Em 11 de dezembro de 1970, John Lennon lançava sua primeira investida pós Beatles: o "Plastic Ono Band". Vinte e nove anos depois, em 11 de dezembro de 1999, este, que vos escreve, nascia, em um hospital da zona norte de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Comemorar meu aniversário junto dessa obra chega a ser um motivo de orgulho. Um marco na música pop e um último prego no caixão do movimento hippie, o qual tinha o próprio Lennon como símbolo. O disco contou com Klaus Voormann, amigo desde a época que viveu em Hamburgo com o restante do Fab Four; Phil Spector, produtor e pianista; Billy Preston, também no piano; Yoko Ono, creditada como “ar” (Lennon depois explicou que ela montou a "atmosfera’ das músicas"); Ringo Starr, na bateria (por óbvio) e Mal Evans, creditado como “chá e simpatia”.
Meu primeiro contato com a obra foi em uma das milhares de vezes que assisti Os Simpsons com o meu pai, em uma época que a série ainda era criticamente aclamada como uma grande paródia da sociedade americana do fim do século XX/início do XXI. O segundo capítulo da décima quinta temporada da série, traz o retorno de Mona, mãe ausente do personagem Homer (por ser uma hippie ativista contra grandes corporações em fuga desde o final dos anos 60) em um episódio comovente. Ao final, Homer é “abandonado” novamente por sua mãe e após ela o deixar, não haveria música melhor para sintetizar o momento que “Mother”.
Julia Stanley, mãe de John, cedeu a guarda do filho, quando ainda era pequeno para sua irmã, por conta de denúncias de negligência com o próprio filho. O pai de Lennon, Alfred, era um marinheiro, que raramente se encontrava em Liverpool e não viu o filho crescer. Julia morreu quando John tinha apenas 16 anos de idade, vítima de um atropelamento, justo em um momento em que o garoto se reaproximava da mãe. “Mother” é a sintetização da raiva, tristeza e desabafo, em forma de berros, que estavam guardados no artista. A letra inicia com “Mãe, você me teve, mas nunca tive você; eu queria você, mas você não me queria.” “Pai, você me deixou, mas nunca te deixei; Eu precisava de você, mas você não precisava de mim”. Em seguida, John esboça uma despedida, como se quisesse abandonar esse passado com “agora, eu só preciso lhes dizer; adeus”, para que então, Lennon se contrarie na estrofe seguinte dizendo “mamãe, não vá! Papai, volte para casa”. De forma alguma é necessário ter passado por situação semelhante para entender o que John sentia em relação a sua família.
“Hold On” segue o disco com um riff de guitarra tranquilo, em que John começa a se acalmar e reafirmar que vai dar tudo certo. A música é doce e oferece um certo refúgio à pedrada que o ouvinte escutou, como um choro triste, e provavelmente emula o que Lennon passou ao longo das gravações do álbum (que era interrompido constantemente por crises de choro e gritos por parte dele). “I Found Out” trata sobre falsas religiões, cultos e até mesmo, a idolatria que ele exercia sobre uma massa gigantesca de ouvintes “eles não me queriam, então me fizeram uma estrela”, cantou.
Em “Working Class Hero”, em estilo Dylanesco (em "Masters of War", principalmente), Lennon escreve uma de suas maiores músicas. Apenas portando o violão, O "Herói da Classe Trabalhadora" se rebela contra o sistema imposto, e questiona toda a máquina capitalista e a eterna luta incentivada à população por subir na escada corporativa e econômica. A música causou impacto tão grande, que um tal de Roger Waters passou a questionar a produção de suas letras psicodélicas e começou a expor maiores críticas à sociedade, que resultou, inicialmente, em "The Dark Side Of The Moon", do Pink Floyd.
“Isolation” finaliza o lado A, abordando a solidão que o autor enfrentava, tanto por ter se separado de seus amigos, e banda, quanto pelas críticas que ele e Yoko sofriam constantemente por parte da mídia. “Remember” nos traz uma realidade paralela, em que Guy Fawks (membro da “Conspiração da Pólvora”, que planejava bombardear, em 1605, a Câmara dos Lordes) conseguiu colocar em prática seu plano. Uma anedota de aquecer o coração é que a canção foi gravada no dia do aniversário de Lennon, e felizmente, foi registrado em vídeo, os amigos John e Ringo recebendo a visita do outro ex-companheiro de banda, George Harrison, que entregou de presente, uma demo de “It’s Johnny’s Birthday” (de "All Things Must Pass", de Harrison).
Talvez a canção mais ingênua e doce de Lennon seja “Love”. Simples e direta: “O amor é real, real é o amor”. Não há muito o que dizer de uma música que, em poucas palavras, e um piano "silencioso", consegue transcorrer uma imensidão de significados que não podem ser quantificados. “Well Well Well” descreve pequenos casos da vida à dois de John e Yoko, como caminhar em um parque, dividir uma refeição e falar sobre temas como ‘revolução’ e ‘libertação das mulheres’. “Look at Me” nos traz um Lennon direto do “White Album”, perguntando ao ouvinte “quem que devo ser?”.
“God” é filosófica, existencial, e acima de tudo, impactante. Uma canção que começa com “Deus é um conceito pelo qual medimos nossa dor”, não tem como não chamar a atenção. Com um piano espaçado e dramático, Lennon subverte todas as crenças que possuía, e não possuía, dizendo que não acredita na Bíblia, tarot, Jesus, Hitler, Kennedy, Budha, Yoga, Elvis, Zimmerman (Bob Dylan), e mais importante, não acredita nos Beatles. Após citar sua antiga banda, uma pausa dramática precede a frase “eu só acredito em mim. Em Yoko e em mim”. Ele segue com “o sonho acabou” e “Eu era a Morsa (referência a I Am The Walrus), agora sou o John”. Ou seja, estamos diante do verdadeiro John Lennon, e que é necessário deixar o passado Beatle para trás. O álbum finaliza com “My Mummy’s Dead”, uma balada curta e poderosa, que faz o contraponto com “Mother”, pois ao invés dos berros, Lennon canta calmamente que ainda não superou a morte de sua mãe, mesmo que ela tenha morrido há tanto tempo.
Acima de tudo, "Plastic Ono Band" nos apresenta quem era o ser humano John Lennon, mesmo que ele tenha representado ¼ de um dos maiores fenômenos da música mundial. Da minha parte, acho uma coincidência barbara a pequena conexão de nascer no mesmo dia em que o disco foi lançado, anos antes. Mesmo com a perda do meu parceiro de Simpsons há muitos anos (e de música, inclusive era fã do Lennon), fico feliz de ter, tanto Homer, quanto John, para me acompanhar na sequência da minha caminhada sem ele.
********* FAIXAS: 1. "Mother" - 5:34 2. "Hold On" - 1:52 3. "I Found Out" - 3:37 4. "Working Class Hero" - 3:48 5. "Isolation" - 2:51 6. "Remember" - 4:33 7. "Love" - 3:21 8. "Well Well Well" - 5:59 9. "Look at Me" - 2:53 10. "God" - 4:09 11. "My Mummy's Dead" - 0:49
“Rock and roll é uma explosão nuclear de realidade em um mundo mundano onde ninguém pode ser magnífico.”
“Provavelmente, sou um dos últimos humanos que cheira à imortalidade e magnificência.”
