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quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Françoise Hardy - "Tant De Belles Choses” (2004)

 

"Henri Salvador, que tinha uma gravadora, viu minha apresentação na televisão e telefonou com a intenção de assinar um contrato comigo. A reunião nunca aconteceu, porque eu já estava sob contrato, mas eu sinto tontura toda vez que penso no meu desenvolvimento profissional e o curso que isso tomaria se um artista tão excepcional quanto Henri tivesse me colocado sob sua asa."
Françoise Hardy, em sua autobiografia "The Despair of Monkeys and Other Trifles: A Memoir by Françoise Hardy", de 2018

Ela havia completado 80 anos recentemente, o que foi motivo de celebração para os fãs desta artista cult que somente um país como a França podo gerar. Ela é Françoise Hardy, cantora, compositora, atriz e modelo, que além de linda e talentosa, reúne características daquilo que há de melhor na cultura de sua cidade-natal, Paris: o bom gosto, a delicadeza e a elegância. Mas um câncer a levou em junho deste ano, pouco mais de um mês antes da abertura das Olimpíadas iniciarem na própria Cidade-Luz. Quem sabe ela também não estaria na cerimônia de abertura às margens do Sena tocando?

Surgida como uma das principais figuras do movimento yé-yé nos anos 1960, ela conquistou a Europa com sua voz suave e estilo distinto. Instrumentista desde a adolescência, ela fez faculdade de Ciências Políticas e de Letras na Sorbonne, mas não conclui nenhum dos cursos, pois já havia descoberto sua vocação. Depois de passar em uma seleção de novos talentos da gravadora Vogue, em 1961, passa a cantar na TV francesa e logo foi catapultada ao sucesso com a canção "Tous les Garçons et les Filles", que vendeu milhões de cópias. Hardy não conquistou só o público francês, mas também ganhou notoriedade internacional, gravando versões de suas músicas em italiano, alemão e inglês.

Bela, foi também musa na moda e no cinema. Com o fotógrafo Jean-Marie Périer, com quem se relacionou até 1967, Françoise entrou no mundo da moda atuando como modelo e tornou-se um ícone fashion. Em colaboração com designers renomados como Yves Saint-Laurent e Paco Rabanne, ela influenciou a moda dos anos 1960 com seu estilo característico de minissaias e botas brancas. No cinema, foi dirigida por Jean-Luc Godard, Roger Vadim, Clive Donner e John Frankenheimer, quando contracenou com Peter Sellers e Peter O'Toole no clássico "Grand Prix", de 1966. Françoise era desejada por homens e mulheres, de David Bowie a Mick Jagger, de Brian Jones a John Lennon.

Na música, no entanto, foi onde mais se desenvolveu. Evoluiu do rock inocente e passou a gravar coisas como o folk “Suzanne”, de Leonard Cohen, e, em passagem pelo Brasil, voltou para a França na mala com uma versão francófona de “Sabiá”, de Chico Buarque e Tom Jobim, intitulada “La Mésange”. As fronteiras sonoras de Françoise começavam a se expandir. Entre 1962 e 1973, ela lançou um álbum por ano, consolidando seu status como uma das principais artistas da época. Alguns de seus maiores sucessos incluem "Le Temps de l'Amour" e "Mon Amie la Rose". Ela trabalhou com compositores renomados como Serge Gainsbourg, que escreveu para ela o hit "Comment te Dire Adieu", e Michel Berger, que compôs duas canções para o álbum "Message Personnel" (1973). Com tudo sua voz ligeiramente rouca e afinada e muito bom gosto sonoro, tornou-se uma excelente melodista e letrista admirada por ícones como Henri Salvador, que até quis contratá-la no início da carreira.

Embora a extensa discografia, que adentrou os anos 70, 80 e 90, foi na maturidade que Françoise chegou a seu auge em termos de musicalidade. Ela já havia surpreendido crítica e público com o triunfante retorno aos estúdios depois de 4 anos de pausa com “Clair-Obscur”, de 2000, quando, além de suas excelentes interpretações, composições e versões, canta com gente como Iggy Pop, Olivier Ngog e o ex-marido e eterno parceiro musical Jacques Dutronc. Porém, precisariam mais quatro anos para que viesse, aí sim, com o irretocável “Tant De Belles Choses”, 24º de sua longa trajetória e que completa 20 de lançamento em 2024.

Françoise: ícone também
da moda e do cinema nos
anos 60 e 70
À época com 60 anos, parece que a idade dava a Françoise aquilo que poeticamente Caetano Veloso sentenciou sobre a velhice: “Já tem coragem de saber que é imortal”. A faixa-título e de abertura e encerramento, evidencia esse amadurecimento diante do mundo, diante das coisas, que se tornam graciosamente belas a seu olhar. Na sequência, a sempre presente influência da música brasileira na sonoridade dos franceses está na francesíssima bossa-nova “À L'ombre De La Lune”. Clima parecido tem “Jardinier Bénévole”, mais cadenciada e enigmática, contudo, principalmente pelas programações de ritmo, pelos teclados reverberantes e pelo contracanto de Alain Lubrano.

Balada triste e romântica, “Moments” é uma das duas cantadas em um inglês do álbum juntamente com o pop quase tribal “So Many Things” – ambas não coincidentemente muito parecidas com o som da Everything But the Girl, uma vez que a inglesa Tracey Torn certamente tem em Françoise uma grande inspiração no modo de cantar e compor. Já “Souir de Gala” é um dos belos exemplos da canção pop hardyana, com versos muito melodiosos e visivelmente composta ao violão, embora o piano faça a marcação enquanto a guitarra solta frases pontuais. A voz dela, aliás, sempre suave, bem colocada, sensual. Sem percussão, apenas sob teclados e efeitos, “Sur Quel Volcan?” é outra que merece muita atenção. Interrogativa e não menos reflexiva, a letra diz: “Eu peço emprestado passagens, becos/ Eu pego mensagens, segredos/ Neste espaço de filigrana/ Eu veria um pedaço da sua alma?/ Em qual vulcão/ Vamos dançar/ Você e eu/ A que custo?/ Quem vai queimar lá/ Você ou eu?”.

O jazz com traços franceses, que mestres como Henri Salvador e Francis Lai legaram à música ocidental, vem na gostosa “Grand Hôtel”. A linha jazzística permanece em “La Folie Ordinaire”, que antecipa a potente – e fantasticamente melódica – “Un Air de Guitare”, em que Françoise canta com urgência os versos, os quais fraciona em três instantes bem marcados. O violão, constante e premente, ganha a parceria da dona da música, a “guitare”, tocada pelo filho Thomas Dutronc. Que baita música! Já na tensa “Tard Dans La Nuit…” – que lembra os temas densos de Nico –, Françoise fala das dores e angústias que a noite esconde. “Ela não é quem deve ser culpada/ Tantos sonhos se dissipam/ É melhor se esconder nas sombras/ As ruas não são seguras/ Atrás das portas blindadas/ Cães latem impiedosamente/ Ninguém pôde dizer/ De onde vieram os golpes/ Tarde da noite”.

