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segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

"Propriedade", de Daniel Bandeira (2022)

 

Não é coincidência que, numa das sessões da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Reforma Agrária e Urbana, a chamada CPMI “da Terra”, em 2023, tenha-se recorrido a Karl Marx para evidenciar a incongruência daquela comissão. Constituída “com o objetivo de realizar amplo diagnóstico sobre a estrutura fundiária brasileira, os processos de reforma agrária e urbana, os movimentos sociais de trabalhadores, assim como os movimentos de proprietários de terras”, a tal CPMI não apenas sucumbiu por falta de autossustentação como, no final do dia, não olhou para a prioridade: ser uma ferramenta para resolução da questão do campo no Brasil. Em depoimento, o presidente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), João Pedro Stédile, valeu-se dos conceitos do filósofo alemão para uma explicação bem didática sobre a estrutura sociopolítica contemporânea pautada pelos valores capitalistas. E isso por um simples, mas profundo fator: o de que o ideário marxista inclui, ineditamente na história da Sociologia, a classe trabalhadora no contexto desta reflexão. Depois de Marx, foi impossível dissociar o trabalhador das relações de poder e, consequentemente, relativizar o conceito de “propriedade”.

A própria investigação da CMPI em si, em pleno 2023, denota o quanto a questão fundiária no Brasil permanece mal resolvida. Está relacionada diretamente a chagas da sociedade provocadas pela histórica mentalidade escravista e potencializada pelas relações de poder capitalistas. Pois que a exploração de mão de obra, o monopólio da elite, as péssimas condições de trabalho e a alienação ao acesso à saúde e à educação, tudo isso está hibridizado num fundamental filme cujo título traz o cerne dessa questão: "Propriedade". A obra, do jovem cineasta pernambucano Daniel Bandeira, é, ao mesmo tempo, de uma enorme riqueza narrativa quanto, principalmente, de um realismo crível e tragicamente plausível. Em forma thriller à brasileira, o filme expõe situações prementes da sociedade brasileira atual, desde a escravidão moderna, a especulação imobiliária e o velho coronelismo, incrustado como uma doença secular na sociedade nordestina.

Na trama, a reclusa estilista Tereza (Malu Galli), esposa de um rico empresário e proprietário de terras (Tavinho Teixeira, como Roberto), deixa a cidade para refugiar-se com o marido em uma fazenda da família na tentativa de se recuperar. Mas, quando os explorados trabalhadores do local sabem da intenção do patrão de vender as terras e dispensá-los sem nenhum direito e indenização, um levante acontece. Para se proteger da violenta revolta dos trabalhadores, Tereza se enclausura em seu carro blindado. Mesmo separados por uma camada impenetrável de vidro, o conflito é inevitável e escalável, pois balizado por um elemento muito menos material e, sim, simbólico: a luta de classes.

Malu Galli como Tereza em cena tensa de "Propriedade": terror à brasileira

Segundo longa de Bandeira, "Propriedade" – provavelmente o melhor filme nacional de 2023 – tem o poder de consolidar uma época. Assim como outras escolas ou movimentos cinematográficos ao longo da história, o filme junta-se a obras irmãs, formando um panorama ideológico e produtivo robusto representativo do seu tempo/espaço. A exemplo do neorrealismo italiano, do novo cinema iraniano ou do Dogma 95 dinamarquês, cujos filmes dialogam entre si dentro de seus próprios círculos, "Propriedade" responde a temas muito caros a outros filmes da cinematografia contemporânea de Pernambuco, que se consolida como um dos mais frutíferos polos de produção de cinema no Brasil neste século. É fácil notar semelhanças com elementos da crítica social recorrentemente trazida pelos autores desta cena. "Piedade", de Cláudio Assis (especulação imobiliária), "Carro Rei", de Renata Pinheiro (repressão do Estado) e "Fim de Festa", de Hilton Lacerda (violência urbana), são alguns deles.

Porém, "Propriedade" traz ainda mais para próximo de si os filmes de Kleber Mendonça Filho, com quem Bandeira trabalhara desde 2002 no curta "A Menina do Algodão", o qual roteirizou e atuou. A referência temática e fotográfica a "Bacurau" (2019), de Mendonça Filho e Juliano Dornelles, é notória, assim como soluções narrativas de desfecho, que interligam ainda mais ambos. Igualmente, "Aquarius" (2016), outro de Mendonça Filho, que também avança sobre a questão do oportunismo do setor imobiliário e da luta pela preservação cultural diante da modernização desenfreada do liberalismo. Contudo, "Propriedade" principalmente retraz a discussão basal de "O Som ao Redor" (2012), primeiro longa de Mendonça Filho, uma contundente crítica ao antagonismo entre público e privado, entre pobreza e riqueza, entre velho e novo, entre impotência e poder, entre humanidade e barbárie.

"Propriedade" e "Bacurau": semelhança temática, cenográfica e fotográfica
entre os filmes de Bandeira e Mendonça Filho

O que "Propriedade" expõe é o choque entre elite e proletariado, uma vez que o sistema vigorante favorece as desigualdades. Não apenas isso: baseia-se nelas. O capital supõe mediar um equilíbrio, mas só faz provocar revolta nos que o geram, mas não o detém, e medo nos que o detém, mas não o geram. A tensão é permanente e dos dois lados. Veja-se a frase que liga o automóvel de Roberto por meio de IA: o verso inicial da música "Dê um Rolê". Cantado por Gal Costa no clássico disco "Fa-Tal", de 1971, marco da resistência aos anos de chumbo no Brasil, o verso diz: “Não se assuste, pessoa”. Mostra da obviedade sem criatividade da elite, que se apropria do discurso dissonante da esquerda para vestir seus modos ideológicos distorcidos, a música é usada por ele como se esta condissesse com seu comportamento imperialista, distorcendo a essência da obra e, por consequência, transformando-a num mero produto de consumo.

