Detalhe da escultura em metal de Weissmann brilhando sob o sol
Não é incomum fazermos Leocádia e eu turismo dentro de nossa própria cidade. Não raro, deparamo-nos com espaços e coisas interessantes em nossas itinerâncias pelas ruas de Porto Alegre. Foi assim quando visitamos, pela primeira vez, a Galeria Ecarta, em 2022, e vimos a bela exposição de Maria Tomaselli. Ou também quando, anos atrás, meio que por acaso, fomos parar na galeria de arte do Paço Municipal, no antigo prédio da Prefeitura de Porto Alegre, e pudemos usufruir do rico acervo público.
Pois desta vez posso dizer nos superamos. Aproveitando um final de manhã de tempo agradável e ensolarado (e não o bafo insuportável das últimas semanas), fomos dar uma caminhada pelo parque Marinha do Brasil, que fica a metros de nossa casa, quase que ao final de nossa rua, a qual somente precisamos descer na direção ao Guaíba. E eis que esse simples andar a pé nos fez prestar atenção nas esculturas a céu aberto presentes no parque, pasmem: desde 1997! Ou seja, de um ano depois da realização da primeira e histórica edição da Bienal do Mercosul – a qual chegou, aliás, já à 13ª, ocorrida ano passado. Foi então que, para espanto de motoristas e passantes, percorremos o corredor em que as obras estão expostas, desde a esquina da Av. Ipiranga até a altura de onde acessamos o parque. Afinal, ninguém faz isso.
São 11 obras de grande proporção daquele que é chamado Jardim das Esculturas, o qual passou por processo de restauro ano passado pelas Secretaria de Cultura de Porto Alegre e o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram). Ou seja: estão superbonitas e conservadas dentro do possível para uma instalação exposta ao tempo. Por serem trabalhos ligados à Bienal, reúne não somente artistas brasileiros, como Amílcar de Castro e Franz Weissmann, mas também de países vizinhos, como o argentino Julio Pérez Sans e a boliviana Francine Secretan. Ou seja, uma riqueza que está ligada à raiz do Rio Grande do Sul e de uma Porto Alegre, que já foi muito mais cosmopolita.
Além do prazer da caminhada na natureza, apreciar este legado de mais de 25 anos em plena esquina de casa é para poucos. Coisa de turista. Quem passou e nos viu deve ter pensado: "coitados, eles não devem ter arte de rua na cidade deles". E olha que temos. Temos e as aproveitamos.
**************
"Mangrullos", do argentino Julio Pérez Sans, escultura em ferro pintado (entre 6 e 9 m de altura)
"Amuleto para Recebir El Canto de las Flores", da boliviana Francine Secretan (aço corten, 9m de altura)
O craquíssimo mineiro Amílcar de Castro (obra "sem título" em aço)
"Estrutura linear" de outro mestre: o austro-brasileiro Franz Weissmann
"Cubocor", do paraense Aluísio Carvão, já danificada pelos pichadores num dos lados
Do boliviano Ted Carrasco, a metalingúística "Cono Sur", em aço inox e ferro
"Rayo", do argentino Hernán Dompé, escultura em aço corten soldado
Leocádia ao lado da obra "Escultura em Flor", do célebre artista gaúcho Xico Stockinger, a quem ela conheceu
A "flor" de Stockinger (ferro soldado pintado) tocando o céu de Porto Alegre
Obra desgarrada das outras, sem referência ao título ou autor (madeira, metal e granito)
"Escultura em Aço", do argentino Enio Iommi
O azul do céu recortado pelo traço do artista em inox polido
texto: Daniel Rodrigues
fotos: Leocádia Costa, Daniel Rodrigues e divulgação
O talentoso Chico Science no palco: única vinda a Porto Alegre
Os anos 1990 foi uma década encantada para Porto Alegre. Várias capitais sentiam os primeiros sabores da democracia após mais de 20 anos de ditadura, e a minha cidade aproveitou bem isso. Um ainda embrionário Partido dos Trabalhadores conquistava sua primeira prefeitura no Brasil em 1989 através Olívio Dutra, cujo revolucionário mandato estenderia seus efeitos benéficos nas administrações de Tarso Genro (1993 a 1997) e Raul Pont (1997 a 2001). Os ares de modernidade e de administração pública pensada para o cidadão diferia de tudo o que estávamos acostumados em política (mal-acostumados, na verdade). Não se administrava para o povo e nem com o povo até então, mas a prefeitura do PT trazia, entre outras novidades, o Orçamento Participativo, o Fórum Social Mundial, a Bienal do Mercosul e diversas outras atividades que, não raro, privilegiavam a cultura. Foi assim que assisti, entre outras atrações, shows antológicos de Gilberto Gil, Paulinho da Viola e Jorge Ben Jor em praça pública. E de graça.