Finalizando, mais uma preciosidade: “Côté Jardin, Côté Cour”. Lindo refrão: melodioso, elegante, suave e intenso ao mesmo tempo. A faixa se liga diretamente com a segunda versão de “Tant De Belles Choses”, que ressurge para terminar o disco de maneira imponente. E embora Françoise tenha lançado ainda outros quatro bons trabalhos até o fim da vida, este parece melhor representar a si e ao país ao qual trazia o radical no nome. Com 20 anos de antecedência à própria despedida, ela versa, concordando com aquilo que Caetano disse, a seguinte frase: “O amor é mais forte que a morte”. Nada além da mais pura verdade quando se fala de uma artista imortal como Françoise Hardy.

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FAIXAS:
1. "Tant De Belles Choses" (Pascale Daniel/ Alain Lubrano) - 4:02
2. "À L'ombre De La Lune" (Benjamin Biolay) - 3:38
3. "Jardinier Bénévole" (Lubrano) - 4:02
4. "Moments" (Perry Blake/ Marco Sabiu) - 3:31
5. "Soir De Gala" (Thierry Stremler) - 2:46
6. "Sur Quel Volcan?" (Daniel) - 3:08
7. "So Many Things" (Blake/ Sabiu) - 3:29
8. "Grand Hôtel" (Stremler) - 3:13
9. "La Folie Ordinaire" (Ben Christophers) - 2:32
10. "Un Air De Guitare" (Françoise Hardy)  - 3:58
11. "Tard Dans La Nuit…" (Daniel/ Lubrano) - 3:27
12a. "Côté Jardin, Côté Cour" (Lubrano) - 4:10
12b "Tant De Belles Choses (Version)" (Daniel/ Lubrano) - 3:58

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Daniel Rodrigues

quinta-feira, 14 de março de 2024

"Olha pra Elas", de Tatiana Sager (2023)

 

Um pai com a filha ao colo grita palavras de consolo por detrás da cerca distante alguns metros do prédio onde a esposa, através de uma escura janela, tenta responder. Ela atende imediatamente ao chamado do marido, mas é como se seu grito – diferentemente do dele – não tivesse força suficiente para chegar-lhe de volta. Como se sua insuficiente e combalida voz, cansada de urrar para fora e para dentro de si mesma, já estivesse emudecida de antemão por força da sociedade e da história.

Essa breve descrição da cena inicial do novo documentário da cineasta e jornalista gaúcha Tatiana Sager, "Olha pra Elas", sobre a realidade de mulheres encarceradas, além de tocante como todo o restante da obra, faz-se bastante simbólica no que se refere à condição da mulher – e do homem – no sistema penitenciário brasileiro. Além disso, a cena simboliza também a real antítese daquilo que o filme propõe, de que se volte o olhar àquelas mulheres. Sua invisibilidade significa, na mesma medida, uma não escuta em diversos níveis, do familiar ao social, da Justiça ao Estado. Metaforicamente, até o marido, um ex-detento do Presídio Central, têm voz. Ela, mulher, não.

A estratégia narrativa de Tatiana é pungente e traça o caminho que a cineasta escolhe para, a partir daí, colocar o cinema a serviço da missão de dar voz a quem foi destituída dela. Autora de outros dois documentários fundamentais para a recente cinematografia nacional a respeito do sistema carcerário, "O Poder Entre as Grades", de 2015 (codirigido por Zeca Brito), e "Central – O Poder das Facções no Maior Presídio do Brasil", de 2017 (no qual divide a direção com Renato Dorneles), Tatiana dá continuidade à mesma questão em sua nova produção, porém a aprofunda com um olhar mais acurado e pautado pelo humanismo.

Em "Olha pra Elas", as lentes funcionam como olhos atentos aos sentimentos daquelas que, por ações pessoais ou alheias, cederam ao mundo do crime quase como uma decorrência. As histórias de Adelaide, Tatiana, Tatiane, Naiane e Roselaine, retratadas no filme, têm em comum, além de ser mães e viver longe dos filhos, o de estar aprisionadas por crimes menores, como roubo, furto e tráfico, realidade da maioria das milhares de detentas no país. Entregues a prisões precárias e inadequadas, elas sofrem, principalmente, pelo abandono e pela desestruturação do lar.

A triste realidade de mulheres encarceradas 

Embora a população carcerária feminina brasileira seja a terceira maior do mundo, com cerca de 49 mil mulheres nessa condição, na comparação com os homens o volume é 818 mil vezes menor, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional. Raça, gênero e falta de acesso a condições dignas de cidadania juntam-se para, sobre a égide do machismo, condenar essas mulheres não só às grades, mas à brutal restrição a alternativas sadias quando libertas. Fora do presídio, elas já estão presas antes de serem presas. Assim, condenam-nas duas vezes, pois o afastamento dessa mulher do lar promove outras desestruturações tão graves (fome, abuso, prostituição, violência doméstica, drogadição), que impossíveis de serem estimadas.

O funcionamento machista de um país atrasado socialmente é tamanho que a simples associação da mulher a um homem criminoso é suficiente para puni-la, a se ver pela personagem Clair trazida no filme. Confundida com outra pessoa de mesmo nome, ela foi presa por engano por alarmantes 11 meses. O fato é que não há engano e, sim, um projeto de feminicídio não declarado, mas sorrateiro e perverso, que se deflagra na histórica invisibilidade dos corpos periféricos e marginalizados. Quanto mais femininos.

Inquietante, "Olha pra Elas" guarda semelhança com outro documentário, "O Cárcere e a Rua" (2004), de Liliana Sulzbach. Primeiramente, uma parecença geográfica, uma vez que também se trata de uma produção gaúcha sobre a vida de prisioneiras da penitenciária Madre Pelletier, em Porto Alegre – cenário onde "Olha pra Elas" basicamente se passa. Mas, sobretudo, por um aspecto que não está na tela, porém a tece: a visão feminina sobre uma questão feminina. Assim como fez Liliana em seu filme, Tatiana sensibiliza sua câmera através do exercício da empatia e da identificação. Realidade distante à da própria diretora, mas nem por isso incapaz de torná-la cúmplice e atenta. Numa abordagem mais do que jornalística, e, sim, humanista, "Olha pra Elas" prova que, pelo cinema, é possível enxergar essas sofridas mulheres não com só os olhos, mas com o coração.

texto originalmente publicado no caderno Doc do jornal Zero Hora em maio de 2023

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trailer de "Olha pra Elas", de Tatiana Sager



Daniel Rodrigues

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

"O Último dos Dez" ou "E Não Sobrou Nenhum", de Peter Collinson (1974) vs. "O Caso dos Dez Negrinhos", de Satanislav Govorukhin (1987)

 


Muita gente defende que o jogo de futebol fica melhor e deveria ser jogado com dez jogadores de cada lado. Pois, aqui, no nosso jogo, os dois times já começam com dez. No romance "O Caso dos Dez Negrinhos", da mestra do mistério, Agatha Christie, nos apresenta uma trama em que oito desconhecidos são convidados, por um misterioso anfitrião, para um jantar num local isolado e de difícil acesso, no qual, por meio de uma gravação, são revelados crimes que cada um dos convidados e seus dois mordomos teriam cometido. A partir daí, um a um, eles vão sendo assassinados de maneira muito semelhante à subtração de um conhecido versinho infantil sobre dez negrinhos e para cada um que morre, uma estatueta de um conjunto de dez que enfeita a mesa de jantar, é removida. Haverá um décimo primeiro "jogador" ou um dos próprios convidados é o matador?

