Os clássicos absolutos chegaram, entre eles, "O Beijo da Mulher Aranha", primeiro filme brasileiro a vencer um Oscar
Demorou um pouco além do normal, mas voltamos com mais uma parte da nossa série especial “Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes”. E tem justificativa para esta demora. Isso porque reservamos este quarto e penúltimo recorte da lista para o mês de agosto, o de aniversário do Clyblog, uma vez que este Claquete Especial, iniciado em abril, é justamente em celebração dos 15 anos do blog.
Talvez somente esta justificativa não baste, entendemos. Então, já que vínhamos mês a mês postando uma nova listagem com 20 títulos cada, propositalmente falhamos em julho para que agora, no mês do aniversário, fizéssemos uma sequência não apenas de 20 filmes, mas de 40 de uma vez. E não se tratam de quaisquer quatro dezenas! Afinal, a seleção inteira é tão rica, que igualável em qualidade a qualquer cinematografia mundial. Mas, especialmente, porque estes novos compreendem as posições do 50º ao 11º. Ou seja: aqueles “top top” mesmo, quase chegando nos “finalmentes”.
Waltinho, um dos 6 com 2 filmes entre os 40 melhores
E se o adensamento já vinha acontecendo fortemente, com a presença de grandes realizadores, títulos clássicos e premiados e escolas reconhecidas somadas às novas produções do furtivo século XXI, agora, então, esta confluência se faz ainda mais presente. Dá para se ter ideia pelos nomes de cineastas de primeira linha como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Walter Salles Jr., Luis Sergio Person, Hector Babenco e Eduardo Coutinho, que já deram as caras com obras anteriormente e, desta feita, emplacam dois filmes cada entre os selecionados, até então os mais bem colocados. Somam-se a eles os altamente competentes João Moreira Salles, Jorge Furtado e Bruno Barreto, também com dois entre os 40.
Pode-se dizer que, agora, é quando de fato entram os clássicos incontestes, aqueles “divisores de águas” do cinema nacional (e, por que não, mundial), como “Ganga Bruta”, de Humberto Mauro, "O Beijo da Mulher Aranha", de Babenco, “São Paulo S/A”, de Person, e “Tropa de Elite”, de José Padilha. Mas também pedem passagem “novos clássicos”, tal o perturbador documentário “Estamira” e o premiado “Bacurau”, de 2019, quarto mais recente entre os 110 atrás apenas de “Três Verões” (63º), “Marte Um” (79º) e “Marighella” (106º).
Elas, as cineastas mulheres, se ainda em desigualdade na contagem geral, marcam forte presença nesta fatia mais qualificada até aqui. Estão entre elas Kátia Lund, Daniela Thomas e Anna Muylaert, esta última, responsável por um dos filmes mais tocantes e críticos do cinema brasileiro, “Que Horas Ela Volta?”. Então, pegando carona na expressão, para quem estava nos perguntando "que horas eles voltariam?”: voltamos. E voltamos abalando com 40 filmes imperdíveis, que dignificam o cinema brasileiro e latino-americano. Pensa bem: apenas 10 títulos os separam do melhor cinema do Brasil. Isso diz muito.
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50. "Estamira”, Marcos Prado (2004)
Dentre as dezenas de documentários realizados na década 00, um merece especial destaque por sua força expressiva incomum: "Estamira". Certamente o que colabora para esta pungência do filme do até então apenas produtor Marcos Prado, sócio de José Padilha à época, é a abordagem sem filtro e nem concessões da personagem central, uma mulher catadora de lixo com sério desequilíbrio mental, capaz de extravasar o mais colérico impulso e a mais profunda sabedoria filosófica. A própria presença da câmera, aliás, é bastantemente honesta, visto que por vezes perturba Estamira. Obra bela e inquietante. Melhor doc do FestRio, Mostra de SP, Karlovy Vary e Marselha, além de prêmios em Belém, Miami e Nuremberg.
49. “Tropa de Elite”, de José Padilha (2007)
48. “Batismo de Sangue”, de Helvécio Ratón (2007)
47. “Terra Estrangeira”, Walter Salles Jr. e Daniela Thomas (1996)
46. “O Dia em que Dorival Encarou a Guarda”, Jorge Furtado e José Pedro Goulart (1986)
42. “O Homem da Capa Preta”, Sérgio Rezende (1986)
41. “O Beijo da Mulher Aranha”, Hector Babenco (1985)
40.“São Bernardo”, Leon Hirszman (1971)
Adaptação do livro do Graciliano Ramos, que transporta para a tela não só a história, mas a secura das relações e a incomunicabilidade numa grande fazenda do início do século XX, escorada na desigualdade dos latifúndios. Não há diálogo: a vida é assim e pronto. Daqueles filmes impecáveis em narrativa e concepção. E Leon, comunista como era, não deixa de, num deslocamento temporal, dar seu recado quanto à reforma agrária. A trilha, vanguarda e folk, algo varèsiana e smetakiana, é de Caetano Veloso, que acompanha a secura da narrativa e cria uma "música" totalmente vocal em cima de melismas lamentosos e desconcertados. Recebeu vários prêmios em festivais, entre eles o de melhor ator para Othon Bastos no Festival de Gramado, o Prêmio Air France de melhor filme, diretor, ator e atriz (Isabel Ribeiro), além do Coruja de Ouro de melhor diretor e atriz coadjuvante (Vanda Lacerda).