Contando assim hoje, em que o país vem de anos de crises econômica, política e social e massacre à cultura, parece até mentira que se teve coisas assim numa Porto Alegre não muito distante. Tanto é que para alguns é difícil acreditar quando digo que assisti, em 1994, a Chico Science & Nação Zumbi com a formação original. Sim, com Chico à frente e o como ele falecido Gira. Em plena Usina do Gasômetro, em praça pública, e de graça. E isso quando a banda ainda não era ainda idolatrada mundo afora. Os não muitos dos presentes como eu que estiveram na apresentação daquele sábado à noite certamente conheciam a banda muito por conta da Rádio Ipanema, que desde cedo identificava o mangue beat como a nova revolução da música pop brasileira.
A Nação, que cedo ganhou este apelido, já era reconhecida no centro do país e, principalmente, em sua Recife, onde reinavam na cena musical de então, a qual contava com vários outros talentos, como os coirmãos mundo livre s/a, a Devotos do Ódio, a Querosene Jacaré, a Sheik Tosado, a Mestre Ambrósio, entre outros. Mas no Rio Grande do Sul as coisas funcionavam ainda sem a velocidade que a internet ainda passaria a impor, e as informações demoravam ainda para chegar por estes pagos. O que talvez explique o porquê do público fiel mas acanhado que presenciou aquele show histórico, que registrava o primeiro disco da banda, “Da Lama ao Caos”, lançado aquele ano e que tinha produção do craque Liminha. Era o começo da carreira deles, e Porto Alegre era uma das primeiras cidades a presenciar aquele som revolucionário que mesclava rock, funk, rap, reggae, eletrônica e afro beat com maracatu, embolada, samba de roda e baião. Tudo com muita psicodelia e originalidade.
Antes da entrada dos pernambucanos no palco, teve pelo menos uma apresentação que me lembro com vivacidade: a célebre De Falla. Show bem rock ‘n’ roll com cara de anos 50/60, quando Edu K já havia passado pela fase funk-rock de “Kingzobullshitbackinfulleffect92”. Showzaço, aliás. Mas estava lá para ver mesmo a CS&NZ. A iniciante banda trouxe no repertório basicamente as faixas do seu disco de estreia, o que foi suficiente para uma apresentação memorável. Praticamente na sequência do álbum, começaram com "Monólogo ao Pé do Ouvido", em que os três tambores de maracatu, Gira, Bola 8 e o ainda percussionista Jorge Du Peixe, postavam-se à frente do palco enfileirados marcando o ritmo forte. Chico entra com o magistral texto-manifesto: Modernizar o passado é uma evolução musical Cadê as notas que estavam aqui? Não preciso delas, basta deixar tudo soando bem aos ouvidos O medo da origem é o mal O homem coletivo sente a necessidade de mudar O orgulho, a arrogância, a glória enchem a imaginação de domínio São demônios os que destroem o poder bravio da humanidade Viiva Zapata! Viva Sandino! Viva Zumbi! Antônio Conselheiro! Todos os Panteras Negras! Lampião, sua imagem e semelhança Eu tenho certeza: eles também cantaram um dia!