Mas os vieses, claro, não são absorvidos por quem raciocina apenas a favor do (seu) capital. O fato de este pequeno enunciado servir como chave para acionar o veículo também funciona, noutro patamar, como uma chave muito mais simbólica, pois capaz de ativar de forma verbal o medo e a neura de uma fatia da sociedade hedonista, que se vitimiza, mas não questiona o quanto seu comportamento sustenta desigualdades que remontam à escravatura. Como Caetano Veloso escreveu certa vez para a voz da mesma Gal Costa: “Neguinho quer justiça e harmonia para se possível todo mundo, mas a neurose de neguinho vem e estraga tudo”.

Trabalhadores rurais e os
limites das relações de poder
Quando trata da base da pirâmide, o filme traz à discussão um tema essencial e controverso, que é o direito à terra. O principal motivo que faz os campesinos se manterem na fazenda a qual já se sabiam dispensados é a presunção de que, por terem dedicado suas forças de trabalho de maneira tão intensa e indigna há tantos anos e gerações, mereciam tornarem-se eles os donos dela. Uma reparação a si e a todo um povo massacrado há séculos pelos poderosos. Reivindicação justa ou não, legal ou não, mas que encontra na ação presente do MST um fundo de verdade, uma vez que o movimento, muitas vezes acusado de fora-da-lei, é, por exemplo, o grupo que mais produz arroz orgânico no Brasil, correspondendo a 70% do grão produzido nacionalmente, segundo dados do Instituto Riograndense do Arroz (Irga).

Renovando a discussão sobre a reforma agrária, tão presente no cinema brasileiro dos anos 1960 e 1970 em filmes como "Deus e o Diabo na Terra do Sol", "Vidas Secas", "Maioria Absoluta" e "O País de São Saruê", Propriedade traz para o contexto do Brasil atual em que o liberalismo exerce forte influência no mercado e na sociedade. Não é de se estranhar que um filme tão agudo e necessário seja do mesmo ano em que se revelou, no Rio Grande do Sul, na rica e conceituada região da Serra, casos análogos à escravidão com trabalhadores rurais, mesmo quase 135 anos após a Abolição. E não para com conterrâneos gaúchos, mas justamente com imigrantes nordestinos sujeitos a condições desumanas longe de sua terra.

Em "Propriedade", o que se sugere é um momento de fratura. Rompidas as grades da “senzala” e da “casa grande”, ora representadas pela porteira da fazenda do interior e pelas torres residenciais da cidade, o que resta é a colisão entre estes dois opostos sociais, até que um enterre o outro. Nem vidros blindados ou camuflados são capazes de conter. A CPMI “da Terra”, por óbvio, inconclusiva, haja vista que originalmente mal sustentada, denota o quanto os ensinamentos de Marx prevalecem e que não cabe (como nunca coube ou deveria ter cabido) mais espaço para a iniquidade em tempos atuais. A feroz e coerente reação dos personagens revoltosos de "Propriedade", bem como a consequente escalada de violência da trama, serve como um aviso de que a questão da terra deve ser encarada de frente e sem filtros. Um “basta” para um problema basal da sociedade brasileira de difícil resolução, mas de necessária atenção. E a quem quiser prosseguir mantendo a desigualdade e o desrespeito aos direitos humanos, um alerta: assustem-se, pessoas. Não acreditem em Gal quando ela diz que a vida, assim, é boa.

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trailer de "Propriedade", de Daniel Bandeiras


Daniel Rodrigues

Artigo originalmente publicado no Blog Roger Lerina/ Matina Jornalismo

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Melhores do Ano Accirs 2023


Como ocorre tradicionalmente, a Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (Accirs), da qual faço parte, elegeu os Melhores do Ano, destacados entre produções lançadas em mostras e festivais, no circuito comercial e também em plataformas de streaming. A votação é referente ao ano de 2023, quando a Associação atingiu um grande marco ao celebrar seu 15º aniversário consolidada como uma instituição cada vez mais atuante e importante no ambiente cinematográfico do Rio Grande do Sul e do país.

Dividida em dois turnos, a eleição traz os melhores longas-metragens estrangeiro, brasileiro e gaúcho, além do melhor curta gaúcho do ano. A maioria destes filmes, aliás, fomos reportando aqui no blog ao longo do ano na seção Claquete. Fora desta seleção, a premiação da Accirs entrega, desde sua primeira edição, o Prêmio Luís César Cozzatti, que reconhece filmes, projetos, instituições ou pessoas de destaque no cenário audiovisual gaúcho.

Confira os vencedores do Prêmio Accirs 2023:


Melhor curta-metragem gaúcho: 
"Centenário de Minha Bisa", de Cristyelen Ambrozio

Tocante documentário poético da realizadora indígena Cristyelen Ambrozio, confirmando a escolha da nossa associação que, em agosto, no Festival de Cinema de Gramado, concedemos-lhe o prêmio de Melhor Curta Gaúcho pelo Júri da Crítica. O filme tece diversas camadas simbólicas, desde a visão feminina, a dos povos originários, a necropolítica, a herança cultural. Uma joia de Cristyelen, de quem se espera que rendam novos frutos.





Melhor longa-metragem gaúcho: 
"Casa Vazia", de Giovani Borba

O excelente filme de Giovani Borba, do qual tive a felicidade de participar de um debate em setembro, na Cinemateca Paulo Amorim, ao lado deste jovem realizador e da minha colega de Accirs e coordenadora da cinemateca Mônica Kanitz, era também meu preferido entre os longas gaúchos. Afinal, este thiller gaudério, misto de western e drama fantástico, pode ser visto com um marco do novo cinema no Rio Grande do Sul com obras como "Castanha" e "Mulher do Pai".