Kim Fowley
O punk e o glitter rock tem muito mais em comum entre si do que as aparências supõem. Se a radicalidade anti-sistema de um confrontava com a conformidade capitalista de outro, no fim das contas, as distâncias não eram tão grandes assim. A New York Dolls, surgida em meio à efervescência tanto de um quanto de outro movimento, foi a mais efetiva junção desses dois gêneros. Seu figurino carregado, casado com o som agressivo e intenso, não deixam mentir. Mas mesmo aqueles mais identificados com o glam, como David Bowie, T. Rex e Roxy Music, seguidamente davam passos com suas plataformas extravagantes pelo lado selvagem trilhado por Velvet Underground, The Stooges, MC5, Dictators e outros precursores do punk. Quem escuta "Suffrgatte City", de Bowie, pode tranquilamente dizer que se trata de uma música da MC5 ou de Johnny Thunders. A inglesa Bauhaus, em sua fase mais punk, antes de darem a guinada dark à sua sonoridade, gravavam "Telegrama Sam" de Marc Bolan apenas acelerando ligeiramente o compasso. O “punk pub” da Dr. Feelgood, igualmente, bem podia ter saído da mente de Gary Glitter.
Estas semelhanças sonoras de intercâmbio entre punk e glitter, entretanto, quando no campo da indústria musical operava de forma bem mais desigual. E quem levava a melhor era, claro, a turma da purpurina, por natureza mais afeita aos holofotes e ao circo do mainstream - o qual não raro era, pelo contrário, odiado e até combatido pela galera de coturno e jeans rasgadas que frequentava o CBGB. Quem sabia transitar por estes dois mundos, o imundo e o radiante, com naturalidade era Kim Fowley. E o fazia por um simples motivo: como um bom roqueiro indolente e narcísico, Fowley não estava nem aí pra um ou pra outro. Rótulos? Que se danem! Fowley queria saber mesmo era de uma boa contradição.
Figura dândi e entrincheirado à turma da glam, este californiano excêntrico e múltiplo se valia de sua imagem outsider e da menor visibilidade na comparação com astros pop como Bowie e Kiss para não se comprometer com classificação alguma. Depois de quatro álbuns solo, “Love Is Alive and Well”, de 1967, “Born to Be Wild”, “Good Clean Fun” e “Outrageous”, os três no mesmo ano de 1968, e “The Day The Earth Stood Still”, de 1970, Fowley chuta o balde e produz o disco que pode ser classificado como "creep glitter" ou “glam maldito”: "I'm Bad". O nome não poderia ser mais sarcástico. Afinal, o que esperar de um artista que se autointitulava "pedaço de merda" e, noutra hora, de “muito mais interessante do que tenho o direito de ser”? Rock n roll na veia.
Fowley, antes de assumir a própria carreira, no entanto, cuidou muito mais da dos outros. Empresário e produtor, deu luz a trabalhos de Alice Cooper, Kiss, The Modern Lovers, Kris Krostofferson e Soft Machine e lançou bandas como a The Runnways, seu mais célebre feito à indústria fonográfica. A bagagem acumulada desde os anos 50 - a qual contava também com experiências com figuras míticas como Phil Spector, Frank Zappa e Gene Vincent - foi trazida para sua obra própria com muita noção de síntese. Rockabilly, psicodelia, R&B, punk, garage, barroco... tudo arrecadado das experiências sonoras e sensitivas de Fowley ao longo dos anos seja como produtor, compositor ou simplesmente ouvinte. Dono de um modo muito eficiente e direto de compor, Fowley chega em “I’m Bad” pronto para forjar um trabalho que não precisa muito para soar como o mais puro rock. Baixo, guitarra e bateria (quando muito, um piano e uma gaita de boca). Para arrematar, a voz ineditamente rasgada de Fowley, Imagine-se em Captain Beefheart cantando como Iggy Pop de “Raw Power”. Ou um Howlin’ Wolf colérico como Rob Tyner. Um Tom Waits três vezes mais rouco e bêbado. Pois é: este é Kim Fowley em “I’m Bad”. Ele nunca havia cantado assim por mais de raras frases de algumas músicas anteriores. Grave, cavernoso, áspero, ruidoso. Voz de homem "mau”.
“Queen Of Stars” abre os trabalhos dando o recado que Fowley estava determinado a passar. Riff simples a la Stones e uma bateria marcada e ligeira, "pogueante". Uma guitarra na base e outra fazendo contraponto ou solando. Um baixo firme no comando. Uma bateria seca. Tudo sujo, sem requintes de produção. E isso basta. “Forbidden Love”, mais cadenciada, tem a slide guitar arábica e aguda de Warren Klein sobre uma levada nos chipôs da bateria de Dreshan Theaker. Exímio produtor que era, Fowley usa de um artifício muito interessante ao transformar o som de ar comprimido de um sintetizador com a emissão do sopro dos próprios pulmões. Isso, para terminar a faixa imitando estranhos grunhidos de porco (!).
Já “Man Of God” volta à pauleira, tanto na pulsação quanto na simplicidade inteligente do riff. O baixo de Peter Sears é um dos destaques. Interessante notar que a produção não é nada sofisticada, até grosseira, com visível desleixo, ainda mais sendo produto de alguém que sabe como poucos operar uma mesa de estúdio. Neste caso, a sujeira é totalmente proposital para demarcar essa ponte entre punk e glitter rock – a qual Fowley acabava de dinamitar. “Human Being Blues” é bem isso: um blues glam ao estilo do que Bowie e Slade inundariam as rádios naquele mesmo ano de 1972. A faixa-título, na sequência, não podia ser mais simbólica. Ouvir Fowley quase se esgoelando para dizer “I’m so bad” sobre os estampidos secos de Theaker e as guitarras rascantes é didático para qualquer músico do rock até hoje.
Com outro grande riff, que conjuga as duas guitarras e o baixo, “California Gypsy Man” é mais um blues-rock envenenado, enquanto a deliciosa “It's Great To Be Alive”, com seu pianinho maroto, resgata o rocker Fowley forjado no rock dos anos 50. Os Ramones certamente adorariam ter escrito essa música. “Red China”, outro bluesão carregado, traz a guitarra de Klein como protagonista e apenas um leve efeito na bateria, um pequeno detalhe para a sonoridade invariavelmente crua do disco.
No seu estilo ambíguo, Fowley abre “Gotta Get Close To You” sentenciando a divergência: “Life/ Death/ Low/ Loud”. Outra levada de baixo empolgante de Sears, com as guitarras tanto a solo de Klein quanto a de Mars Bonfire, encarregado da base, improvisando sobre a cadência blueser. Fowley, em sua rouquidão espasmódica, faz lembrar o canto de Dr. John, só que bem mais endemoniado. Para finalizar, o autor não dá respiro e convoca os deuses negros do blues californiano para um encerramento contagiante. Guitarras extasiadas. Piano estraçalhando acordes. Baixo suingado. Canto performático.
Fowley, morto em 2015, vítima de um câncer na bexiga, definitivamente não veio para explicar e, sim, para confundir. Controverso e polêmico, haja vista as desavenças com Joan Jett e acusações de abuso sexual que pesavam sobre ele por parte das The Runnways, até o final da vida disse tudo o que queria e também desdisse tudo o que queria. Glam, punk, pós-punk, garage, new wave... Para o inferno com todas essas convenções! O negócio de Fowley, conhecido como “lorde do lixo”, era cumpriu a ingrata missão dos roqueiros de verdade neste mundo. Mundo que talvez não os mereça, mas eles, homens maus como Fowley, contrariam e rolam suas pedras musicais mesmo assim. O mundo que aguente tamanha grosseria. E poesia.