Nossos dois adversários contam a mesma história, mas com propostas de jogo um pouco diferentes: "O Último dos Dez", também conhecido como "e Não Sobrou Nenhum", de 1974, de Peter Collinson, ousa e faz algumas alterações na história original: ao invés de situar a trama em uma ilha, como no romance original, transfere a ação para o deserto do Irã, em um luxuoso hotel no meio do nada, ao qual os convidados chegam, deixados de helicóptero. Em nome desse atrevimento, ele é obrigado a fazer outras modificações e a maior parte das mortes acaba sendo diferente das idealizadas pela escritora, sendo adaptadas para situações determinadas pela localização, ambiente, hábitos culturais, comprometendo bastante a ligação dos assassinatos com o poema infantil que os ordena e determina.

As ousadias até funcionam, como adaptação cinematográfica, se formos analisar isoladamente, enquanto proposta, filme de mistério e tal, tá ok: deserto, serpentes, hábitos locais de execução, ruínas, etc. Mas, o problema é que, além de mexer numa obra impecável da maior escritora do gênero, no comparativo com o adversário desse jogão do Clássico é Clássico, a opção pelas alterações acaba pesando.

"O Caso dos Dez Negrinhos", de Stanislav Govorukhin, de 1987, é muitíssimo mais fiel ao original de Agatha Christie. A ação se passa numa casa, em uma ilha, no topo de um rochedo, cujo acesso se dá apenas por barco e apenas quando a maré permite; a produção, embora russa, tem todo o aspecto dos filmes noir norte-americanos, com chapéus, sobretudos, véus, persianas, sem perder, contudo, sua identidade; os crimes seguem à risca os versos do poema dos negrinhos que, por sinal, está exposto, emoldurado, em cada um dos quartos dos convidados, recebendo sua devida importância dentro da trama como acontece no livro; e a atmosfera, a casa, a ilha, o mar, os rochedos, tudo é muito mais angustiante e claustrofóbico do que no filme inglês.


"O Último dos Dez" (1974) - trailer original



"O Caso dos Dez Negrinhos" (1987) - trailer original



*não conseguimos os trailers dublados ou legendados de nenhum dos dois, no entanto a amostragem
destes originais serve para dar uma boa noção de escolhas e elementos visuais que mencionamos na análise das obras.

Enquanto a versão inglesa tem um aspecto árido, quase luminoso, uma decoração rica em ouro e pesada em tapetes persas, a produção russa é cinzenta, sombria, rústica, amadeirada, trabalha em planos fechados, sombras, reflexos, janelas, enquanto o filme de 1974 opta por planos mais abertos, travelings longos, e tomadas, na maioria das vezes, pegando todos os personagens no mesmo plano. 

O filme de Govorukhin traz uma atmosfera mais misteriosa, furtiva, obscura, os convidados se esgueiram, são evasivos e parecem mais suspeitos por mais tempo, até que fique claro, por fim, que são tão vítimas e vulneráveis quanto qualquer outro ali.

O filme de 1974 até tem um elenco mais estelar, com Gert Fröbe, o Goldfinger de 007, Herbert Lohm, o comissário Dreyfuss da Pantera Cor-de-Rosa, Oliver Reed, de "Golpe de Mestre", "O Gladiador", o versátil Richard Attenborough, diretor do clássico "Gandhi, uma ponta do cantor francês Charles Aznavour, o primeiro a morrer, e a voz de Orson Welles, revelando os crimes de cada um dos convidados, mas no fim das contas, com exceção de Attenborough, que faz um bom juiz Cannon e Reed, como Detetive Lombard, tantos medalhões acabam não fazendo tanta diferença assim. O filme russo, ainda que não tenha nomes tão conhecidos no ocidente, traz o aclamado Vladimir Zeldin, a bela Tatyana Drubich, e Alexander Kaydanovski, o "Stalker" do filme de Tarkowski, no papel do investigador Lombard. Os demais, embora nada badalados, têm um um ótimo trabalho coletivo e garantem o bom desenvolvimento e a coesão do filme.

Dentro de campo, onze contra onze..., ou melhor, dez contra dez, o filme de 1987 leva vantagem. A fidelidade à novela original faz diferença e garante um gol para o time de Govorukhin, o clima noir, o visual soturno, o jogo de sombras, reflexos, espelhos, vidros, aumenta a vantagem.

No entanto, a audácia da proposta, da mudança da ambientação, ainda que não totalmente bem-sucedida, merece reconhecimento e a recompensa com um gol. Mas a alegria do time de 1974 não dura muito e a constante referência e a vinculação dos crimes aos versos nas paredes dos quartos, dá mais um gol para o time russo.

No tocante à escalação, Peter Collinson dá a camisa 10 para Oliver Reed, que até dá boa contribuição mas não consegue desequilibrar, até porque, do outro lado, o 10 é o 'Stalker' Alexander Kaydanovski que articula muito bem o jogo o tempo inteiro; Tatyana Drubich, no time de 1987, se sai muito melhor do que Elke Sommer como a secretária contratada pelo incógnito anfitrião, encarnando melhor o espírito da personagem, Vera Clyde, na versão inglesa e Vera Claythorne, na russa; e, de um modo geral, mesmo com mais jogadores destacados, rodados, com passagens por times grandes, o time inglês não consegue impor seu jogo, com exceção de Richard Attenborough, como juiz Cannon, que tem um desempenho excelente, sobretudo na sequência final, que é muito boa também no outro filme, com um flashback crucial e aquela recapitulação característica de Agatha Christie, mas que não supera a performance de Attenborough e a surpresa do filme inglês. No entanto, a cena em questão é resultante de uma mudança decisiva no final do romance original e isso é imperdoável!

(Para quem não leu o livro ou não viu nenhuma das adaptações, aqui vão spoilers - desculpem, mas absolutamente necessários).

Em nome de um final feliz, de ficar bem com o público, de não matar o 'mocinho' e a 'mocinha' do filme, Peter Collinson faz com que Lombard (Reed) depois de uma farsa com Vera Clyde, reapareça vivo, ao final, no salão, em frente ao juiz Cannon que, supondo êxito em seu plano, já dera um gole numa taça de veneno a fim de concluir seu plano, incriminando a garota pelos nove crimes, deixando-a sem opção, induzindo-a a fazer uso da forca já pendurada previamente pelo juiz na sala. Já sob efeito da substância, o velho morre (maravilhosamente bem) e o casal é resgatado do local pelo mesmo helicóptero que os deixara lá.