Melhor longa-metragem nacional: 
"Retratos Fantasmas", de Kleber Mendonça Filho

Outro documentário entre nossos premiados, e outro documentário de um olhar muito pessoal. Mas aqui, no caso, do grande nome do cinema nacional dos últimos anos, o pernambucano Kléber Mendonça Filho. Para quem acompanha sua obra tão marcante, ver o caminho afetivo percorrido por ele para a composição de seus curtas e, principalmente, os longas urbanos "O Som ao Redor" e "Aquarius", é emocionante e revelador. Foi o filme (mal) indicado a representar o Brasil no Oscar mas, mais uma vez, não ficou entre os selecionados. Não tem mesmo o perfil, pois trata-se de uma obra muito poética para o gosto da Academia.


Melhor longa-metragem estrangeiro: 
"Assassinos da Lua das Flores", de Martin Scorsese

Ah, o velho Scorsese, hein? Já discorri mais amplamente sobre este novo filme do mestre do cinema norte-americano e mundial, mas não custa repetir, que "Assassinos..." é um dos grandes filmes de sua extensa filmografia. A visão revisionista da história "yankee" é não só mais um capítulo em seu importante papel para a reconfiguração dos mitos imperialistas como pertinente para o momento de valorização dos povos originários. Mestre.




Poster do curta "Glênio",
de Luiz Alberto Cassol e
exibido em Gramado
Prêmio Luís César Cozzatti (destaque gaúcho): 
Glênio Póvoas

Glênio Nicola Póvoas é pesquisador, professor, diretor e roteirista, Mestre em Ciências da Comunicação pela USP e Doutor em Comunicação Social pela PUC-RS. Com uma longeva carreira profissional dedicada ao cinema, em especial ao gaúcho, foi um dos principais responsáveis pelo lançamento do Portal do Cinema Gaúcho e assina a coordenação geral do projeto – um grandioso banco de dados sobre nosso cinema, apresentado em 2023. Tive o prazer de ser seu aluno na cadeira de Cinema na faculdade de Jornalismo.





Daniel Rodrigues

quinta-feira, 24 de agosto de 2023

CLAQUETE ESPECIAL 15 ANOS DO CLYBLOG - Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes (parte 4)

 

Os clássicos absolutos chegaram, entre eles,
"O Beijo da Mulher Aranha", primeiro filme
brasileiro a vencer um Oscar
Demorou um pouco além do normal, mas voltamos com mais uma parte da nossa série especial “Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes”. E tem justificativa para esta demora. Isso porque reservamos este quarto e penúltimo recorte da lista para o mês de agosto, o de aniversário do Clyblog, uma vez que este Claquete Especial, iniciado em abril, é justamente em celebração dos 15 anos do blog.

Talvez somente esta justificativa não baste, entendemos. Então, já que vínhamos mês a mês postando uma nova listagem com 20 títulos cada, propositalmente falhamos em julho para que agora, no mês do aniversário, fizéssemos uma sequência não apenas de 20 filmes, mas de 40 de uma vez. E não se tratam de quaisquer quatro dezenas! Afinal, a seleção inteira é tão rica, que igualável em qualidade a qualquer cinematografia mundial. Mas, especialmente, porque estes novos compreendem as posições do 50º ao 11º. Ou seja: aqueles “top top” mesmo, quase chegando nos “finalmentes”.

Waltinho, um dos 6 com 2 filmes entre
os 40 melhores
E se o adensamento já vinha acontecendo fortemente, com a presença de grandes realizadores, títulos clássicos e premiados e escolas reconhecidas somadas às novas produções do furtivo século XXI, agora, então, esta confluência se faz ainda mais presente. Dá para se ter ideia pelos nomes de cineastas de primeira linha como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Walter Salles Jr., Luis Sergio Person, Hector Babenco e Eduardo Coutinho, que já deram as caras com obras anteriormente e, desta feita, emplacam dois filmes cada entre os selecionados, até então os mais bem colocados. Somam-se a eles os altamente competentes João Moreira Salles, Jorge Furtado e Bruno Barreto, também com dois entre os 40.

Pode-se dizer que, agora, é quando de fato entram os clássicos incontestes, aqueles “divisores de águas” do cinema nacional (e, por que não, mundial), como “Ganga Bruta”, de Humberto Mauro, "O Beijo da Mulher Aranha", de Babenco, “São Paulo S/A”, de Person, e “Tropa de Elite”, de José Padilha. Mas também pedem passagem “novos clássicos”, tal o perturbador documentário “Estamira” e o premiado “Bacurau”, de 2019, quarto mais recente entre os 110 atrás apenas de “Três Verões” (63º), “Marte Um” (79º) e “Marighella” (106º).

Elas, as cineastas mulheres, se ainda em desigualdade na contagem geral, marcam forte presença nesta fatia mais qualificada até aqui. Estão entre elas Kátia Lund, Daniela Thomas e Anna Muylaert, esta última, responsável por um dos filmes mais tocantes e críticos do cinema brasileiro, “Que Horas Ela Volta?”. Então, pegando carona na expressão, para quem estava nos perguntando "que horas eles voltariam?”: voltamos. E voltamos abalando com 40 filmes imperdíveis, que dignificam o cinema brasileiro e latino-americano. Pensa bem: apenas 10 títulos os separam do melhor cinema do Brasil. Isso diz muito.

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50. "Estamira”, Marcos Prado (2004)

Dentre as dezenas de documentários realizados na década 00, um merece especial destaque por sua força expressiva incomum: "Estamira". Certamente o que colabora para esta pungência do filme do até então apenas produtor Marcos Prado, sócio de José Padilha à época, é a abordagem sem filtro e nem concessões da personagem central, uma mulher catadora de lixo com sério desequilíbrio mental, capaz de extravasar o mais colérico impulso e a mais profunda sabedoria filosófica. A própria presença da câmera, aliás, é bastantemente honesta, visto que por vezes perturba Estamira. Obra bela e inquietante. Melhor doc do FestRio, Mostra de SP, Karlovy Vary e Marselha, além de prêmios em Belém, Miami e Nuremberg.