“Quando começamos ‘Zooropa’, sugeri à banda que ficassem improvisando no estúdio regularmente. Eles haviam perdido esse hábito de improvisar e, por vários motivos, não o faziam. Então eu disse: ‘devemos imaginar que estamos fazendo trilhas sonoras de filmes hipotéticos, não fazendo músicas.’”
Brian Eno
Nunca acreditei em “Achtung Baby”, o tão celebrado disco da U2de 1991. É este mesmo o termo: "acredito". Não se trata de "gostar", mas sim de crer. Aliás, gostar, até gosto. "One", "Until the End of the World" e “Acrobat” estão aí para provar. Porém, estas e todas as demais nove faixas de “Achtung...” são, a rigor, de longe menos inspiradas do que diversas outras da banda e, principalmente, graus abaixo do que Bono Vox, The Edge, Larry Mullen Jr. e Adam Clayton têm condições de entregar. Por que, então, falo de credibilidade e não necessariamente de qualidade? E por que abro o texto indo na contramão da maioria falando de uma obra consagrada e não daquela que motiva este artigo, “Zooropa”? Afora a ordem sucessória entre um disco e outro, é necessário que se volte alguns anos antes ao grande sucesso comercial e de crítica da U2 nos anos 90 para entender aquela que considero a maior farsa planejada da música pop moderna.
O ano é 1988. A U2 ostentava a posição de grande banda do rock internacional. Com o término da The Smiths e os às vezes errante caminhos da The Cure, a U2 somava todos os elementos para ocupar tal posição, rompendo a linha que divide o underground do início da carreira para o status de lotadores de estádio. Musicalmente, um fenômeno gerador de hits, vendas de discos e canções clássicas. Tinha um vocalista de admiráveis qualidades vocais e letrísticas, um guitar hero sofisticado e criativo e a "cozinha" mais competente do rock 80. Politicamente, foi o grupo mais engajado da sua geração. A coroação veio com “The Joshua Tree”, de 1987, que deu aos irlandeses discos de ouro, platina e diamante em vários países e um Grammy de Álbum do Ano, consolidando-os no mercado mundial com sucessos como "With ir Without You" e "I Still Haven't Found What I'm Looking For".
Arte do famigerado "Achtung...", de 1991
Ocorre que “Joshua...” é daquelas obras tão divisórias na carreira de qualquer artista, que lhes surtiu o efeito contrário. Ao invés de orientar Bono & Cia., desnorteou-os. Que rumo tomar depois de tamanho êxito comercial e artístico? O longo e irregular “Rattle and Hum”, no qual voltam os olhares para a cultura folk norte-americana, simboliza este hiato conceitual. A imagem da capa de Bono apontando o holofote para The Edge, mais do que uma mostra da saudável parceria entre ambos, simboliza uma necessidade (talvez inconsciente) de valorização da forma sobre a aparência. A U2 queria dizer que não se resumia ao Bono front man e, sim, que formavam um coletivo do qual seu guitarrista era o melhor representante. Nem todos entendiam isso, entretanto; E pior: continuavam exigindo-lhes a divindade cega atribuída às celebridades. Então, para que lado ir se já afastados da forte pegada política de “Sunday Blood Sunday” e alçados a astros planetários? Foi então que, naquele mesmo ano de 1988, a resposta se insinuou como uma solução: a fraude da dupla alemã Milli Vanilli.
Surgidos como revelação da música pop, Fab Morvan e Rob Pilatus foram acusados de não interpretarem as próprias músicas. Desmascarados, foram demitidos da gravadora que os fez vender milhões e tiveram que devolver o Grammy que venceram. Morvan e Pilatus precisaram convocar uma vexatória coletiva para confessarem que, de fato, apenas faziam playback em cima do palco e que ghostsingers cantavam por eles em estúdio. Justificaram que haviam sido recrutados pelo visual, como uma estratégia de publicidade. Bono, então, ouviu e ligou os pontos: “Fraude, Grammy, publicidade, paradas de sucesso, personagens...”. Deu-lhe um estalo: ali estava a chave para os problemas da U2.
Não é possível medir o quanto Bono ficou impactado com tal ocorrido, embora a polêmica da Milli Vanilli tenha ganhado tamanha proporção que, provavelmente, deu um sinal de alerta para qualquer um que pertencesse à indústria cultural. Bono, ao que tudo indica, perspicaz como é, captou a essência da discussão, mas injetou-lhe doses de ironia. Numa fase de “crise de identidade”, o negócio era assumir uma “não identidade”. Genial! Já distante da figura politizada que os consagrou e diante da incerteza que o estrelato provocou, a escolha da U2 foi criar uma nova imagem pública: dar vida a personagens fictícios e produzir músicas de fácil assimilação.
Os riffs de “Achtung...”, basta notar, são bastante simples, até simplórios em alguns casos em se tratado da alta técnica de The Edge. "Who's Gonna Ride Your Wild Horses", "The Fly", "Mysterious Ways", "Tryin' To Throw Your Arms Around The World" são assim: quase sem graça. O minimalismo característico de The Edge transformou-se em preguiça. Praticamente todas as faixas têm o mesmo embalo. Mas, claro, com a caprichada produção de Brian Eno, que mascarava tudo. Além disso, fotos e clipes de Anton Corbijn, mixagem de Daniel Lanois e Robbie Adams e engenharia de som de Flood. Invólucro perfeito, como todo produto premium de supermercado. Para arrematar a traquinagem, o disco é gravado na mesma Alemanha em que David Bowie e o mesmo Eno conceberam a nova música pop no final dos anos 70. Mas também a mesma Alemanha da Milli Vanilli...
Agora, valendo!
Jamais a U2 tinha feito algo tão raso como “Achtung Baby”, e isso queria dizer alguma coisa. O circo foi tão bem montado que, com absoluta unanimidade, todos caíram na deles. Público e crítica elevaram o disco a obra-prima mesmo sem ter um riff à altura de “Bad”, “Red Hill Minning Town”, “God Part 2”, “Like a Song...” e por aí vai. Quando um artista chega a determinado estágio, o que se espera é que, no mínimo, supere o que já fez. Mas diante da incapacidade crítica da pós-modernidade, a U2 percebeu que isso não se aplicaria a ídolos acima de qualquer suspeita como eles. Na verdade, fizeram o contrário: ao invés de evoluir, deram passos para trás, mas com muita inteligência e marketing. E ego. Bono encarnava personagens como The Fly e The Macphisto com visível falta de habilidade cênica, mas suficiente para encantar os fãs. A piada foi tão bem contada que, somado ao respeito e a credibilidade de que jamais uma banda “séria” como a U2 faria algo assim, ninguém desconfiou de nada.
Por sorte, a enganação deliberada de “Achtung...” foi, em trocadilho com o próprio título, apenas para ver se a galeraestava “atenta”. Como ninguém estava, no fundo o tiro saiu pela culatra. O negócio era desistir da palhaçada e fazer algo bom novamente. Fruto de canções surgidas durante a turnê e de suspeitas “sobras” do afamado disco anterior, “Zooropa” mostra porque a U2 chegava, enfim, à maturidade. Improvisos, experimentações, ousadias, ludicidade. É possível sentir um clima de liberdade criativa em suas faixas. Se a ida para Berlim anos antes foi, como fez Bowie, para se afastar do burburinho da mídia, enfim a intenção funcionava para a U2.