No outro, não! Depois de atirar, DE VERDADE, em Lombard, desconfiada e com medo dele, Vera volta para casa e encontra em seu quarto apenas a forca dependurada à sua espera. Com a culpa pelo crime que lhe é imputado na gravação e percebendo-se sem saída diante de nove cadáveres que, naturalmente, seriam atribuídos a ela, a garota sobe numa cadeira e coloca seu lindo pescocinho na corda e dá fim à sua vida, para regozijo do juiz que se fingira de morto a fim de fazer a justiça que os tribunais não fizeram. Realizado, ele, mais criminoso que todos ali, mete uma bala na própria cabeça, concretizando seu último ato de justiça, em uma cena, igualmente, de se aplaudir de pé. Pela fidelidade ao original no ápice do filme, na resolução do caso, vai mais um gol para o time russo.

O time britânico ainda marca um nos acréscimos pois, depois da morte do juiz e da retirada dos dois sobreviventes, de helicóptero, a gravação, com a narração de Orson Welles volta a ser rodada enquanto passam os créditos finais. Mas não há tempo para mais nada e o jogo termina assim. 



Podia ter proposto, aqui o enfrentamento de um dos dois, "O último dos Dez" ou "O Caso dos Dez Negrinhos" contra a primeira adaptação para cinema, de 1939, de René Clair, "E Não Sobrou Nenhum", mas preferi tirar um pouco o foco das produções norte-americanas e, embora a Rússia não esteja na Copa do Catar, e venha criando problemas para o mundo inteiro com essa treta com a Ucrânia, achei que seria um confronto internacional mais interessante e original esse embate de russos contra britânicos.
Mas, olha, hein... o time de René Clair também teria sérias dificuldades contra esse ótimo time de Govorukhin.
No alto, à esquerda, o hotel que receberá os convidados, no meio do deserto iraniano, 
e, à direita, a mansão de aspecto sinistro no alto de um rochedo cercado pela água;
na segunda linha, as estatuetas dos dois filmes, que vão sendo subtraídas
conforme uma pessoa morre;
na sequência, os jantares das duas versões, ainda com todos os acusados vivos
na quarta linha, o plano aberto, alto, do filme inglês,
e uma visão mais próxima, mais cúmplice, do filme russo.
Na penúltima linha, o visual típico dos anos 70, com golas rolês, golas cubanas, branco, tweed, do primeiro filme, e o aspecto muito Hollywood anos 40, da outra versão;
e, por fim, na última, as duas Veras (Clyde, no filme de 1974 (esq.), e Claythorne (dir.), no de 1987)
no momento decisivo da trama.





Cly Reis




domingo, 27 de março de 2022

"Licorice Pizza", de Paul Thomas Anderson (2021)


“Licorice Pizza”
não irá ganhar o Oscar se Melhor Filme em 2022. Isso é certo. O mais cotado é, de fato, “Ataque dos Cães”, de Jane Campion, mesmo que “O Beco.do Pesadelo”, do já ganhador desta estatueta Guillermo Del Toro, em 2018, com “A Forma da Água”, pareça o mais talhado entre os 10 títulos concorrentes – e embora “Amor Sublime Amor” e “O Ritmo do Coração” corram por fora. O filme de Paul Thomas Anderson, portanto, não figura entre os favoritos. Aliás – e isso não é um demérito – o cineasta norte-americano talvez nunca venha a obter este êxito, visto que o seu cinema, definitivamente, não confere em conceito com a badalada premiação da indústria cinematográfica, e o seu novo longa é mais uma prova disso.

Mas não se enganem: “Licorice...” é, por mais que pareça uma contradição, quiçá o melhor entre os candidatos nesta categoria junto com “Drive my Car” (outro que também não deve levar o Oscar de Melhor Filme, uma vez que, ao que tudo indica, o de Melhor Filme Internacional esteja lhe esperando). O filme de Anderson (cujo estranho título faz uma referência a uma loja de discos que realmente existiu, mas que não aparece em nenhum momento), conta a história de Alana Kane (Alana Haim) e Gary Valentine (Cooper Hoffman), dois jovens que, embora a diferença de 10 anos dela para ele, vivem a adolescência no Vale de San Fernando, no Sul da Califórnia do início dos anos 70, engendrando vários negócios juntos e flertando um com outro, mas também se desencontrando.

Comédia romântica com ares de nouvelle vague e realismo poético, “Licorice...”, que também é escrito por PT Anderson, diferencia-se, por isso, muito do que a Academia costuma prestigiar. Desde seu primeiro longa, “Jogada de Risco", de 1996, passando pelo genial “Boogie Nights” (1997) e pelo retumbante “Magnolia”, Melhor Filme em 1999 (só que em Berlim...), fica claro que o estilo de seu "cinema de autor" carrega singularidades que lhe aproximam bastantemente da escola europeia. Neste sentido, ele é muito mais peculiar do que seus contemporâneos Tarantino, Rodriguez e Nolan, todos também autorais mas com um pé muito mais firme em Hollywood do que ele. Com o forte “Sangue Negro”, de 2007 – para muitos, sua melhor realização –, pode-se dizer que Anderson tenha se esforçado para arrebatar o prêmio máximo do cinema, mas sua mão “pesada” o fez dar tons muito mais trágicos à história que os jurados da Academia estão acostumados. 

trailer de "Licorice Pizza"de Paul Thomas Anderson


A última tentativa de Anderson de levar esse bendito Oscar de Melhor Filme parece ter sido há quatro anos com “Trama Fantasma”, seu até então último longa e no qual repete a parceria com o excelente ator irlandês Daniel Day-Lewis. Porém, mesmo recebendo seis indicações (inclusive a de Filme), novamente sem sucesso. “Licorice...”, assim, dá a impressão de ser saudavelmente aquele filme em que o diretor disse a si mesmo: “Quer saber? Foda-se! Aceitem-me como eu sou!”. E deu muito certo. Descompromissado, o cineasta fez uma obra carregada de sentimentos, daquelas que ao mesmo tempo fazem emocionar terna e alegremente. É de encher o peito em uma gargalhada, mas também de soltar risos surpresos durante o decorrer por conta de seus diálogos e roteiro inteligentes. 