49. “Tropa de Elite”, de José Padilha (2007)
48. “Batismo de Sangue”, de Helvécio Ratón (2007)
47. “Terra Estrangeira”, Walter Salles Jr. e Daniela Thomas (1996) 
46. “O Dia em que Dorival Encarou a Guarda”, Jorge Furtado e José Pedro Goulart (1986)
45. “Amarelo Manga”, de Cláudio Assis (2002)



44. “Nunca Fomos Tão Felizes”, Murilo Salles (1984) 
43. “Edifício Master”, de Eduardo Coutinho (2002)
42. “O Homem da Capa Preta”, Sérgio Rezende (1986)
41. “O Beijo da Mulher Aranha”, Hector Babenco (1985)


40. 
“São Bernardo”, Leon Hirszman (1971) 

Adaptação do livro do Graciliano Ramos, que transporta para a tela não só a história, mas a secura das relações e a incomunicabilidade numa grande fazenda do início do século XX, escorada na desigualdade dos latifúndios. Não há diálogo: a vida é assim e pronto. Daqueles filmes impecáveis em narrativa e concepção. E Leon, comunista como era, não deixa de, num deslocamento temporal, dar seu recado quanto à reforma agrária. A trilha, vanguarda e folk, algo varèsiana e smetakiana, é de Caetano Veloso, que acompanha a secura da narrativa e cria uma "música" totalmente vocal em cima de melismas lamentosos e desconcertados. Recebeu vários prêmios em festivais, entre eles o de melhor ator para Othon Bastos no Festival de Gramado, o Prêmio Air France de melhor filme, diretor, ator e atriz (Isabel Ribeiro), além do Coruja de Ouro de melhor diretor e atriz coadjuvante (Vanda Lacerda). 



39. “Carandiru”, de Hector Babenco (2002)
38. “O Som do Redor”, Kleber Mendonça Filho (2012)
37. “Que Horas Ela Volta?”, Anna Muylaert (2015) 
36. “Notícias de uma Guerra Particular”, Kátia Lund e João Moreira Salles (1999)
35. “Ganga Bruta”, Humberto Mauro (1933)



34. “Lavoura Arcaica”, Luiz Fernando Carvalho (2001)
33. “Bar Esperança, O Último que Fecha”, Hugo Carvana (1982) 
32. “Couro de Gato”, Joaquim Pedro de Andrade (1962)
31. “Os Fuzis”, Ruy Guerra (1964)


30. “O Bandido da Luz Vermelha”, Rogério Sganzerla (1968) 

Se existe cinema marginal, esta classificação se deve a “O Bandido...”. Transgressor, louco, efervescente, non-sense, crítico, revolucionário. Adjetivos são pouco pra definir a obra inaugural de Sganzerla, que trilharia pela "marginalidade" até o final da coerente carreira. Um filme de manifesto, questionamento de ordem política, de uma estética diferente e bela (apesar do baixo orçamento) e a vontade de avacalhar com tudo. "Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha e se esculhamba". Grande vencedor do Festival de Brasília de 1968. O filme que fez o “terceiro mundo explodir” de criatividade.


29. "Santiago", de João Moreira Salles (2007)
28. “Jogo de Cena”, Eduardo Coutinho (2007)
27. “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”, Glauber Rocha (1968)
26. “Noite Vazia”, Walter Hugo Khouri (1964)
25. “São Paulo S/A”, Luis Sérgio Person (1965) 



24. "Terra em Transe", Glauber Rocha (1967) 
23. "Sargento Getúlio”, Hermano Penna (1981) 
22. “O Caso dos Irmãos Naves”, Luis Sergio Person (1967) 
21. “Memórias do Cárcere”, Nelson Pereira dos Santos (1984) 

20. 
 “Ilha das Flores”, Jorge Furtado (1989)

É incontestável a importância de "Ilha das Flores" para a cinematografia gaúcha e nacional. O filme que, em plenos anos 80 ainda de fim do período de Ditadura, expôs ao mundo uma realidade muito pouco enxergada, o fez de forma absolutamente criativa e impactante. Ao acompanhar o percurso de um mero tomate da horta até o lixão a céu aberto onde vive uma fatia da população em total miséria e descaso social, Furtado virou de cabeça para baixo a narrativa do audiovisual brasileiro, influenciado diretamente as produções de TV dos anos 80 e 90 e o cinema pós-retomada nos anos 2000. Urso de Prata para curta-metragem no 40° Festival de Berlim, Prêmio Especial do Júri e Melhor Filme do Júri Popular no 3° Festival de Clermont-Ferrand, França, entre outras premiações na Alemanha, Estados Unidos e Brasil. Um clássico ainda hoje perturbador.