Um rápido paralelo entre as faixas de um disco e outro provam que a turma estava mesmo interessada em fazer o que sempre soube: pop-rock forjado no pós-punk, somado aos elementos do tecno, como downtemto, synth pop e experimental. Na abertura, para uma pirotécnica ”Zoo Station”, mandam ver “Zooropa”, extensa, pouco vendável, sem pressa para começar e nem para terminar. Riff bem elaborado que, lá pelas tantas, ainda sofre uma virada que acelera seu compasso, gerando quase que uma outra música. Excelente cartão de visitas para deixar claro que a U2, definitivamente, havia deixado as máscaras de mosca em segundo plano.
A melódica “Babyface”, algo semelhante em atmosfera a “So Cruel”, de “Achtung...”, faz homenagem ao músico de R&B que influenciaria bastante o som da banda naquele momento. Esta antecipa a primeira obra-prima do álbum: “Numb”. Desviando os holofotes quase monopolizados por Bono, a banda realiza de vez o que prenunciavam na capa de “Rattle...” com The Edge fazendo as vezes de protagonista. E aqui Eno, novamente recrutado como um quinto integrante, faz valer sua arte de produção. E não para “salvar” a música, mas para potencializá-la. Construtiva, a partir de uma programação eletrônica e um riff estetizado, “Numb” vai agregando elementos como bateria, efeitos de teclados, frases de guitarras, sintetizadores e contracantos, como o belo falsete de Bono dizendo versos como: “I feel numb” e “Too much is not enough”. Tão original que é sem comparação com qualquer uma de “Achtung...”.
Outra pérola: “Lemon”. Mais uma cantada em falsete, agora com Bono retomando o centro do palco, lembra “Misterious Ways” por certa latinidade da percussão de Mullen Jr. Mas apenas de longe, pois é muito melhor e bem mais elaborada. A começar pelo riff, este sim minimalista como The Edge é craque, mas saborosamente criativo, forjado apenas no efeito de pedal, que se forma através de ressonâncias. O baixo de Clayton, idem: seguro como sempre, fazendo a base perfeita para esta world music moderna. Mas principalmente: o arranjo de Eno. Nesta faixa fica evidente o quanto o papel do eterno Roxy Music foi fundamental para a retomada da U2 à sua raiz de beleza estética com liberdade e ousadia. Os coros em tom menor, com contracantos acentuados, dão um exótico ar étnico à música. Impossível não lembrar das contribuições de arranjo e melodia de Eno para a Talking Heads em “Remai in Light” (“Born Under Punches”/“Crosseyed and Painless”/”The Great Curve”), de 1980, ou músicas de seus trabalhos solo como “No One Receiving” (de “Before and After Science”, 1977).
clipe de "Lemon", com direção de Mark Neale
Já “Stay (Faraway, So Close!)”, se não supera “One”, sua mais evidente correspondente em “Achtung...”, emparelha, ainda mais porque, balada sentimental tanto quanto, faz paralelo também com outra do álbum anterior, “Until...”, pois ambas são temas de trilhas sonoras de filmes do cineasta alemão Win Wenders – neste caso, a tocante continuação de “Asas do Desejo” homônima à canção. Virando a chave, “Daddy's Gonna Pay For Your Crashed Car” devolve energia a “Zooropa” – aliás, como até então não havia ocorrido. Tecno industrial com um riff bem sacado, bateria eletrizante e uma produção, meus amigos! Que habilidade numa mesa de som tem o sr. Brian Peter George St. John le Baptiste de la Salle Eno! Ele colore a música do início ao fim, ressaltando todas as texturas e detalhes que ela tem de melhor, mas sem tirar o brilho original, deixando os louros para a performance da U2. Distantes da espetacularização da turnê Zoo TV, a banda irlandesa realmente está espetacular.
Se “Daddy’s...” lembra em certa medida “The Fly” e “Zoo Station”, de “Achtung...”, “Some Days Are Better Than Others” equivale a "Tryin' To Throw Your Arms Around The World". Novamente, contudo, vencendo a disputa. E quão simbólica a letra para aquele momento de autorreconhecimento, quase um mea culpa: “Alguns dias você usa mais força do que o necessário/ Alguns dias simplesmente nos visitam/ Alguns dias são melhores do que outros”. Já a escondida “The First Time” é uma surpresa altamente positiva, que começa com uma leve base de baixo sob a linda voz de Bono para ir ganhando, aos poucos, outros instrumentos/elementos, que lhe aumentam a emotividade. Além disso, faz analogia com “Love Is Blindness”, última do trabalho antecessor. Mas como assim, se ela não encerra “Zooropa”? Aham! A estratégia narrativa usada para gerar estardalhaço anteriormente, agora era empregada a favor da feitura da obra. “The First...” prepara o terreno para a penúltima faixa, “Dirty Day”, outra que, assim como “Zooropa”, não se apressa em começar e a se desenrolar. Pop eficiente, tem o detalhe da voz de Bono sobre todos os outros sons, como que viva diante do microfone, expediente imortalizado por Eno e pelo produtor Tony Visconti em “Heroes”, de Bowie, em 1978, daquela mesma inspiradora fase alemã do Camaleão do Rock.
Eno com Edge e Bono em estúdio dando as coordenadas pra banda
Toda essa construção narrativa, quase como a de um filme ou de uma ópera-rock (seria a tragédia do famigerado personagem The Fly?), converge para um gran finale: “The Wanderer”. Pode ser que tenha sido coisa de Bono ou dos outros integrantes da U2, mas ninguém me tira da mente que a ideia de chamar o mitológico Johnny Cash para cantar triunfalmente a última faixa do disco foi de Eno. A base totalmente em teclados, contrastando com o estilo country-folk orgânico de Cash, dão uma clara pista de que a música surgiu desta ideia central pensada por ele. O estilo melódico, a reelaboração modernista do rock 50, os coros estilo Phil Spector, o refrão com melodia emotiva terminado em uma nota baixa e melancólica... Tal “The River”, de Eno e John Cale, tal “Golden Hours”, do seu solo “Another Green World”. Muita coincidência. Ou a U2 emulou Eno, ou essa música, meus amigos, é de Eno com participação da U2! O que, na verdade, é uma prova de grandiosidade da banda, que soube abrandar os egos e delegar a alguém um fator importante da obra, mas sem perder sua marca própria. Isso se chama maturidade.
E quanta beleza em “The Wanderer”! Escritos para o barítono embriagado Cash, os versos (de Bono, credite-se) largam dizendo: “I went out walking/ Through streets paved with gold/ Lifted some stones, saw the skin and bonés/ Of a city without a soul” (“Eu saí caminhando/ Pelas ruas pavimentadas com ouro/ Levantei algumas pedras, vi pele e ossos/ De uma cidade sem alma”). Uma clara referência ao clássico “Walked in Line”, imortalizada na voz do errante Homem de Preto, mas também à própria consciência da U2 pelas perigosas trilhas da fama. “The Wanderer” ainda serviu como uma homenagem em vida a Cash. Eterno outsider e já no ostracismo naqueles idos, ele viria a se revitalizar como artista e gravar seus últimos álbuns na série “American”, morrendo 10 anos depois daquela gravação (a versão definitiva de “One”, aliás, é de seu “American III”, de 2000). Um digno final de disco da U2, o mais tocante e melhor de sua discografia, mais bonito até do que “MLK” encerrando “The Unforgatable Fire” ou do que “All I Want Is You” fechando “Ratlle...”. Um final para desfazer mal-entendidos e enterrar qualquer piada de mal gosto que um dia tenham feito.
clipe de "The Wanderer", com participação deJohnny Cash
“Zooropa”, o melhor disco da banda em toda a década de 90 e seu último grande álbum, completa 30 anos de lançamento. Isso nos leva a deduzir que, há três décadas, a U2 desfazia um erro grotesco chamado “Achtung Baby” para, responsavelmente para com sua própria obra, dignidade e reputação, conceber “Zooropa”. O processo de concepção conduzido por Eno, livre das amarras do enterteinment e voltado às origens deles como músicos, foi tão rico, que rendeu, dois anos depois, o ótimo “Passengers: Original Soundtracks 1”, em que encarnam com humildade a inédita nomenclatura para compor trilhas sonoras para diversos filmes. Um pouco do que já era “Zooropa”: uma narrativa, uma história.