Aí, como no disco, que eu já tinha e ouvia direto, entra "Banditismo por Uma Questão de Classe", a direta crítica social que fez a galera enlouquecer com as guitarreiras de Lúcio Maia, que soavam pela primeira na atmosfera de Porto Alegre, cidade a qual a banda voltaria outras vezes, sendo nenhuma mais com Chico, que morreria precocemente num acidente de carro, em fevereiro de 1997.
Seguiram-se "Rios, Pontes & Overdrives" e o sucesso “A Cidade”, que incendiou o público, assim como “A Praieira”, a qual tocava direto na Ipanema e era já adorada pelos fãs. O peso do heavy-maracatu “Da Lama ao Caos” dava a certeza àqueles gatos pingados indies como eu que estávamos diante da maior revolução do rock desde o grunge. Os batuques nordestinos de alfaia, que carregam toda uma cultura regional dos caboclos-de-lança e dos ritos folclóricos, misturavam-se, como jamais se havia ousado (ou pensado) com o rock pesado e os samplers herdados do rap. E o jeito de cantar único de Chico, um verdadeiro mangue boy com “Pernambuco embaixo dos pés” e a “mente na imensidão” - como diz a letra de "Mateus Enter", do disco seguinte deles, "Afrociberdelia".
Na sequência, entre outras, tocam a impressionante instrumental “Lixo do Mangue”, que ganharia um registro ao vivo no póstumo a Chico “CZNZ”, de 1998, dando a ideia do que foi ouvi-la sendo tocada naquela ocasião. Também, "Computadores Fazem Arte", de autoria do parceiro de mangue beat Fred Zero Quatro, foram outras que movimentaram o público, formado essencialmente de fãs daquela que foi a grande banda da geração 90 – o que, aliás, já identificávamos sem que a mídia precisasse nos dizer.
Após a psicodélica “Coco Dub”, última faixa do disco que dava origem ao show, Chico Science e seus caranguejos musicais tocariam o que no bis? Novamente, “A Cidade”! Bem coisa de grupo iniciante ainda sem repertório além do próprio primeiro disco. Mas foi muito legal, pois a turma curtiu uma vez que sintonizada com aquele clima de banda ainda “não-profissional”. Eles, visivelmente em casa, pareciam estar num Abril Pro Rock em Recife, pois sabiam que tocavam para uma galera que os curtia. O bis teve ainda uma surpresa: Jorge Du Peixe cantando “Rise”, da Public Image Ltd. Ele, que se tornaria o vocalista da banda após, prenunciava, ali, naquela apresentação despretensiosa mas muito empolgada, o que viria a acontecer na história da banda depois que Chico deixou-a por motivos de força maior.
Haja vista que se trata de um resgate da época pré-internet no Brasil, esses registros são basicamente fruto da minha memória. Buscando em arquivos históricos físicos certamente encontraria, mas seria desnecessariamente trabalhoso para uma singela matéria como esta e até inviável neste momento de pandemia. O que me impressiona, na verdade, é que não se encontre nada sobre esta apresentação em sites e afins, nem na imprensa, nem em blogs, nem em lembranças de possíveis fãs. Nada. Sequer em matérias de veículos locais que registraram, sim, vindas mais recentes da Nação Zumbi à capital. Ou seja: ninguém se prestou, nestes anos todos transcorridos de 1994 para cá, a perguntar aos atuais integrantes sobre a ligação deles com Porto Alegre. Sobre aquele histórico show na capital numa fase romântica da carreira da banda e que marcou a única performance de Chico no Rio Grande do Sul. Se se tivessem dado conta de questionar, bairrista como se é por aqui, certamente estaria escrito em algum lugar.
Talvez, como disse no início do texto, isso seja reflexo da tal depreciação a que a cidade de Porto Alegre vem sofrendo há aproximadamente duas décadas para cá. Não se assistem mais programações artísticas como este show da CS&NZ e outros aos quais citei faz muito tempo em Porto Alegre, seja por falta de grana, iniciativa, capacidade e até bom gosto. Se naquela noite no Gasômetro já não éramos muitos, hoje parece que existimos apenas nas memórias.