19. “O Beijo no Asfalto”, Bruno Barreto (1980) 
18. “Central do Brasil”, de Walter Salles Jr. (1998) 
17. “Dnª Flor e seus Dois Maridos”, Bruno Barreto (1976)
16. “Garrincha, A Alegria do Povo”, Joaquim Pedro de Andrade (1962)
15. “Barravento”, Glauber Rocha (1962)


14. “Rio 40 Graus”, Nelson Pereira dos Santos (1955)
13. “Bacurau”, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles (2019)
12. “Assalto ao Trem Pagador”, Roberto Faria (1962) 
11. “Bye Bye Brasil”, Cacá Diegues (1979) 



Daniel Rodrigues


segunda-feira, 19 de junho de 2023

CLAQUETE ESPECIAL 15 ANOS DO CLYBLOG - Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes (parte 3)


Grande Otelo em "Rio, Zona Norte" com o seu realizador, 
Nelson Pereira dos Santos, que chega para ficar
Chegamos à terceira parte de nossa lista dos 110 melhores filmes brasileiros, em comemoração aos 110 anos do primeiro filme realizado no Brasil, “Os Óculos do Vovô”. E justo naquele em que é celebrado o Dia do Cinema Brasileiro! E podemos dizer que a coisa está ficando cada vez mais séria. Não que os primeiros-últimos da ordem já não garantissem uma qualidade excepcional. Afinal, separar APENAS 110 títulos entre tantos memoráveis foi tarefa não só difícil como incompleta. Porém, é óbvio que, à medida que vai se avançando na classificação, também se intensifica a importância das obras.

É bem o caso do nosso novo recorte, que vai do 70º ao 51º posto. E em verdade vos digo: só tem filmão! Se nos 40 títulos anteriores já figuravam grandes realizadores, como Eduardo Coutinho, Glauber Rocha, Hector Babenco e Humberto Mauro, agora entram no páreo outras referências indeléveis do cinema nacional, como Leon Hirzsman, Nelson Pereira dos Santos e Kleber Mendonça Filho com seus primeiros listados. Por que, claro, todos eles voltarão mais pra frente com mais obras. Mesmo caso de Cláudio Assis, aqui com “A Febre do Rato”, e Ruy Guerra, já mencionado com seu "Os Cafajestes" (102º) e agora representado por um dos raros musicais de toda a seleção: “Ópera do Malandro”. Como Guerra, Walter Avancini, Julio Bressane, Joaquim Pedro de Andrade, Walter Lima Jr. e Rogério Sganzerla, já presentes, voltam à carga com todo merecimento. 

Entre as mulheres, se até então apareceram apenas filmes de Suzana Amaral, Laís Bodanzky e Tatiana Issa, Sandra Kogut amplia a representatividade feminina trazendo uma obra-prima da recente cinematografia brasileira: “Três Verões”. Por falar em época, ao contrário do recorte imediatamente anterior, onde calhou de não haver nenhuma produção dos anos 80, nesta, pelo contrário, elas são maioria entre as décadas, com 8 títulos, 4 a mais que a segunda com mais filmes, os anos 60. Este é um dos retratos de momentos importantes do audiovisual brasileiro que uma lista de teor histórico como esta pode suscitar. A constatação é uma mostra (à exceção de “Morte e Vida Severina”, teledrama da TV Globo) do quanto a Embrafilme, bem estruturada nos anos 80, rendeu ao cinema brasileiro frutos muito qualificados e duradouros. A mesma Embrafilme desmontada nos anos 90 por Collor... Mas isso é outra história.

Confiram, então, mais uma parte da lista destes filmes que, se não são necessariamente todos os melhores, infalivelmente guardam qualidades que os credenciam a estarem aqui.

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70.
“O Homem que Virou Suco”, João Batista de Andrade (1981) 

A forte e memorável atuação de José Dumond (Melhor ator em Gramado, Brasília e Huelva), mais uma vez espetacular como em “A Hora da Estrela” e “Morte e Vida Severina”, leva o filme, que conta a história do poeta popular nordestino Deraldo. Ele quer tenta viver em São Paulo de sua arte mas é irresponsavelmente confundido com um assassino. Suas raízes e verdades, então, viram “suco” na grande cidade. Melhor Filme em Moscou e Nevers, é daquelas corajosas realizações  ficcionais, mas abertamente realista que quase documental, e de extrema importância para o período de abertura política no Brasil após os Anos de Chumbo da Ditadura Militar.



69. “Sem Essa Aranha”, Rogério Sganzerla (1970) 
68. “Pra Frente, Brasil”, Roberto Faria (1982) 
67. “Tropa de Elite 2 - O Inimigo Agora é Outro”, José Padilha (2010)
66. “Ópera do Malandro”, Ruy Guerra (1986) 
65. “O Estranho Mundo de Zé do Caixão”, José Mojica Marins (1968)



64. “O Padre e a Moça”, Joaquim Pedro de Andrade (1966)
63. “Três Verões”, Sandra Kogut (2020)
62. “Ele, O Boto”, Walter Lima Jr. (1987) 
61. “A Pedreira de São Diogo”, Leon Hirzsman (1962) 

 
60.
“Os 7 Gatinhos”, Neville D’Almeida (1980) 


Neville é daqueles cineastas da “elite intelectual carioca” que produz coisas às vezes intragáveis, mas esse é um acerto inconteste. Baseado em Nelson Rodrigues, tem o dedo do próprio no roteiro e, além de trilha com músicas de Roberto e Erasmo, é uma tragicomédia crítica e consistente à hipocrisia e depravação da sociedade brasileira. Interpretações (Thelma Reston, Melhor Coadjuvante em Gramado) e cenas inesquecíveis como a dos “caralhinhos voadores” e “me chama de contínuo” estão neste longa referencial.





