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terça-feira, 7 de setembro de 2010

Miles Davis - "Kind of Blue" (1959)

"Quem é tocado por essa música [de Kind of Blue] muda para sempre. E se torna melhor do que é."
 Herbie Hancock



Fui convidado pelo autor deste blog a escrever a resenha sobre “Kind of Blue”, de Miles Davis, de 1959, simplesmente o disco de jazz de maior sucesso e vendagem de todos os tempos, tendo ultrapassado tranquilamente, mais de meio século depois de seu lançamento, a marca de 6 milhões de cópias vendidas em todo o mundo. Volume este que continuará crescendo certamente, tendo em vista que diariamente exemplares de “Kind of Blue” são adquiridos por novos e antigos fãs. Eu mesmo sou mais um dentre esta multidão de admiradores.
 Então, diante de tal missão, perguntei-me: o que dizer deste fenômeno, uma obra que perdura a tanto tempo e da qual, principalmente, gosto tanto? Como dimensionar sua evidente inspiração a toda uma geração de artistas? Ou, ainda, explicar de que forma a gama de aspectos musicais e não musicais que “Kind of Blue” abarca, trazendo de vez para a música moderna as influências de culturas folclóricas, como os sons orientais, africanas ou hispânicos, e misturando tudo isso ao groove latino, à música erudita e a tradição negra americana? Como jornalista, uma das regras básicas da minha profissão é a de manter imparcialidade sobre o que se está analisando. O que fazer, então, quando se está na posição de crítico e amante ao mesmo tempo?
 A solução que achei foi a de me entregar à genialidade deste disco, perceptível a cada faixa, a cada solo, a cada fraseado de trompete, a cada base de piano, a cada vibração de corda do baixo, a cada ataque do saxofone. “Kind of Blue” já impressiona de cara pela “cozinha”. O quinteto formado por Miles tinha nada mais nada menos que o baixo seguro de Paul Chambers, a bateria swingada e elegante de Jimmy Cobb, o sax alto cheio de sentimento e alma gospel de Cannonball Adderley, o piano “branco” e mezzo-erudito de Bill Evans, o trompete genial e inteligentemente comedido do próprio Miles e o sax tenor do talentosíssimo John Coltrane, que, talvez, comporte todos esses elementos e mais um pouco. Trata-se da melhor banda de Miles, comparada somente a seu supertime de 1969, que contava com feras como Chick Corea, Herbie Hancock, Wayne Shorter e Ron Carter. O fato é que os quatro músicos que acompanharam Miles em “Kind of Blue” tornaram-se ou se solidificaram depois do álbum como alguns dos grandes nomes da história do jazz (incluindo aí Red Garland, que tocou piano em uma das faixas), mas principalmente Coltrane, que revolucionou o estilo, disco a disco, até a sua morte, em 1967.
 Mas e o disco? Bem, “Kind of Blue” começa com a célebre “So What”, um blues cadenciado e cheio de swing onde aparece pela primeira vez na história da música um negócio que Miles Davis vinha desenvolvendo (parte conscientemente e outra não) há mais ou menos uma década: o jazz modal. Embora se trate de uma invenção técnica, facilmente distinguida por músicos, para leigos como eu também não é difícil de reconhecer. Ou, pelo menos, “sentir” a diferença. O jazz modal – diferentemente da loucura criativa do be-bop, que aproveitava todas as escalas musicais ao extremo, ou do free-jazz, livre em concepção, como o título sugere – propunha uma, digamos, “simplificação programada” do jazz. Assim, as melodias eram compostas em escalas (por módulos = modal), o que gera uma base em que há poucas mudanças de notas mas, ao mesmo tempo, dá uma vasta liberdade aos solistas, que não precisam improvisar somente dentro do tradicional tempo 1-2-3-4. Um pequeno detalhe, mas uma verdadeira revolução que influenciou todo o jazz, soul, pop e rock que viria a seguir – isso, para ficar só nas contribuições à música, sem falar do cinema, artes plásticas, cênicas, etc.
 “So What”, com sua memorável abertura do diálogo entre baixo e piano, é, assim, um marco do jazz modal, formato que Miles e seu quinteto empregaram em todas as cinco faixas do álbum. E “So What” guarda ainda uma outra curiosidade. Nela, a visão pop do caleidoscópico Miles se evidencia: ouvindo com atenção, dá para perceber que sua base de sopros no chorus é idêntica a de “Cold Sweat” (veja o vídeo), de James Brown (a quem o jazzista admirava), considerado o primeiro funk da história. Porém, exceto por um detalhe: as notas estão na ordem inversa.
 O disco segue com outro jazz “blueseado”: “Freddie Freeloader”, tema que contém o talvez mais impressionante solo já tocado por Coltrane. Depois do número elegante de Miles, Trane entra literalmente rachando com toda emoção e potência, vazando o som do seu sax para todos os microfones do estúdio e obrigando o operador da mesa a reduzir o volume manualmente na hora. O que seria uma falha na gravação para um artista comum, fazendo com que se repetisse a sessão, por causa da sensibilidade de Miles ficou assim mesmo e assim se eternizou.
 A lindíssima balada “Blue in Green” vem na sequência, uma provável parceria de Miles com o Evans onde o pianista conduz a melodia. Bem, “melodia” não é bem o termo certo. Criada sob a linha modal de notas cool que variam em poucas escalas, e com claras influências eruditas emanadas do piano quase clássico de Evans, “Blue in Green” não tem uma melodia propriamente dita. Não fica evidente um acorde básico ou um riff. Mesmo assim, sua aura é tão palpável que quem a escuta jamais se esquece de como ela é.
 Outra pérola inesquecível de “Kind of Blue” é a hipnótica e sensual “All Blues”, na qual se veem nuanças hispânicas, afro e da vanguarda erudita. Nela, o piano mantém constantemente um trinado que parece com marimbas espanholas tremulando, enquanto os sopros executam o chorus lentamente, em longos e lânguidos riffs fraseados que definem a base do tema. Para matar a pau, o Miles inicia uma segunda frase melódica com um longa nota, que se estende, parecendo dar asas à canção. Ajudado pelo som de escovinhas raspando no tarol, o famoso som repetido do piano gera uma sensação mágica de circularidade, muito bem traduzida para o audiovisual pelas lentes de Spike Lee, no filme "Mais e Melhores Blues" de 1990.
 A obra-prima finaliza com outra de ares ibéricos: “Flamenco Sketches”, tão rica e densa musical e conceitualmente que serviu de inspiração não para mais uma música, mas para um disco inteiro de Miles Davis chamado “Sketches of Spain”, de 1960. É mole ou quer mais?