39. “Carandiru”, de Hector Babenco (2002)
38. “O Som do Redor”, Kleber Mendonça Filho (2012)
37. “Que Horas Ela Volta?”, Anna Muylaert (2015)
36. “Notícias de uma Guerra Particular”, Kátia Lund e João Moreira Salles (1999)
35. “Ganga Bruta”, Humberto Mauro (1933)
34. “Lavoura Arcaica”, Luiz Fernando Carvalho (2001)
33. “Bar Esperança, O Último que Fecha”, Hugo Carvana (1982)
32. “Couro de Gato”, Joaquim Pedro de Andrade (1962)
31. “Os Fuzis”, Ruy Guerra (1964)
30.“O Bandido da Luz Vermelha”, Rogério Sganzerla (1968)
Se existe cinema marginal, esta classificação se deve a “O Bandido...”. Transgressor, louco, efervescente, non-sense, crítico, revolucionário. Adjetivos são pouco pra definir a obra inaugural de Sganzerla, que trilharia pela "marginalidade" até o final da coerente carreira. Um filme de manifesto, questionamento de ordem política, de uma estética diferente e bela (apesar do baixo orçamento) e a vontade de avacalhar com tudo. "Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha e se esculhamba".Grande vencedor do Festival de Brasília de 1968. O filme que fez o “terceiro mundo explodir” de criatividade.
29. "Santiago", de João Moreira Salles (2007)
28. “Jogo de Cena”, Eduardo Coutinho (2007)
27. “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”, Glauber Rocha (1968)
26. “Noite Vazia”, Walter Hugo Khouri (1964)
25. “São Paulo S/A”, Luis Sérgio Person (1965)
24. "Terra em Transe", Glauber Rocha (1967)
23. "Sargento Getúlio”, Hermano Penna (1981)
22. “O Caso dos Irmãos Naves”, Luis Sergio Person (1967)
21. “Memórias do Cárcere”, Nelson Pereira dos Santos (1984)
20. “Ilha das Flores”, Jorge Furtado (1989)
É incontestável a importância de "Ilha das Flores" para a cinematografia gaúcha e nacional. O filme que, em plenos anos 80 ainda de fim do período de Ditadura, expôs ao mundo uma realidade muito pouco enxergada, o fez de forma absolutamente criativa e impactante. Ao acompanhar o percurso de um mero tomate da horta até o lixão a céu aberto onde vive uma fatia da população em total miséria e descaso social, Furtado virou de cabeça para baixo a narrativa do audiovisual brasileiro, influenciado diretamente as produções de TV dos anos 80 e 90 e o cinema pós-retomada nos anos 2000. Urso de Prata para curta-metragem no 40° Festival de Berlim, Prêmio Especial do Júri e Melhor Filme do Júri Popular no 3° Festival de Clermont-Ferrand, França, entre outras premiações na Alemanha, Estados Unidos e Brasil. Um clássico ainda hoje perturbador.
19. “O Beijo no Asfalto”, Bruno Barreto (1980)
18. “Central do Brasil”, de Walter Salles Jr. (1998)
17. “Dnª Flor e seus Dois Maridos”, Bruno Barreto (1976)
16. “Garrincha, A Alegria do Povo”, Joaquim Pedro de Andrade (1962)
15. “Barravento”, Glauber Rocha (1962)
14. “Rio 40 Graus”, Nelson Pereira dos Santos (1955)
13. “Bacurau”, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles (2019)
12. “Assalto ao Trem Pagador”, Roberto Faria (1962)
Grande Otelo em "Rio, Zona Norte" com o seu realizador, Nelson Pereira dos Santos, que chega para ficar
Chegamos à terceira parte de nossa lista dos 110 melhores filmes brasileiros, em comemoração aos 110 anos do primeiro filme realizado no Brasil, “Os Óculos do Vovô”. E justo naquele em que é celebrado o Dia do Cinema Brasileiro! E podemos dizer que a coisa está ficando cada vez mais séria. Não que os primeiros-últimos da ordem já não garantissem uma qualidade excepcional. Afinal, separar APENAS 110 títulos entre tantos memoráveis foi tarefa não só difícil como incompleta. Porém, é óbvio que, à medida que vai se avançando na classificação, também se intensifica a importância das obras.
É bem o caso do nosso novo recorte, que vai do 70º ao 51º posto. E em verdade vos digo: só tem filmão! Se nos 40 títulos anteriores já figuravam grandes realizadores, como Eduardo Coutinho, Glauber Rocha, Hector Babenco e Humberto Mauro, agora entram no páreo outras referências indeléveis do cinema nacional, como Leon Hirzsman, Nelson Pereira dos Santos e Kleber Mendonça Filho com seus primeiros listados. Por que, claro, todos eles voltarão mais pra frente com mais obras. Mesmo caso de Cláudio Assis, aqui com “A Febre do Rato”, e Ruy Guerra, já mencionado com seu "Os Cafajestes" (102º) e agora representado por um dos raros musicais de toda a seleção: “Ópera do Malandro”. Como Guerra, Walter Avancini, Julio Bressane, Joaquim Pedro de Andrade, Walter Lima Jr. e Rogério Sganzerla, já presentes, voltam à carga com todo merecimento.
Entre as mulheres, se até então apareceram apenas filmes de Suzana Amaral, Laís Bodanzky e Tatiana Issa, Sandra Kogut amplia a representatividade feminina trazendo uma obra-prima da recente cinematografia brasileira: “Três Verões”. Por falar em época, ao contrário do recorte imediatamente anterior, onde calhou de não haver nenhuma produção dos anos 80, nesta, pelo contrário, elas são maioria entre as décadas, com 8 títulos, 4 a mais que a segunda com mais filmes, os anos 60. Este é um dos retratos de momentos importantes do audiovisual brasileiro que uma lista de teor histórico como esta pode suscitar. A constatação é uma mostra (à exceção de “Morte e Vida Severina”, teledrama da TV Globo) do quanto a Embrafilme, bem estruturada nos anos 80, rendeu ao cinema brasileiro frutos muito qualificados e duradouros. A mesma Embrafilme desmontada nos anos 90 por Collor... Mas isso é outra história.
Confiram, então, mais uma parte da lista destes filmes que, se não são necessariamente todos os melhores, infalivelmente guardam qualidades que os credenciam a estarem aqui.