Meu receio de não conseguir ver no pouco tempo que tinha as sete
exposições da Bienal do Mercosul foi relativamente afastado. Afinal, dos seis
espaços expositivos, apenas dois deles não visitei. Certo: tratavam-se de dois
importantes: o Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli (MARGS),
principal museu de artes de Porto Alegre, e o Instituto Ling, o qual ainda não
visitei desde que abrira, em 2014, mas que, tanto pelo tema-recorte, “Síntese”,
quanto por sua modernidade arquitetônica e sabida pujança, certamente abrigara
uma fatia qualitativamente interessante da Bienal. Esta, do Santander, a qual
visitei acompanhado de Leocádia, foi a mais bem montada e fiel à proposta, a
“Antropofagia Neobarroca”.
A engenhoca Wesley Duke Lee “O Helicóptero” (1968), composta por
diversas técnicas (pintura, colagem, fotografia, fundição) sobre um caracol
metálico e (embora estático na exposição) giratório abre o salão do Santander
com uma das mais belas e criativas (e instigantes!) peças da Bienal. Mas
haveria mais coisas interessantes ali, sim. Caso de outra instalação
“Anaconda”, do venezuelano Carlos Zerpa, montada com centenas de discos de
vinil presos a si por arames e cadeados formando uma impactante cobra negra,
limite entre a modernidade tecnológica e a ancestralidade de raiz, traduzidos
no tema central daquela exposição. Evocando a antropofagia de Oswald de Andrade e o neobarroco, ideia forjada por artistas latino-americanos a partir dos anos
70 como instrumento de resistência e de autodefinição pós-colonial, “Antropofagia
Neobarroca” buscou da luz à tentativa de emancipação cultural principalmente
nos elementos indígenas, capazes de confrontar simbolicamente os sistemas
europeus de colonização cultural.
Óleo sobre tela impressionante
em dimensões e impacto.
De forma bastante direta e denunciadora, o tema aparece em peças como
os quadros dos mexicanos Daniel Lezama (2004) e José Maria Jara (1889), dois
impactantes óleo sobre tela, o não menos assombroso “A Rébis Mestiça Coroa a
Escadaria dos Mártires Indigentes” (2013), do maranhense Thiago Martins de
Melo, visto que gigantesco (3,60 metros por quase 4 de altura), onde podem se
ver diversas referências à desumanidade e violência das colonizações. Sangue,
muito sangue. Ligia Clark, a quem tudo exposto na Bienal surpreende, haja vista
sua capacidade criativa imensa e sempre pungente, apresenta ali o tropicalista
“Cabeça Coletiva”, de 1975, de materiais mistos. A figura indígena e meio
andrógena do bronze polido “Inca”, do espanhol-brasileiro Fernando Corona, é
outra das belezas vistas. A carioca Beatriz Milhazes, de quem havíamos visto
uma extensa exposição individual no Paço Imperial, no Rio de Janeiro, em 2014,
traz uma interessante acrílica sobre tela. Caso de outra carioca badalada das
artes visuais da atualidade, Adriana Varejão, com o duo “Espiral em Flor” e
“Voluta e Cercadura”.
Acrílica de Röhnelt.
Do admirável paulista Luiz Zerbini, sempre com uma visão diferenciada
entre o pop e o surreal, havia a “Medusa”, que dá a uma acrílica sobre tela um ar de
técnica mais moderna visto o brilho vivo das cores e a textura das formas
obtida. Valem, igualmente, outra das “obras postais” do pernambucano Paulo
Bruscky (da mesma série encontrada no Memorial do Rio Grande do Sul e
Gasômetro), “Xerophagia Atropophago Affectar – Cartas para Oswald de Andrade”,
de 1981; a instigante fotografia do porto-alegrenese Dirnei Prates da série “Júpiter,
Netuno e Plutão” (jato de tinta em papel algodão, 2014), o paulistano Dudi Maia
Rosa (“Sem título”, resina poliéster pigmentada e fibra de vidro, 2014); e as
“Arquiteturas XI e XV”, do pelotense Mário Röhnelt, artista referencial nas
artes gaúchas, de quem também havia duas já vistas por nós na exposição
individual dele, em 2014, no MARGS, ambas em acrílica sobre tela (e com muita cara
de negativo de foto) de 1995.