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 Antes e depois de “Kind of Blue”, Miles Davis revolucionou a música moderna uma porção de vezes. Por isso, vale destacar pelo menos duas obras que se incluem nesta lista e que foram importantes na formação do jazz modal que desembocaria em “Kind of Blue”: “Walkin’” e “The Birth of the Cool”, ambos de 1954.

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 Como todo grande disco, um “The Dark Side of the Moon”, do Pink Floyd, ou “Exile on Main Street”, dos Rolling Stones, “Kind of Blue” carrega lendas. Uma delas – e que se constatou ser verdade quase 40 anos depois – é a de que a gravação impressa em milhões de exemplares e que se popularizou no mundo todo por décadas estava milésimos de segundo mais lenta que o normal, pois se tratava da cópia extraída de uma master com um leve defeito. Hoje, é possível adquirir a versão corrigida, mas muitos veem nesta falha um toque divino, mantendo-se fiéis ao registro “original”.

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O livro sobre a história da obra-máxima
de Davis
O autógrafo do mestre Hermeto
no livro do 'parceiro' Miles
 Para finalizar, dia desses encontrei no Aeroporto de Porto Alegre o compositor e multi-instrumentista brasileiro Hermeto Pascoal. Pedi-lhe um autógrafo no primeiro papel que vi, meu livro, o que ele prontamente atendeu. Para não lhe dar a impressão de que gastaria tinta em qualquer papel, eu, na minha ignorância, comentei que estava lhe dando para assinar uma obra que abordava o tema música: era “Kind of Blue: A História da Obra-prima de Miles Davis”, do jornalista americano Ashley Kahn. Afinal, jazz e Hermeto Pascoal é quase a mesma coisa, né? O “albino Hermeto” (que de fato não enxerga muito bem, como disse Caetano Veloso), comentou-me, então, com toda simplicidade que conhecera Miles Davis no final dos anos 60, e que tocara junto com ele. (!) Não só: que justo o para mim tão mitológico Miles havia gravado duas canções dele, Hermeto, em um disco que ele não lembrava ao certo o título e de quando datava (vejam só!). Enfim, estupefato pelo desapego do genial Hermeto busquei no Google e encontrei o tal disco: chama-se “Live Evil”, de 1967, considerado por alguns como um álbum “demoníaco”. Quem quiser conhecer, benza-se antes de ouvir. Cruz-credo!

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Ouça:
Miles Davis Kind Of Blue



por Daniel Rodrigues





Daniel Rodrigues é jornalista formado pela PUC/RS, curioso e pesquisador de música, é aberto a todos os estilos demonstrando, contudo, especial interesse e conhecimento pelo jazz. Também, por incrível que possa parecer, direciona grande parte de suas atenções ao punk-rock, suas origens e vertentes, estilo sobre o qual inclusive baseou o tema de sua tese de diplomação relacionando-o com a evolução da moda.
Daniel além de tudo isso é meu irmão e foi integrante comigo da banda 'punk-putaria-core', HímenElástico.

segunda-feira, 9 de março de 2020

A eternidade lhe pertence


"Junto com Bill Evans, Tyner foi o pianista mais influente do jazz nos últimos 50 anos, com suas voicings de acordes sendo adotadas e utilizadas por praticamente todos os pianistas mais jovens."
Scott Yanow, crítico e historiador de jazz norte-americano

Certa vez, Leocádia Costa e eu, conversando com um amante de música como nós na saudosa livraria Arlequim, no Centro do Rio, falei de minha preferência por McCoy Tyner entre os pianistas do jazz. Idolatro Hancock e Corea. Louvo Thelonious, Donato, Red, Bruback, Silver, Evans, Hermeto. Admiro Toshiko, Jarrett, Tristano, Sonny. São muitos os mestres do instrumento, mas Tyner, morto no último dia 6 de março, me é tudo. Todos eles. Coração e técnica, simplicidade e complexidade, intensidade e leveza.

Afora isso, tem o fator subjetivo. Gosto de seu toque, de suas ambiências, de seus improvisos com mais passionalidade do que os de outros. Simplesmente. As quartas justas ou aumentadas na mão esquerda, as quintas, o cromatismo, os voicings, o pentatonismo. É como se seus dedos se comunicassem diretamente com meus ouvidos. E assim é.

E ainda, como se não bastasse, ele é o piano de, entre inúmeras gravações e discos históricos do jazz moderno, do quarteto mágico de John Coltrane ao lado de Elvin e Garrison/Davis. Até este último dia 6 de março, o único sobrevivente daquele time eternizado. Agora, a eternidade é que lhes pertence.

Talvez devesse ser regra, assim como em alguns esportes, quando um grande ídolo morre e se aposenta a sua camiseta. Para um pianista que se vai deveriam, em sua homenagem, arrancar uma tecla do piano que o represente e nunca mais usá-la. A tecla de Tyner podia ser um Fá ou um Dó como os que ele usava quando tocava intervalos de quinta na mão esquerda, uma de suas assinaturas. Ficaria decretado, por consentimento e aclamação: ninguém mais estaria autorizado a tocá-la, a tecla eternizada por e para McCoy Tyner.

MCCOY TYNER
(1938-2020)



Daniel Rodrigues

sábado, 24 de setembro de 2011

Exposição 'Queremos Miles!' - CCBB- Rio de Janeiro (18/09/2011)