O certo seria Bono, Edge, Mullen Jr., Clayton e Eno, assim como fez a Milli Vanilli no passado, chamar a imprensa para uma coletiva e confessarem o engodo de "Achtung Baby" – de preferência, em Berlim, cidade acostumada a reconstruções e onde a farra foi cometida. Mas isso jamais acontecerá. Para mim, contento-me em ouvir “Zooropa” e saber que ele veio reestabelecer minha relação com a U2, o que vinha gradativamente perdendo força e sofrera considerável abalo quando do meu desmascaramento solitário. “Zooropa”, com sua força e identidade, zerou tudo. A U2 está para sempre desculpada.
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FAIXAS:
1. Zooropa - 6:30
2. Babyface - 4:00
3. Numb - 4:18
4. Lemon - 6:56
5. Stay (Faraway, So Close!) - 4:58
6. Daddy's Gonna Pay For Your Crashed Car - 5:19
7. Some Days Are Better Than Others - 4:15
8. The First Time - 3:45
9. Dirty Day - 5:24
10. The Wanderer - 5:42
Todas as composições de autoria de Bono Voz, The Edge, Larry Mullen Jr. e Adam Clayton
Dias antes do dia 17, sem saber estar premeditando, rodei no meu programa "Then He Kissed Me", com a The Crystals, autoria de Phil Spector. A música havia estado na minha cabeça durante a semana anterior, e ao reescutar o programa mais uma vez me embasbacava: que coisa magnífica! Em composição, arranjo, timbre, sonoridade. E outra clássica, "Be my Baby", dele com as Ronettes, que Scorsese usou mais de uma vez em seus filmes, como na cena de abertura de "Caminhos Perigosos"?! Música pop na mais precisa - e bem acabada - acepção. O monofásico "wall of sound", que Beach Boys, Beatles, Love, The Zombies, Bruce Springsteen e produtores como Brian Eno Tony Visconti, e Stephen Street souberam se valer tão bem, é revolucionário ainda hoje, era digital, por sua concepção integral de uma obra musical mesmo mais de 60 anos depois de ser inventado. No estúdio mas, principalmente, na mente genial e louca de Phil Spector.
Spector produzindo Lennon nos anos 70
Se para Spector a genialidade andava junto com a loucura, uma alimentando-se da outra, não raro a segunda vencia a queda de braço. Andar armado no estúdio, a ponto de manter em cárcere privado dentro do estúdio os rapazes dos Ramones ou apontar um revólver para a cabeça de outro produzido, Leonard Cohen (e ao mesmo tempo lhe fazer declarações de amor), era prenúncio de que algo pior uma hora podia acontecer. Como de fato, aconteceu. O assassinato a tiros de sua esposa Lana Clarkson, em 2003, colocou o excêntrico e talentoso, mas também perigoso e intratável Spector, atrás das grades para sempre. De artista a criminoso. Condenação a 19 anos de prisão, que dificilmente seriam completos por alguém já aos 62 anos quando da sentença, como de fato aconteceu no último dia 17 de janeiro, com Phil já a seus 81 de vida.A obra de Phil Spector é daquelas coisas inesgastáveis assim como as polêmicas em torno de sua conduta não raro paranoica e violenta. desde suas autorias junto aos conjuntos que ajudou a montar e empresariar - e a explorá-los também, no pior sentido do termo - até as produções de discos dos Beatles, de Lennon, dos Ramones, de Harrison. Já o resenhei aqui para o blog com seu essencial "Phil Spector Christmas Album", e certamente falar dele e de sua obra merece muito mais. Inesgastável.
Como disse meu amigo e jornalista Paulo Moreira, com Phil Spector morre uma era do rock 'n' roll. Como algo que se rompe. Como uma grande parede sonora, que rui para sempre na música pop.
PHIL SPECTOR
(1939-2021)
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Cena de abertura de "Caminhos Perigosos", de Martin Scorsese, com "Be my Baby", daThe Ronettes, autoria de Phil Spector
Talvez
não combine muito com o espírito natalino fumar, beber e se drogar
compulsivamente dentro do estúdio de gravação. Muito menos andar
armado, a ponto de mirar uma espingarda nos integrantes dos Ramones para que estes o obedecessem. Pior: disparar um tiro a esmo e deixar
John Lennon com permanentes problemas auditivos. Mas, sobretudo, não
combina com o ato de usar um revólver para matar a
atriz Lana Clarkson em sua própria casa. Pois, ironicamente, esta
criatura, que bem poderia passar por qualquer delinquente, é nada
mais, nada menos que uma das mentes mais geniais que o mundo da
música pop já viu. Foi ele que concebeu integralmente este
histórico disco.
Claro
que estamos falando de Phil Spector. O talentoso produtor que deu
forma às obras-primas “Let it Be”, dos Beatles, a “Plastic Ono
Band”, do Lennon, e a “All
Things Must Pass”, do
George Harrison. Que é também o mesmo tirano que se trancafiava no
estúdio como fez em“Death
of a Ladies’ Man”, de Leonard Cohen, em 1977, para não deixar
ninguém entrar (nem mesmo o próprio Cohen). Mas, talvez, por uma
missão divina – motivada, quem sabe, por um milagre de Natal –
esse judeu pobre nascido no Bronx em 1939 não escolheu o caminho do
crime como seus amigos de bairro e encontrou sua salvação na música
para, passando por cima de todas as excentricidades, egocentrismos e
loucuras, entrar para a história. No final dos anos 50, esse
iluminado ajudou a dar forma à música pop, a forjar o que se passou
a chamar de enterteinment.
Compositor,
arranjador, produtor, instrumentista e até cantor, Spector ostenta
ao menos dois títulos de pioneirismo: o de primeiro multimídia da
indústria fonográfica e o primeiro grande produtor de discos. Pois,
além de todos esses predicados, ele também sabia empresariar astros
e encontrar talentos. E aí ele era infalível. Cabeça do selo
Philles Records, ele liderava projetos, lançava grupos e cantores,
direcionava carreiras. Tina
Turner, Ben King, The Righteous Brothers e Dusty Springfield passaram
por sua mão. Criador
de peças de forte apelo popular, mas com pés firmes no R&B, no
country
e no folk,
Spector inventou asteenage
symphonies, quando pôs
grupos vocais como Ronettes e Crystals a serviço de seus arranjos
elaborados e primorosos.
”A
Christmas Gift for You from Phil Spector” é o resultado dessa
profusão. Primeiro álbum-conceito de Natal do mercado fonográfico,
ajudou a impulsionar as hoje tradicionais vendas de música nessa
época do ano (o próprio título, inteligentemente sugestivo, já
induz ao ato da compra). Dono de um apuro técnico inconfundível das
mesas de som, Spector desenvolveu o que até hoje se conhece como
“wall of sound”,
ou seja, a “parede de som”, técnica própria dele que
aproveitava o estúdio como
um instrumento, explorando novas combinações de sons que surgem a
partir do uso de diversos timbres (elétricos e acústicos) e vozes
em conjunto, combinando-os com ecos e reverberações.
