deste, o cinema gaúcho conta com longas-metragens como “O Homem que Copiava” (2003) e “Meu Tio Matou um Cara” (2004), ambos também de Furtado, que trazem atores negros como protagonistas – Lázaro Ramos e Darlan Cunha, respectivamente – e que, cada um a seu modo, buscam contextualizar a condição do negro na sociedade brasileira do início do século 21. Mais do que estes, contudo, o já referido “O Dia em que Dorival Encarou a Guarda” é o que, mesmo com o consciente e salutar respeito ao “lugar de fala” de quem o dirige, duas pessoas brancas, vai na raiz do problema do racismo ao valer-se do estereótipo para chegar à crítica, e não para normatizá-la.

Darlan e Lázaro em "Meu Tio Matou um Cara": raros protagonistas
negros na história do cinema gaúcho
Se o exemplo de Furtado e Goulart é louvável, é também, num espectro maior, insuficiente. Segundo o professor e mestre em História pela UFRGS, Cléber Teixeira Leão, pesquisador da temática racial com foco nos estudos críticos da branquidade, é fácil perceber um pensamento brancocêntrico tanto no cinema gaúcho quanto no nacional focado na universalização de uma história do Rio Grande do Sul e do Brasil a partir de um recorte da visão do branco. “Sempre que é necessário fazer um recorte racial ou mesmo socioeconômico, a película chega carregada de estereótipos quando trata do negro e do indígena. Mas o mesmo cinema positiva e deifica a questão imigratória, os relacionamos à música, à arte plástica dos descendentes de europeus, os brancos”, argumenta Leão.

Se os números anteriormente citados falam por si, mais ainda o fazem os depoimentos ouvidos na live da APTC. Verbalizadas pela produtora Luciana Tomasi e indiretamente consentidas por outros participantes durante a reunião virtual, as falas foram motivadas, sem dúvida, pela presença instigadora de Mariani Ferreira. Integrante do Macumba Lab, coletivo de profissionais negros e negras do audiovisual no Rio Grande do Sul, tanto sua articulação intelectual quanto condição de mulher negra desacomodaram. Não o fariam, contudo, se ela não trouxesse questões como raça e gênero, assumindo o silenciamento historicamente engendrado. Mas, não. Nas respostas a suas colocações – até certo ponto revisionistas, mas inequivocamente plausíveis e genuínas –, reverberam questões como identidade, normatização da hegemonia branca, necessidade de representatividade negra, desvirtuamento do "lugar de fala", entre outros aspectos. Todos, analisados juntos ou separadamente, demonstram o quanto não se está preparado para enfrentar a discussão do racismo com a responsabilidade que o tema exige, mas também que fazê-lo urge.

Dois aspectos observados no episódio da referida live merecem especial atenção. Primeiro, conforme levantado por Leão, a idealização da herança europeia, um dos argumentos usados por Luciana para justificar sua desatenção à questão do negro na produção audiovisual porto-alegrense. ”A discussão trazida na live da APTC sobre cinema gaúcho, na realidade, demonstra justamente esse recorte de uma Porto Alegre criada a partir de uma construção brancocentrada, que tenta reivindicar uma identidade pseudoeuropeia branca que, se diga, a cidade não tem. Não somos uma capital somente de descendentes de europeus: existem múltiplas raízes raciais e de ancestralidade que percorrem as ruas de Porto Alegre”, diz o professor.

Não se trata de policiar a liberdade artística – quanto menos, inutilmente aquela que já se produziu – e nem desqualificar a inquestionável contribuição que a geração desses precursores do novo cinema gaúcho deu. No entanto, explicar o desinteresse com a causa dos negros pela simples ausência de contato com esta é, além de muito confortável, fraco e irresponsável de quem se espera, como agente cultural importante do Estado, algo bem mais refletido. “A questão que surgiu na live, a partir da fala da produtora Luciana Tomasi, era a de uma impossibilidade de dialogar com a história e temáticas não brancas, que compõem a história e a sociedade porto-alegrense, pois sua herança sanguínea europeia, assim como a de alguns dos participantes da live, impossibilitava essa abordagem”, observa Leão. Os dois referidos longas de Furtado são produzidos por Luciana Tomasi, e não à toa deixei para voltar a referi-los aqui. O que talvez pudesse ser um lapso de desaviso soa, agora, como reconfirmação desse descompromisso anacrônico e segregador.