Gary e Alana: feitos um para o outro (mas será que
eles próprios sabem disso?)
Estão preservados elementos clássicos do estilo de Anderson: trilha sonora escolhida com esmero e paixão; ritmo de montagem que intercala agilidade com planos bem demorados, tributo a um de seus mestres, Martin Scorsese; planos-sequência realizados com bastante habilidade; o olhar especial para as musas, as quais invariavelmente dedica belos enquadramentos como faz desta vez com Alana; direção de atores bem encontrada entre o drama e a comédia; aparição de tipos exóticos impagáveis (Bradley Cooper, em uma ponta, arrasa fazendo o tresloucado playboy Jon Peters); mas principalmente, personagens que fascinam o espectador. Por que isso? Porque são, como sensivelmente fizeram Renoir, Carné ou Clair, pais do realismo poético francês ao qual o cinema de Anderson faz tributo, são capazes de construir personagens que refletem o interior humano equilibrando beleza e naturalidade. Os medos, as angústias, as aflições, os desejos, os amores. Alana e Gary, protagonistas a quem se torce para que fiquem juntos e parem com a infantilidade de se brigarem para fugirem do medo de não serem aceitos, são a tradução disso: gentes. Mas, claro: com o “filtro” mágico do cinema: não só o filtro da câmera, mas o do olhar.

Se não é o melhor entre todos da safra 2021/22, “Licorice...”, ao menos, é o que melhor cumpre um dos requisitos dos grandes filmes: o encerramento marcante. O cineasta conduz o espectador até o último segundo para, com sutileza, deixá-lo suspirando na poltrona com um sorriso no rosto – ou uma lágrima. Sabe aquele sabor de terminar de assistir “Nós que nos Amávamos Tanto”, “Pierrot le Fou” ou “Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios”? É este o sentimento que fica com "Licorice...". Tudo bem: “Ataque...”, “O Beco...” e “Drive...” também terminam muito bem. Mas é tão mais impactante sentir uma ponta de "cinema de arte", assim, tão espontaneamente numa produção norte-americana, que o valor se duplica. Neste caso, o melhor que PT Anderson pode fazer é não ganhar prêmio nenhum mesmo. Será sinal de que continuará fazendo seu cinema tão original quanto encantador.


Daniel Rodrigues

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

"Exorcismo Negro" - José Mojica Marins (1974)




“José Mojica, mestre do terror e dos espaços profundos.” 
Glauber Rocha

“Sua câmera não mente jamais e confirma o desejo de reinventar o gênero horror com uma deformação formal, que só se encontra em alguns verdadeiros pioneiros”. 
Rogério Sganzerla

Nas primeiras décadas do século XX, alguns dos cineastas que ajudaram a construir a linguagem do cinema o fizeram com muita criatividade e intuição. Passados os pioneiros anos em que Griffith e Méliès abriram os portais daquele mundo de imaginação, foi a vez de outros realizadores, principalmente Vidor, Hitchcock, Lang, Sternberg e Clair, desvelarem aquela pedra bruta. Com recursos tecnológicos e financeiros geralmente parcos de um período de entre-Guerras, era a inventividade em criar soluções, trucagens e métodos que os fazia obter o resultado que pretendiam em frente à câmera e... ação! Estava feita a magia.

As décadas se passaram e os polos produtores e escolas de cinema foram assimilando a gramática audiovisual de maneira formal e técnica. Porém, o primitivismo criativo, algo genial e admirável em qualquer realizador, inclusive nos mais estudados, é ainda mais valioso quando surtido com espontaneidade. Caso do já saudoso José Mojica Marins, morto no último dia 19 de fevereiro. Eternizado como seu principal personagem, o assustador coveiro Zé do Caixão, o diretor – um autodidata que mal tinha o primário concluído, quanto mais um curso de cinema – alinha-se a este time de cineastas cuja linguagem cinematográfica lhe era natural e transbordante.

Mojica como Zé do Caixão à
época de "À Meia Noite..."
À margem do mainstream, Mojica firmou seu nome pela via do cinema marginal. Independente e amador, ele não produzia para nenhum grande estúdio e penava para financiar seus projetos, mas seu cinema de terror bizarro inspirado nos B Movies e, igualmente, calcado no noir e no western norte-americanos e seus grandes estetas – Orson Welles, John Ford, Howard Hawks, John Huston – driblava qualquer escassez de recursos. Esmerava-se nos roteiros e tinha uma técnica intuitiva apurada para a fotografia, a edição, a construção de personagens e a condução narrativa. Assim foi por toda sua carreira, “fazendo chover” mesmo com baixos orçamentos, a exemplo dos celebrados “À Meia-Noite Levarei Sua Alma” (1964), “Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver” (1967) e “O Estranho Mundo de Zé doCaixão” (1968).

Duas exceções, entretanto, mostram que, nas raras ocasiões em que teve recursos para produzir melhor, Mojica não desperdiçava. Um deles é, justamente, seu último longa, de 2008, “Encarnação do Demônio”, produzido por Paulo Sacramento e no qual, após mais de seis décadas de carreira transcorridas, finalmente conseguiu fazer um filme nos moldes do que sempre sonhou. O outro título de sua extensa filmografia em que se vale de uma produção digna é “Exorcismo Negro”, de 1974 (ano em que havia ganho dois prêmios na França, L’Ecran Fantastique e Tiers Monde). Produzido por Aníbal Massaini Neto – financiador de pornochanchadas, mas responsável também por bons longas históricos como “Independência ou Morte” e “Corisco, o Diabo Loiro” –, tem poucas locações, menos de 15 personagens e alguns figurantes. Se não se trata de uma superprodução, é suficiente para o diretor estabelecer um padrão de qualidade, que coloca “Exorcismo Negro” entre os seus melhores.

Na história. na onda do então recente sucesso de “O Exorcista”, de um ano antes, Mojica viaja para passar o Natal com os amigos num sítio onde vivem e escrever a história de seu próximo filme. No entanto, coisas misteriosas começam a se suceder na casa, com seus amigos sendo possuído por alguma força sobrenatural. Ele descobre que a matriarca da família fez, no passado, um acordo com a bruxa Malvina para engravidar e salvar seu casamento. Em troca, Malvina deve indicar o filho do Satanás, Eugênio, para se casar com a menina. Além disso, Mojica entra em conflito com o próprio Zé do Caixão, que está pronto para recolher as almas daquela família. Como é peculiar de Mojica, a autorreferência e o jogo de sentidos para com seu alter-ego dão à obra um ar metalinguístico, assim como já havia proposto em “O Despertar da Besta” e “O Estranho Mundo...”

Mojica com a família de amigos em "Exorcismo...": tensão o tempo todo
O versátil Jofre Soares sendo acometido pelo espírito de Zé do Caixão
Possessão e exorcismo: influências do recente sucesso de "O Exorcista"
“Exorcismo...” traz um manancial de referências obrigatórias a filmes de horror: a casa assombrada, objetos que se movem sozinhos, corpos sendo tomados por espíritos malignos, bichos peçonhentos, mistérios familiares que vem à tona, erotismo grotesco, um animalzinho de estimação judiado e uma criança cuja inocência é ameaçada pelo mal. Porém, mais do que uma sucessão de clichês, o filme tem a qualidade de que tudo é tecnicamente bem realizado: efeitos especiais, cenas de briga, trucagens com sangue, cenografia, corte da edição. Diferentemente do que se viu por muito tempo no cinema nacional e que se tornou-lhe, inclusive, uma pecha. Merece atenção especial, entretanto, a fotografia (quesito no qual Mojica sempre foi irreparável), que concilia a dureza da sombra marcada e a coloração que capricha nos tons quentes – principalmente, claro, no vermelho-sangue. Igualmente, não apenas o uso bem articulado da trilha sonora, outra conhecida qualidade do diretor, como, também, da própria seleção das músicas, como as de Syd Dale, Daniele Amfitheatrof e Michel Magne.