capa de "Tutu",  álbum da
popularização definitivada obra de Miles
Aproveitando bem minha estada no Rio, pude conferir no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB RJ), em companhia de meu irmão e editor deste blog, a ótima exposição “Queremos Miles”, sobre a vida e obra do músico de jazz norte-americano Miles Davis (1926-1991). A mostra, que vai somente até 28 de setembro, recupera (quase) toda a biografia do talvez maior gênio do jazz mundial em todos os tempos, um verdadeiro escultor de sons e revolucionário da música do século XX ao lado de alguns outros poucos como Stockhausen, Tom JobimStravinsky Beatles.
Miles ainda menino
Organizada pela Cité de la Musique de Paris, a exposição – cujo título em português, embora a tradução literal, perde em significado, uma vez que o original, “We Want Miles”, faz menção também ao nome de um disco de Miles Davis –, resgata de forma cronológica a biografia deste influente artista que, disco após disco, antecipava e inventava novas tendências, novos estilos, revolucionando a arte moderna e influenciado gerações. O recorte pega desde o seu nascimento, na sulista de St. Louis, trazendo fotos dele quando pequeno com sua família, até o período final de sua carreira, demarcado por sua última obra-prima dentre as várias que produziu em quase 50 anos de vida artística: o álbum “Tutu”, de 1986, marco da criação do hoje popularizado jazz lounge. Da fase inicial, estão o encontro com Charlie Parker e Dizzie Gillespie, o “nascimento do cool”, em 1948, e os admiráveis títulos pelo selo Prestige nos anos 50, para o qual gravou seis obras-primas com o quinteto que incluía nomes como John Coltrane, Red Garland e Sonny Rollins.
Os instrumentos da banda dos anos 70
Multimeios, a abrangente mostra contém um rico acervo de aproximadamente 300 itens entre fotografias raras, capas de LP's, vídeos de apresentações em TV e shows, roupas e vários instrumentos utilizados por ele e por suas célebres bandas, além de partituras, documentos de registro de gravações em estúdio, quadros (belíssimos!) pintados pelo próprio Miles e até o manuscrito original do texto do pianista Bill Evans da contracapa do clássico álbum “Kind of Blue”, de 1959, o disco de jazz mais vendido da história e considerado por muitos insuperável no gênero. E, claro, muita música! Em cada canto, em cada ilha que se entrava pode-se escutar algumas das maravilhas de Miles. Às vezes, nem percebia que me apressava em ver determinada coisa, atraído pelo som de uma “All Blues”, “Pharaoh's Dance” ou “Nuit sur les Champs-Élysées“.
Painel com o estilo Miles dos anos 80
A personalidade camaleônica de Miles Davis, que nunca teve medo de mudar e progredir ao longo dos anos fica evidente, principalmente no aspecto visual: os finíssimos trajes bem cortados que vestia nos anos 40 e 50, transformariam-se, nos 60 e 70, na estética psicodélica da juventude. Igualmente, a bem elaborada curadoria de Vincent Bessières soube destacar muito bem os pontos impostantes da obra de Miles, como a fascinante trilha sonora do filme “Ascensor para o Cadafalso”, de 1957, a parceria com o pianista e maestro Gil Evans, que gerou os históricos “Miles Ahead” e “Porgy and Bess” (1957 e 59, respectivamente), ou as salas especiais dos discos clássicos: "Kind of Blue", sobre o qual comentei aqui neste blog tempo atrás; “In a Silent Way” e “Bitches Brew”, ambos de 1969 e marcos do jazz fusion; "A Tribute to Jack Johnson" (1971), a memorável trilha para o documentário sobre o boxeador a quem Miles tanto admirava; e “On the Corner”, de 1972, quando Miles introduziu de vez o som do funk que vinha dos guetos americanos em sua música.
A única falha, por assim dizer, é a não inclusão do seu último disco, o póstumo “Doo-Bop”, de 1991. Sei que os puristas torcem a cara para este trabalho por sua mistura de hip-hop com jazz, o que aparentemente motivou a organização da mostra a não referi-lo – evidenciando a menor importância a que geralmente lhe atribuem. Eu, particularmente, gosto bastante deste disco não só por sua qualidade musical como por sua importância dentro da música pop diante do que se faria a partir de então no mundo do entretenimento. Quando os norte-americanos do Us3 surgiram com aquele seu jazz-rap em 1993, embora tenha gostado da banda, não segui o estardalhaço em torno do grupo como sendo algo revolucionário justamente por já ter escutado tudo aquilo em “Doo-Bop”. A justificativa dos críticos é a de que os produtores que finalizaram “Doo-Bop” o teriam feito sem a qualidade que Miles imprimiria se estivesse vivo. Sinceramente, acredito que, se o músico tivesse morrido depois da feitura do álbum, o conteúdo seria praticamente o mesmo e muitos dos detratores certamente o louvariam hoje (talvez até mais do que o disco merecesse). Preconceito ou não, falta de critério ou não, o fato é que, até por seu caráter póstumo, considero este momento importante na biografia do artista, por isso a falta dentro da exposição. Mas, entre tantos acertos que “Queremos Miles” traz, isso é o de menos. Mais fácil eu pegar meu “Doo-Bop” e me deliciar sozinho em casa.

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Queremos Miles
Até 28 de Setembro
Local: Térreo e 1º andar | CCBB RJ
Horário: Terça a domingo, das 9h às 21h


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quinta-feira, 26 de março de 2020

McCoy Tyner - "The Real McCoy" (1967)



"Sabe, acabei de ouvir 'The Real McCoy', talvez pela primeira vez desde que o fiz. Eu ainda tinha o álbum original embrulhado em celofane. Mas alguém estava me dizendo que esse era um dos melhores discos, então tirei o celofane e o ouvi. Fiquei surpreso. Uau! Nós realmente chegamos lá". 
Ron Carter, em entrevista de 2007

É interessante perceber como McCoy Tyner, morto recentemente, é recorrentemente mais lembrado por sua participação no lendário “quarteto mágico” de John Coltrane do que pela própria carreira solo. Motivo há, uma vez que a fase em que tocou por seis anos juntamente com Elvin Jones (bateria) e Jimmy Garrison (baixo) para o autor de “A Love Supreme” é tão marcante não apenas para o jazz, mas para a música do século XX, que se faz inevitável a associação. Porém, Tyner é, seguramente, mais do que isso. Mesmo que para a maioria dos músicos seja mais do que suficiente ter feito parte de gravações épicas como as dos discos “Giant Steps”, “Crescent” e o próprio “A Love...”, Tyner, obteve, para além disso, o feito de ser considerado em vida o mais influente pianista do jazz ao lado de Bill Evans. E com merecimento próprio.

Se este reconhecimento veio por conta também da contribuição ao grupo de Coltrane, com quem teve sua primeira experiência importante como músico na primeira metade dos anos 60, muito mais se deve àquilo que ele inovou e legou a todos os pianistas que lhe sucederam. Seu estilo, que une técnica e classicismo à intuição criativa do blues, o fez dar um passo à frente de sua geração. Se Evans foi centro harmônico para a invenção do jazz modal, Tyner concebeu uma nova forma de estruturá-lo. Nas ambiências dada à escala modal, nas quartas justas ou aumentadas na mão esquerda, típicas suas, ou o uso do cromatismo nos improvisos e os famosos voicings, em que brincava com os espaçamentos e duplicações de notas. E o fazia lindamente através de seu dedilhado sensível e preciso. Coração e mente em plena integração com a música.

Além das participações em bandas outros ilustres jazzistas, como Wayne Shorter, Grant Green, Lee Morgan e Bobby Hutcherson, Tyner construiu, ao longo de quase 60 anos, uma discografia invejável, pautada, desde o início, pela maturidade musical. “Inception”, de 1962, seu primeiro solo, é uma prova clara disso. Nos anos seguintes, grava outros álbuns mas mantendo-se, em paralelo, no quarteto de Trane, com quem não apenas gravava em estúdio como excursionava para shows. Porém, foi no mesmo ano em que o amigo saxofonista morreria, em julho, que o cúmplice Tyner deu a si, dois meses antes, como que pressentindo a impermanência da vida, a abertura para algo realmente próprio e descolado da figura mítica de Coltrane. Era a sua mais bem acabada obra até então: o corretamente intitulado “The Real McCoy”. Experiente e sob uma nova perspectiva como band leader, ele junta-se aos craques Ron Carter (baixo), Lou Donaldson (sax alto) e novamente a Jones para dizer ao mundo quem, de fato, era aquele pianista por trás das maravilhas coltraneanas.

O autorreconhecimento de Tyner começa com a liberdade bop de "Passion Dance", tomada, como o nome diz, de amores intensos e ritmo. Tyner convoca o time com astúcia e intensidade, mantendo a vibração lá no alto. Mas nessa é o parceiro Jones, insano na bateria, quem mais se destaca, tanto que é ele quem revela o solo mais impressionante da música.

Seguindo a linha de buscar um olhar interior, nada mais adequado que recorrer à “contemplação”. Mas “Contemplation”, faixa seguinte, é mais do que só a sugestão do título: são 9 minutos de conexão com o reconhecimento da beleza que se tem dentro de si. Que elegância assombrosa! As baquetas mantendo o tempo no prato; o piano, em tremolos e encadeamentos, ambientando sobre uma escala modal; o sax desfilando vivacidade; e o baixo desenhando blues algo dissonante, sem contar com o vaporoso improviso mais para o final da faixa. E o solo do piano, então!? É como se dois pianistas, um severo e outro sonhador, tocassem juntos e ao mesmo tempo. Mas ambos são McCoy Tyner. Um blues enebriado e, ao mesmo tempo, enigmático e sensual, que explica porque o pianista foi o preferido do gênio Coltrane.

Já "Four by Five" começa com Handerson desafiando as notas em busca do improviso perfeito. Se ele não consegue, talvez chegue perto. Mas Tyner e Jones não ficam para trás no virtuosismo e explosão amparados pelo entendimento quase transversal de Carter. Na sequência, o contrabaixo começa lançando um efeito ondulante e sinestésico, enquanto o piano de Tyner polvilha notas soltas e oníricas, que anunciam a introspectiva “Search For Peace”, mais uma busca ao “eu” interior de seu autor. O sax, incrivelmente belo em um tom bastante alto, soa como um trompete, lembrando a economia cool de Miles Davis. Mas Tyner, claro, é quem chama para si o protagonismo, desafiando os limites entre o neo-romantismo e o lirismo melancólico do blues. Carter, na sua, dá um show de andamento, ao seu estilo trastejante.

“Blues on the Corner”, bluesy, levemente dissonante, é praticamente uma síntese do Tyner, o artista e a pessoa,  uma vez que remonta à tradição da música negra norte-americana adicionando-lhe uma visão de modernidade.

Múltiplo, mas a seu modo, Tyner ainda experimentaria o post-bop, o afro-jazz, o jazz fusion, a world  e até a soul. No entanto, sempre enraizado em sua natureza. Ele era o toque inconfundível que seus dedos transmitia, como a união do divino e do mundano, do céu e do inferno, da vida e da morte. Sempre e a todo o momento aquilo que realmente lhe dá nome: piano.

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FAIXAS:
1. "Passion Dance" – 8:47
2. "Contemplation" – 9:12
3. "Four by Five" – 6:37
4. "Search for Peace" – 6:32
5. "Blues on the Corner" – 5:58
Todas as composições de autoria de McCoy Tyner

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OUÇA O DISCO:

Daniel Rodrigues

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Cannonball Adderley - “Somethin’ Else” (1958)



“Eu praticamente já podia ouvi-lo [a Cannonball Adderley] na minha banda desde a primeira vez que o escutei”. 
Miles Davis


“Ouvindo Miles – que é mais um grande solista do que um grande trompetista –, de repente todos os fundamentos deixam de ter significado para mim, por ele ser tão brilhante de outra forma”. 
Cannonball Adderley

Uma revolução geralmente é precedida de algum marco precursor. Com obras-primas da arte musical isso também acontece. Na história do jazz, uma das principais revoluções ocorridas, a do jazz modal, promovida por Miles Davis em “Kind of Blue”, de 1959, talvez soe tão original que a faça parecer ter partido do zero. Porém, resultado da própria evolução do trabalho de seu autor – ainda mais quando se pensa na tetralogia da Prestige e, principalmente, em dois dos discos que o antecederam, “Ascenseur pour l'Échafaud” e “'Round About Midnight” –, é de se supor que tenha recebido também algum outro exemplo anterior. E, de fato, se há um álbum responsável por abrir caminhos em estética e conceito para o mais célebre disco do jazz da história, este é “Somethin’ Else”, do saxofonista Cannonball Adderley.

Realizado pelo selo Blue Note um ano antes de Adderley compor o sexteto de Miles na gravação de “Kind...”, “Somethin’...” conta, não por coincidência, com o próprio trompetista na formação. Adderley pede que a gravadora Columbia o ceda e concebe, assim, uma formação de banda rara e lendária, que tinha ainda o mestre Art Blakey, na bateria; Sam Jones, no contrabaixo; e Hank Jones, no piano. Todavia, o feito fazia-se sui generis, principalmente, porque Miles não se colocava como coadjuvante desde as clássicas gravações com o mito Charlie Parker, nos anos 40. Experiente e de espírito líder, Miles, então, naturalmente assume um papel mais do que de sideman, e, sim, o de quase um “guia espiritual”. Autor da faixa-título e responsável por ajudar a escolher o repertório, ele coprotagoniza ainda praticamente todos os solos.

Em “Somethin’...” estão algumas das maiores preciosidades dos estilos cool e hard bop, além de antecipar com clareza a elaboração harmônica do jazz modal, aperfeiçoada por Miles em “Kind...”. A estonteante versão de "Autumn Leaves" é o melhor exemplo disso. Perfeita sintonia dos sopros no chorus; bateria de Blakey criativa e variante; insinuante contrabaixo de Sam Jones; e o piano de Hank vivo e sonoro. É ele quem lança os acordes iniciais da canção. Isso, só para começar, pois a música avança mais um pouco e a primeira sessão de improvisos traz um dos mais inspirados solos de Miles de toda sua carreira. Que capricho! Assertivo e poético como um Louis Armstrong. O band leader Adderley, entretanto, não sucumbe, e emenda sua primeira participação com o lirismo que lhe é característico num extenso solo da mais alta sensibilidade. A bola volta para Miles, que retoma o toque pronunciado e cool. Mas não para finalizar, contudo. Hank também solta pérolas sobre as teclas, num solo de profunda elegância, que antecede um final falso. Parece que a faixa se encaminha para a conclusão, quando, sobre a base do chorus, Hank e Miles tornam a improvisar, criando aquele efeito do jazz modal de solos sobre uma base modulada. Um prenúncio do que Miles desenvolveria junto a outro pianista, Bill Evans, um ano dali. Tudo isso faz de "Autumn Leaves" um número histórico.

Outro standart do cancioneiro norte-americano, a clássica "Love for Sale", de Porter, também ganha feições muito próprias nas mãos da banda. A começar pelo piano, que novamente dá a largada, mas, aqui, diferentemente do arrojo da primeira, lírico e romântico. A banda entra e Blakey é quem determina a virada para um jazz bem blues marcado nas vassourinhas na caixa e intercalado por alegres incursões do piano. Miles, mais uma vez o centro, sustenta todos os lances de chorus, fazendo as pontes e “knees” previstos no arranjo. Porém, agora é de Adderley que saem os improvisos. Vigoroso, rico, blues. Hard bop na essência.

A faixa-título, um blues suingado, denota a preferência de seu autor, Miles, que, não por acaso, comanda-a do início ao fim. Primeiro, no solo, inteligente em sua economia, mas altamente significativo naquilo que expressa. Somente por volta de quase 3 minutos que Adderley aparece. E para fazer bonito com seu sax exuberante, clara tradição que liga Parker, Louis Jordan e Benny Carter. Interessante notar a sintonia do grupo: ali por 4 minutos, percebendo a intensidade do approach do saxofonista, Blakey acelera o ritmo, para logo desfazê-lo e voltar ao compasso de antes, tudo desenhado pelo baixo escalonado de Sam. A segunda metade de “Somethin’...” traz um bate-bola entre Miles e Adderley, no mínimo, memorável.

Noutra abertamente bluesy, "One for Daddy-O”, esta, mais sensual, evidencia-se de largada o viçoso jazz de Adderley. Impressionantes modulações be bop são extraídas do saxofone. Miles responde, fazendo aquilo que sabe com maestria: solar. Adderley, admirado com a expressividade do colega e mestre, disse certa vez sobre Miles: “Um solo reflete a maneira como ele pensa a composição, e o solo passa a ser a coisa principal”. Hank também dá sua contribuição antes de Adderley e Miles improvisarem novamente. Ao final, ouve-se Miles perguntando ao produtor Alfred Lion: "Era isso que você queria, Alfred?". Só podia ser.

A balada "Dancing in the Dark" traz um clima ainda mais sensual: escovinhas arrastando na caixa, solo comovido do sax, piano marcando delicadamente o compasso e o baixo quase desmaiando. A única em que apenas Adderley protagoniza é justamente a que, acertadamente, fecha o disco. Assim, independente de “Somethin’...” ter a cara de um disco dele ou de Miles, o fato é que se trata de um dos mais brilhantes da história do jazz, reconhecido pela uDiscoverMusic como o melhor álbum de todos os tempos da Blue Note, um dos 30 essenciais do jazz dos anos 50 pela JazzWise Magazine e um dos 15 recomendados pelo site AllAboutJazz em toda discografia jazz. Não é para menos, uma vez que a aura e a sofisticação que arrebatariam o mundo da música em “Kind...” já estavam lançadas aqui por Cannonball, que, com um tiro de canhão, fez o arremesso no ponto certo. Depois, foi só rolar a bola pra dentro.

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O relançamento em CD inclui a faixa bônus "Bangoon" ou "Allison's Uncle", este último, o título original dado pelo fato de a sessão de gravação ter sido feita logo após a esposa do irmão de Adderley (Nat) ter dado à luz à sua filha, Allison.

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FAIXAS
1. "Autumn Leaves" (Joseph Kosma/Johnny Mercer/Jacques Prévert) – 11:01
2. "Love for Sale" (Cole Porter) – 7:06
3. "Somethin' Else" (Miles Davis) – 8:15
4. "One for Daddy-O" (Nat Adderley/Samuel Jones) – 8:26
5. "Dancing in the Dark" (Howard Dietz/Arthur Schwartz) – 4:07
6. "Bangoon" ("Alison's Uncle") (Hank Jones) – 5:05*
*Presente na edição em CD

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OUÇA O DISCO

Daniel Rodrigues

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Hiromi – Jazz All Nights 2016 - Teatro do Bourbon Country – Porto Alegre/RS (29/09/2016)



A virtuose Hiromi, em um show espetacular em Porto Alegre.
(foto: divulgação/Teatro Bourbon Country)
Foi um show espetacular o da pianista japonesa Hiromi no Teatro do Bourbon Country,. Cercada de expectativa, pois é considerada uma virtuose no seu instrumento, Hiromi não deixou por menos. Ela começou a apresentação, que integra a programação Jazz All Nights 2016, fazendo um longo passeio pelas sonoridades do ragtime e do boogie-woogie até chegar ao tema "I Got Rhythm", dos irmãos Gershwin, construindo e desconstruindo a canção ao bel prazer de sua técnica apurada.
Alguém poderia imaginar que Hiromi jogaria pra torcida, fazendo pirotecnias pianísticas bem ao gosto do leigo. Não foi o que aconteceu! A japonesa passeia por inúmeros estilos e tem um approach diferenciado para cada música. A faixa-título do disco “Place To Be” tem todo o clima de lirismo apropriado de Keith Jarrett, Brad Mehldau e, em alguns momentos, chega a lembrar Bill Evans.
Outra influência no trabalho é de Chick Corea, com quem gravou um CD de duo de pianos. O interessante é que, mesmo com todas estas influências, o toque pianístico de Hiromi é totalmente pessoal e intransferível.

Esforçando-se para falar em português algumas frases, a pianista demonstrou também uma total empatia com o público. O concerto encerrou com a suíte em três movimentos "Viva Vegas" (também do álbum “Place To Be”) e que, em sua terceira parte, "The Gambler", permite à pianista imitar os sons de um cassino, com seu piano transformado em máquinas caça-níqueis e roletas. Como se não bastasse, Hiromi voltou ao palco no bis para interpretar uma peça que não estaria deslocada em qualquer disco mais recente de Keith Jarrett. Uma noite luminosa de música onde a plateia foi brindada com uma overdose de notas boas!



terça-feira, 16 de setembro de 2014

Herbie Hancock - "Empyrean Isles" (1964)

 



Hancock estreita as fronteiras entre o hard bop, encontrando brilhantemente um sugestivo equilíbrio entre o bop tradicional, 

injetando-lhe grooves do soul,

e experimental, jazz pós-modal.” 

Stephen Thomas Erlewine,

crítico musical e biógrafo




O jazz já era o maior gênero musical norte-americano desde os anos 20, mas é inegável que as décadas de 50 e 60 foram memoráveis para sua história. A cada ano, vários artistas – muitos em seu auge; alguns, iniciando; outros, veteranos em plena forma – lançavam um ou mais álbuns impecáveis e inovadores, considerados fundamentais até hoje, fosse pela Impulse!, Blue Note, ECM, Atlantic, Columbia, Verve e outros selos. Destes, a passagem de 1963 para 1964 talvez seja a que reúna o crème de la creme pós-Segunda Guerra. Provavelmente, iguale-se apenas ao revolucionário ano de 1959, que presenteou o mundo com as inovações modais de "Kind of Blue", do Miles Davis, com o libelo free jazz de “The Shape of Jazz to Come”, do Ornette Coleman, e o petardo hard-bop “Giant Steps”, do John Coltrane. Se nem tanto em transformação do estilo, o quinto ano da década de 60 não fica para trás em qualidade e importância. Gravaram-se, durante seus 365 dias, por exemplo, joias como "Night Dreamer", do Wayne Shorter, "Matador", do Grant Green” (ambos já resenhados aqui nos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS), “Out to Lunch”, do Eric Dolphy, e “Witches and Devils”, do Albert Ayler. Todos completando expressivos 50 anos em 2014.

Um dos mais felizes desses cinquentões foi registrado a 17 dias do mês de junho daquele fatídico ano para o jazz. Foi quando, pela Blue Note, um dos maiores mestres da música moderna entrou nos estúdios Van Gelder, em New Jersey, com um timaço que tinha Freddie Hubbard, no trompete, corneta e flugelhorn, Ron Carter, no baixo, e Tony Williams, na bateria. Aquele dia marcaria a sessão de gravação de mais uma obra-prima do jazz: “Empyrean Isles”, do pianista, compositor e arranjador Herbie Hancock. Um dos mais versáteis, influentes, celebrados e até controversos ícones da música mundial, Hancock, aos 64 anos de vida e mais de 50 de carreira, já foi do be-bop ao break, passando pelo afro-jazz, fusion, funk, modal, clássico e outros gêneros, seja pilotando o piano ou o sintetizador. E sempre com a maior integridade, sem perder seu fraseado característico e a complexidade harmônica inspirada em músicos de diversas vertentes como Bill EvansMiles DavisJames BrownGeorge GershwinTom Jobim e Sergei Rachmaninoff. Como seus mestres, serve de referência não só para a geração do jazz que lhe sucedera mas, igualmente, a músicos de outros estilos como Joni Mitchell, Jeff BeckStevie Wonder, Brian Jackson, Dom Salvador, Ike White, Marcos Valle, Public Enemy, entre centenas de outros.

Quinto disco solo do músico, “Empyrean Isles” é o exemplo máximo do hard-bop hancockiano e cuja influência e profusão através dos tempos é das mais fortes de sua trajetória ainda em plena atividade. A começar por dois monumentos do jazz moderno: "One Finger Snap" e "Oliloqui Valley". A primeira, ritmada e pulsante, começa com Hubbard arrebentando na corneta sobre uma base swingada de Williams, que, com as baquetas, conjuga com equilíbrio caixa, chipô e prato de ataque. Mas, como o próprio título sugere, a preciosidade está nos dedos de Hancock. Como diria Ed Motta, “a mão esquerda mais inteligente do mundo”. Um show de agilidade e engenhosidade de improviso. La no fim, quando se pensa que tocaram o chorus derradeiro, Tony Williams ainda apresenta um arrasador solo para, daí sim, desfecharem. Uau!

Já "Oliloqui...” quem começa incrivelmente é Carter, com seu toque trasteado inconfundível. Mais cadenciada e bluesy, nesta é o pianista quem inicia os trabalhos de improvisação, novamente (e como sempre!) com a mais alta qualidade que se pode esperar. Um fraseado limpo, cristalino, soul mas erudito ao mesmo tempo. Hubbard, por sua vez, também não deixa por menos, com um solo de emoção crescente que concilia lirismo e agilidade. O mestre Carter, que havia iniciado tão marcantemente a faixa com sua assinatura sonora, tem a chance de desenvolvê-la ainda mais. É tão bonito e impactante que o restante da banda para que ele toque, voltando, em seguida, todo o conjunto ao riff inicial. Mais um solo de trompete, atilado e curto, para terminar o número em desce-som.

E o que dizer da maravilhosa "Cantoloup Island"? Um colosso da música do século XX. Que base do piano, que harmonia, que groove, que chorus! Os quatro parecem saber tocar a melodia desde crianças tamanha a naturalidade do arranjo, que se resolve entre o quarteto intuitivamente, sabendo com exatidão a hora de cada um entrar, a precisão da cadência, o ataque ou a supressão certa em cada solo. No chorus, repetido a cada estampido seco de Williams na caixa, como um comando, é de uma beleza indecifrável a delicadeza do quase sugestivo último acorde ao final de cada frase, pronunciado propositadamente fraco, como uma respiração, como um suspiro que o ouvido já sabe como será – a adora confirmar o que já sabia depois que o escuta. A sensação que se tem em "Cantoloupe ..." é rara em música. Como Dear Prudence, dos Beatles, seu riff é tão natural e sugestivo que é como se sempre estivesse ali, no ar; só nós que, seres limitados, não o ouvimos. É preciso esses gênios mal acionem as moléculas para que, atritadas, gerem o som e percebamos o óbvio. Longe da conjectura matemática do serialismo dodecafônico, intricada e lógica, a previsibilidade delas é sentida no coração.

Mas mais do que o conhecido riff funky (muito bem “chupado” pelo grupo Us3 em sua “Cataloop”, em 1993, porém inevitavelmente inferior), Hubbard e Hancock desenvolvem solos que experimentam os limites do hard-bop. Hubbard, logo após o primeiro chorus, sobe um tom e entra rasgando, guinada inteligentemente acompanhada por toda a banda no mesmo instante. Um dos solos mais clássicos do cancioneiro jazz. Em seguida, cabe ao próprio Hancock, criador da obra, imprimir-lhe uma carga descomunal de groove como até então não se vira no jazz. Era James Brown materializando-se na “simplicidade complexa” do jazz.

Para fechar, “The Egg”, em extensos mas nem de longe monótonos 14 minutos, um exercício minimalista brilhante e desafiador. Primeiro, pela base de piano repetitiva em um esquisito tempo 4 + 3. Junto a isso, a bateria de Williams, não menos criativa, mantém o compasso em curtos rufares. Por fim, claro, as improvisações individuais de cada um: prolongadas, em que cada músico usa da inventividade de forma livre, namorando com o avant-garde que Coltrane, Ayler e Don Cherry desenvolveriam a partir de então. O diálogo com a vanguarda já se sente quando Carter surpreende e saca um arco para fazer de seu baixo uma espécie de cello, tangendo as cordas ao invés de dedilhá-las. Nisso, Hancock faz a música ganhar outras dimensões, passeando pelo free jazz, retornando ao cool dos anos 50, mas, mais do que isso, remetendo aos eruditos contemporâneos em lances de pura atonalidade. Quanta musicalidade! Em “The Egg”, Hancock antecipa o jazz fusion que ele mesmo ajudaria a criar anos depois. O fim da faixa, que também encerra o disco, é tão arrojado quanto sua abertura, como se um piano tivesse quebrado e repetisse somente e justo aqueles acordes.

Um disco memorável que, afora a data comemorativa, merece ser reouvido e revisto a qualquer época, tamanha sua qualidade e importância. Junto com outro trabalho definitivo do soul jazz, “The Sidewinder”, do trompetista Lee Morgan (do mesmo ano!), “Empyrean Isles”, com seus riffs e levadas funk somados à sua engenhosidade harmônica, inspiraram toda a geração posterior de jazzistas (Chick CoreaVince Guaraldi, Hubert Laws, irmãos Marsalis) e não-jazzistas, como a Blacksplotation dos anos 70, o pop dos anos 80 e músicos de todas as partes do planeta até hoje que chega a ser difícil até dimensionar. E essa força perdura desde aquele longínquo 1964. A fase era tão fértil que, pouco menos de um ano depois, Hancock comandaria a mesma banda no também espetacular “Maiden Voyage”, avançando ainda mais alguns passos em estética e forma. Mas os 50 anos desta outra obra-prima serão completos somente ano que vem...


Herbie Hancock - "Cantaloupe Island"


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FAIXAS:
  1. "One Finger Snap" – 7:20
  2. "Oliloqui Valley" – 8:28
  3. "Cantaloupe Island" – 5:32
  4. "The Egg" – 14:00
todas as faixas compostas por Herbie Hancock

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OUÇA O DISCO









sexta-feira, 26 de abril de 2013

Ahmad Jamal Trio - "The Awakening" (1970)



Acima, a capa original de 1970 e
abaixo a capa de edições posteriores.



“Ele me impressionou com
seu conceito de espaço,
sua leveza de toque,
seu comedimento.”

Miles Davis,

sobre sua primeira audição de Ahmad Jamal, em 1953




Eu era um jovem da era pré-Google, sem dinheiro para comprar livros caros (neste caso, seriam dos caros) e sem muita orientação do que procurar para conhecer mais sobre um estilo de música que sempre me encantava quando ouvia: o jazz. Já conhecia "Kind of Blue" do Miles Davis alguma coisa de Wynton Marsalis e amava desde criança as trilhas do seriado Snoopy, que descobri serem de um tal de Vince Guaraldi vendo os créditos do desenho. Fora isso, mais nada. Assim, em minhas idas ao Centro de Porto Alegre para vasculhar e comprar discos (mais vasculhar do que comprar), entrava nas lojas e percorria com os dedos e os olhos a prateleira de vinis que dizia “Jazz” (embora já tivesse conhecimento suficiente para saber que a maioria das lojas não sabia classificar essa seção, por isso não era incomum achar um Richard Clayderman ou um Toto). Então que, numa dessas vezes, numa Multisom que até já fechou, encontrei um LP que tinha a maior cara de ser bom (e de jazz de verdade): “The Awakening”, de Ahmad Jamal Trio. Não só era o mais fino jazz como era, sim, muito bom, excelente.

Uma sonoridade refinada e viva exala do piano altamente técnico de Jamal, de uma identidade e emoção absurdas. É o que se vê na fenomenal faixa-título e de abertura, um dos melhores temas de jazz até hoje pra mim. Inicia com acordes soltos, que supõem um esboço da melodia, dando aos poucos forma a um jazz embalado e de clima suspenso com um toque erudito, seja pelos encadeamentos de acordes farfalhantes de Jamal, seja no padrão modal variante em si mesmo, mas sem suplantar a tônica. Intercala ataques ferozes até o mais suave dedilhar, ora rápido e miúdo nas teclas brancas agudas, ora altivo e imponente nas notas graves.

A aura clássica se intensifica na sequência, com outra obra-prima: “I Love Music”, uma peça lírica digna de Chopin e Rachmaninoff. Mas, como nos compositores românticos, este “amor” esconde mais mistérios do que se possa imaginar. Melancólica e densa, com um toque hispânico, abre com o piano em solo, num som cheio e ondulante. O baixo de Jamil Nasser e a bateria de Frank Gant entram depois de quase três minutos num complemento que envereda a música para uma amplitude sensorial ainda maior, mas mesmo assim as atenções se mantêm no estilo pronunciado do teclado de Jamal, desenhando uma harmonia rebuscada que alude, ao mesmo tempo, a um concerto beethoviano e às danças espanholas de Manuel De Falla.

Elevando o clima num jazz de compasso ligeiro e ritmo suingado, Jamal exercita variações de estruturas sobre uma base blues constante do baixo em “Patterns”, não menos magnífica. “Dolphin Dance” – delicada e etérea –, “You’re My Everithing” – ressonante, ora fugidia, ora acentuada – e “Stolen Moment” – apaixonante em sua construção em escalas – dão passagem para um desfecho forte e elegante com “Wave”, na mais impressionista versão do clássico de Tom Jobim  Nesta, o pianista norte-americano se vale de um expediente pelo qual foi reconhecido desde seu surgimento nos clubes de jazz de Chicago, nos anos 50: o de simplificar a estrutura musical de standarts, permitindo-se dar novas cores ao tema.

Vim a saber, à medida em que fui entrando mais no mundo do jazz, que este disco, que comprei numa louvável reedição de 1986 da WEA, havia sido lançado originalmente 16 anos antes. Além disso, soube que este pianista, das poucas lendas do jazz ainda vivas, atualmente com 73 anos, é simplesmente uma das maiores influências de Miles Davis, Red Garland, Bill Evans e toda uma geração de jazzistas, pianistas ou não. O que sei é que, adquirido às escuras, “The Awakening” é até hoje um dos preferidos da minha discoteca, que vira a mexe volta ao toca-discos com o mesmo prazer da primeira audição. O prazer de uma descoberta.
 
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FAIXAS:
  1. "The Awakening" - 6:19
  2. "I Love Music" (Emil Boyd, Hale Smith) - 7:19
  3. "Patterns" - 6:19
  4. "Dolphin Dance" (Herbie Hancock) - 5:05
  5. "You're My Everything" (Harry Warren, Joe Young, Mort Dixon) - 4:40
  6. "Stolen Moments" (Oliver Nelson) - 6:27
  7. "Wave" (Antonio Carlos Jobim) - 4:25
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segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Ravi Coltrane – 3º Canoas Jazz Festival – Parque Getúlio Vargas - Canoas/RS (24/11/2013)



foto: Paulo Moreira
Cheguei atrasado ao terceiro dia do Canoas Jazz Festival e só vi o final do show do octeto de Luizinho Santos. Mas o que vi só me confirmou o que eu já sabia: que iria ser uma excelente apresentação. Vi todas as outras vezes em que o octeto se apresentou e eles nunca fizeram nada menos do que um concerto espetacular. Peço desculpas ao Luiz e à Bethy por esta falta grave, porém, involuntária da minha parte. Vi inteiro, porém, o show de Alegre Correa. Este guitarrista de Passo Fundo morou fora do Brasil durante muito tempo e agora está de volta à Floripa. No palco com ele, um quinteto, com destaque absoluto para Uilian Pimenta, um pianista que vai dar muito o que falar. No repertório, canções compostas pelo guitarrista que abrem espaço para todos os integrantes da banda solarem. O problema, em minha opinião, é o próprio Alegre que insistiu em fazer vocalises acompanhando seus solos de guitarra em TODAS as músicas, deixando-as umas iguais às outras. Além disso, o som não favoreceu, deixando o líder da banda com um volume abaixo do que se esperava. A aparição de Jorginho do Trompete na última música ajudou a levantar o astral, pois tocou um solo muito bom no flugelhorn.
A coisa começou a esquentar quando o baterista Kiko Freitas subiu ao palco com seu trio, integrado pelo mestre Paulo Russo no baixo acústico - uma verdadeira instituição musical do Brasil - e o não menos exímio pianista gaúcho radicado no Rio, Rafael Vernet. Começando com "Beautiful Love", do repertório do Bill Evans Trio, logo se viu que a magia iria se instalar na próxima hora e não deixaria a cena. De "Prenda Minha", tocada no baixo de Russo, até "Piano na Mangueira", tivemos um concerto memorável. Uma aula de musicalidade e de empatia entre os três integrantes. Kiko até exagerou, iniciando uma versão de "Someday My Prince Will Come" com um solo de bombo legüero! Agora, todos estão esperando por um registro do trabalho deste grupo.
Bem, pra finalizar o "filho do homem" merece um capítulo à parte. Acompanho o trabalho de Ravi Coltrane desde 2000, quando o vi tocar no Free Jazz Festival. Sempre o considerei um bom saxofonista, que conseguia fugir da sombra acachapante de seu pai, um dos pilares do jazz moderno. Mas confesso que não estava preparado para revê-lo com a maturidade e a desenvoltura com que se apresentou em Canoas. Acompanhado por um quarteto formado por excelentes músicos (David Virelles, ao piano, Hans Glawichnig, no baixo acústico, e o impressionante Johnathan Blake na bateria), Ravi desfilou sua técnica exuberante, tanto no sax tenor quanto no soprano.

Mas parecia que faltava alguma coisa. De repente, foi como se o espírito do pai se apossasse de seu filho. Respondendo a este estímulo, reinterpretou "For Turiya", composta por Charlie Haden para Alice Coltrane, mãe de Ravi e uma figura importantíssima na sua escolha pela música, quando a dúvida ainda o acometia. E para mostrar que está em paz com o legado de seu pai, Ravi e seu grupo fizeram no bis uma versão monumental da clássica "Giant Steps", canção definidora do trabalho solo de Trane no início da década de 60. O público saiu de Canoas flutuando. E esperando a confirmação da quarta edição do festival.
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O que me mobilizou a ir ao Canoas Jazz Festival especialmente foi para ver Ravi Coltrane. Embora seja grande fã de jazz, poucas atrações me motivariam a ir a um ponto fora de Porto Alegre tão contramão. Mas desde que soube, através do Paulo Moreira, que Ravi Coltrane viria, não pensei duas vezes. Valia a pena.
Isso tudo porque Ravi é nada mais, nada menos do que pode se chamar de, como Paulo bem disse aqui, “o filho do homem”, e este homem se chama John Coltrane. Não à toa as quase invariáveis referências que faço a ele em meus textos musicais aqui no ClyBlog, pois o saxofonista é, para mim, o maior jazzista e um dos maiores músicos que já baixaram por estas bandas a qual chamamos de planeta Terra. Um mito na correta acepção da palavra. Eu e Leocádia Costa, que (não podia ser diferente) estava lá comigo, nutre como eu uma profunda admiração por sua obra, com a qual mantemos uma relação quase religiosa. Ver seu filho, o também jazzista, também saxofonista, também band leader (e muito parecido fisicamente com o pai) era uma ocasião especial.
Confesso que, por conhecer pouco do trabalho de Ravi, mesmo tendo ciência de que não são a mesma pessoa Ravi e John, fui com certo medo de me frustrar não sei exatamente com o quê: se em ser algo que não me tocasse tanto; que me desse a impressão de ser ele apenas uma farsa com um sobrenome que garante o credibilidade; que fosse tecnicamente perfeito, mas seco de emoção. Sei lá.
Mas, depois do excelente show de Kiko Freitas Trio, os temores foram embora na primeira execução de Ravi e seu trio. Irreparável. Ravi, como os bons virtuoses do jazz, é o próprio equilíbrio entre técnica e coração. O que se ouve em mestres do sax tenor como Dexter Gordon, Wayne Shorter, Coleman Hawkins, Sonny Rollins ou Joe Henderson vê-se claramente nele. Como, de forma exímia, foi seu pai, incomparável tanto pelo motivo óbvio, o de ser outra pessoa, quanto pelo de ser o maior ícone do jazz mundial. Ravi, no entanto, alinha-se a estes mestres que inclui John, dando uma bela continuidade e evolução ao que todos já construíram.
Show lindo e tocante, principalmente nas bem destacadas por Paulo, "For Turiya", tema enlevado e elevado cujo tema é, por si só, cheio de desvelos e assimetrias. Agora imaginem o improviso de Ravi? Espetacular, de tirar do chão. Extasiante. Aliás, este último é o termo que pode ser empregado para o bis do show, quando Ravi e sua maravilhosa banda retornaram para executar uma arrepiante “Giant Steps”. Num compasso mais acelerado e até mais pulsante que a clássica versão de 1959, não só parecia que John Coltrane havia baixado ali, em plena Canoas, como que Wynton Kelly assumira o piano, Jimmy Cobb as baquetas e Paul Chambers o baixo. Ao final, foi interessante ver o público quase sem acreditar no que presenciou demorando em sair da frente do palco mesmo depois de os músicos se despedirem totalmente.
Realmente essa sensação de deleite se manteve, ainda mais para mim e Leocádia, que compartilha comigo a admiração pelos Coltrane pai e, agora, filho. É das coisas mais bonitas ver esse tipo de laço que só a consanguinidade e a relação pai-filho suportam, ainda mais quando esta se expressa em uma arte tão elevada e grandiosa.