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70.“O Homem que Virou Suco”, João Batista de Andrade (1981)
A forte e memorável atuação de José Dumond (Melhor ator em Gramado, Brasília e Huelva), mais uma vez espetacular como em “A Hora da Estrela” e “Morte e Vida Severina”, leva o filme, que conta a história do poeta popular nordestino Deraldo. Ele quer tenta viver em São Paulo de sua arte mas é irresponsavelmente confundido com um assassino. Suas raízes e verdades, então, viram “suco” na grande cidade. Melhor Filme em Moscou e Nevers, é daquelas corajosas realizações ficcionais, mas abertamente realista que quase documental, e de extrema importância para o período de abertura política no Brasil após os Anos de Chumbo da Ditadura Militar.
69. “Sem Essa Aranha”, Rogério Sganzerla (1970)
68. “Pra Frente, Brasil”, Roberto Faria (1982)
67. “Tropa de Elite 2 - O Inimigo Agora é Outro”, José Padilha (2010)
66. “Ópera do Malandro”, Ruy Guerra (1986)
65. “O Estranho Mundo de Zé do Caixão”, José Mojica Marins (1968)
64. “O Padre e a Moça”, Joaquim Pedro de Andrade (1966)
63. “Três Verões”, Sandra Kogut (2020)
62. “Ele, O Boto”, Walter Lima Jr. (1987)
61. “A Pedreira de São Diogo”, Leon Hirzsman (1962)
60.“Os 7 Gatinhos”, Neville D’Almeida (1980)
Neville é daqueles cineastas da “elite intelectual carioca” que produz coisas às vezes intragáveis, mas esse é um acerto inconteste. Baseado em Nelson Rodrigues, tem o dedo do próprio no roteiro e, além de trilha com músicas de Roberto e Erasmo, é uma tragicomédia crítica e consistente à hipocrisia e depravação da sociedade brasileira. Interpretações (Thelma Reston, Melhor Coadjuvante em Gramado) e cenas inesquecíveis como a dos “caralhinhos voadores” e “me chama de contínuo” estão neste longa referencial.
59. “O Mandarim”, de Julio Bressane (1995)
58. “Morte e Vida Severina”, Walter Avancini (1981)
Certos marcos temporais não se completam à toa. Em cinema, fenômeno com pouco mais de um século de existência e menos ainda de indústria, décadas contam muito em ternos de significado, ainda mais numa nação jovem como a brasileira. Por isso, diz muito o fato de, há 40 anos, o cinema brasileiro ter perdido Glauber Rocha, principal artífice do Cinema Novo e autor de obras essenciais para a formação do cinema nacional, entre os quais “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de 1964. Primeiro grande marco do Cinema Novo, esta obra divisional é o produto mais pungente de uma rica leva da produção cinematográfica brasileira motivada por um contexto histórico-social e político implosivo nutrido por abissais contradições. Entre a modernidade nacionalista dos tempos pós-Vargas e a embrionária globalização, havia, em mesma proporção, o alarme pelo alto índice de desigualdade social e a forte tensão de forças políticas que resultaria no Golpe Civil-Militar daquele mesmo fatídico ano de lançamento de “Deus e o Diabo...”.
Incandescentes como o sol que assola a terra destas duas forças, a materialização destas motivações em aspectos fílmicos e narrativos dão à obra de Glauber, seguidamente considerada difícil e cerebral, uma representação estética possível de ser revisitada à luz de produções atuais do cinema nacional. A perspectiva pop que traz “Jesus Kid”, de Aly Muritiba, recentemente exibido – e premiado – no Festival de Cinema de Gramado, entreabre, quase 60 anos depois, portas escancaradas com fúria e poesia por Glauber e sua geração. O filme de Muritiba busca explorar artifícios pop já experimentados com êxito anteriormente, numa tentativa digna de estabelecer diálogo com um público aberto a esta abordagem e, principalmente, com condições de transmissão/replicação das propostas discursivas de “vanguarda” na sociedade, a fatia jovem-adulta dos chamados “formadores de opinião”.
Antes mesmo de rodar “Deus e o Diabo...”, Glauber, um iniciante cineasta e ativo crítico de cinema, exaltava em seu “Revisão Crítica do Cinema Brasileiro”, editado em 1963, o potencial “popular” do Cinema Novo. A ideia dos jovens realizadores do movimento era engendrar um cinema de autor que refletisse a alma de um povo, fosse econômica ou esteticamente. Para isso, vestiam suas obras de características ora muito próprias, mas também de natureza “pop” comuns na acepção mais abrangente do termo. A exemplo do que observava com entusiasmo no cinema de colegas como Paulo César Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade e Nelson Pereira dos Santos, Glauber trazia para seu olhar elementos “pop” dentro de seu contexto cultural, histórico e social, como o cinemão norte-americano, a fragmentação sequencial dos quadrinhos a e correlação entre erudito e folclórico – visto, por exemplo, na trilha sonora de “Deus e o Diabo...” dotada de Villa-Lobos e dos cantos de violeiro de Sérgio Ricardo. Igualmente, estão-lhe presentes o cinema de Sergei Eisenstein, Humberto Mauro, John Ford, Luis Buñuel e Roberto Rosselini, todos, à exceção do primeiro, vivos e ativos à época. Elementos que faziam sentido num contexto de “popficação” nos anos 60. Glauber e seus correligionários entendiam que cabia aos autores do cinema uma visão formativa desta inserção de propostas cultas no tecido social. Transformar a alta cultura em hits deglutíveis.
filme"Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha
O uso de elementos “pop” no cinema brasileiro maturou-se ao longo das décadas juntamente com a produção audiovisual nacional. Porém, embora tenha ganho em experiência e até em condições econômicas, alguns ensinamentos parecem ter se dispersado. Em “Jesus Kid”, justamente por seus méritos técnicos, essa inconsistência fica bem evidente. De caprichadas fotografia e direção de arte, o filme de Muritiba se esvazia, por outro lado, naquilo que, certamente, mais almejou realizar, que é uma narrativa de apelo pop. Fugindo do padrão comum, mas também sem recair na proposta alternativa, este formato tenta criar um espaço simbólico que comporta ideias modernas capazes de gerar identificação com o público, sendo um destes recursos a alusão a produtos “do mercado”. Estética e formalmente, “Jesus Kid” apropria-se de referências diretas dos filmes “Barton Fink - Delírios de Hollywood”, de Joen e Ethan Coen (1991), “Cidade dos Sonhos”, de David Lynch (2002) e bastante de Quentin Tarantino, desde os westerns “Os Oito Odiados” (2015) e “Django Livre” (2013) ao episódio de “Grande Hotel” (1995).