59. “O Mandarim”, de Julio Bressane (1995)
58. “Morte e Vida Severina”, Walter Avancini (1981)
57. “Casa Grande”, Fellipe Gamarano Barbosa (2014)
56. “A Febre do Rato”, Cláudio Assis (2011)
55. “O Romance da Empregada”, Bruno Barreto (1888)



54. “Faca de Dois Gumes”, Murilo Salles (1989)
53. “Rio, Zona Norte”, Nelson Pereira dos Santos (1957)
52. “Aquarius”, Kleber Mendonça Filho (2016)
51. “Blá Blá Blá”, Andrea Tognacci (1968)


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Bento Jazz & Wine Festival - Casa das Artes - Bento Gonçalves/RS (19, 20 e 21/11/2021)

 

Estive no último final de semana em Bento Gonçalves acompanhando a segunda edição do Bento Jazz & Wine Festival, que tem a curadoria do meu amigo Carlos Badia. Depois de uma abertura festiva com o Secretário da Cultura, Evandro Soares, o ex-prefeito Guilherme Pasin e do atual Diogo Siqueira, foi feita a homenagem à pianista, tecladista e cantora Ana Mazzotti, que deu nome ao palco da Rua Coberta. Pra começar a função na sexta-feira, tivemos o Quarteto New Orleans, formado por Roberto Scopel no trompete; Luis Carlos Zeni no sax tenor; Jhonatas Soares na tuba e Edemur Pereira, na percussão. Nos moldes da POA Jazz Band, o grupo toca clássicos do dixieland, como a clássica "When The Saints Go Marching In". No final da apresentação, o Quarteto New Orleans desceu do palco e se misturou ao público, bem ao estilo da cidade americana. 

Na sequência, no palco do teatro da Casa das Artes - um moderno centro cultural incrustrado na Serra - o Quartchêto iniciou as comemorações de seus 20 anos de estrada. Com sua formação inusitada de trombone, violão, acordeon e bateria e percussão, a banda desfilou composições de seus três discos com destaque para "Mas Tá Bonito". A novidade nesta apresentação foi a adição de Matheus Kleber no acordeon em substituição a Luciano Maia, que segue sua carreira solo. Como sempre, o Quartchêto demonstrou sua competência em mesclar os ritmos gaúchos à sonoridade do trombone de Julio Rizzo. Hilton Vacari mantém a base rítmica enquanto Ricardo Arenhaldt mostra todo o veneno do percussionista brasileiro. 

Depois tivemos uma das surpresas do festival: o trio Blue Jasmine, formado por Fran Duarte na voz, Débora Oliveira na harmônica e Karina Komin na guitarra. As meninas fizeram um repertório de blues, R&B e rock com segurança e musicalidade. Entre as músicas apresentadas, estava "See See Rider", gravada originalmente pela blueseira Ma Rainey. A primeira noite foi fechada pelos caxienses do De Boni Quarteto. Liderada pelo acordeonista Rafael De Boni, a formação, que tem ainda Lázaro Rodrigues na guitarra, Gustavo Viegas no baixo elétrico e Cristiano Tedesco na bateria, passeia pelas sonoridades portenhas, com forte influência de Astor Piazzolla. 

A El Trio, abrindo a tarde de sábado com jazz moderno

A tarde de sábado iniciou com as evoluções jazzísticas do DJ Zonatão, tocando Miles Davis, Jeff Beck e George Benson. A música ao vivo começou com El Trio, que tem Leonardo Ribeiro no violão e voz, Cláudio Sander nos saxes tenor e alto e Giovani Berti na percussão. Com forte acento nos ritmos latino-americanos, o El Trio também acerta no repertório de clássicos do jazz como "Tutu", de Miles, e "A Night in Tunisia", de Dizzy Gillespie. Leonardo mantém a harmonia e Giovani no ritmo, enquanto Sander mostra porque é um dos melhores saxofonistas do estado. 

O trio de Leonardo Bitencoutrt
Seguiu-se o Mazin Silva Trio, com o guitarrista de Blumenau com um trio integrado por Caio Fernando no Baixo e o sensacional Jimi Allen na bateria. Mazin circulou pelas composições de seus inúmeros discos, com muita qualidade instrumental, mesmo que calcada nas sonoridades de Pat Metheny. Um dos grandes pianistas da novíssima geração da música gaúcha, Leonardo Bittencourt, apresentou um trio All-Star com seu colega de Marmota, André Mendonça no baixo acústico, e a revelação da bateria dos últimos anos, o riograndino Lucas Fê. Eles interpretaram standards do jazz com altíssima octanagem. 

Uma das bandas mais interessantes surgidas no Rio Grande do Sul, o Quinteto Canjerana cativou o público da Rua Coberta com as músicas de seus dois discos gravados. Com Zoca Jungs na guitarra, violão e viola; Maurício Horn no acordeon, Alex Zanotelli no baixo elétrico, Maurício Malaggi na bateria e Fernando Graciola no violão, o grupo mostrou como se pode fazer música gaúcha instrumental contemporânea, dosando as sonoridades dos ritmos do Sul com uma abordagem moderna. A noite de sábado encerrou com um dos destaques de todo o festival, o violonista Lúcio Yanel. Argentino mas radicado há 38 anos aqui no Brasil, Yanel deu uma verdadeira aula do violão portenho e pampiano, passando por chacareras, milongas e valsas. Somente com seu violão, o músico conseguiu fazer com que o público ficasse hipnotizado com sua técnica exuberante. 

Yanel: aula de violão portenho

O domingo começou com o trio de Bento Teia Jazz, que misturou composições próprias com standards. A proposta é interessante e mais estrada vai solidificar o som do grupo. O blues esteve representado pelo Alê Lucietto Trio que interpretou Muddy Waters, Jimi Hendrix e Eric Clapton junto com músicas da banda e animou o público com uma linguagem mais roqueira. 

Um dos shows mais esperados do Bento Jazz & Wine Festival foi o de Renato Borghetti Quarteto, que mostrou uma grata surpresa: a participação de Jorginho do Trompete, substituindo o flautista e saxofonista Pedrinho Figueiredo, que estava em outro compromisso. Foi muito interessante ver e ouvir como as composições de Borghetti como "Passo Fundo" e "Milonga Para as Missões" se modificaram com a sonoridade rascante do trompete. Acompanhando os dois e mostrando suas habilidades musicais, estiveram os habituais Daniel Sá ao violão e Vitor Peixoto ao teclado. 

Após a música vibrante de Borghettinho, o teatro da Casa das Artes recebeu um dos grupos mais instigantes surgidos no estado, a Marmota. Com os integrantes Leonardo Bittencourt e André Mendonça, que já haviam participado no sábado, tivemos o baterista Bruno Braga e o substituto de Pedro Moser, a revelação Lucas Brum na guitarra. Este se mostrou plenamente integrado ao intrincado e desafiador som da banda. Apresentando as músicas de seus dois discos, "Prospecto" e "À Margem", o quarteto ainda deu lugar a novas composições. O público aplaudiu de pé as evoluções instrumentais de rapaziada. 

Para fechar o Bento Jazz & Wine Festival, o palco da Rua Coberta recebeu o Paulinho Cardoso Quarteto em sua formação clássica: Paulinho no aocrdeon, Zé Ramos na guitarra, Miguel Tejera no baixo e Daniel Vargas na bateria. Fazendo sua mistura bem sucedida de música regional com ritmos brasileiros, o grupo foi o perfeito fechamento para três dias de intensa atividade musical. Obrigado, Carlos Badia, e à cidade de Bento Gonçalves por abrir espaço para o instrumental, especialmente após a pandemia. Esperamos ansiosamente a terceira edição do evento em 2022.

Confira mais fotos dos shows do Bento Jazz & Wine Festival:







Paulo Moreira
fotos: Facebook Bento Jazz & Wine Festival
(@bentojazzwine) 



segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Jesus e o Diabo na Terra do Pop

 

Certos marcos temporais não se completam à toa. Em cinema, fenômeno com pouco mais de um século de existência e menos ainda de indústria, décadas contam muito em ternos de significado, ainda mais numa nação jovem como a brasileira. Por isso, diz muito o fato de, há 40 anos, o cinema brasileiro ter perdido Glauber Rocha, principal artífice do Cinema Novo e autor de obras essenciais para a formação do cinema nacional, entre os quais “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de 1964. Primeiro grande marco do Cinema Novo, esta obra divisional é o produto mais pungente de uma rica leva da produção cinematográfica brasileira motivada por um contexto histórico-social e político implosivo nutrido por abissais contradições. Entre a modernidade nacionalista dos tempos pós-Vargas e a embrionária globalização, havia, em mesma proporção, o alarme pelo alto índice de desigualdade social e a forte tensão de forças políticas que resultaria no Golpe Civil-Militar daquele mesmo fatídico ano de lançamento de “Deus e o Diabo...”.

Incandescentes como o sol que assola a terra destas duas forças, a materialização destas motivações em aspectos fílmicos e narrativos dão à obra de Glauber, seguidamente considerada difícil e cerebral, uma representação estética possível de ser revisitada à luz de produções atuais do cinema nacional. A perspectiva pop que traz “Jesus Kid”, de Aly Muritiba, recentemente exibido – e premiado – no Festival de Cinema de Gramado, entreabre, quase 60 anos depois, portas escancaradas com fúria e poesia por Glauber e sua geração. O filme de Muritiba busca explorar artifícios pop já experimentados com êxito anteriormente, numa tentativa digna de estabelecer diálogo com um público aberto a esta abordagem e, principalmente, com condições de transmissão/replicação das propostas discursivas de “vanguarda” na sociedade, a fatia jovem-adulta dos chamados “formadores de opinião”.

Antes mesmo de rodar “Deus e o Diabo...”, Glauber, um iniciante cineasta e ativo crítico de cinema, exaltava em seu “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro”, editado em 1963, o potencial “popular” do Cinema Novo. A ideia dos jovens realizadores do movimento era engendrar um cinema de autor que refletisse a alma de um povo, fosse econômica ou esteticamente. Para isso, vestiam suas obras de características ora muito próprias, mas também de natureza “pop” comuns na acepção mais abrangente do termo. A exemplo do que observava com entusiasmo no cinema de colegas como Paulo César Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade e Nelson Pereira dos Santos, Glauber trazia para seu olhar elementos “pop” dentro de seu contexto cultural, histórico e social, como o cinemão norte-americano, a fragmentação sequencial dos quadrinhos a e correlação entre erudito e folclórico – visto, por exemplo, na trilha sonora de “Deus e o Diabo...” dotada de Villa-Lobos e dos cantos de violeiro de Sérgio Ricardo. Igualmente, estão-lhe presentes o cinema de Sergei Eisenstein, Humberto Mauro, John Ford, Luis Buñuel e Roberto Rosselini, todos, à exceção do primeiro, vivos e ativos à época. Elementos que faziam sentido num contexto de “popficação” nos anos 60. Glauber e seus correligionários entendiam que cabia aos autores do cinema uma visão formativa desta inserção de propostas cultas no tecido social. Transformar a alta cultura em hits deglutíveis.

filme "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha


O uso de elementos “pop” no cinema brasileiro maturou-se ao longo das décadas juntamente com a produção audiovisual nacional. Porém, embora tenha ganho em experiência e até em condições econômicas, alguns ensinamentos parecem ter se dispersado. Em “Jesus Kid”, justamente por seus méritos técnicos, essa inconsistência fica bem evidente. De caprichadas fotografia e direção de arte, o filme de Muritiba se esvazia, por outro lado, naquilo que, certamente, mais almejou realizar, que é uma narrativa de apelo pop. Fugindo do padrão comum, mas também sem recair na proposta alternativa, este formato tenta criar um espaço simbólico que comporta ideias modernas capazes de gerar identificação com o público, sendo um destes recursos a alusão a produtos “do mercado”. Estética e formalmente, “Jesus Kid” apropria-se de referências diretas dos filmes “Barton Fink - Delírios de Hollywood”, de Joen e Ethan Coen (1991), “Cidade dos Sonhos”, de David Lynch (2002) e bastante de Quentin Tarantino, desde os westerns “Os Oito Odiados” (2015) e “Django Livre” (2013) ao episódio de “Grande Hotel” (1995).

Acontece que “Jesus Kid”, mesmo que tenha atingido sua assimilação junto a quem intenta dirigir-se, apresenta duas grandes travas que o impedem de alçar: uma estrutural e outra formal. A começar, o roteiro. Baseado num romance do celebrado escritor Lourenço Mutarelli, o que se verteu das páginas para a construção audiovisual parece ter se descompassado, haja vista, principalmente, o ritmo apressado dos acontecimentos e encadeamentos do filme. Saliente-se: ritmo frenético numa narrativa não pressupõe falta de respiros, visto que a psique do espectador comum – inclusive, o de simpatia ao dito “pop” – carece da tradicional alternância de estados psicológicos da dramaturgia clássica. Subverter isso é optar pelo caminho alternativo, o que está longe de ser-lhe a intenção. 

Enquadramento e tonalidades semelhantes de "Jesus Kid" com
"Barton Fink": referências diretas

Tanto Tarantino quanto os Coen, os cineastas cujas obras são as mais referidas em “Jesus Kid”, sabem bem disso, pois são conhecidos pelo apreço ao exercício de extensão-distensão da narrativa. O primeiro, com seus longos diálogos preparativos para clímaces; já os irmãos Coen, pelo consciente uso dos espaços vazios visual e narrativamente. Por que, então, pegar-lhes emprestado justo o mais superficial, a estética? Impossível não entender isso como um subterfúgio (pouco assertivo) de atração quase publicitária para a obra. A tarantinesca resolução do filme brasileiro, igualmente, não peca pelo tom satírico ou pela bizarrice – aceitáveis dentro da trama – mas pela falta de preparo a um momento tão importante para a história, visto que o espectador é colocado até ali constantemente num indistinto frenesi de imagens e ações.

Miklos: atuação que
enfraquece o filme
Este mesmo raciocínio pode ser aplicado ao outro aspecto analisável de “Jesus Kid”, que é ligado à sua forma: a escolha de Paulo Miklos como protagonista para o papel do escritor Eugênio. Não é difícil perceber que, já no primeiro diálogo, fica evidente o despreparo técnico deste para com os recursos cênicos, visto que recai sobre ele a responsabilidade de sustentar um papel cômico, trágico e cheio de nuanças, difícil até para um ator profissional. Resposta a qual Miklos, ator não-profissional, fatalmente não dá. Mesmo espirituoso e carismático, falta-lhe olhar, falta-lhe tempo de articulação, falta-lhe consciência de movimentos. Se a estratégia era se valer, como na publicidade e seus “garotos-propaganda”, da figura pop de um conhecido astro da música, havia de se avaliar que, como ator, este desempenhou bem no cinema apenas 20 anos atrás em “O Invasor”, de Beto Brant (1997), justo quando teve, conceitualmente, liberdade de uma atuação naturalista dentro da “marginalmente” que o papel exigia, o que supunha desvencilhar-se de balizamentos técnicos. Para “Jesus Kid”, no entanto, a opção por Miklos prejudica sobremaneira todo o andamento, visto que a história se centra no escritor ao qual ele interpreta. Não é difícil imaginar algum ator profissional assistindo o filme e lamentando pelo desperdício de um roteiro promissor.

Há de se entender, contudo, que a caminhada para um cinema de apelo “pop-cult” no Brasil, a exemplo do que outros polos mundiais produzem, principalmente os Estados Unidos, está em pleno curso. Desde que “Deus e o Diabo....” iluminou este caminho, títulos importantes para essa viragem como “O Bandido da Luz Vermelha” (Rogério Sganzerla, 1969), “A Rainha Diaba” (Antonio Carlos da Fontoura, 1974) e “Faca de Dois Gumes” (Murilo Salles, 1989) evoluíram em linguagem e aproximaram os conceitos “brutos” da vanguarda para a massa. Mais proximamente, o cinema pós-retomada dos últimos 30 anos captou bem este espírito a exemplo de “Cidade de Deus” (Fernando Meirelles e Katia Lund, 2002), a franquia “Tropa de Elite” (José Padilha, 2007 e 2010), “Fim de Festa” (Hilton Lacerda, 2019) e o talvez mais bem-sucedido de todos nesta linha: “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho (2019). Todos entenderam o que Glauber avaliava como essencial a uma obra de cinema que se pretende popular: cada um à sua medida, dosa discurso e poesia. Equilíbrio difícil, porém, o que talvez explique a inconstância de obras desta potência e natureza no Brasil. Linguagem em cinema também é continuidade da prática.

Se custou a Glauber e ao Cinema Novo o preço muitas vezes da incompreensão, é curioso perceber como o movimento serviu para emancipar o cinema nacional justamente no aspecto que teve menos êxito, que foi o de representar e dialogar com o público – ou o mais amplo possível deste. Como acontece em processo semelhante na música erudita para com a música pop, as bases lançadas pela primeira passam por tamanho burilo que, quando chegam aos ouvidos da massa, pouco se identifica de seus arrojados acordes geradores. A Glauber, especialmente, homem de poucas concessões e cujo cinema intensificou-se em complexidades alegóricas cada vez mais ao longo dos anos, ficou a pecha de alguém genial, mas de ínfima aceitação e entendimento popular. Independentemente disso, faz quatro décadas que Glauber Rocha deixou, dentre outros legados, as bases de um “cinema pop” para o Brasil sob uma perspectiva doméstica. É justo e genuíno, então, buscá-lo e aperfeiçoá-lo. Talvez, contudo, seja preciso ainda que bata muito sol sobre esta terra para que o diabo da inovação e o deus do gosto popular se harmonizem.

teaser de "Jesus Kid"



Daniel Rodrigues