É
isso que se ouve em todo o álbum, em maior ou em menor grau e sempre
na medida certa. Recriando melodias de standarts
natalinos, Spector, junto com o grupo de compositores e sob a batuta
de Jack Nietsche, pôs para interpretar em ”A
Christmas Gift...”, além dos já citados girl
groupsRonettes
e Crystals, a cantora Darlene Love e, para equilibrar, o grupo vocal
misto Bob B. Soxx & the Blue Jeans, cada um com três faixas
(exceto o último, com duas).
Cabe
a Darlene Love iniciar o disco com “White Christmas”, clássico
de Irving Berlin que, na mão de Spector, ganha uma dimensão
apoteótica. O primor do arranjo dá contornos s eruditos à música,
como uma minissinfonia. Mas, antes de mais nada, nada rebuscada e
saborosamente pop. Exemplo perfeito do seu método de gravação, a
música começa com a voz potente de Darlene no mesmo peso dos
instrumentos (banda e orquestra), que, por sua vez, soam com
amplitude, reverberados. A massa sonora vai se intensificando à
medida em que a carga emocional também avança na interpretação da
cantora. Ao final, banda, voz e cordas parecem explodir no ambiente,
quando atingem o ponto máximo do volume, que Spector modula
cirurgicamente. Nota-se um permanente equilíbrio de alturas:
percussão grave como tímpanos de orquestra, instrumentos de base
assegurando os médios e a voz, juntamente às cordas, com o
privilégio diferencial dos agudos, aqueles que fazem arrepiar o
ouvinte.
Na
sequência, “Frosty The Snowman”, com as Ronettes, traz o
marcante timbre agudo de Ronnie Spector – esposa do produtor à
época – animando mais o álbum, num R&B típico dos anos 50. O
coro das companheiras Estelle Bennett e Nedra Talley ao fundo encorpa
a harmonia, mesclando-se as cordas e à percussão permanentemente
cintilante dos chocalhos e sinos, como os do trenó do Papai Noel. Os
motivos natalinos, também com os característicos sininhos, voltam
na outra das Ronettes, o hit
“Sleight Ride”, com uma frenética levada de jazz
swing.
O
gogó romântico de Bobby Sheen, primeira voz da Bob B. Soxx &
the Blue Jeans (que tinha a própria Darlene Love mais Fanta James no
backing),
arrasa na versão para “The Bells of St. Mary's” – que ficou
conhecida com Bing Crosby no filme homônimo de 1945, em que, fazendo
um padre, o ator a interpreta totalmente diferente, acompanhado de um
coro de freiras e órgão. Aqui, Spector redimensiona a beleza
litúrgica da canção, aprontando um arranjo vibrante, carregado de
emotividade, com toques de balada de baile de anos 50.
“Santa
Claus Is Coming to Town” traz as Crystals Barbara Alston, Dee Dee
Kennibrew e Mary Thomas num R&B embalado e ao seu estilo vocal
peculiar. O trio reaparece em “Rudolph the Red-Nosed Reindeer”,
de pegada bem infantil, e na divertida “Parade of the Wooden
Soldiers” em que, para representar a lúdica “parada dos
soldadinhos de madeira”, Spector se vale, na abertura, de cornetas
marciais, mas sem perder o astral festivo e descontraído.
As
Ronettes, estrelas da Phillies, têm o privilégio de cantar outro
standart:
“I Saw Mommy Kissing Santa
Claus”, original na voz de Jimmy Boyd que atingira, em 1952, o 1º
posto da Billboard. Por sua vez, Darlene Love ganha “Winter
Wonderland”, um dos mais celebrados cantos natalinos
norte-americanos – composta em 1934 por Felix Bernard e Dick Smith
–, além da única composta para o disco: “Christmas (Baby Please
Come Home)", alçada em 2010 pela revista Rolling Stone à lista
de Grandes Canções Rock and roll de Natal, que justificou a
escolha: "ninguém
poderia combinar tão bem emoção e pura potência vocal como
Darlene Love”.
O
vozeirão de Bobby Sheen mais uma vez encanta na sacolejante “Here
Comes Santa Claus”, outro clássico natalino que, além da gravação
do autor – Gene Autry, hit
em 1947 –, também recebeu versões ao longo dos tempos de Elvis Presley (no aqui já resenhado "Elvis Christmas Album"), Doris
Day, Ray Conniff e Bob Dylan. Sinos de trenó, escala em tom alto,
contracantos, percussão reverberada, melodia em crescendo. Um típico
“wall of sound”
spectoriano.
Para finalizar, o próprio “cabeça” do projeto declama a letra e
“Silent Night” com o suave coro de todos os outros músicos ao
fundo, num desfecho se não brilhante como todo o restante, ao menos
coerente.
Dessa
trajetória iluminada mas altamente conturbada de Phil Spector – a
qual ele, encarcerado desde 2009 pelo assassinato da amante, segue
infelizmente desperdiçando –, fica a rica contribuição de seu
modo de compor e, principalmente, “apresentar” as músicas.
Spector foi uma verdadeira
máquina de sucessos, criando peças que serviriam de exemplo para
toda a geração da Motown e do rock de como fazer uma música
pegajosa e inteligente em menos de 4 minutos. Brian Wilson, Brian Jones, Rod Argent, Frank Zappa, Rogério Duprat, Brian Eno e até George Martin conseguiram pensar como um dia pensaram por causa do caminho aberto por Phil Spector. Sem ele não existiriam os conceitos
de hit
nem perfect pop.
Com Phil Spector a música popular virou negócio – e um negócio
muito bom de escutar. Se isso já não vale por um milagre de Natal,
ao menos justifica uma estátua.
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FAIXAS:
1.
White Christmas (Irving Berlin) - com Darlene Love - 2:52
2.
Frosty the Snowman (Steve Nelson/Walter Rollins) – com The Ronettes
- 2:16
3.
The Bells of St. Mary's (A. Emmett Adams/Douglas Furber) – com Bob
B. Soxx & the Blue Jeans - 2:54
4.
Santa Claus Is Coming to Town (J. Fred Coots/Haven Gillespie) – com
The Crystals - 3:24
5.
Sleigh Ride (Leroy Anderson/Mitchell Parish) – com The Ronettes -
3:00
6.
Marshmallow World (Carl Sigman/Peter DeRose) - com Darlene Love -
2:23
7.
I Saw Mommy Kissing Santa Claus (Tommie Connor) – com The Ronettes
- 2:37
8.
Rudolph the Red-Nosed Reindeer (Johnny Marks) – com The Crystals -
2:30
9.
Winter Wonderland (Felix Bernard/Dick Smith) – com Darlene Love -
2:25
10.
Parade of the Wooden Soldiers (Leon Jessel) – com The Crystals -
2:55
11.
Christmas (Baby Please Come Home) (Ellie Greenwich/Jeff Barry/Phil
Spector) – com Darlene Love - 2:45
12.
Here Comes Santa Claus (Gene Autry/Oakley Haldeman) - com Bob B. Soxx the Blue Jeans - 2:03
13.