Acontece que “Jesus Kid”, mesmo que tenha atingido sua assimilação junto a quem intenta dirigir-se, apresenta duas grandes travas que o impedem de alçar: uma estrutural e outra formal. A começar, o roteiro. Baseado num romance do celebrado escritor Lourenço Mutarelli, o que se verteu das páginas para a construção audiovisual parece ter se descompassado, haja vista, principalmente, o ritmo apressado dos acontecimentos e encadeamentos do filme. Saliente-se: ritmo frenético numa narrativa não pressupõe falta de respiros, visto que a psique do espectador comum – inclusive, o de simpatia ao dito “pop” – carece da tradicional alternância de estados psicológicos da dramaturgia clássica. Subverter isso é optar pelo caminho alternativo, o que está longe de ser-lhe a intenção.
Enquadramento e tonalidades semelhantes de "Jesus Kid" com "Barton Fink": referências diretas
Tanto Tarantino quanto os Coen, os cineastas cujas obras são as mais referidas em “Jesus Kid”, sabem bem disso, pois são conhecidos pelo apreço ao exercício de extensão-distensão da narrativa. O primeiro, com seus longos diálogos preparativos para clímaces; já os irmãos Coen, pelo consciente uso dos espaços vazios visual e narrativamente. Por que, então, pegar-lhes emprestado justo o mais superficial, a estética? Impossível não entender isso como um subterfúgio (pouco assertivo) de atração quase publicitária para a obra. A tarantinesca resolução do filme brasileiro, igualmente, não peca pelo tom satírico ou pela bizarrice – aceitáveis dentro da trama – mas pela falta de preparo a um momento tão importante para a história, visto que o espectador é colocado até ali constantemente num indistinto frenesi de imagens e ações.
Miklos: atuação que enfraquece o filme
Este mesmo raciocínio pode ser aplicado ao outro aspecto analisável de “Jesus Kid”, que é ligado à sua forma: a escolha de Paulo Miklos como protagonista para o papel do escritor Eugênio. Não é difícil perceber que, já no primeiro diálogo, fica evidente o despreparo técnico deste para com os recursos cênicos, visto que recai sobre ele a responsabilidade de sustentar um papel cômico, trágico e cheio de nuanças, difícil até para um ator profissional. Resposta a qual Miklos, ator não-profissional, fatalmente não dá. Mesmo espirituoso e carismático, falta-lhe olhar, falta-lhe tempo de articulação, falta-lhe consciência de movimentos. Se a estratégia era se valer, como na publicidade e seus “garotos-propaganda”, da figura pop de um conhecido astro da música, havia de se avaliar que, como ator, este desempenhou bem no cinema apenas 20 anos atrás em “O Invasor”, de Beto Brant (1997), justo quando teve, conceitualmente, liberdade de uma atuação naturalista dentro da “marginalmente” que o papel exigia, o que supunha desvencilhar-se de balizamentos técnicos. Para “Jesus Kid”, no entanto, a opção por Miklos prejudica sobremaneira todo o andamento, visto que a história se centra no escritor ao qual ele interpreta. Não é difícil imaginar algum ator profissional assistindo o filme e lamentando pelo desperdício de um roteiro promissor.
Há de se entender, contudo, que a caminhada para um cinema de apelo “pop-cult” no Brasil, a exemplo do que outros polos mundiais produzem, principalmente os Estados Unidos, está em pleno curso. Desde que “Deus e o Diabo....” iluminou este caminho, títulos importantes para essa viragem como “O Bandido da Luz Vermelha” (Rogério Sganzerla, 1969), “A Rainha Diaba” (Antonio Carlos da Fontoura, 1974) e “Faca de Dois Gumes” (Murilo Salles, 1989) evoluíram em linguagem e aproximaram os conceitos “brutos” da vanguarda para a massa. Mais proximamente, o cinema pós-retomada dos últimos 30 anos captou bem este espírito a exemplo de “Cidade de Deus” (Fernando Meirelles e Katia Lund, 2002), a franquia “Tropa de Elite” (José Padilha, 2007 e 2010), “Fim de Festa” (Hilton Lacerda, 2019) e o talvez mais bem-sucedido de todos nesta linha: “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho (2019). Todos entenderam o que Glauber avaliava como essencial a uma obra de cinema que se pretende popular: cada um à sua medida, dosa discurso e poesia. Equilíbrio difícil, porém, o que talvez explique a inconstância de obras desta potência e natureza no Brasil. Linguagem em cinema também é continuidade da prática.
Se custou a Glauber e ao Cinema Novo o preço muitas vezes da incompreensão, é curioso perceber como o movimento serviu para emancipar o cinema nacional justamente no aspecto que teve menos êxito, que foi o de representar e dialogar com o público – ou o mais amplo possível deste. Como acontece em processo semelhante na música erudita para com a música pop, as bases lançadas pela primeira passam por tamanho burilo que, quando chegam aos ouvidos da massa, pouco se identifica de seus arrojados acordes geradores. A Glauber, especialmente, homem de poucas concessões e cujo cinema intensificou-se em complexidades alegóricas cada vez mais ao longo dos anos, ficou a pecha de alguém genial, mas de ínfima aceitação e entendimento popular. Independentemente disso, faz quatro décadas que Glauber Rocha deixou, dentre outros legados, as bases de um “cinema pop” para o Brasil sob uma perspectiva doméstica. É justo e genuíno, então, buscá-lo e aperfeiçoá-lo. Talvez, contudo, seja preciso ainda que bata muito sol sobre esta terra para que o diabo da inovação e o deus do gosto popular se harmonizem.