Cena do ritual: apavorante e na
medida certa
Mas, além disso, o ritmo de “Exorcismo...” é perfeito. Aquilo que é um problema em alguns filmes de Mojica, fruto justamente da dificuldade de produção que invariavelmente enfrentava, a continuidade é um trunfo deste longa. A narrativa mantém a tensão e dá sustos do início ao fim. A chegada do personagem Mojica à casa dos amigos, por exemplo, é sucedida por uma série de acontecimentos aterrorizantes, que não deixam o espectador descansar. A sequência do ritual macabro, excessivamente longa em outras realizações do cineasta (“Delírios de um Anormal” e na reedição estendida de “O Despertar...”), aqui está na medida exata entre a alucinação vivida pelo personagem e o ritmo narrativo, que não cansa quem assiste.

Premiado internacionalmente, celebrado por referências como Glauber Rocha, Gustavo Dahl e Rogério Sganzerla e, bem mais tarde, descoberto pelo mercado norte-americano, que o intitularia como Coffin Joe. Nada foi suficiente para que Mojica vencesse as restrições ao seu trabalho por quase todo o período em que esteve ativo, dos anos 40 até o século XXI. Nos anos 80, espremido pela censura e pelo sistema, partiu para o cinema pornô, que ao menos lhe daria alguma grana. Pouco antes de conceber seus últimos filmes, já nos anos 2000, Sganzerla escrevia sobre o amigo e admirado cineasta: “Além de nunca ter recebido nem adiantamento, quanto mais condições de produção compatíveis com seu talento, não filma há 15 anos, sendo vítima do descaso, inépcia, irresponsabilidade ou talvez preconceito”. Pouco visto em seu próprio país, “Exorcismo...” é, certamente, um dos melhores filmes de terror da década de 70 – rica neste gênero, aliás. A se ver por este resultado, imagine se Mojica tivesse recebido o devido reconhecimento em vida?


JOSÉ MOJICA MARINS
(1936-2020)



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assista o filme "Exorcismo Negro"



Daniel Rodrigues

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

20 filmes essenciais do cinema francês



Resnais, cineasta com
mais de um título na lista.
Uma das missões de minha profissão, a de jornalista, é a de, a partir de meu filtro capacitado e abalizado, informar as pessoas daquilo que não lhes está evidente, ajudando-as a se elucidar e formar opinião. Quando se trata de assuntos envolvendo cultura e arte, não é diferente. Levar-lhes o “não óbvio”, aquilo que não conhecem, pois o que já conhecem não precisa, certo? Não exatamente. Há tanta confusão de informação no ar (e nas redes) que o “óbvio”, por desconhecimento ou falta de critério, mistura-se com o irrelevante ou passa até a ser relegado. Os melhores filmes franceses de todos os tempos, por exemplo: numa recente lista, vi apontados títulos queridinhos como “O Fabuloso Destino de Amélie Poulin” e “Intocáveis” como sendo indispensáveis, enquanto que não figuraram nada de Jean Vigo ou Michel Carné. Ora, convenhamos! E olha que não estou nem falando de obras de cineastas menos conhecidos, mas igualmente merecedores, como Sacha Guitry ou Julien Duvivier – mas aí, seria exigir demais.

O cinema francês é um dos mais ricos e referenciais da cinematografia mundial, desde os irmãos Lumière até as escolas e movimentos que este promoveu ao longo do tempo, como o Realismo Poético, o Cinema Vérité e a revolucionária Nouvelle Vague. Nada contra os bons “Intocáveis” ou “Amélie Poulin” – este último, aliás, se tivesse que escolher um de Jeunet, preferiria “Delicatessen” ou “Ladrão de Sonhos”. Porém, basta conhecer um pouco da história do cinema do país de Victor Hugo para enxergar o rico e numeroso universo de produções relevantes para além desses sucessos recentes. O pioneirismo, as inovações estilísticas, as contribuições técnicas e teóricas se deram em vários momentos da história da sétima arte. Definitivamente, o cinema francês não deve ser reduzido a uma amostra que nem de longe reproduza seu tamanho e importância.

Por conta disso, elaborei uma lista de 20 títulos realmente essenciais para se compreender e admirar o cinema francês. Óbvios para mim, mas a quem não conhece ou se enreda em avaliações mal ajuizadas, talvez não. Afora a criteriosa tarefa de selecionar os mais relevantes entre tantos títulos ótimos, elencá-los foi delicioso. Estão aqui mencionados, sem ordem de preferência, clássicos que determinaram épocas, obras-primas consagradas do cinema mundial e filmes que cumpriram papéis além do próprio cinema: tornaram-se ícones da arte e da cultura do século XX, como “Acossado”, “A Regra do Jogo” ou “A Nós a Liberdade. A ideia foi a de constar um de cada grande realizador, embora alguns (Truffaut e Resnais, por exemplo) inevitavelmente haja mais tendo em vista a indispensabilidade das realizações citadas. Também, dentro da lógica de informar a partir de meu filtro pessoal, se perceberão toques de meu entendimento próprio. De Carné, optei por incluir “Os Visitantes da Noite” e não o consagrado “O Boulevard do Crime”; De Buñuel, “O Discreto Charme da Burguesia” a “Bela da Tarde”; De Godard, “Je Vous Salue, Marie” a algum dos cult-movies dos anos 60, como “Pierre Le Fou” ou “Alphaville”. Crítica pessoal pura, mas que em nada prejudica a representatividade da seleção como um todo.

Claro, ficou de fora uma enormidade de coisas, como “Lacombe Lucien”, de Malle, “Orfeu Negro”, de Camus, “Eu, um Negro”, de Rouch, “A Bele e a Fera”, de Cocteau, ou “Napoleon”, de Gance. Privilegiou-se os essencialmente franceses, por isso não aparecem co-produções como “O Último Tango em Paris” ou “A Comilança”. Também não entraram nada de Maurice Pialat, Eric Rohmer, Costa-Gavras, Jacques Demy, Jacques Rivette... Paciência. Além da impossível unanimidade de listas, uma como esta, que represente algo tão relevante e robusto, incorreria em incompletude. Uma coisa é certa: não perdemos tempo com irrelevâncias. Ah, isso não. Voilà!