Silent Night (Josef Mohr/Franz X. Gruber) com Phil Spector & artistas - 2:08
A psichodelic era dos anos 60,
sensacionalmente rica, produziu alguns dos maiores talentos da música mundial. John Lennon, Paul McCartney, Jimmi Hendrix, Sid Barret, Ray Davies, Brian Jones, Arthur Lee, Arnaldo Baptista, Lou Reed, Rocky Erikson, Frank Zappae mais uma
dezena de cabeças geniais. Todos produziram, quando não vários, pelo menos um
trabalho fundamental para a história da música pop. Porém, um destes expoentes,
também surgido à época, criou algo sem precedente dentro da discografia do rock.
Ele é Brian Wilson, líder e principal compositor do The Beach Boys. A obra: “Pet Sounds”, de 1966, uma joia rara da
música do século XX, comparável aos mitológicos "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band" ou "The Dark Side of the Moon". Requintado e perfeito do início ao
fim, é repleto de detalhismos que somente a mente obsessiva de Brian Wilson
poderia conceber, o que, somado a seu empenho, conhecimento técnico e alta
sensibilidade, resultou num disco inovador em técnicas de gravação, conceito
temático, estrutura composicional, instrumentalização, arranjos, entre outros
aspectos.
“Pet Sounds”,
diz a lenda, surgiu de um sentimento de competitividade alimentado por Brian,
um perturbado jovem com então 24 anos cujo quadro esquizofrênico era
danosamente potencializado pelo vício em LSD. Para piorar: a relação com o pai
era péssima, a ponto de, numa ocasião de briga entre os dois, levar uma pancada
tão forte que o deixou surdo de um dos ouvidos – motivo pelo qual, reza outra
lenda, teria concebido e gravado “Pet Sounds” em mono, uma vez que não conseguia
perceber fisicamente os sons em estéreo. Todo este quadro e o temperamento
vulcânico fizeram com que Brian, maravilhado mas enciumado com o resultado que
os Beatles haviam atingido com seu “Rubber Soul”, lançado cinco meses antes, se
pusesse na missão de superar a obra dos rapazes de Liverpool.
E conseguiu.
“Pet Sounds”
é uma pequena sinfonia barroco-pop jamais superada, nem pelo próprio Beach Boys.
Brian deixa para trás a pecha de mera banda de surf music creditada a eles (o que já se vinha notando desde “The
Beach Boys' Christmas Album”, trabalho
anterior da banda) e se lança na composição, produção, arranjo e
condução de todo o trabalho, resultado de longas e exaustivas pesquisas à
teoria musical e às musicas erudita, folclórica, jazz e pop. O desbunde já
começa na faixa de abertura, a clássica “Wouldn't It Be Nice”. O som fino e
lúdico do harpschord executa uma ciranda,
que faz a abertura de “Pet...” lembrar a de outro LP histórico da época, "The Velvet Underground and Nico", de um ano depois, cujo sonzinho inicial vem de
outras cordas, as de uma delicada caixinha de música. Mas a semelhança para por
aí, pois, se “Sunday Morning” do Velvet varia para um sereno pop-jazz francês,
a dos Beach Boys ganha amplitude e cor. O som do cravorepete o tempo três vezes
até que é interrompido bruscamente por um forte estrondo seco em staccato da percussão. Aquele contraste
entre o agudo cristalino das cordas e o timbre grave da batida faz da abertura
do disco uma das mais belas, conceituais e inteligentes da discografia rock.
Além disso, a música que se desenvolve a partir dali é absolutamente linda.
Elevando o tom, joga o ouvinte num jardim da infância de sons vibrantes e
coloridos num ritmo de banda marcial, onde já se nota que Brian vinha com tudo
em seu desafio pessoal: som cheio, polifonia, coros em contracanto, abundância
de instrumentos e ornados, consonância e equilíbrio total entre graves e
agudos.
Um dos
principais recursos utilizados por Brian no disco para obter esse resultado é a
concepção múltipla da obra como um todo, seja na unidade entre as faixas, na
harmonia ou no arranjo das peças. Bem ao estilo da música barroca dos séculos
XVII e XVIII, ele vale-se da variedade instrumental e, numa decorrência mais
impressionista, de timbres, uma vez que extrai sonoridades de toda a escala
diatônica através de cordas, sopros, percussão, vozes, teclados e até
eletrônicos. Há vários instrumentos exóticos, como mandolin, harpa francesa, ukulele, english corn, banjo, tack piano e temple block. A obsessão de Brian de superar o Fab Four, sabendo da prática dos "rivais" de valerem-se
de variados instrumentos em estúdio, pode ser constatada, inclusive, na
quantidade de instrumentos usados em todo o disco: cerca de 40, tocados por
quase 70 músicos diferentes, incluindo a banda em si: os irmãos Carl (vocais,
guitarra) e Dennis Wilson (vocais, bateria) mais Al Jardine (vocais, tamborim),
Bruce Johnston e Mike Love (ambos, vocais), além do próprio Brian (vocais,
órgão, piano). A belíssima balada “You Still Believe in Me”, das minhas
preferidas, vale-se deste conceito polifônico. Além de baixar o tom da faixa
inicial, explora mais ainda a riqueza dos ornamentos barrocos, como na
complexidade melódica dos corais, que funcionam como um instrumento de teclado
que acompanha o toque do cravo. A percussão, detalhada, vai do sutil som de
sininho a tambores de orquestra, os quais dão um final épico à faixa em curtos
rufares.
Outro trunfo
do disco, na tentativa de Brian de superar até a produção de George Martin para
com os Beatles, é a adoção do modelo de gravação multitrack. Usando vários takes
de vozes e instrumentos tocando ao mesmo tempo e uns sobre os outros, consegue
atingir, assim, timbres únicos. Isso foi possível pelo ouvido apurado de Brian
que, grande fã do produtor Phil Spector, “inventor” das teenage symphonies nos anos 50, chupou-lhe a ideia do “wall of sound”, refinando-a. A “muralha
de som” de Spector aproveitava o estúdio como instrumento, explorando novas
combinações de sons que surgem a partir do uso de diversos instrumentos
elétricos e vozes em conjunto, combinando-os com ecos e reverberações. Isso se
nota em todo o disco, como em “That’s Not Me”, outra espetacular. Lindíssima a
voz de Love, que, limpa e sem overdub,
desenha toda a canção, enquanto a base se sustenta num órgão, nos acordes de ukulele (guitarrinha havaiana) e na combinação
grave/agudo da percussão, em que o tambor e o chocalho ditam o ritmo. “Don't
Talk (Put Your Head on My Shoulder)” é outra balada que faz, novamente, cair o
andamento para um ar melancólico. Mas que balada! Tristonha, romântica e, como
num ornamento rococó, toda cheia de enlevos. Nesta, Brian capricha na
orquestração.
Por falar em
orquestração, duas merecem destaque neste aspecto. A primeira, a não menos
lírica “I’m Waiting for the Day”, que oscila entre um ritmo de balada, levada
por um suave órgão, e momentos de empolgação, quando, lindamente, vozes em
contracanto se juntam a flautas e uma percussão densa em que o tímpano se
destaca na marcação. A orquestra, no entanto, entra por apenas rápidos
segundos, suficientes para pintar a música com alguns traços, quando, lá para o
fim da faixa, logo após Brian cantar com doçura os versos: “I’m waiting for the
day when you can love again”, violinos e cellos,
sem dar pausa entre o fim da vibração da voz e o ataque de suas cordas, aparecem
juntos em um fraseado lírico como uma suave nuvem sonora, integrando voz e
instrumentos. Depois desse breve sonho, estes e todos os outros instrumentos voltam
para encerrar a canção em tom maior, com a voz solo cantando: “You didn't think that/ I could sit around
and let him work...”, enquanto um dos coros faz: “Ah aaah ah/ ah, aaah, ah...”, em três tempos, e o outro vocalisa: “doo- doo/ doo-roo/ doo- doo/ doo-roo...”,
em dois. Estupendo.