Quatro capas de "Brasil", lançado por Warner, Philips, Universal e em edição conjunta com o disco imediatamente anterior de João, "Amoroso"
"Quando dizem que João é o grande mestre inventor da bossa nova, não é gratuita essa denominação. Ele, com essa capacidade aglutinadora de vários elementos musicais para uma direção especial, foi o grande inventor desse conjunto extraordinário".
Gilberto Gil
"Todo e total respeito e reverência a essa entidade da música brasileira".
Maria Bethânia
"A bossa nova tem sido, de fato, para nós como para estrangeiros, o som do Brasil do descobrimento sonhado".
Caetano Veloso
Definir um povo através da música nem sempre é uma tarefa
fácil. Países como Portugal e seu fado ou a Argentina com o famoso tango talvez
sejam afortunados por conseguirem essa identidade sonora, o que certamente lhes
é favorecido pelas pequenas dimensões territoriais e a formação social uniforme – resultante, não
raro, de alguma dose de tragédia. Porém, esse aspecto ganha complexidade quando o
povo em questão é diverso e a jurisdição bem maior, tal como ocorre com os
continentais Estados Unidos e Brasil. Assim como os norte-americanos tem tanto
o jazz quanto o country, o rock ou o blues, o Brasil, obviamente, não é só
samba. O Sul da milonga difere brutalmente do Nordeste do baião, do forró e do
maracatu, igual ao carimbó do Norte ou o sertanejo do Centro-Sul. O que dizer
então, quando se aprecia as peculiaridades culturais – e musicais, por
consequência – entre os estados? A riqueza mestiça de Minas, o balanço leve da Bahia, a
realeza malandra carioca, a dureza concreta de São Paulo...
O que abarcaria, então, um conceito minimamente consensual
que representasse o ser brasileiro para dentro e para fora dos limites fronteiriços?
A resposta talvez esteja justamente no gênero que efetivou esse protagonismo
interna e externamente. O estilo que achou a "caixa de munição" ideal
e sintética do Brasil: a bossa nova. João Gilberto, promotor da revolução ao
inferir sua estética infalível de canto e instrumental (e espírito) às
harmonias jobinianas já suficientemente revolucionárias, o ponto perfeito entre a
tradição e o moderno, acreditava nesse poder simbólico da bossa nova. Depois do
seu advento, com todos os seus protagonistas e personagens (Tom, Vinicius de Moraes, Johnny Alf, Antônio Maria, Carlos Lyra, Dolores Duran, entre outros) o
Brasil, em recente industrialização pois ainda fortemente rural e mero exportador de matéria-prima naquela
metade de século XX, nunca mais foi o mesmo. Entrou, definitivamente, no mapa
da produção intelectual mundial.
Além disso, João completava 50 naquele 1981. Era hora de celebrar a própria trajetória, bem como a do estado e do país que lhe fizeram artista. Isso ajuda a explicar porque João, sem pudores,
chamou para gravar consigo os conterrâneos baianos e súditos Caetano Veloso,
Gilberto Gil e Maria Bethânia um disco corajosamente chamado
"Brasil". A "estação primeira do Brasil", aquela que o
destino quis que recebesse o navio descobridor impregnado de Velho Mundo,
juntava seus mais célebres porta-vozes para cantar-lhe, o Brasil, nos seus
versos.
O autor de “Bim Bom”, em sua inteligência e sensibilidade supremas,
sabia muito bem o que queria com esse projeto, que completa 40 anos de
lançamento em 2021. Tanto que é ele mesmo quem assume pela primeira vez na
carreira de então mais de 30 anos e onze discos gravados a própria produção do
álbum. E o faz com total domínio, nada tão complicado para alguém dotado de
ouvido absoluto e atento aos dedos hábeis de craques das mesas de som com quem
trabalhou, como Tommy LiPumma, Aloysio de Oliveira e Creed Taylor. O
repertório, escolhido a dedo, igualmente, saiu de sua cabeça, que desde os anos
50 propusera uma releitura constante e modernizante (mas também arraigada nos
matizes de um Brasil complexo e multicultural) da música através das notas
dissonantes. Era samba-de-roda, era batuque de morro, era bloco de escola. Mas
era também o choro, a modinha, a seresta, a valsa e uma pitada da jazz norte-americano
para os gringos ficarem boquiabertos com tamanha musicalidade vinda dos trópicos.
Os manos Caê e Bethânia admiram o mestre João ao vivo exibindo sua arte: momento único
Celebrações se inauguram ao som de hinos. Não poderia ser
diferente, então, que o disco começasse com aquele que é considerado o segundo
símbolo musical nacional, talvez mais conhecido que o próprio hino pátrio: “Aquarela
do Brasil”. O clássico de Ary Barroso – então já imortalizado em gravações como
as de Francisco Alves com a orquestra de Radamés Gnatali, em 1939, ou a de Elis Regina, de 30 anos depois – ganha uma versão revestida de personalidade e
elegância e que vai ditar o conceito de toda a obra. Os primeiros acordes
são emitidos da espinha dorsal: o violão, instrumento que João integrou à voz
na sua revolução bossa-novista ao invés de dissociar um elemento do outro como
até então havia sido em música popular. Porém, desta vez ele tem correligionários para acompanhá-lo
em sua magia, pois é um uníssono emocionante o que se ouve. Os famosos versos
ufanistas "Brasil, meu Brasil brasileiro/ Meu mulato inzoneiro/ Vou
cantar-te nos meus versos" saem das vozes de João, Gil e Caetano juntas. Quanta
história e simbologia unidas! Assim, impactante, como a delicada força das águas
do mar, eles intercalam-se, cada um repetindo uma vez a letra sozinho para,
num final triunfante, tornarem a unir os vocais, agora acompanhados da
empolgante percussão comandada por Paulinho da Costa e os teclados e
sintetizadores arranjados por Johnny Mandell. A sensação ao final da faixa é
que podia até ficar somente nisso, de tão completo que é. Mas tem mais.
A fórmula é repetida com igual brilhantismo em “Bahia com H”,
samba dos anos 40 escolhido por motivos óbvios, e, ainda mais bairrista. “Milagre”, a versão da fantasia praieira de Caymmi, artista largamente reverenciado por todos eles, é muito mais que uma faixa, mas um acontecimento único na história da
música brasileira. O trato do violão e da voz de João à rica melodia e a
perfeita harmonia da canção, estarrece. Gil, cujas guias de Logunedé, Jimi Hendrix e Luiz Gonzaga carrega sempre consigo no pescoço, elabora o canto com
seu gingado gracioso. Já a voz de cristal de Caetano parece acariciar as notas,
joão-gilbertiando o que há de bom.
A união de vozes do trio volta para interpretar uma
deliciosa versão de Haroldo Barbosa para o standart “All of Me” num jazz
rebatizado nas águas de Senhor do Bonfim. Arranjo, produção, timbrística, tudo
impecável. E quando João percebeu ser necessário uma voz feminina? Chamou outra
baiana, claro. Mas nada de recrutar alguma falsa delas, mas sim Bethânia,
que faz dueto com ele e com os parceiros de Doces Bárbaros no brejeiro samba “No
Tabuleiro da Baiana”, outra de Ary Barroso. Uma única participação da poderosa
voz da Abelha-Rainha, mas marcante e significativa. Aliás, como em todo o disco – e
a bossa nova em si –, mínimo é mais.
A faixa de encerramento, "Cordeiro de Nanã", é um comovente mas breve canto, quase uma vinheta, para a orixá da sabedoria, a que domina os trânsitos entre a
vida e a morte. Impressionante como uma canção pode ser tão singela e penetrante:
pouco menos de 1 minuto e meio de uma das coisas mais bonitas da música
brasileira. E com ela se encerra este sucinto mas acachapante disco: com sons
que parecem misturar-se com o ar, que parecem soprados pela natureza, que parecem
emergidos das águas profundas da mais velha das Yabás. Sabedoria é o que define.
Ouvir “Brasil”, indepentemente da época, faz com que, pelo
menos durante sua pouco menos de meia hora, acredite-se que este é o Brasil
que deu certo, seja para dentro de seus domínios como para fora dele. Os
germânicos legaram ao mundo a sintaxe da música clássica, os norte-americanos
forjaram o arrojado jazz, mas não é nenhum exagero dizer que o mais sofisticado
dos gêneros musicais modernos tem pele mestiça e se chama bossa nova. Internamente,
faz-se ainda mais provável essa tese. Há Villa-Lobos, o chorinho e a tentativa
legítima do movimento Armorial de cunhar um estilo genuinamente brasileiro. Mas
ninguém realizou esse sonho como João e seu violão. Seu Brasil foi a Bahia, de onde ele veio e invariavelmente voltava para lá. A Santa Bahia Imortal a qual ele ficava contente da vida em saber que era Brasil. Um Brazyl, aliás, que conheceu o
Brasil. Um Brasil que foi, sim, ao Brazil. Aquele mais cosmopolita e
contemporâneo, mas basicamente folclórico, popular e profundo, como as águas
protegidas por Nanã Buruquê. Caetano tem razão: definitivamente, depois dos acordes dissonantes emanados do
peito dos desafinados, a nossa vida nunca mais foi igual.
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documentário "Brasil",de Rogério Sganzerla (1981)
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FAIXAS: 1. "Aquarela do Brasil (Brasil)" (Ary Barroso) - 6:34 2. "Disse Alguém (All of Me)" (Gerald Marks,
Seymour Simons – versão: Haroldo Barbosa) - 5:18 3. "Bahia com H" (Denis Brean) - 5:13 4. "No Tabuleiro da Baiana" (Ary Barroso) - 4:50 5. "Milagre" (Dorival Caymmi) - 4:57 6. "Cordeiro de Nanã" (Dadinho, Mateus) - 1:20
“José Mojica, mestre do terror e dos espaços profundos.”
Glauber Rocha
“Sua câmera não mente jamais e confirma o desejo de reinventar o gênero horror com uma deformação formal, que só se encontra em alguns verdadeiros pioneiros”.
Rogério Sganzerla
Nas primeiras décadas do século XX, alguns dos cineastas que
ajudaram a construir a linguagem do cinema o fizeram com muita criatividade e
intuição. Passados os pioneiros anos em que Griffith e Méliès abriram os
portais daquele mundo de imaginação, foi a vez de outros realizadores, principalmente
Vidor, Hitchcock, Lang, Sternberg e Clair, desvelarem aquela pedra bruta.
Com recursos tecnológicos e financeiros geralmente parcos de um período de entre-Guerras,
era a inventividade em criar soluções, trucagens e métodos que os fazia obter o
resultado que pretendiam em frente à câmera e... ação! Estava feita a magia.
As décadas se passaram e os polos produtores e escolas de
cinema foram assimilando a gramática audiovisual de maneira formal e técnica.
Porém, o primitivismo criativo, algo genial e admirável em qualquer realizador,
inclusive nos mais estudados, é ainda mais valioso quando surtido com
espontaneidade. Caso do já saudoso José Mojica Marins, morto no último dia 19
de fevereiro. Eternizado como seu principal personagem, o assustador coveiro Zé
do Caixão, o diretor – um autodidata que mal tinha o primário concluído, quanto
mais um curso de cinema – alinha-se a este time de cineastas cuja linguagem
cinematográfica lhe era natural e transbordante.
Mojica como Zé do Caixão à época de "À Meia Noite..."
À margem do mainstream, Mojica firmou seu nome pela via do cinema marginal. Independente e amador, ele não produzia para nenhum grande estúdio e penava
para financiar seus projetos, mas seu cinema de terror bizarro inspirado nos B
Movies e, igualmente, calcado no noir e no western norte-americanos e seus
grandes estetas – Orson Welles, John Ford, Howard Hawks, John Huston – driblava qualquer escassez de recursos. Esmerava-se nos roteiros e tinha uma técnica intuitiva apurada para a fotografia, a edição, a construção de personagens e a condução narrativa. Assim foi por toda sua carreira, “fazendo chover” mesmo com
baixos orçamentos, a exemplo dos celebrados “À Meia-Noite Levarei Sua Alma” (1964),
“Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver” (1967) e “O Estranho Mundo de Zé doCaixão” (1968).
Duas exceções, entretanto, mostram que, nas raras ocasiões
em que teve recursos para produzir melhor, Mojica não desperdiçava. Um deles é,
justamente, seu último longa, de 2008, “Encarnação do Demônio”, produzido por
Paulo Sacramento e no qual, após mais de seis décadas de carreira transcorridas,
finalmente conseguiu fazer um filme nos moldes do que sempre sonhou. O outro
título de sua extensa filmografia em que se vale de uma produção digna é
“Exorcismo Negro”, de 1974 (ano em que havia ganho dois prêmios na França, L’Ecran Fantastique e Tiers Monde). Produzido por Aníbal Massaini Neto – financiador de
pornochanchadas, mas responsável também por bons longas históricos como “Independência
ou Morte” e “Corisco, o Diabo Loiro” –, tem poucas locações, menos de 15 personagens
e alguns figurantes. Se não se trata de uma superprodução, é suficiente para o
diretor estabelecer um padrão de qualidade, que coloca “Exorcismo Negro” entre
os seus melhores.
Na história. na onda do então recente sucesso de “O Exorcista”, de um ano antes, Mojica
viaja para passar o Natal com os amigos num sítio onde vivem e escrever a
história de seu próximo filme. No entanto, coisas misteriosas começam a se
suceder na casa, com seus amigos sendo possuído por alguma força sobrenatural. Ele
descobre que a matriarca da família fez, no passado, um acordo com a bruxa Malvina
para engravidar e salvar seu casamento. Em troca, Malvina deve indicar o filho
do Satanás, Eugênio, para se casar com a menina. Além disso, Mojica entra em
conflito com o próprio Zé do Caixão, que está pronto para recolher as almas
daquela família. Como é peculiar de Mojica, a autorreferência e o jogo de
sentidos para com seu alter-ego dão à obra um ar metalinguístico, assim como já
havia proposto em “O Despertar da Besta” e “O Estranho Mundo...”
Mojica com a família de amigos em "Exorcismo...": tensão o tempo todo
O versátil Jofre Soares sendo acometido pelo espírito de Zé do Caixão
Possessão e exorcismo: influências do recente sucesso de "O Exorcista"
“Exorcismo...” traz um manancial de referências obrigatórias
a filmes de horror: a casa assombrada, objetos que se movem sozinhos, corpos
sendo tomados por espíritos malignos, bichos peçonhentos, mistérios familiares
que vem à tona, erotismo grotesco, um animalzinho de estimação judiado e uma
criança cuja inocência é ameaçada pelo mal. Porém, mais do que uma sucessão de
clichês, o filme tem a qualidade de que tudo é tecnicamente bem realizado: efeitos
especiais, cenas de briga, trucagens com sangue, cenografia, corte da edição. Diferentemente
do que se viu por muito tempo no cinema nacional e que se tornou-lhe,
inclusive, uma pecha. Merece atenção especial, entretanto, a fotografia (quesito
no qual Mojica sempre foi irreparável), que concilia a dureza da sombra marcada
e a coloração que capricha nos tons quentes – principalmente, claro, no
vermelho-sangue. Igualmente, não apenas o uso bem articulado da trilha sonora,
outra conhecida qualidade do diretor, como, também, da própria seleção das
músicas, como as de Syd Dale, Daniele Amfitheatrof e Michel Magne.
Cena do ritual: apavorante e na medida certa
Mas, além disso, o ritmo de “Exorcismo...” é perfeito. Aquilo
que é um problema em alguns filmes de Mojica, fruto justamente da dificuldade de
produção que invariavelmente enfrentava, a continuidade é um trunfo deste
longa. A narrativa mantém a tensão e dá sustos do início ao fim. A chegada do
personagem Mojica à casa dos amigos, por exemplo, é sucedida por uma série de
acontecimentos aterrorizantes, que não deixam o espectador descansar. A
sequência do ritual macabro, excessivamente longa em outras realizações do
cineasta (“Delírios de um Anormal” e na reedição estendida de “O Despertar...”),
aqui está na medida exata entre a alucinação vivida pelo personagem e o ritmo
narrativo, que não cansa quem assiste.
Premiado internacionalmente, celebrado por referências como
Glauber Rocha, Gustavo Dahl e Rogério Sganzerla e, bem mais tarde, descoberto
pelo mercado norte-americano, que o intitularia como Coffin Joe. Nada foi
suficiente para que Mojica vencesse as restrições ao seu trabalho por quase todo
o período em que esteve ativo, dos anos 40 até o século XXI. Nos anos 80, espremido
pela censura e pelo sistema, partiu para o cinema pornô, que ao menos lhe daria
alguma grana. Pouco antes de conceber seus últimos filmes, já nos anos 2000,
Sganzerla escrevia sobre o amigo e admirado cineasta: “Além de nunca ter
recebido nem adiantamento, quanto mais condições de produção compatíveis com
seu talento, não filma há 15 anos, sendo vítima do descaso, inépcia,
irresponsabilidade ou talvez preconceito”. Pouco visto em seu próprio país, “Exorcismo...”
é, certamente, um dos melhores filmes de terror da década de 70 – rica neste
gênero, aliás. A se ver por este resultado, imagine se Mojica tivesse recebido
o devido reconhecimento em vida?
Vamos lá, isso mesmo, mais uma vez Sganzerla e mais uma vez uma grande obra. Atenção, família tradicional brasileira, tome muito cuidado ao assistir a "Copacabana Mon Amour".
Sônia Silk (Helena Ignez) circula por Copacabana, no Rio de Janeiro, com o grande sonho de ser cantora da Rádio Nacional. Silk é irmã de Vidimar, empregado apaixonado pelo patrão, o Dr. Grilo.
Se chegamos desavisados, o filme é uma grande bagunça, uma história difícil de entender, muitos gritos, mas muitos mesmo, na verdade a obra e praticamente toda gritada. Agora já temos cores, a qualidade da imagem melhora bastante em relação a alguns filmes anteriores de Sganzerla mas o som continua sendo um problema. Devido ao fato de muitas cenas terem sido filmadas na rua e os microfones da produção não serem grande coisa, nem a técnica de som da época era tão avançada, o diretor mais uma vez escolhe dublar todas as falas do longa e elas dessincronizam em todo o filme (falas dubladas pelos próprios atores).
O estranho relacionamento entre os dois irmãos.
Os diálogos das obras desse diretor são sempre um destaque assim como a maneira que ele pega coisas totalmente deixadas de lado ou muitas vezes vistas com olhar preconceituoso e coloca como grande destaque dos seus filmes. Helena Ignez, sempre muito sensual, (Nossa, essa mulher era a sensualidade em pessoa!), tem atuação hipnotizante. Logo na primeira cena temos uma narração em off relatando quem são os “deuses”, divindades, orixás, da cultura do candomblé, e a partir daí o candomblé segue fazendo parte do enredo até o final do filme. Temos até uma cena onde um dos personagens está fazendo um “trabalho”, temos cenas de “possessão”, e batuques de tambor também são bem frequentes. A trilha sonora foi composta por Gilberto Gil e tem um destaque bastante grande dentro do filme entrando sempre em momentos oportunos, isso sem falar na sua incrível originalidade, conseguindo ser uma daquelas obras que une com perfeição a tropicália e o cinema.
As cenas deste filme são de uma força, de um impacto fortíssimo. Como disse ele é gritado, mas é GRITADO em todos os sentidos: as cenas de violência física são constantes por parte do patrão com seu empregado, mas as falas, sempre duras, chegam muitas vezes a serem mais fortes que agressões fisicas. Uma dominação completa. As cenas de sexo também têm sua selvageria e misturam-se com o candomblé, numa combinação que Rogério Sganzerla faz como ninguém.
Mais um achado do cinema nacional, "Copacabana, Mon Amour" pode parecer confuso, pode parecer meramente provocador, e pra falar a verdade realmente é, mas também é um pouco mais que isso: pega a cultura que foi jogada lá em baixo, crenças que foram jogadas lá em baixo e pessoas que são jogadas completamente à margem, e as colocas no ponto alto, as valorizando e humanizando. Parabéns, Mister Sganzerla.
Se o filme anterior de Rogério Sganzerla, "O Bandido da Luz Vermelha", foi um avacalho, o que dizer deste, como uma protagonista maníaca sexual, devoradora de homens, em plena ditadura brasileira? Sim, completamente anárquico.
A ninfômana Ângela Carne Osso (Helena Ignez) decide passar o fim de semana na exótica Ilha dos Prazeres. Seu marido é o extravagante Doktor Plirtz (Jô Soares) que contrata um detetive particular para comprovar a (in)fidelidade de sua esposa.
Helena Ignez, Stênio Garcia (Flávio Azteca)
e Antônio Pitanga (Vampiro), que baita elenco.
Não é demérito ser um espectador comum, mas se você for este "espectador comum" não vai gostar do filme de Sganzerla. Tem sequências bem repetitivas, fora de contexto e diálogos que parecem que não vão levar a lugar algum. Somado isso, a falta de moralidade nos personagens pode também incomodar algumas pessoas.
Ângela Carne Osso é uma personagem espetacular, “Eu sou simplesmente uma mulher do século XXI, sou um demônio antiocidental, eu cheguei antes, por isso sou errada". Ela realmente estava à frente do seu tempo e acredito que, infelizmente, talvez esteja à frente do nosso. Ela vai ditar o filme. A obra e centrada na sua figura e Helena Ignez tem uma atuação memorável. Toda sua sensualidade, seu poder, sua feminilidade está em tela no seu total. Ângela Carne Osso quer consumir homens a curto prazo abandonando-os em seguida.
Jô Soares está ótimo como bitolado.
Sim, "A Mulher de Todos" é um filme sobre sexo, mas não é um filme pornográfico. O sexo não está ali só para entreter o espectador mas sim como ferramenta narrativa, para mostrar o poder de Ângela Carne Osso. E todas as cenas mais quentes vê-se Angela, tomando a iniciativa, controlando a situação, algumas vezes até ferindo fisicamente seus parceiros.
As melhores cenas realmente são as de Angela, principalmente quando ela olha para câmera e parece estar falando conosco, falando de sua preferência pelos boçais. Outras ótimas cenas envolvem Doktor Plirtz, especialmente sua fala sobre o tipo de arte que gosta (no caso do filme ele fala de quadrinhos) é muito boa. Se você parar e refletir sobre ela pode ver o alto grau de crítica que Sganzerla colocou nela cena sem deixar de mencionar a ótima atuação de Jô Soares que está ótimo no filme.
Um filme à frente de seu tempo, assim como sua protagonista. Sganzerla mais uma vez abusa de sua anarquia, mas desta vez tem um foco: mostrar a mulher livre. Mesmo sendo mais uma vez um avacalho de filme, "A Mulher de Todos" não deixa de ser autoral e crítico. Sganzerla segue mostrando que é possível fazer cinema da miséria, do imoral, do não aceito, e a minha paixão pelos seus filmes aumenta de 4 em 4 minutos.