- “Viagem à Lua”, de Georges Méliès (“Le Voyage dans la lune”, 1902)


- “A Nós a Liberdade”, de René Clair (“À Nous la Liberté”, 1931)

- “Zero de Conduta”, de Jean Vigo (“Zéro de conduite”, 1933)
Poster original de
"Zero de Conduta"

















- “A Regra do Jogo”, de Jean Renoir (“La Regle Du Jeu”, 1939)

- “Os Visitantes da Noite”, de Michael Carné (“Les Visiteurs du Soir“, 1942)

- “Orfeu”, de Jean Cocteau (“Orphée”, 1950)
A visão de Cocteau para a
saga de Orfeu













- “As Diabólicas” (“Les Diaboliques”), de Henri-Georges Cluzot (1955)

- “Meu Tio”, Jacques Tati (“Mon Oncle”, 1958)

- “Os Incompreendidos”, de François Truffaut (“Les 400 Coups”, 1959)
Cena do revolucionário
"Os Incompreendidos"













- “Os Primos”, de Claude Chabrol (“Les Cousins”, 1959)

- “Hiroshima, Moun Amour”, de Alain Resnais (1959)

- “Acossado”, de Jean-Luc Godard (“À bout de souffle”, 1960)


- “O Ano Passado em Marienbad”, de Alain Resnais (“L'Année dernière à Marienbad”, 1961)

- ‘Jules et Jim”, de François Truffaut (1962)

- “Cleo das 5 às 7”, de Agnès Varda (“Cléo de 5 à 7”, 1962)

- “La Jetée”, de Chris Marker (1962)
As impressionantes foos de Marker
que compõe a narrativa de "La Jetée"














- “Trinta Anos Esta Noite”, de Louis Malle (“Le feu follet”, 1963)

- “O Discreto Charme da Burguesia”, de Luis Buñuel (“Le charme discret de la bourgeoisie”, 1972)

- “Je Vous Salue, Marie”, de Jean Luc Godard (1985)
"Je Vous Salue, Marie", a produção
mais recente da lista
junto com Betty Blue












- “Betty Blue”, de Jean-Jacques Beineix (“37° le Matin”, 1986)




quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

James Brown – “Live At the Apollo – Volume II” (1968)



“- O groove é uma batida do coração.
Mexe com tudo em você, forte e simples.
Isso é groove.
- E como você se define exatamente?
- Acabei de definir, moça.”
 Diálogo entre James Brown e uma repórter do filme
“James Brown – Get on Up”,
que estreia no Brasil este ano



Considero-me uma pessoa do meu tempo, por isso não lamento não ter vivido determinado momento no passado. Com raras exceções. Queria ter estado, por exemplo, em 1913, na estreia d’”A Sagração da Primavera”, de Stravinsky, quando a companhia Ballets Rousses, coreografada por Nijinsky, escandalizou Paris e o mundo com aquilo que se tornaria uma revolução nas artes cênicas e na música contemporânea. Também, se pudesse, estaria em 1940, na première de "Cidadão Kane", clássico divisor de águas do cinema moderno, de Orson Welles, quando, indignados com tamanhos “atrevimento” e “impropriedade”, exibidores jogavam na calçada da entrada de seus cinemas os rolos do filme para quem quisesse ficar com “aquilo”. Queria ter visto a surpresa na cara dos espectadores dentro da sala de cinema deparando-se com aquela narrativa irregular e até então inédita (vejam que não tem nada de homem pisando na lua ou título da Seleção de 70).

Pois outro desses raros eventos que gostaria de ter vivido é o show que James Brown apresentara no Apollo Theatre, casa de espetáculos encravada no bairro negro do Harlem, em Nova York, naquelas duas históricas noites de 24 e 25 de junho de 1967.  À época, nem pensava em nascer ainda. Mas para a minha felicidade e de toda a humanidade, esta apresentação foi registrada e transformada em dois LP’s um ano depois, o que diminui em parte meu pesar. Não dá pra enxergar Mr. Dynamite dançando enlouquecidamente, seus trejeitos sensuais, sua boca gesticulando para cantar, a expressão delirante no rosto do público, o suor escorrendo de sua testa e da dos integrantes da banda enquanto sustentam o som minutos a fio para Brown entreter a plateia. Não, não dá pra ver. Mas se sente. O show é tão contagiante, tão efusivo, tão emocionante que é quase como estar lá presente, no meio da galera. Delirando.

A exemplo do primeiro volume por ele gravado no mesmo teatro, em 1962, “Live at the Apollo” é esfuziante. Uma aula de soul music. O script em si já contém pompas de grande espetáculo. Antes de começar o show, o mestre-de-cerimônias Charles Bobbit entra no palco e anuncia, em ordem cronológica, os números que serão executados, ditando o título de cada um intercalado por um golpe na caixa da bateria. Como que dissesse: “preparem-se, pois vem aí chumbo grosso!”. E de fato é o que acontece. Finalizada a abertura, ouve-se Bobbit dizendo efusivamente: “James Brown, ladies and gentlemens!” A partir dali entra-se no mundo do Godfather of Soul. Brown sobe ao palco, enlouquecendo a plateia, que explode em festa. Imediatamente, o clássico “Think” começa a tocar seu ritmo contagiante de mais puro rithum n’ blues. Em dueto com Marva Whitney, Brown dá início àquela apresentação, que se tornaria memorável.

Mal “Think” termina e já emenda com “I Wont to be Around”, uma das baladas do repertório, que fez o ritmo desacelerar. Em compensação, os ânimos continuam a mil, dada a sensualidade e o groove que se emitem da rouca voz de Brown. Que vocal! Uma naturalidade e um alcance de tons impressionantes, que variam da emissão mais sussurrada ao famoso grito agudo, sua marca registrada, que só um verdadeiro cantor gospel criado nas igrejas Batista americanas é capaz de fazer. A banda, bem como a Famous Flames, dupla vocal formada por Bobby Byrd e Bobby Bennett que acompanha o grupo, está afiadíssima. É o que se vê no R&B “That’s Life” e no bluesão “Kansas City”. Depois de uma pausa, anunciada por Bobbit, o show reinicia, passando a ter apenas composições do próprio Brown (à exceção da linda “Prisioner of Love”), e aí a coisa esquenta de verdade! Uma sequência funk de tirar o fôlego engata “Let Yourself Go”, “There Was a Time”, “I Feel All Right” (na qual ele começa sua interatividade com a plateia, brincando com os tempos da música e gesticulando tão sugestivamente que dá pra enxergá-lo tal a reação do público) e “Cold Sweet”, esta, a música que inspirou o riff da clássica "So What" de Miles Davis (que, fã, inteligentemente apenas inverteu as notas). A já citada bateria de John “Jabo” Starks e Clyde Stubblefield, aliada à percussão de Ronald Selico, dão um show à parte. Timbre perfeito, encaixe perfeito, ritmação perfeita. Igualmente, as guitarras de Jimmy “Chank” Nolen e Alpholson “Country” Kellum seguram todas do início ao fim.