Havia imagens sacras tanto de artesões/artistas conhecidos quanto
anônimos que também chamaram atenção, mas para quem já visitou os museus de Ouro Preto e Salvador ou presenciou a exposição de arte sacra (“Crux, Crucis,
Crucifixus”, CCBB, 2013), melhor destacar outras coisas. Com esta exposição do
Santander, juntamente às que presenciei acompanhado ou não nos outros espaços
destinados à Bienal do Mercosul, com certeza deu para se ter uma ideia da
mostra em suas virtudes e falhas, tais como as que já me referi anteriormente.
Entretanto, de modo a ressaltar as qualidades e não tornar a apontar os erros,
esta aqui, a última que vi e no derradeiro dia de Bienal, foi provavelmente a
mais bem montada em termos de variedade de obras e síntese (quem sabe, a do
Ling tivesse isso ainda mais, ou essa lhe fosse de certa forma mais uma
repetição da curadoria?).
Até arte de colagem, tal qual eu e meu irmão fazíamos por prazer, nos deparamos. Veja só: nossas colagens que iam para nossas paredes e cadernos escolares nos salões de arte...
"O Helicóptero" de Wesley Duke Lee abrindo o salão.
A impressionante cobra de discos de vinil.
O inferno existe e colonizou a América Latina.
Lígia Clark, sempre criativa.
"Inca" de Fernando Corona.
A carioca Beatriz Milhazes.
Um dos quadros de Adriana Varejão.
A "Medusa" de Zerbini.
Arte postal de Brusky em homenagem a Oswald de Andrade.
Como mencionei no último post
sobre a Bienal, as três exposições que dividiam espaço na Usina do Gasômetro
com a fraca "Marginália da forma", eram ”Olfatória: O Cheiro na Arte”, “A
Poeira e o Mundo dos Objetos” e “Aparatos do Corpo”. Além de trazerem mais
diversidade e obras realmente impactantes. Tiveram maior intercomunicabilidade,
inclusive com aspectos observados no Memorial do Rio Grande do Sul e Santander Cultural. A conexão se dá em grande parte ao substrato da obra enquanto
técnica, fazendo da poeira o barro que acessa o olfato e com o qual o corpo
interage para construir esse mundo artificial. Nesse aspecto, “Marginália da
forma” pelo menos se liga a estas por conta da (pouco expressiva) variabilidade
de técnica, como visto na originalidade de Karin Lambrecht, Brigida Baltar e outros.
Padecendo igualmente das mesmas inconsistências as quais mencionei
anteriormente (muita repetição de um mesmo artista e/ou de séries), somando-se
ainda a de haver muitos artistas gaúchos, as três mostras, entretanto, reuniram
mais diversidade e aquilo que todo visitante de coletivas espera: boas
surpresas. Foi o que tivemos Leocádia e eu ao nos depararmos, na ”Olfatória: O
Cheiro na Arte”, com as bolas iluminadas pendulares, que até cheiro exalavam.
Muito plástico e leve.
Instalação da 10ª Bienal do Mercosul
Ao lado, um Rubens Gerchman, dos artistas visuais que mais admiro:
“Ar”, em metal fundido. Sempre criativo Gerchman. Crítica, a instalação do
colombiano Oswaldo Maciá “Quien limpa a quien” traz, dentro de um suporte de
acrílico transparente um sabonete feito de óleo concentrado de alho disposto em
uma saboneteira Votoriana de cerâmica original. Dá pra imaginar o cheiro que
exala pelo tubo com folículos, né?
Outra de chamar atenção é a tela (1,22 por 1,83 metros) é “Tierra y
Libertad”, de 2013, do mexicano Rúben Ortiz-Torres, o qual fez um link bastante
interessante com o crítico tema do Memorial da América Latina, “Biografia da
Vida Urbana”.. O carioca Waltércio Caldas apresenta a interessante e sintética
“Circunferência com Espelho a 30°” (ferro pintado e espelho), dos anos 70,
década que, pela observação geral, demarcou fundamentalmente toda a Bienal, uma
vez que o mote central (“Mensagens de Uma Nova América”) passa diretamente por
esse período no que se refere à construção de uma consciência artística e
política das artes na América Latina. Ainda, uma bela tela do gaúcho de Britto
Velho (“Sem título”, 1946).
Mas Oticica é Oiticica, não adianta. Com a simplicidade até grosseira –
e, por isso, altamente cáustica – da arte moderna, ele referencia numa só vez a
arte transgressora do alemão Joseph Beuys e a poesia concreto-barroca de
Haroldo de Campos com seu “Bólide Saco 2 Olf ático”, de 1967, feito em plástico,
tubo de borracha e café. Por que digo que Oticica é Oiticica? Com uma peça,
aparentemente banal e quase “não-artística” é capaz de sintetizar
ideologicamente toda a comunicabilidade potencial do recorte em que está
inserido. E olha que estamos falando apenas DESTA mostra. No momento em que se interpõe, com
propriedade e significância semiótica, no limite entre o sublime e o vulgar,
eis a verdadeira arte contemporânea.
A, inacessível ao público, "Tropicália", de Oiticica
Consegui visitar um dos espaços que mais tinha curiosidade da Bienal: a
Usina do Gasômetro. Os compromissos me empurraram para o último final de semana
desta curta Bienal do Mercosul. Motivado pelos recortes temáticos que se
encontravam lá, principalmente “Marginália da Forma” – conceito de entendimento
do Brasil com o qual me identifico ideologicamente –, e talvez até motivado
pela memória emocional que tenho para com o lugar no que se refere ao evento
(é-me marcante a exposição que lá vi do uruguaio Julio Le Parc, na 2ª Bienal),
fui com boa expectativa. No entanto, frustrei-me, principal e justamente com
esta mostra, a qual dividia o espaço com outros três subtemas: ”Olfatória: O
Cheiro na Arte”, “A Poeira e o Mundo dos Objetos” e “Aparatos do Corpo”. Quiçá
pela maior intercomunicabilidade entre três últimos, “Marginália”, que a mim
deveria trazer com fervor o tropicalismo e a diversidade de questões culturais,
sociais e antropológicas que dele suscitam-se, ficou não apenas deslocado
quanto não se justificou na sua capacidade.
A frustração, igualmente, se deve a outro fator, somente mais
perceptível ao se visitar mais espaços da Bienal, que não apenas dois como
tinha ido até então, que são algumas inconsistências. Sabe-se que a realização
do evento teve problemas financeiros e estruturais, o que dificilmente seria diferente
em tempos de crise em que empresariado e governos tendem a achar arte ainda
mais boba e supérflua. Isso certamente ocasionou à curadoria uma dificuldade de
agregar mais nomes representativos, bem como trazer mais obras significativas
de artistas referenciais. Até aí, entende-se. O que se critica é, por exemplo,
as repetições não apenas de artistas (MUITAS obras de Dudi Maia Rosa, por exemplo,
tanto no Memorial, ali e no Santander Cultural, que comentarei noutro post) como, principalmente, de
conceitos. Uma coisa é haver uma sincronia entre os espaços expositivos em que haja
obras que dialoguem aqui e lá. Outra é, como no claro caso de Shirley Paes Leme (não vai aqui nenhuma crítica ao trabalho dela), em que se veem obras da mesma
série e em grande número em mais de um lugar. Aí, é assumir uma pobreza que se
podia resolver selecionando-se ou variando-se mais.
Porém, ressaltando o que teve de legal no Gasômetro, começo, agora
terminada a Bienal, uma retrospectiva. Em “Marginália da Forma”, obviamente,
interessava-me a instalação “Tropicália”, de Hélio Oiticica (1969), ícone da
arte pop brasileira. Fora o fato de conhecê-la, agrega-se a ela outra
frustração: por causa dessa mentalidade expositiva de total não-interação do
público com as obras (o que não é exclusividade de Porto Alegre nem da Bienal),
não é possível se embrenhar na instalação como originalmente pensou o artista.
Como numa cena de crime, fica-se atrás de um cordão de isolamento admirando e
comentando-se de longe aquilo que não se sabe por inteiro. Lembrei-me de uma
grande mostra em que estive no Rio de Janeiro em 2014, a ArteVida (que, a
rigor, valia por esta Bienal, em diversidade e tamanho), em que vi um dos
famosos trapos dos “Parangolés” de Oiticica. Uma criança, corretíssima em sua
mentalidade lúdica, vestiu-a e saiu “usando” a arte. Claro que foi repreendida.
Pena.
Dali também ressalto poucas outras coisas realmente boas. Uma delas, “O
Impossível”, a expressiva escultura em bronze de Maria Martins (1940); “O
Dragão”, da porto-alegrense Karin Lambrecht, cuja técnica vale-se sempre de
materiais orgânicos (neste caso, têmpera e ovo); “Plegabes”, do uruguaio
Osvaldo Salerno (impressão sobre papel dobrado, 1982), inteligente em sua
simplicidade; e a mesmo que evidente série “Fotomódulos” do paranaense Tony
Camargo referenciando à (óbvia) interação corpo-arte dos “Parangolés” de
Oiticica.
Nada espetacular, nada de cair o queixo. Do Gasômetro, as outras três
mostras, que comentarei adiante, apresentaram, ao menos, mais ousadia. Quem
sabe, até mais marginalia.
Detalhe de "Topicália".
Recado dado.
O bronze de "O Impossível".
"O Dragão" de Karen Lambrecht.
"Plegables", impreessão sobre papel dobrado.
Série de Tony Camargo inspirada nos icônicos Parangolés.
Vídeo de Alfredo Jaar, no CCCEEE visto da calçada.
O “pedacinho” do Memorial que faltava, o qual havia comentado na
postagem anterior sobre a Bienal do Mercosul, era, na verdade, um andar
inteiro. Numa abordagem mais tecnológica mas sem desalinhar-se do recorte “Biografias
da Vida Urbana”, traz mais vídeos e fotografias, mas também quadros e
instalações aludindo a temas já vistos como arquitetura, urbanidade, cidadania,
mobilidade, segregação, entre outros vários que se podem derivar. Embora com um
pouco menos de coisas interessantes, o nicho superior traz algumas boas
surpresas.
Uma das salas de projeção mostra um filme de Miguel Rio Branco
exaltando a estética erótico-kitsch-brega do universo de prostitutas da zona,
com música ao fundo, ruídos, sussurros, tudo aglutinado. Misto de Boca do Lixo
e Derek Jarman. Também em vídeo, mas não separado de outras obras, um bastante
interessante do festejado chileno Alfredo Jaar. Chamado “Times Square, April
1987: A Logo for America”, é um documentário em vídeo digital que mostra uma
animação criada pelo artista à época e que, projetada em plena Times Square,
questionava, no coração da Big Apple, a prevalência dos Estados Unidos como
nação dominante e a identidade continental do ser americano. Isso, antes do
Muro de Berlim cair... A mim, que não abro mão de me referir aos nascidos
naquele país valendo-me do essencial prefixo “norte”, pois me considero tão
americano quanto eles, a percepção de Jaar é pertinente e necessária. Ainda, o
vídeo dialoga com a única obra exposta no Centro Cultural CEEE Erico Verissimo,
em que, numa grande tela que dá para a rua, mostra as mesmas animações e ditos
como “This is not America’s flag” ou,
simplesmente, “America?”.