A segunda
especial em termos de arregimentação é "Let's Go Away for Awhile”. Como a
faixa-título – uma rumba estilizada em que o compositor se vale da diversidade
de instrumentos que vão desde sopros, como sax alto e trombone, e percussão,
reco-reco e (pasmem!) latas de Coca-Cola, até um método de filtragem de entrada
de som do alto-falante, que dá uma sonoridade específica à guitarra –, é
instrumental, prestando mais um tributo à tradição medieval, uma vez que o
conceito de dissociar música da dança ou do teatro iniciou-se, justamente, com
mestres como Scarlatti e Vivaldi nesta época. Perfeita em harmonia, é quase um pequeno concerto para vibrafone, que conta também com um breve solo de bloco de
madeira, finalizando com um arrepiante diálogo entre bateria e tímpano de
orquestra, sustentados por um arranjo de cordas de caráter grandioso.
Depois do tom
médio de “Let’s...”, o ânimo volta às alturas com a graciosa “Sloop John B”. Na
introdução, outra clássica no disco, um toque de sininho e uma nota de flauta que
se estende, ambos marcados pelo tic-tac
de um metrônomo, dando início à alegre canção, com Brian, Love e Carl
alternando a voz solo e na qual não falta beleza no arranjo das vozes em
contraponto. Brian consegue dar colorações lúdicas a uma canção folclórica
tradicional do Caribe, criando uma música em que dá a impressão de que toda a
caixa de brinquedos ganhou vida e saiu a tocar pelo chão do quarto, cada um com
um instrumento: o soldadinho do Forte Apache com a tuba, o marinheiro com o
tamborim, o indiozinho Pele-Vermelha com os sinos, o playmobil com o clarinete e assim por diante.
Para os
apaixonados por “Pet Sounds” como eu, que o conhecem de trás pra diante, o
final da extrovertida “Sloop...” traz uma emoção especial, pois é sinal de que
vem, na sequência, “God Only Knows”. Magistral, numa palavra. A música que fez
o gênio Paul McCartney sentir inveja alinha-se em magnitude a ícones da música
moderna como "Like a Rolling Stone", "Bolero", "A Day in the Life", "Águas de Março" ou "Summertime". Com uma aura ao mesmo tempo celestial, emocionada e
suplicante, “God...” não poupa o coração dos diletantes, pois o órgão e o toque
do oboé já largam entoando em alto e bom som. Na suave percussão, chocalhos e temple block. As cordas e sopros,
igualmente perfeitos. A voz de Carl transmite uma emoção intensa e não menos
lírica. Após uma segunda parte em que sobe uma gradação, adensando a
emotividade, a faixa se encerra sob belíssimas frases dos sopros e uma
orquestração a rigor, quando as vozes de Carl, Brian e Johnston se misturam,
criando um efeito onírico tal como um Cantus
Firmus, tipo de melodia extraída dos cantochões polifônicos medievos em
louvor ao Senhor. Impossível não lembrar, ouvindo-a, da famosa sequência do filme "Boogie Nights" em que a câmera sobrevoa os cenários mostrando os rumos
tomados na vida de cada personagem, como se Deus estivesse vendo o destino de todos
e dissesse: “só Eu sei”.
“I Know
There's an Answer” (que, nas extras, vem na versão “Hang on to Your Ego“, com
mesma melodia e letra diferente) mantém a beleza polifônica e reforça uma outra
base conceitual do disco: a “teoria dos afetos”. Princípio básico da música
barroca, estabelece correspondência entre os sentimentos e os estados de
espírito humanos. A alegria, consonante, por exemplo, é expressa através dos
tons maiores, acontecendo o inverso para o sentimento de tristeza, em matizes
menores e dissonantes em forma. Por isso, as idas e vindas durante todo o disco
de temas calmos e/ou românticos alternados com outros alegres e mais pulsantes.
Isso que acontece novamente com a “agitada” “Here Today”, que antecede outra
obra-prima de Brian e Cia.: o baladão “I Just Wasn't Made for These Times”.
Com base de cravo, num clima dos oratórios de Bach e Häendel, percussão que
equilibra temple blocks, bateria e
tímpanos, além de impressionantes contracantos, traz ainda uma inovação em
termos de música pop: o electro-theremin,
sintetizador muito usado pela vanguarda erudita da eletroacústica que pouco (ou
nunca) havia sido usado em rock até então. E Brian não só usa como,
inteligentemente, aplica-o de uma forma genial, pois, integrando uma ferramenta
sonora moderna a outras marcantes da Idade Média (como o cravo e o tímpano), a
faz homogeneizar-se ao coro, como se instrumento e voz, natureza e espírito,
Deus e homem fossem a mesma matéria.
Se os Beatles de “Rubber...” louvavam o amor à sua Michelle, Brian, em mais uma estocada, vinha com a lenta e definitiva “Caroline No” com suas combinações de bongô/chocalho e hammond mantendo a base, além do engenhoso solo de cello com trombone, desfechando vitoriosamente o LP original.
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Se parasse por aí, já estava de bom tamanho, mas até os extras são dignos de nota. Haja visto a curta e brilhante “Unreleased Backgrounds”, toda a capella e na qual Brian evoca os mais ricos motetos barrocos – claro, numa roupagem pop e com a cara dele. Afinadíssimo, ele puxa um “lá”, prolongando seu corpo e baixando gradualmente a escala por cerca de 15 segundos até cair totalmente. O “good Idea”, ouvido ao fundo dito por algum dos integrantes da banda no estúdio mostra que a coisa agradou, motivando todos a se juntarem num coro. Eles exercitam melismas com acidentes, formando um verdadeiro canto gregoriano moderno. Lindíssimo. Depois disso, ainda há a ótima instrumental “Trombone Dixie”, em que, de uma feita, homenageiam o célebre bluesman Willie Dixie e evidenciam a sutil fronteira entre o folk e o erudito.
Brian Wilson vencera o desafio a que ele mesmo se propôs: apenas cinco meses depois, os Beach Boys superavam com “Pet Sounds” os Beatles de “Rubber Soul”. A história da música pop nunca mais seria a mesma, tendo em vista a alta influência deste trabalho para uma infinidade de outros artistas, que vão desde Zombies, Pink Floyd e R.E.M., passando por Van Morisson, Genesis, Blur e, claro, os próprios Beatles. Mas a instabilidade emocional e o vício em drogas de Brian não o deixariam prosseguir combatendo no front da música pop – pelo menos, não à altura de Lennon, McCartney, Harrison e Ringo. Três meses adiante, o Quarteto de Liverpool se reinventa novamente e lança o espetacular “Revolver”; no ano seguinte, o histórico “Sgt. Peppers...”; logo em seguida, emendam o fecundo “Álbum Branco”. Brian perde o passo e não consegue mais conceber uma obra com início, meio e fim, quanto menos uma grandiosa como a que criou. Mas, para sorte da humanidade, havia dado tempo do mundo conhecer “Pet Sounds”, o álbum que é mais do que um “disco de cabeceira”, mas os verdadeiros “sons de estimação”.