Mariani Ferreira: articulação
intelectual e condição de
mulher negra 
Ligado a esse aspecto, o outro que destaco se resume num vocábulo, o qual, infelizmente, diz muito mais do que se gostaria. Luciana, ao discorrer que pessoas com sobrenome como o dela ou Schünemann, Adami, Gerbase e de semelhante ascendência europeia, diz não ter condições, pelas razões citadas anteriormente, de fazer um filme da “senzala”. Leão nota nessa fala o quanto só se consegue perceber os grupos não brancos dentro da história gaúcha ou nacional a partir da abordagem de submissão da escravização negra – e isso é muito grave. “A percepção sócio-histórica manifestada nessa fala impossibilita uma ruptura com esse estereótipo, que é construído dentro de um processo de racialização imposto e construído pelo branco, que não se entende historicamente como raça, nem tampouco como privilegiado ao definir os nichos onde cada um dos grupos não brancos são categorizados histórica e socialmente”, completa.

Quando o roteiro de “O Dia em que...” foi escrito – coassinado por Furtado, Goulart, Tabajara Ruas, Ana Luiza Azevedo e Giba Assis Brasil –, intencionalmente o protagonista, tão veículo de pré-concepção quanto de denúncia, não tinha sobrenome. Era Dorival e pronto. Precisava-se, por meio desse elemento narrativo, evidenciar a desumanização. Hoje, reivindica-se, com probidade, a menção a Oliveira Silveira. Eu, cria daqueles ricos mas também atrasados anos 80, vi, por muito tempo, as manifestações contra o racismo – vindas invariavelmente apenas dos próprios negros – justificadamente reativas, mas pouco argumentativas. Agora, é diferente.

O sistema foi estremecido, e não demorou para que o meandro estrutural do racismo, sustentado pelo preconceito arraigado, aparecesse. Agora, é hora de romper o silêncio e encará-lo. “Torna-se necessário”, diz Leão, “pensar a visão brancocêntrica acrítica, que só permite pensar os não brancos dentro de determinados nichos, o que, em si, faz parte do que chamamos de racismo estrutural”. Para ele, é necessário romper essa nada apreciável tradição gaúcha, que tenta buscar ainda uma positivação racial branca europeia disfarçada de étnica. A continuidade da política de cotas nas universidades, que já vem mostrando resultados consistentes de transformação e inclusão social, e o fomento a projetos como Macumba Lab, por exemplo, são fundamentais para essa mudança de realidade. Segundo a professora doutora de filosofia Andrea Maila Voss Kominek, “conhecer nossas raízes e repensar nossa realidade representam o único meio possível para uma sociedade justa e igualitária. Desconsiderar o problema do racismo no Brasil é ser conivente. É permitir que a desigualdade se perpetue. Reconhecê-lo, conhecê-lo e discuti-lo constitui o primeiro passo rumo a uma sociedade livre”.

De fato, o audiovisual gaúcho levou um grande susto ao ver emergir o racismo das grades que o escondiam, fosse na cela do personagem Dorival, fosse na referida senzala onde indiretamente condena-se a existência de uma raça. Políticas estão sendo tomadas, posições estão sendo revistas, governo e entidades estão correndo contra o tempo para responder a essa lacuna social e moral deixada pela brutal escravatura no Brasil e (tão bem) assimilada entre os homens. Mas as sociedades avançam, e isso é irrefreável, inclusive no autocomplacente Rio Grande do Sul.

Dia 3 de julho foi o dia desse avanço em direção a entendimentos mais amplos e plurais, mesmo que para isso tenha-se que brigar, apontar erros e expor aquilo que precisa ser dito. O dia em que o cinema gaúcho encarou o racismo. Só assim cidades como Porto Alegre podem ter, cada vez mais, representada nas mais diversas áreas não apenas a influência europeia, mas a de outras culturas como a africana. Como a brasileira, aliás, única, pois mestiça e universal. E que pessoas como Dorival possam, resgatadas suas dignidades, responder com nome e sobrenome. Assim, um sobrenome ao mesmo tempo comum e digno, como um Oliveira Silveira ou o de quem assina este artigo.


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curta “O Dia em que Dorival Encarou a Guarda”
de Jorge Furtado e José Pedro Goulart (1984)



 por Daniel Rodrigues
Artigo originalmente publicado no Blog Roger Lerina escrito a convite do jornalista