Obra de Britto Velho,
sociedade do espetáculo x realidade
Em pintura, as duas contundentes telas “Pichação”, do gaúcho Frantz, de
1981, merecem destaque. Feitas à época de repressão Militar no Brasil, os
fragmentos/suposições de palavras de ordem, como um manifesto dito pela metade
por conta da censura, dão à obra um caráter documental e sociológico. De
pintura tradicional ainda, outras duas do pernambucano Montez Magno, da série
“Fachadas do Nordeste” (acrílica sobre cartão), desafiam-se a compor, através
de formas geométricas, uma poética do objeto urbano. Outro gaúcho, Britto
Velho, tem a sua condizente “Reflexões e Variações sobre América Latina”
(acrílica sobre aglomerado), de 1977, espelhando as duas faces dicotômicas da
sociedade: o que a mídia evidencia destacadamente e, bem próximo, logo abaixo, aquilo
que se é de fato sob a “luz” da verdade.
Avançando um pouco na exploração das técnicas, o mexicano Felipe
Ehrenberg, conecta-se com o fenômeno das “tribos culturais” da cidade e, por
meio de estampa eletroestática a partir de uma colagem como matriz (1973 a
2001), compõe um tríptico que lembra por demais a estética dos fanzines punks. Sem
sair da reflexão sobre a urbe, uma das boas surpresas foi encontrar, em forma
plástico-visual, o poema-música do multiartista Augusto de Campos “Cidade City
Cité”, parceria dele com o espanhol Julio Paza (1963-2015), que,
paulistanamente concretista, preenche, dentro da extensão que compreende a
grafia do “menor maior poema do mundo” –
como classifica o próprio Augusto – uma sugestão de metrópole, moderna
mas superficial e acelerada, tomada de luzes indistinguíveis na noite da “unívora
cidade”.
Qualquer semelhança com um fanzine
não é mera coincidência.
Mas minha maior admiração ficou por conta da gigantesca tela do
pernambucano Cícero Dias “Eu vi o mundo... ele começava no Recife”, umas das
obras-primas da pintura de todos os tempos. Elaborada entre 1926 e 29, com suas
assombrosas dimensões de 1 metro e meio de altura por 12 metros e meio, é um
dos mais importantes registros pós-modernismo e, para além dos escândalos da
época por mostrar um nu (acreditem: a sociedade considerava depravada aquela
bucólica imagem da uma mulher sobre o burro), um ícone da arte brasileira. Por
meio de um traço estilizado, a exemplo de Di Cavalcanti, porém consideravelmente mais regionalista – os personagens de feições e vestes
típicas, a predominância do ocre da luz da capital pernambucana na paleta –
Dias segue impressionando com esse exuberante óleo sobre papel, técnica que o
torna ainda mais louvável. Não só eu: à época de sua primeira exposição, em
1931, em São Paulo, Mário de Andrade, eterno coração juvenil, escreveu à amiga
Tarsila do Amaral, em que sobram empolgação e exagero: “Aqui, grande bulha por causa do Salão em que o Lúcio Costa permitiu a
entrada de todos os modernos, e o Cícero Dias apresenta um painel de quarenta e
quatro metros de comprimento com uma porção de imoralidades dentro. Os MESTRES
estão furibundos, o escândalo vai grosso, ouvi contar que o edifício da Escola
de Belas Artes rachou...” Memorial do Rio Grande do Sul não rachou, não
pelo que outrora fora escândalo. Mas que a bulha ainda é possível de se ouvir,
ah! Isso é.
Vídeo de Jaar que dialoga com a instalação no CCCEEE
"Pichação", de Frantz, entre a arte e o protesto
Fachadas do Nordeste, poesia geométrica
Poema de Augusto de Campos em versão plástica
C
Partes do painel de Cícero Dias
"Eu vi o mundo... ele começava no Recife"