Comandados por Alfred “Pee Wee” Ellis, arranjador da banda e responsável pelo órgão e sax alto, Brown e Cia. arrasam na terceira parte do show. O naipe de metais (que ainda conta com Maceo Parker e L.D. Williams nos saxofones tenor; St. Clair Pinckney, no sax barítono; Waymon Reed e Joe Dupars, nos trumpetes; e Levi Harbury, no trombone de vara) manda a irresistível “It May Be the Last Time”, das melhores do mestre. O hit “I Got You (I Feel Good)” – talvez seu maior sucesso tanto na versão original, de 1964, quanto na mais funkeada, que gravara em 1975 – vem, aqui, num pequeno e agitado R&B, quase uma vinheta. Em seguida (antecedida pela ótima “Out of Sight”, também curta), “Try Me”, de seu primeiro disco, de 1959, tira o pé do acelerador novamente, noutra balada melodiosa. Aí vem talvez o melhor do show – o que, a esta altura, é uma atitude quase improvável. A quarta parte começa com a matadora “Bring it Up”, que põe todo mundo pra dançar (sei que não é possível ver, mas quem teria ousado ficar parado?).

Depois de incendiar bem o público é hora de descansá-los, certo? Mais ou menos. Que o ritmo cai, é fato. Mas o que os próximos 17 minutos e 27 segundos promovem é daquelas coisas que, essas sim, me deixam com inveja de não ter estado lá. “It's a Man's Man's Man's World”, das mais célebres canções de sua carreira, e “Lost Someone”, irrepreensível, formam um medley em que, se o compasso é mais lento, a interpretação de Brown, sua entrega, sua qualidade vocal, sua alma, sua interação orgânica e quase sexual com o público, ao contrário, deixam o clima realmente agitado.

Nestas duas, Brown despeja toda a intensidade existencial de ex-boxeur e quase marginal que, por essas obras divinas, virou um dos maiores artistas de seu tempo. Na letra de “It’s a Mans...”, ele critica a sociedade machista e se revela: “o homem está perdido na selva/ Ele está perdido na amargura”. E ainda complementa filosófica e romanticamente: “O homem fez os carros para nos levar para a estrada/ Homem fez os trens para transportar cargas pesadas/ O homem fez a luz elétrica para nos tirar do escuro/ O homem fez o barco para a água, como Noé fez a arca/ Trata-se de um homem, um homem, um mundo de homens/ Mas não seria nada, nada sem uma mulher ou uma garota. Gritos ensandecidos do público a cada frase cantada, a cada suspiro, a cada movimento sugestivo no palco, tomados por aquela força negra avassaladora à sua frente. Ele domina a plateia como um encantador de serpentes. O público, hipnotizado, acompanha todos os seus passos, atende a todos os seus comandos. Estão magnetizados.

O final disso? A apoteose. “Please, Please, Please”, num soul mil vezes mais quente que sua original, é a despedida e também quando e acontece uma cena tão marcante que chega a ser visível só ouvindo-a. Num estado catártico, Brown, tomado pela música, pelo show, pelo clima, pelo público, canta, grita e dança. O Apollo Theatre vem abaixo! No meio da performance, o rei do soul deixa o pedestal do microfone cair no chão mas, inebriado, nem percebe e segue dançando, enquanto a galera quase desvanece de tanto êxtase. O apresentador Charles Bobbit, então, recolhe o microfone e, sem mais o que dizer, simplesmente exalta aquele mito que está ali no palco, a seu lado, concluindo um show sabidamente histórico já naquele exato momento. “James Brown! James Brown! James Brown! Esse é Sr. Dynamite, o rei do rithum n’ blues. James Brown!”. O que mais ele conseguiria dizer, né?

A importância de James Brown para a história da música é incalculável. Criador de um dos gêneros musicais mais difundidos e absorvidos do mercado do entretenimento, o funk, foi inspiração para toda a geração em estilo, sonoridade, estética e atitude. A soul music, o rock, o jazz, a MPB, todos beberam nele. De Sly & Family Stone a Beatles, de George Clinton a Erasmo Carlos, de Rolling Stones a Lenny Kravitz, de Miles a Morcheeba. O rap ou o britpop dos anos 90 nem existiriam, pra se ter ideia. Além disso, foi Brown quem, de fato, ensinou o mundo pop a dançar, liberando o salão para outros grandes bailarinos populares como Michael JacksonMadonnaPrince e John Travolta. “Live at the Apollo”, evidentemente, não é o seu único grande álbum, mas é certamente um exemplo fiel da magnitude de sua obra. Ainda mais por superar o fato de ser duplo e ao vivo, o que me contraria duplamente, que geralmente prefiro os trabalhos de estúdio e em formato simples.

Contraria, entretanto, mais do que somente meu gosto pessoal. Lembro-me da difundida tese do filósofo da comunicação Walter Benjamin de que a obra de arte perde a sua “aura” quando reproduzida, ou seja, quando passada para outra plataforma, submergem-lhe junto suas autenticidade e alma, mesmo quando tecnicamente bem copiada. Parece que James Brown consegue, misteriosamente, subverter essa lógica e preservar intacta toda a emoção do “aqui e agora” que se presenciou naquelas fatídicas noites de junho de 1967. Quem esteve lá, viu; mas quem não esteve, consegue captar o calor da emoção, a “aura” do momento apenas ouvindo. Isso é possível perceber-se até hoje, quase 50 anos depois, através das milhares de cópias que o mundo tecnológico oferece. E quem há de duvidar um feito desses vindo de um cara cujo apelido é justamente “o padrinho da alma”?
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FAIXAS:
1. Introduction – 0:32
2. Think – com Marva Whitney (Pauling) – 2:54
3. I Wanna Be Around (Mercer/Vimmerstadt) – 3:09
4. James Brown Thanks – 1:11
5. That's Life (Duke/Harburg) – 4:05
6. Kansas City (Leiber/Stoller) – 4:49
7. Medley – 14:54:
- "Let Yourself Go" (Brown/Hobgood) – 6:34
- "There Was a Time" (Brown/Harris/Hobgood) – 2:45
- "I Feel All Right" (Brown/Hobgood) – 5:35
10. Cold Sweat (Brown/Ellis/Ellis/Lindup) – 4:43
11. It May Be the Last Time (Brown/Wright) – 3:06
12. I Got You (I Feel Good) (Brown) – 0:38
13. Prisoner of Love (Columbo/Gaskill/Robin) – 7:25
14. Out of Sight (Brown/Wright) – 0:26
15. Try Me (Brown/Marley) – 2:54
16. Bring It Up (Hipster's Avenue) (Brown/Jones) – 4:38
17. Medley – 17:27
- “It's a Man's Man's Man's World” (Brown/Jones/Newsome) – 11:16
- “Lost Someone (Brown/Byrd/Stallworth/Stallworth) – 6:21
18. Please, Please, Please (Brown/Terry) – 2:44

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OUÇA O DISCO: