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sábado, 15 de julho de 2023

“Não! Não Olhe!”, de Jordan Peele (2022)


Sim, nós olhamos*

Numa das cenas do filme “Harriet”, de Kasi Lemmons (2019), que conta a história da ativista e heroína negra do século 19 nos Estados Unidos, o pai da personagem, num das expedições clandestinas empreendidos por ela com a intenção de libertar negros escravizados do jugo dos senhores de terra, a recebe de olhos vendados. Ele sabia que a filha ali estava, mas, numa atitude aparentemente inútil, bloqueava a visão para que, se cobrado pelos patrões, tivesse consigo a sinceridade de poder dizer que não a tinha visto com os olhos. Essa atitude aparentemente pueril ou até irracional traz, no fundo, uma preocupação para além do racional, visto que ética, além de, noutra esfera, ligada ao conceito de cinema. É este aspecto ético que, noutras formas e complexidades, norteia a obra do cineasta norte-americano Jordan Peele e, mais propriamente, seu longa “Não! Não Olhe!” (“Nope”), de 2022.

Peele, assim como os conterrâneos, contemporâneos e irmãos de cor Kasi, Anthony Fuqua, Ryan Coogler, Barry Jenkins, Ava DuVernay, Steve McQueen e outros, tem plena noção do seu “lugar de fala” enquanto triunfante realizador negro dentro do sistema da indústria cinematográfica. Peele, no entanto, guarda características bem peculiares. Primeiro que, diferentemente de seus pares, mais multitemáticos em abordagem, ele identifica-se fortemente com o cinema fantástico, reclamando para si um filão jamais explorado tão audazmente, nem na reivindicadora blackexplotation dos anos 70: o Black Horror. Segundo que, pelas condições produtivas, seu fazer cinematográfico identifica-se com o “cinema de autor”. Ele dirige e produz aquilo que escreve e ainda dá assinatura a suas obras, estágio que poucos cineastas alcançam – ainda mais negro e em tão pouco tempo de trajetória. 

São assim “Corra!” (“Get Out”, 2017), consagrado terror psicológico que o alçou mundialmente, e “Nós” (“Us”, 2019), outro filme de horror de rara habilidade narrativa tanto em roteiro quanto em direção. Filmes comerciais, mas capazes de aprofundamento crítico e filosófico. Imbricado à forma, pop e instigante, o conteúdo de ambos os filmes redimensiona problemáticas da questão negra como preconceito, animalização e extermínio sócio-étnico-cultural. O “terror” na já marcante obra de Peele é mais do que o sobressalto da poltrona ou o arregalar de pupilas: são séculos de um terror verdadeiro de desumanização e apagamento o qual foi (e é) submetido o povo negro. E que ganham ainda maior potência na tela diante do choque provocado ao evidenciar que este mesmo terror está presente em uma sociedade moderna incapaz de superar comportamentos e mentalidades inaceitáveis. Peele não brinca e nem pasteuriza o racismo: ele, ao revesti-lo de estereótipos fílmicos e elementos narrativos consagrados, escancara o quanto esta doença humana é assustadoramente vulgar.

“Não! Não Olhe!”, bem menos arrepiante que seus anteriores, é um suspense sci-fi cujos apontamentos críticos à questão social e racial se dispõem de uma forma renovada. A história se passa numa cidade do interior da Califórnia, que começa a ter eventos bizarros e extraterrestres. Os irmãos Emerald e OJ (interpretados por Keke Palmer e Daniel Kaluuya), donos de um rancho de cavalos vizinho a um parque de diversões, não apenas presenciam estes fatos estranhos como passam a se envolver diretamente com eles depois que perdem seu pai em virtude de tais fenômenos. Outra figura central na trama é nipo-americano Jupe (Steven Yeun), astro-mirim de uma série de televisão no passado e apresentador de um show de velho oeste naquele parque.

Keke Palmer e Daniel Kaluuya protagonizam
a ficção de Peele, cuja mensagem vai além do gênero

A coesão da narrativa que se percebe em “Nós” e, principalmente, em “Corra!” talvez falte um pouco ao roteiro um tanto desigual de “Não! Não Olhe!”, tecnicamente impecável como seus antecessores, mas bem mais dado à espetacularização imagética das ficções-científicas do que à suscetibilidade neural provocada pelo terror psicológico. Porém, o longa, mesmo sem total assertividade – como recai a obras que se propõem a transpor barreiras – avança em aspectos antes obscurecidos na sociedade norte-americana e no cinema enquanto reflexo do contexto histórico e sociopolítico. Questões fadadas a não serem enxergadas, como identidade, crença, cultura e ancestralidade. Como se tivessem que obedecer a uma regra social intolerante, que impõe não serem olhadas de modo que permaneçam invisíveis simbolicamente. Sem estes preceitos, a natureza humana perde sentido, e sem identidade e moral, resta a animalização. Refazendo o ditado popular: quem não é visto, é apagado.

Peele, por este motivo, traçou paralelos entre homem e natureza em diferentes níveis em “Não! Não Olhe!”. Primeiro, entre o selvagem e o civilizado. O filósofo inglês Thomas Hobbes diz que “a natureza fez os homens tão iguais quanto às faculdades de corpo e do espírito”. Nada mais é do que a utilização do impulso irracional do cavalo domesticado por OJ durante os bastidores para a gravação de uma cena audiovisual. A insegurança do rapaz, um homem negro de origem simples diante da elite majoritária branca, simbolizada pela equipe presente no set, o reduz como indivíduo. Acuado, ele se desumaniza e se animaliza. Nem a aparição da irmã, bastante mais desenvolta do que ele, consegue salvar o cavalo de reagir espontânea e naturalmente com agressividade ao estímulo visual quando se vê num espelho. Pelo contrário: OJ ao mesmo tempo identifica-se e sente vergonha de Emerald com sua verborragia e gestos amplos, pois, inconscientemente, também a vê animalizada tal uma macaca. Semelhante ao humano, mas necessariamente inferior. Como o cavalo, ver-se no espelho é uma tarefa repelente quando não se tem consciência da própria natureza.

O chimpanzé Gordy: metáfora
central da história
A alegoria do primata na relação entre instinto e razão, homem versus animal, é ainda mais profundamente explorada no filme por Peele quando da aparição do chimpanzé Gordy, espécie de metáfora central da história. É ele que, no passado, em virtude do mesmo desrespeito e exploração ditados pela engrenagem capitalista, faz valer seus instintos mais sinceros – e violentos – durante as tensas gravações de uma fictícia sitcom. Inspirando num caso real ocorrido nos Estados Unidos, Gordy ataca a equipe e, assim, equipara de fato tanto homens quanto bichos com aquilo que lhes é comum: a morte e a finitude. Uma (forçada) volta às origens. Traumatizado com este episódio da infância, Jupe, é o único a quem o macaco poupou por lhe tratar com dignidade e carinho – ou seja, que o olhava sem a lente do preconceito. O coração vê sim e mais do que se possa supor.

Reina nesta apropriação do estado natural do homem a dicotomia ética a qual o filme se concentra. Hobbes sustenta que, diante da necessidade de preservação da individualidade e do direito natural à sobrevivência, o ser humano busca lançar mão dos meios necessários para preservá-la e evitar todas as ações que sejam contrárias a ela. A criação do estado político, diante da quase irrefreável ação de eliminação do outro, nada mais é do que o obstáculo necessário para a contenção destes instintos. Acreditam ter encontrado a justiça, mas alcançaram algumas migalhas de harmonia. O “lobo do lobo do homem” está lá, preservado; apenas há convenções que lhe limitam a barbárie.

Limitam até certo ponto. Na prática, a falácia liberalista atribui o direito à riqueza a todos, mas a destina àqueles que formal e historicamente sempre tiveram mais condições de deter o poder: os brancos. Se o valor que as pessoas ou coisas possuem é resultado de convenção social, o que acontece com aqueles que foram convencionados por séculos como uma raça inferior? Difícil desfazer mentalidades vigentes, principalmente quando estas asseguram influência e domínio. A relação de fornecedor e comprador exposta na cena em que OJ tenta domesticar o cavalo para a gravação audiovisual expõe bem esta contradição: não há lei de mercado mediando, pois a liberdade não é dada a quem, de antemão, é subjugado por sua atribuída condição inumana. Basta ver que ninguém no set enxerga OJ de fato, a ponto de não considerarem seu importante alerta para a preservação do bem estar do cavalo e a própria finalidade para a qual estavam todos ali. 

O cinema norte-americano de muito mira suas câmeras, consciente ou inconscientemente, à questão da animalização dos pretos. Esta subclassificação, que situa o afrodescendente numa posição de espécie exótica e quase humana numa sociedade em que, na escravidão, furavam-se os olhos de escravos como castigo, denota a mentalidade racista imperante e transposta para Hollywood por décadas. Quebrariam este ciclo mais consistentemente duas produções apenas nos anos 60, quase meio século após a instauração da indústria cinematográfica: “A Noite dos Mortos-Vivos” (George Romero, 1968), terror que atribui naturalmente um raríssimo heroísmo a um protagonista negro, e “Ao Mestre com Carinho” (James Clavell, 1966), drama no qual se via numa das primeiras vezes um negro na tela em um papel preponderante. Não por coincidência, ambos as produções surgem à época das lutas pelos Direitos Civis nos Estados Unidos. 

Porém, os séculos de massacre social e cultural pesam. A mítica figura de “King Kong”, por exemplo, originalmente lançado em 1933 mas persistentemente retornada nas décadas subsequentes, carrega consigo a simbologia desta relação incongruente entre selvageria e civilização. Imagem preconceituosa, aliás, que nenhuma das refilmagens teve capacidade (ou intenção) de desfazer. A atração sexual implícita entre o gorila gigante, bastante empretecido em feições, e a mocinha, tão branca e loira quanto os códigos arianos permitem, joga luz sobre a dualidade instinto/razão. Afinal, a sexualização do negro é, definitivamente, uma das patologias as quais o brancocentrismo não consegue resolver. Hobbes diz que a riqueza sem a liberalidade deixa de ser poder e expõe o homem à inveja.4 Mesmo tendo despertando o amor no coração da mulher, aquela existência aberrante é incompatível com a ordem social. A solução? O apagamento. Ninguém mais o vê, simples. 

O emblemático King Kong em versões ao longo da história

A força descomunal de “King Kong” serve também como uma bela metáfora. Tudo que a autoproclamada justa sociedade norte-americana desconhece ou não controla, classifica como fantástico e inimiga de seus valores morais. O cinema sci-fi, como o que Peele recursou em “Não! Não Olhe!”, é causa e consequência deste pensar ufanista e egoico, visto que se vale largamente do artifício do estranhamento a depender das ameaças vigentes à ideologia de sua época. E se esta ameaça vier do céu ou de outro planeta, fica ainda mais fácil justificar a segregação. Já serviram de símbolo para estes fenômenos alienígenas o comunismo (“Vampiros de Almas”, Don Siegel, 1956), a crise nuclear (“O Enigma de Andrômeda”, Robert Wise, 1871), as doenças venéreas (“Enraivecida”, David Cronenberg, 1977), a tecnologia (“O Exterminador do Futuro”, James Cameron, 1984), os vírus letais (“Eu Sou a Lenda”, Francis Lawrence, 2007) e até a emancipação feminina (“Invasores”, Oliver Hirschbiegel, 2015). Tudo o que não se detêm controle. Em “Não! Não Olhe!”, cujo discurso é fruto das motivações pós-George Floyd, o monstro, reelaborado e em certa medida mais palpável, é o próprio sistema: incontrolável, insaciável, intolerante e, por natureza, forjado sobre bases segregadoras. 

Organismo que rejeita o feto, este estranhamento é gerado pelo próprio sistema. E vai além: esconde e determina que este não deva existir, que não deve ser visto. A dicotomia, portanto, instaura-se. Como um filho bastardo e imperfeito, o monstrengo descomunal e incontrolável existe, e por isso deve ser desconsiderado, pois só assim pode ser domado. Caso contrário, ele solapa, consome, elimina. Mastiga tudo que vê pela frente e ainda, faminto, exige mais. Por isso, o alerta: “não, não o olhe”. Se o fizer, as energias serão magicamente todas roubadas, pois o que não falta a este estranho sem forma é força e até razão. Irônica e metalinguística a cena em que o “cinema de arte” é sugado pelo alien na figura estereotipada do cineasta-autor: branco, excêntrico e idealista, mas frouxo. 

Afora isso, o filme suscita a linguagem cinematográfica ao aludir à função psicológica do olhar. Novamente, todavia, de maneira original. No cinema de Peele, este paralelo também está diretamente ligado à abordagem do gênero de terror/fantasia, pois dela se depreendem proposições críticas potentes e coerentes com o discurso do cineasta. Ele usa a gramática do cinema para ressignificar a permanente indagação ética: “de onde vem o racismo?” Em “Corra!”, o mistério do aliciamento de jovens negros pela abastada família branca se desvenda quando vídeos gravados são vistos através do olhar das lentes. Em “Nós”, o enigma se esconde naquele apavorante reconhecimento visual à duplicidade dos corpos sem identidade ou moral. Já em “Não! Não Olhe!”, cujo mesmo recurso linguístico não apenas se repete como se torna o cerne, há uma sobreposição de olhares: o dos personagens, o do espectador, o da natureza, o social, o histórico e o identitário. 

É claro que o título provocativo do filme de Peele tem como finalidade não a repelir mas, justamente, atrair o olhar a uma necessária tomada de consciência humanitária. Juntamente com os cineastas negros de sua geração, também autores de obras de vital relevância para a recente cinematografia dos Estados Unidos e para a discussão do problema urgente do racismo, o jovem realizador forja o que pode ser chamado de “cinema de conscientização”. Mais do que reagir como a blackexplotation, denunciar como a L.A. Rebellion ou levantar contradições como Spike Lee, esta geração avisa que veio para mudar. O que pode ser entendido como sinal dos tempos, também é prova de que há muito espaço jamais ocupado historicamente por estes em virtude da hegemonia branca. Porém, na era do Vidas Negras Importam, outro lema advindo da luta racial dos Estados Unidos pode ser parafraseado de forma a amalgamar estas dignas intenções: “sim, nós olhamos”.

* Texto originalmente publicado na edição de nº 32 da revista Teorema

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trailer oficial de "Não, Não Olhe!"


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Minhas 5 atuações preferidas do cinema

Brando: imbatível
Recebi do meu amigo e colega de ACCIRS Matheus Pannebecker o convite para participar de uma seção do seu adorável e respeitado blog Cinema e Argumento. A missão: escolher três atuações que me marcaram no cinema. Ora: pedir isso para um cinéfilo que adora elaborar listas é covardia! Claro, que topei. Não só aceitei como, agora, posteriormente à publicação do blog de Matheus, amplio um pouquinho a mesma listagem para compor esta nova postagem. Não três atuações inesquecíveis, mas cinco. 

Obviamente que ficou de fora MUITA coisa digna desta mesma seleção: Michel Simon em “Boudu Salvo das Águas” (Jean Renoir, 1932), Lima Duarte em “Sargento Getúlio” (Hermano Penna, 1983); Steve McQueen em “Papillon” (Franklin J. Schaffner, 1973); Marília Pêra em “Pixote: A Lei do Mais Fraco” (Hector Babenco, 1981); Toshiro Mifune em “Trono Manchado de Sangue” (Akira Kurosawa, 1957); Klaus Kinski em “Aguirre: A Cólera dos Deuses” (Werner Herzog, 1972); Fernanda Montenegro em “Central do Brasil” (Walter Salles Jr,, 1998); Dustin Hoffman em “Lenny” (Bob Fosse, 1974); Sharon Stone em “Instinto Selvagem” (Paul Verhoven, 1992); Al Pacino em “O Poderoso Chefão 2” (Francis Ford Coppola, 1974)... Ih, seriam muitos os merecedores. Mas fiquemos nestes cinco, escolhidos muito mais com o coração do que com a razão.

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Marlon Brando
“O Poderoso Chefão" (Francis Ford Coppola, 1972)
Há momentos na história da humanidade que a arte sublima. É como um milagre, uma mágica. Isso, não raro, provêm dos grandes gênios que o planeta um dia recebeu. Sabe Jimi Hendrix tocando os primeiros acordes de “Little Wing”? Pelé engendrando o passe para o gol de Torres em 70? A fúria do inconcebível de Picasso para pintar a Guernica? A elevação máxima da arte musical da quarta parte da Nona de Beethoven? Na arte do cinema este posto está reservado a Marlon Brando quando atua em “O Poderoso Chefão”. Assim como se diz que nunca mais haverá um Pelé ou um Hendrix ou um Picasso, esse aforismo cabe a Brando que, afora outras diversas atuações dignas de memória, como Vito Corleone atingiu o máximo que uma pessoa da arte de interpretar pode chegar. Actors Studio na veia, mas também coração, intuição, sentimento. Tão assombrosa é a caracterização de um senhor velho e manipulador no filme de Coppola que é quase possível se esquecer que, naquele mesmo ano de 1972, Brando filmava para Bertolucci (em outra atuação brilhante) o sofrido e patológico Paul, homem bem mais jovem e ferinamente sensual. Pois é: tratava-se, sim, da mesma pessoa. Aliás, pensando bem, não eram a mesma pessoa. Um era Marlon Brando e o outro era Marlon Brando.

cena inicial de "O Poderoso Chefão"



Giulieta Masina
“A Estrada da Vida” (Federico Fellino, 1954)
“A Estrada da Vida” é sem dúvida um dos grandes filmes de Federico Fellini. Sensível, tocante e levemente fantástico. Nem a narrativa linear e de forte influência neo-realista – as quais o diretor foi se afastando cada vez mais no decorrer de sua carreira em direção a uma linguagem mais poético e surrealista – destaca-se mais do que considero o ponto alto do filme: as interpretações. À época, Fellini se aventurava mais nos palcos de teatro e nas telas, basta lembrar do lidíssimo papel de “deus” no episódio dirigido pelo colega Roberto Rosselini no filme “O Amor” (1948). Talvez por essa simbiose, e por ter contado com o talento de dois dos maiores atores da história, Anthony Quinn (maravilhoso como Zampano) e, principalmente, da esposa e parceira Giulieta Masina na linha de frente, “A Estrada da Vida” seja daquelas obras de cinema que podem ser considerados “filme de ator”. Considero Gelsomina a melhor personagem do cinema italiano, o que significa muita coisa em se tratando de uma escola cinematográfica tão vasta e rica. Não se trata de uma simplória visão beata, mas o filme nos põe a refletir que encontramos pessoas assim ao longo de nossas vidas e, às vezes, nem paramos para enxergar o quanto há de divino numa criatura como a personagem vivida por Giulieta. Reflito sobre a passagem de Jesus pela Terra, e o impacto que sua presença causava nas pessoas e o que significava a elas. Se ele não era “deus”, era, sim uma pessoa valorosa entre a massa de medíocres e medianos. Gelsomina, com sua pureza e beleza interior quase absurdas, parece carregar um sentimento infinito que poucas pessoas que baixam por estas bandas podem ter – ou permitem-se. E é justamente essa incongruência que, assim como com Jesus, torna impossível a manutenção de suas vidas de forma harmoniosa neste mundo tão errado. Tenho certeza que foi por esta ideia que moveu Caetano Veloso a escrever em sua bela canção-homenagem à atriz italiana, “aquela cara é o coração de Jesus”.

cena de "A Estrada da Vida"



Leonardo Villar
“O Pagador de Promessas” (Anselmo Duarte, 1960)
Sempre quando falo de grandes atuações do cinema, lembro-me de Leonardo Villar. Assim como Giulieta, Brando, Marília, Toshiro, De Niro, Pacino, Emil ou Lorre, o ator brasileiro é dos que foram além do convencional. Aqueles atores cujas atuações são dignas de entrar para o registro dos exemplos mais altos da arte de atuar. Sabe quando se quer referenciar a alguma atuação histórica? Pois Leonardo Villar fez isso não uma, mas duas vezes – e numa diferença de 5 anos entre uma realização e outra. Primeiro, em 1960, ao encarnar Zé do Burro, o tocante personagem de Dias Gomes de “O Pagador de Promessas”, o filme premiado em Cannes de Anselmo Duarte (na opinião deste que vos escreve, o melhor filme brasileiro de todos os tempos). Na mesma década, em 1965, quando vestiu a pele de Augusto Matraga, do igualmente célebre “A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, de certamente o melhor filme do craque Roberto Santos rodado sobre a obra de Guimarães Rosa. Dois filmes que, soberbamente bem realizados não o seriam tanto não fosse a presença de Villar na concepção e realização dos personagens centrais das duas histórias. Ainda, personagens literários que, embora a riqueza atribuída por seus brilhantes autores, são - até por conta desta riqueza, o que lhes resulta em complexos de construir em audiovisual - desafios para o ator. Desafios enfrentados com louvor por Villar.

cena de "O Pagador de Promessas"



Emil Jannings
"A Última Gargalhada" (F. W. Murnau, de 1924)
Falar de Emil Jannings é provocar um misto de revolta e admiração. Revolta, porque, como poucos artistas consagrados de sua época, ele foi abertamente favorável ao nazismo, tendo sido apelidado pelo próprio Joseph Goebbels como o "O Artista do Estado". Com o fim da Guerra, nem o Oscar que ganhou em Hollywood em 1928 por “Tentação da Carne”, o primeiro da Melhor Ator da história, lhe assegurou salvo-conduto no circuito cinematográfico, do qual foi justificadamente banido.  Porém, é impossível não se embasbacar com tamanho talento para atuar. O que o ator suíço faz em “A Última Gargalhada”, clássico expressionista de F. W. Murnau, de 1924 é digno das maiores de todo o cinema. Que personagem forte e cheio de nuanças! A expressividade teatral, comum às interpretações do cinema mudo, são condensadas pelo ator numa atuação que se vale deste exagero dramatúrgico a favor da construção convincente de um personagem inocente e puro de coração. Com apenas 40 anos Jannings, que alimentava pensamentos fascistas, transfigura-se num idoso bonachão e humano. E tudo isso sem “pronunciar” nenhuma palavra sequer! Joseph Von Steiberg ainda o faria protagonizar um outro grande longa alemão, o revolucionário “O Anjo Azul”, em que contracena com a então jovem diva Marlene Dietrich, mas a mácula nazi não o deixaria alçar mais do que isso. Para Jennings, a última gargalhada foi dada cedo demais.

cena de "A Última Gargalhada"



Robert De Niro
"Touro Indomável" (Martin Scorsese, 1980)
Têm atuações em cinema que excedem o simples exercício da arte dramática, visto que representam igualmente uma prova de vida. Foi o que Robert De Niro proporcionou ao interpretar, em 1980, o pugilista ítalo-americano Jake LaMotta (1922-2017) em “Touro Indomável”, de Martin Scorsese. Desiludido com os fracassos que vinha acumulando desde o sucesso de crítica “Taxi Driver”, de 4 anos antes, o cineasta só vinha piorando a depressão com o uso desenfreado de cocaína. Somente uma coisa podia lhe salvar. A arte? Não, os amigos. De Niro, a quem Scorsese havia confessado que não iria mais rodar jamais na vida, convenceu-o a aceitar pegar um “último” projeto, que contaria a biografia do “vida loka” LaMotta. Claro, o ator, parceiro de outros três projetos anteriores de Scorsese, se responsabilizaria pelo personagem principal. Por sorte, o destino provou a Scorsese que ele estava errado em sua avaliação negativa e o recuperou para nunca mais parar de filmar. “Touro...”, uma das principais obras-primas da história cinema, é não só o melhor filme do diretor quanto a mais acachapante das atuações de De Niro. As “tabelinhas” dele com Joe Pesci, a qual o trio repetiria a dose nos ótimos “Os Bons Companheiros” e “Cassino”, começaram ali. Prova da capacidade de mergulho de um ator no corpo de um personagem, De Niro vai do físico de atleta, parecendo muito maior do que ele é de verdade, à obesidade de um homem decadente e alcoólatra. Fora isso, ainda tem a tal cena de quando LaMotta é preso em que, numa crise de fúria, ele esmurra a parede da cela, cena na qual De Niro, tão dentro do personagem, de fato quebra a mão.“Eu não sou um animal!”, bradava. Eu diria que é, sim: um “cavalo”, daqueles de santo que recebem dentro de si entidades.

cena de "Touro Indomável"


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

"Doutor Gama", de Jeferson De (2020)

 

O Dia da Consciência Negra, embora não adotado em todo o Brasil (nem mesmo pela cidade na qual surgiu, Porto Alegre), tem ganhado a cada ano mais reverberação. Oxalá! Se acontecimentos recentes como a morte de repercussões mundiais de George Floyd ou o alarmante assassinato de Júlio César acabam por nos fazer lembrar da necessária e constante vigília contra o apagamento histórico – não raro, caracterizado pelo aniquilamento –, por outro lado, mais e mais a sociedade passa a enxergar esta data e não o 13 de Maio como aquela que, de fato, representa a valorização da cultura afro-brasileira e um avanço do maior espaço do negro em todas as esferas sociais.

Um dos aspectos positivos que esta conscientização gera é o do resgate da ancestralidade. E quando se fala em direito ao povo negro, é impossível não se lembrar no Brasil de uma personalidade tão histórica quanto admirável: Luiz Gama, figura central do filme "Doutor Gama", do diretor paulista Jeferson De. Nascido de ventre livre, o baiano Gama foi, mesmo assim, vendido como escravo aos 10 anos para pagar dívidas de jogo de seu pai, um homem branco. Mesmo escravizado, ele conseguiu se alfabetizar e, assim, conquistou sua liberdade, tornando-se um dos mais respeitados juristas de sua época. Vivido por Cesar Mello na vida adulta e por Angelo Fernandes na adolescência (além do competente Pedro Guilherme, que faz o personagem quando criança), o filme mostra a vida de Gama desde a infância até a conquista de seu primeiro grande caso jurídico, uma verdadeira quebra de paradigmas na mentalidade vigente da época cujo preconceito era ainda protegido por lei. 

Num desses apegamentos que a cultura colonialista tenta nos imputar, Gama por muito tempo foi classificado como “rábula”, ou seja, tanto "advogado pouco culto, incompetente, pilantra" quanto aquele que "exerce a advocacia sem ser qualificado". Errado. O historiador Bruno Rodrigues de Lima, pesquisador do Instituto Max Planck, em Frankfurt, na Alemanha, mostra que esta imagem, propositadamente construída para diminuir a importância de Gama, está totalmente equivocada. E sempre esteve. Lima encontrou diversos (repito: não poucos, mas diversos!) documentos que provam que, já à sua época, Gama – que foi também escritor, jornalista e abolicionista – era creditado, sim, como “advogado”. Isso porque o exercício da advocacia não era restrito apenas aos bacharéis em Direito, mas também àqueles que tivessem alguma provisão, temporária ou definitiva, que reconhecesse a função por notório saber. 

O herói Luiz Gama: que rábula, que nada! Advogado

Não precisa de um profundo entendimento para se constatar que, num país forjado sobre a mentira da democracia racial, os ventos deste apagamento continuem sendo soprados. Recentemente, a tão conceituada editora Companhia das Letras foi motivadora de um episódio lamentável envolvendo a figura do próprio Luiz Gama. A editora decidiu retirar de circulação o livro infantil “Abecê da Liberdade: A História de Luiz Gama, o Menino que Quebrou Correntes com Palavras” depois de uma série de polêmicas na qual a empresa se colocou, deslavadamente, como "desavisada". Isso porque os autores José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta – brancos, claro –, tiveram a absurda irresponsabilidade (pra não dizer coisa pior) de escrever cenas do pequeno Gama quando criança brincando de “escravos de Jó” em pleno navio negreiro e pulando corda com as correntes... Ora, tenha dó! O próprio filme retrata esta passagem com a devida tristeza e crueldade como de fato ocorreu com Gama e milhares de negros escravizados. Mais uma mostra cabal do racismo estrutural, visto que mascarado de desentendimento, tanto por parte dos autores quanto da editora.

O que dizer, então, dessa sociedade preconceituosa que pretensamente grita aos quatro cantos que é antirracista mas que, justamente por isso – por não sê-lo, por não acreditar no que mesmo diz – acaba por ser exatamente aquilo que era desde o princípio: racista? Diretamente ligado a isso, note-se que "Doutor Gama" avança discursivamente num aspecto de profunda violência e desumanidade da escravocracia, que é a possibilidade de se subjugar, apenas pela cor da pele, alguém que nem mais escravo era - reforçando, pois, que a ideia de escravidão era e é social e não somente política. Este aspecto é o mote do oscarizado "Doze Anos de Escravidão" (de Steve McQueen, 2013) e é impressionante ver que somente agora obras comecem a relembrar tais práticas repugnantes. Porém, enquanto no filme norte-americano o protagonista passa uma vida lutado para sair da condição a qual foi injustamente colocado, em "Doutor Gama" vê-se um passo além: não só trata de um negro que conquistou a liberdade como ajudou outras centenas a também exercerem seus direitos à vida.

O longa brasileiro, por sinal, é muito bem realizado tanto técnica quanto narrativamente. Roteiro na medida certa entre o recorte histórico e a abordagem biográfica; fotografia impecável de Cristiano Conceição constituída sobre o conceito de luz natural de um Brasil de fins de século XIX; trilha deslumbrante do músico baiano Tiganá Santana (que em vários momentos lembra os memoráveis arranjos e composições de Dori Caymmi para televisão e cinema) e, principalmente, as interpretações. Neste aspecto – além da aparição sempre iluminada de Zezé Motta e de um igualmente luminoso Romeu Evaristo – é Cesar Mello quem mais desponta. O papel de Gama é difícil, visto que requer uma construção histórico-fisiológica longínqua e pouco documentada. Mas é ainda mais elogiável quando se considera o tamanho da responsabilidade para atores negros como Mello e Fernandes representá-lo. Aliás, sempre foi assim: tudo o que cabe a um negro fazer que não seja o seu comum papel subalterno carrega o dobro de obrigação para que não se perca a oportunidade nunca tida.

Cineasta negro, De é uma referência para a negritude de alguém capaz de ascender no meio audiovisual ainda tão desigual e racista. Sua produção, desde o longa de estreia "Bróder” (2005), aborda a questão negra em diversos aspectos. Recentemente, De lançou a comédia a la Globo Filmes "Correndo Atrás", com Aílton Graça no papel principal, que embora guarde suas validades, difere drasticamente da qualidade e essencialidade de “Doutor Gama”. Neste ponto, o longa de De acerta em cheio, preservando na força dos diálogos a dificuldade de negros e abolicionistas e, em contrapartida, o desafio dos primeiros impulsos contrários a este tão perverso status quo. As sequências de tribunal são exemplares, uma vez que visivelmente se baseiam nos autos jurídicos para sustentar a dramaticidade proposta.

Juntamente com o sucesso de bilheteria “Marighella”, com Seu Jorge como protagonista, e “Pixinguinha”, também estrelado pelo músico e ator carioca, Gama, com o filme, também passa a ser mais publicitado proximamente como de fato foi. O cinema nacional, assim, começa a recuperar seus personagens negros de uma forma como nunca foram realmente considerados. Afinal, suas importâncias vão muito além de uma obra de cinema, haja vista que têm dimensões sócio-políticas que repercutem até hoje. Ao passo de que Marighella não era um assassino perigoso e que Pixinguinha não foi somente mais um músico de antigamente, Gama merece ser lido nos livros de história pela sua gigantesca contribuição para a sociedade brasileira. Como Ganga Zumba e Zumbi dos Palmares, dos poucos cinebiografados até então, são eles verdadeiros heróis nacionais que começam a se salvar das forças do apagamento/aniquilamento. Caso de Doutor Gama. Não o rábula, mas o advogado Gama, Vossa Excelência.

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trailer de "Doutor Gama"


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

5 Importantes Protagonistas Negros do Cinema


O ator Chiwetel Ejiofor em "12 Anos
de Escravidão": essencial
A morte precoce do ator Chadwick Boseman deixou de luto seus fãs e cinéfilos do mundo inteiro. Sua partida marcou principalmente a comunidade negra, que tinha no artista afro-americano um símbolo de representatividade e de empoderamento em um mundo ainda pautado pelo racismo e pela discriminação.

Ao encarnar o super-herói “Pantera Negra”, Boseman se transformou em uma referência. Mas, antes dele, muitos outros personagens negros do cinema também deram sua contribuição para essa história de reconhecimento e pertencimento. Por conta disso, fui convidado pela Cinemateca Paulo Amorim, da Casa de Cultura Mário Quintana, em Porto Alegre, em nome de sua programadora, a jornalista Mônica Kanitz a destacar alguns destes filmes, que figuram neste vídeo especial produzido pela instituição. Confira o vídeo e a lista dos respectivos filmes aos quais selecionei.




Vídeo "Chadwick Boseman e Outros Protagonistas Negros no Cinema"
Cinemateca Paulo Amorim

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1 - "Adivinhe Quem Vem para Jantar", de Stanley Kramer (1967)

Em São Francisco, Matt Drayton (Spencer Tracy) e Christina Drayton (Katharine Hepburn), um conceituado casal, se choca ao saber que Joey Drayton (Katharine Houghton), sua filha, está noiva de John Prentice (Sidney Poitier), um negro. A partir de então dão início à uma tentativa de encontrar algo desabonador no pretendente, mas só descobrem qualidades morais e profissionais acima da média. Primeiro filme a abordar o tema do racismo e dos conflitos nas relações socioraciais. Vencedor do Oscar de Melhor Atriz (Hepburn), Melhor Roteiro Original (William Rose) e Melhor Ator (Tracy).




2 - "Faça a Coisa Certa", de Spike Lee (1989)

Numa pizzaria no bairro do Brooklyn, NY, onde a maioria da população é negra, há uma parede com fotos de ídolos ítalo-americanos. Quando o ativista Buggin' Out (Giancarlo Esposito) pede ao dono do lugar que a parede tenha ídolos negros e ele nega, inicia-se um boicote ao lugar, o que desencadeia uma série de incidentes. Spike Lee surgia para o mundo com essa obra-prima marcante na história do cinema e da causa negra diretamente contundente contra o racismo. Indicado a dois Oscars, incluindo o de Melhor Roteiro Original.





3 - "12 Anos de Escravidão", de Steve McQueen (2013)

Adaptação da autobiografia homônima de 1853 de Solomon Northup, conta a história real de um negro livre nascido em Nova Iorque, que é sequestrado em Washington e vendido como escravo. Ele trabalhou em plantações no estado de Louisiana por 12 anos antes de sua libertação, passando por todo tipo de sofrimento, violência e desumanidade. Primeiro filme de um cineasta negro a ganhar o Oscar de Melhor Filme, além de ter conquistado também os de Melhor Atriz Coadjuvante (Lupita Nyong'o) e Melhor Roteiro Adaptado (John Ridley).





4 - "Madame Satã", de Karim Ainouz (2002)

O filme retrata a vida de uma referência na cultura marginal urbana do Rio de Janeiro, o célebre transformista João Francisco dos Santos. Malandro, artista, presidiário, pai adotivo de sete filhos, negro, pobre, homossexual, o artista, conhecido como "Madame Satã", se transformou num mito da vida boêmia carioca. Entre os vários prêmios, que recebeu, destacam-se o de Melhor Filme no Chicago International Film Festival, o Prêmio Especial do Júri para melhor primeiro trabalho (Ainouz) no Festival de Havana e os quatro que abocanhou no Grande Prêmio BR do Cinema Brasileiro, incluindo o de Melhor Ator para Lázaro Ramos.





5 - "Pantera Negra", de Ryan Coogler (2018)

Após a morte de seu pai, o Rei de Wakanda, T’Challa (Chadwick Boseman) volta para casa para a isolada e tecnologicamente avançada nação africana para a sucessão ao trono e para ocupar o seu lugar de direito como rei. Mas, com o reaparecimento de um velho e poderoso inimigo, o valor de T’Challa como rei – e como Pantera Negra – é testado quando ele é levado a um conflito formidável que coloca o destino de Wakanda, e do mundo todo em risco. Marco na história do cinema, "Pantera..." é o primeiro filme com um super-herói negro, o personagem criado nos anos 60 por Stan Lee, e também um símbolo necessário para uma época de empoderamento de homens e mulheres negras. Levou o Oscar de Melhor Trilha Sonora Original (Ludwig Göransson), Figurino (Ruth E. Carter) e Direção de Arte para Hannah Beachler, também a primeira negra a ganhar a estatueta nesta categoria.




Daniel Rodrigues


quinta-feira, 16 de julho de 2020

O (re)nascimento de uma nação: racismo no cinema norte-americano



Por mais reprimida que seja, toda desigualdade entre os homens será sempre um campo de conflito. O racismo é uma dessas instituições sociais cujo avanço da sociedade o faz ser cada vez mais discutido no caminho daquilo que se pretende: sua dissolução. Longe disso se está, infelizmente. A emergência atual do tema se dá não pela conscientização coletiva, mas pela via mais dolorida e revoltante. A morte do ex-segurança George Floyd, em Minneapolis, nos Estados Unidos, abriu novamente a cortina sobre a questão: a da confirmação de uma repetição de atrocidades enquanto não se enfrentar o monstro.

Aliados para isso há, e o cinema norte-americano – também resultante das mudanças sociais daquele país desde o movimento pelos Direitos Civis nos anos 60 e 70 – vem refletindo cada vez mais esse necessário espaço de conflito. Se hoje é possível ver a questão racial recorrentemente trazida para as telas, bem como profissionais negros mais atuantes atrás e à frente das câmeras, também é verdade que esse fenômeno acompanha a evolução da situação política nas duas últimas décadas. Desde que Doze anos de escravidão, de 2013, venceu o maior prêmio do Oscar, tal viragem em nome de um digno resgate e retratação histórica tem se mostrado recursiva e pulsante, com obras como "Moonlight" (2017), "Corra!" (2017), "Se a Rua Bale Falasse" (2018) e os recentes "Luta por Justiça" (2020) e "Destacamento Blood" (2020).

"O Nascimento..." de Griffith: serviço
ao cinema e desserviço à sociedade
Não foi sempre assim, obviamente. Os caminhos para se chegar ao âmago das coisas são tão tortuosos quanto a construção social de toda a população segregada e desvalorizada pelo preconceito. Como revoltar-se contra o que é tácito e de consenso? A representação do negro na história da indústria norte-americana vai desde a culpabilização à inexpressão. Mesmo com todos os méritos cinematográficos inquestionáveis, o desserviço civil que "O Nascimento de uma Nação", de D. W. Griffith, prestou, no início do século XX, estendeu-se por décadas. Noutro extremo, se não culpado, o negro era representado pelo “excêntrico”, tanto o raro quanto o animalesco. Isso, quando não relegado à completa inexistência uma vez que esmagado pela branquização. Precisou quase meio século para que, nos anos 60, com Adivinhe quem vem para jantar (1967) e No calor da noite” (1968), a questão racial fosse tratada, finalmente, como um problema. Mas não bastou. Se a Blackexplotation dos anos 70 trouxe o orgulho do Black Power e o protagonismo negro para as telas, também o fez reativa e brutalmente. Ser um negro de sucesso significava (re)afirmar o estigma reducionista (e altamente racista) da capacidade instintiva e “desbranquiçada” da imposição física.

Eddie Murphy: um ídolo que não se
leva a sério
Vieram os anos 80 que, embora começassem a venerar figuras como Eddie Murphy, essencial na iconografia negra, também, por contexto histórico-social, este simbolizava a imagem do negro “esperto” e “cômico”, seja o policial atilado Axl Foley de "Um Tira da Pesada" ou o vagabundo sortudo de "Trocando as Bolas". Traduzindo, o negro não precisa ser temido pela violência: ele pode encarnar o malandro para fazer rir. Os tempos andaram ainda mais um pouco e a questão continuava a ser desviada. Enquanto os avanços sociais e políticos pressionavam, o sistema respondia: “se acharam ofensivo serem agressivos ou piadistas, que tal, então, inteligentes?” O assaltante e gênio em computação de Clarence Gilyard Jr.em "Duro de Matar" (1988) não deixa mentir. Enfim, concedia-se aos negros mais esta branquificação: a da inteligência. Claro, novamente como “escada” e jamais protagonista em sua própria natureza.

Como se vê, a sina do estereótipo não é brincadeira e nem descuido. E a sociedade entendeu isso. Tamanha força opressiva, que carrega consigo séculos de escravidão e descaso de uma supremacia, precisava ser enfrentada com munição tão poderosa quanto. É quando, nos anos 80, surge Spike Lee. Se em um de seus primeiros trabalhos o jovem cineasta ia em cheio à raiz da questão ao criticar "O Nascimento de uma Nação" ("The Answer", de 1980), é em 1989 que seu "Faça a Coisa Certa", um marco da discussão aberta do racismo no cinema, traz de vez o olhar balizado tanto do opressor quanto, principalmente, do oprimido. Algo que se é capaz de fazer, quase que inequivocamente, somente quando se está na segunda posição. Seu cinema abertamente engajado à causa negra pode ser criticado pela apropriação artística para fins ideológicos. No entanto, é evidente que lhe é mais do que justificável a escolha e que esta faz muito sentido quando se olha para trás e se vê o rastro de desigualdade, desrespeito e desumanização deixado pelo preconceito racial.

O genial Spike Lee em seu "Faça a Coisa Certa", que ia à coisa certa há 31 anos atrás
O atual momento da representatividade do negro na indústria do cinema também tem outro elemento propulsor, que se chama Donald Trump. A esperança igualitária de Barack Obama, em certa medida, esgotou-se no Nobel da Paz ganho pela simbologia de um homem negro no mais alto cargo mundial. Deveria, mas não foi suficiente. As questões raciais estruturais, nos oito anos de seu mandato, permaneceram pouco tocadas, e tiveram que aumentar o volume quando da reassunção do conservadorismo abertamente racista de Trump. A intensa reação à morte de George Floyd, histórica e antropologicamente, passa por estes processos.

Por sorte, o caminho foi aberto por Spike Lee há pouco mais de 30 anos. Ava DuVernay, Barry Jenkins, Jordan Peele, Ryan Coogler, Steve McQueen, Kasi Lemmons e tantos outros cineastas negros que hoje, nutridos de consciência histórica e atribuição simbólica, fazem com que seja possível enxergar o negro não apenas pela lente distorcida do estereótipo, mas, principalmente, como agentes ativos deste espaço de conflito ideológico e sujeitos críticos da maior degradação moral que o ser humano pode conceber: o racismo. Não somente porque o cinema norte-americano é indústria cultural, mas porque, sendo isso, tem o poder de chegar a todos tanto com a negação quanto com o sim. E agora, não tem volta: é hora de toda essa nação acordar para renascer.

Daniel Rodrigues

Artigo publicado originalmente no site da Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (ACCIRS), vinculado ao debate sobre o tema no programa Cinema em Transe #1-racismo no cinema, com a participação de Daniel Rodrigues, no canal da Accirs no You Tube

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

"Infiltrado na Klan", de Spike Lee (2018)


Pessimista
por Vagner Rodrigues


Até os momentos finais do filme, meu texto teria um tom mais alegre. Reflexivo, sim, mas ainda assim positivo. Mas meus amigos, acho que minhas esperanças estão indo embora. Mas, a propósito,... que baita filme!
Em 1978, Ron Stallworth, um policial negro do Colorado, conseguiu se infiltrar na Ku Klux Klan local. Ele se comunicava com os outros membros do grupo através de telefonemas e cartas e, quando precisava estar fisicamente presente, enviava um outro policial branco no seu lugar. Depois de meses de investigação, Ron se tornou o líder da seita, sendo responsável por sabotar uma série de linchamentos e outros crimes de ódio orquestrados pelos racistas.
“Infiltrado na Klan” algumas vezes acaba pendendo para um lado cômico demais ao retratar alguns personagens, até aliviando um pouco o peso de suas atitudes erradas, fazendo até parecer que não seriam pessoas tão más (E SIM, SÃO, SIM) e, sim, apenas idiotas (SIM. SÃO ISSO TAMBÉM). Mas com uma direção segura, mesmo nesses momentos onde o humor parece exagerado percebemos que Spike Lee o está fazendo propositadamente para que o impacto no final seja ainda maior.  Lee não perde a oportunidade de fazer um discurso forte, político e de posicionamento bem claro. Se é isso que espectador espera dele num filme como esse, é exatamente isso que ganha.
As impactantes e divertidas ligações de Ron para a KKK.
Adam Driver, que faz Flip Zimmerman, é o personagem que mais evolui ao longo da trama, o que mais sofre mudanças, mudando sua percepção de si mesmo e do mundo à sua volta, destacando-se bastante exatamente por conseguir transmitir isso de manira bastante convincente. John David Washington, como Ron Stallworth, é outro que está superbem. Sua veia cômica e incrível mas se sai muito bem, igualmente, nas cenas mais sérias e tensas mantendo um bom equilíbrio.
Ainda que a evolução do personagem Flip chamem atenção e suas cenas infiltrado serem bem tensas, como a da reunião da KKK, por exemplo, gosto bastante também das cenas em que fica evidente o desconforto interno que o personagem passa por estar naquele ambiente e ainda assim ter que manter a tranquilidade. Porém é obvio que as cenas fortes são as mais impactantes. Temos o segundo discurso para universitários negros relatando um caso de violência, com fotos e fazendo referência ao filme “Nascimento de uma Nação”(1915), e, especialmente, os 5 minutos finais do longa que, meu amigo e minha amiga, são de chorar. Prepare seu psicológico senão você vai desabar.
Um filme que cumpre todos os objetivos: é muito bem, diverte, e nos faz refletir. Não tenho intenção de influenciar as pessoas positivas mas, após assistir ao filme e chegar ao seu final, eu fiquei pessimista quanto ao nosso futuro próximo. Espero estar errado. Spike Lee mostra mais uma vez que é genial. Atira para todos os lados e acerta em todos.


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Merece mas não leva
por Daniel Rodrigues


Patrice Dumas (Laura) e Ron Stallworth (Washington):
par no romance e no ativismo
Não é tarefa fácil contar uma história passada há mais de 40 anos e atá-la com a realidade atual com incisão. Ainda mais quando o enredo toca em questões delicadas e polêmicas, como racismo e os direitos civis. Pois o experiente Spike Lee conseguiu esse feito com “Infiltrados na Klan” (2018), seu novo filme, pelo qual recebeu, com décadas de atraso, a primeira indicação ao Oscar de Melhor Diretor. No centro da trama: a ação nazifascista da Ku Klux Klan em meados dos anos 70. Com isso em mãos, o cineasta (que assina ainda o Roteiro Adaptado, pelo qual também é indicado, igualmente em Filme) expõe o quanto não se evoluiu o suficiente neste aspecto na sociedade norte-americana – ou o quanto se retrocedeu. O resultado é um dos melhores filmes da extensa e referencial filmografia do autor de “Faça a Coisa Certa” e “Febre da Selva”, aliando entretenimento, cinema de arte e registro documental.
Em 1978, Ron Stallworth (John David Washington), um policial negro do Colorado, consegue, incrivelmente, se infiltrar na Ku Klux Klan local. Ele se comunica com os outros membros do grupo através de telefonemas e cartas, mas quando precisa estar fisicamente presente, envia outro policial branco no seu lugar, o colega Flip Zimmerman (Adam Driver, concorrente ao Oscar de Ator Coadjuvante). Depois de meses de investigação, Ron se torna, ainda mais absurdamente, o líder da seita, sendo responsável por, às escondidas, sabotar uma série de linchamentos e outros crimes de ódio orquestrados pelos racistas. As coisas se complicam, contudo, quando ele se envolve com a ativista Patrice Dumas (Laura Harrier), alvo do grupo extremista por sua atividade militante.
Spike Lee, como ocorre com todo negro que consegue se destacar nos Estados Unidos, é produto da dor. Angela Davis, Martin Luther KingLouis ArmstrongMuhammad Ali e Jean-Michel Basquiat são exemplos de afrodescendentes que, com talento e, principalmente, perseverança, não apenas passaram por cima das dificuldades impostas em uma nação institucionalmente racista para trazerem a público suas contribuições como têm, justamente, o objeto de suas ações focado nesta causa. Lee, desde o curta “The Answer”, de 1980, é afetado pelo totalmente justificável sentimentos de reação. Crítico da sociedade em que vive, ele trilhou muitas vezes pelo caminho do combate ao racismo e ao direito à cidadania das “minorias” em suas obras, tornando-se um ícone ativista. Em “Infiltrados...”, não é diferente, mas o recado político é dado de forma mais inteira.
O tempo parece ter ajudado a melhorar o discurso de Lee e lhe trazido, aos 61 anos de vida e mais de 40 atrás das câmeras, maior maturidade. “Infiltrados...” é uma prova disso. Unindo os elementos característicos de seu estilo – cenas de ação, humor ácido, romance, resgate histórico e, claro, crítica social – o filme tem provavelmente sua mais bem conduzida direção, acertando em ritmo, contrastes narrativos, estética e no próprio discurso. Divertido e empolgante, concilia a representação ficcional e os elementos documentais por meio da edição de Barry Alexander Brown, outro concorrente ao Oscar nessa categoria. O filme dá, assim, um claro recado ao expectador de que o cinema pode ser tanto entretenimento quanto campo de discussão, pois a realidade é, acima de tudo, muito mais brutal e impiedosa. Isso tudo, aliado a diálogos impagáveis (como as ligações de Ron para o líder da KKK, Michael Buscemi), direção de arte competente (Marci Mudd), que faz boas referências à Blackexplotation, e, igualmente, a trilha sonora (também indicada a Oscar). “Infiltrados...”, assim, guarda a contundência peculiar de Lee, porém com um controle absoluto do tom narrativo que os anos lhe trouxeram.
Lee no set com o ator Adam Driver,
que como ele, também concorre ao Oscar
Com um delay de 30 anos, entretanto, veio a Lee a indicação ao Oscar de Melhor Direção. E o pior: ele não deve ganhar. Mesmo com as recentes presenças de outros cineastas negros nesta categoria, como Jordan Peele, Steve McQueen e Barry Jenkins (estes dois últimos, vencedores pelos filmes que realizaram, “12 Anos de Escravidão” e “Moonlight”, respectivamente, mas não pela direção), a falta do nome de Lee em outras edições vem se somar às igualmente injustificáveis ausências de Don Cheadle por seu “Miles Ahead” ou de Antoine Fuqua por “Sete Homens e um Destino”, ambos em 2016. A explicação para isso é bem menos devido à proporcionalidade de profissionais negros aptos, em menor quantidade em comparação a cineastas de origem “não-africana” por motivos histórico-sociais evidentes, e mais pela relutância de se enfrentar questões espinhosas e maculáveis à imagem da democrática “América”. Afinal, quando se fala de Spike Lee, essa premissa é totalmente refutável, uma vez que ele, um dos mais talentosos cineastas de sua geração, é merecedor já de muito tempo. “Faça...”, de 1989, um dos melhores filmes da história da cinematografia norte-americana, e “Malcom X”, de 1992, outra realização impecável, são pelo menos dois exemplos.
Em épocas de governo Trump e da ascensão da extrema-direita em vários países – entre eles, o Brasil –, “Infiltrados...” é, assim, não apenas essencial como necessário. As cenas finais mostrando as imagens reais das passeatas neonazistas ocorridas recentemente em Charlottesville, na Virgínia, denotam a urgência da obra. Porém, por melhor resultado que tenha obtido, Spike Lee provavelmente não vencerá o Oscar ao qual concorre. A Academia, embora a visível tentativa de maior arejamento nas duas últimas décadas, geralmente, quase que por convenção, premia o diretor da produção que não leva o principal Oscar da noite, o de Melhor Filme, numa estratégia de equilibro entre aqueles que, geralmente, são os favoritos. Ou seja: pelas estimativas, este ano a coisa deve ficar entre “A Favorita” (Yorgos Lanthimos) e “Roma” (Alfonso Cuarón), no máximo “Vice” (Adam McKay).
A questão é que Spike Lee, o ativista e o artista, representa justamente a injustificável venda nos olhos da Academia para com a sua obra e, logicamente, para a questão do racismo e das injustiças sociais. Um reflexo da sociedade norte-americana em formato de estatueta dourada. Em quase 40 anos de realizações, é sabido por que Lee nunca havia sido indicado: sua cor e seu discurso, seu discurso e sua cor. Como ocorreu, por outros motivos, com os Oscar para Scorsese, Chaplin e Hitchcock, a Academia relutou, relutou, mas uma hora teve que dar o braço a torcer – ainda que quase tarde demais em alguns casos. Por esta lógica, o desafio de Lee se faz imenso e ainda instransponível, o que, em compensação, talvez só aumente a façanha de “Infiltrados...”.

terça-feira, 26 de abril de 2016

15 filmes essenciais de prisão



Assim como os de gângster ou que retratam a Segunda Guerra Mundial, os filmes de prisão são bastante atrativos. Até mesmo os mais puramente aventurescos, como “Condenação Brutal”, com Sylvester Stallone, ou “A Rocha”, com Sean Connery, se estiverem passando na TV te puxam para que se assista pelo menos um pouco ou mesmo daquele ponto até o final. De fato, os filmes sobre sistema prisional guardam uma magia especial. Talvez porque, assim como os de gângster ou Segunda Guerra, muitas vezes se baseiem em fatos reais. Quando não, são tão passíveis de verdade quanto um verídico, haja vista a identificação que seus personagens geram junto ao espectador ou mesmo pelas barbaridades que geralmente denunciam, sejam ficção ou não. Não raro estão em jogo os mais basais direitos humanos.

Desta forma, busquei listar 15 títulos bem abrangentes e interessantes sobre o tema. De produções europeias a asiáticas, passando pelos cinemas brasileiro (bem representado), argentino e, claro, norte-americano, que domina largamente neste quesito. Desde clássicos do passado até os dias de hoje, os Estados Unidos são imbatíveis em filmes de prisão. Valeu entrarem filmes não apenas de penitenciária – embora sejam a maioria – mas também de cadeias comuns e de prisioneiros de guerra. De presos políticos, como nos essenciais “A Confissão” (Costa-Gavras) ou “Pra Frente, Brasil” (Roberto Farias), ficaram para uma outra seleção. Como valeu apenas longas-metragens, merece menção honrosa “O Dia em que Dorival Encarou a Guarda”, curta-metragem de Jorge Furtado e José Pedro Goulart, uma obra-prima que, inclusive, completa 30 anos de seu lançamento em 2015.

Sem ordem de preferência, a condição foi a de que a história se passe, se não inteiramente, pelo menos a maior parte do tempo dentro das celas, sendo-lhes um elemento narrativo preponderante. Assim, ficaram de fora ótimos exemplares como “Dançando no Escuro”, de von Trier, “O Último Imperador”, de Bertolucci, ou “Batismo de Sangue”, de Helvécio Ratton, que têm, sim, sequências em prisões, mas relatam muito mais do que isso em suas tramas. No nosso caso, não basta: tem que estar encarcerado mesmo, atrás das grades, em cana, no xadrez, detido, vendo o sol nascer quadrado. Então, “teje preso” a esses 15 títulos essenciais sobre prisão:


- “O Homem de Alcatraz”, de John Frankenheimer (“Birdman of Alcatraz” - EUA, 1962)
Com a mão do craque John Frankenheimer, diretor que nunca se omitiu de mostrar mazelas do sistema norte-americano e nem de aprofundar aspectos psicológicos muitas vezes relegados à superficialidade, este filme traz a realidade de uma penitenciária típica dos Estados Unidos a partir de um conflito entre o pragmatismo e o humanismo. Um prisioneiro (Robert Stroud, por Burt Lancaster) condenado pelo assassinato de dois homens passa a vida na cadeia. Lá se torna um autodidata sobre pássaros, sendo reconhecido mundialmente como uma grande autoridade no assunto. Mas, apesar de demonstrar regeneração e um intelecto superior, o Estado se recusa a libertá-lo.






- “O Processo de Joana D’arc”, de Robert Bresson (“Procès de Jeanne D´Arc” - FRA, 1962)
 A austeridade e sobriedade de Robert Bresson emprestam ao filme uma narrativa absolutamente austera, desde o uso de atores não-profissionais até o centramento exclusivo aos documentos oficiais sobre o caso, passado no século XV. Para muitos o grande filme do diretor, “O Processo...” mostra outro tipo de prisão, a religiosa, uma vez que a iluminada Joana era considerada bruxa pelas visões e percepções espirituais que tinha naturalmente. Com rigor, Reconstituiu a prisão, o julgamento e a execução da mártir.






- “Fugindo do Inferno”, de John Sturges (“The Great Escape” - EUA, 1963)
Clássico filme de prisão de guerra à época da Segunda Guerra e baseado em fatos reais. Aliados tentam fugir de um campo de concentração alemão, o Stalag Luft III, considerado como o mais seguro do gênero. Elenco impagável com Steve McQueen, James Garner, Richard Attenborough, Charles Bronson, James Coburn, entre outros feras. Globo de Ouro de Melhor Filme de Drama.









- “Rebeldia Indomável”, de Stuart Rosemberg (“Cool Hand Luke” - EUA, 1967)
Filme impactante e com a excelente atuação de Paul Newman, que faz o rebelde e inconsequente Luke Jackson. Preso, ele recusa-se a obedecer as regras do local e ganha o respeito dos demais presidiários por sua valentia e malandragem. Insiste em fugir, mas a cada nova recaptura as punições são mais severas, aumentando constantemente o ódio entre ele e os guardas. Indicado ao Oscar, Newman não levou este, que foi para o ator coadjuvante, George Kennedy. Porém, em 2003, seu personagem Luke foi escolhido pelo American Film Institute (AFI) como o trigésimo maior herói dos filmes norte-americanos.







Dustin Hoffman e Steve McQueen
em "Pappilon"
- “Papillon”, de Franklin Schaeffner (EUA, 1973)
Obra-prima ainda pouco valorizada, esta superprodução é dos filmes mais realistas e impactantes do gênero. Conta a história verídica de Henri Charrière (Steve McQueen, novamente encarcerado), conhecido como Papillon, que, apesar de reclamar inocência da acusação de assassinato, é condenado à prisão perpétua e enviado para cumprir a sentença na Guiana Francesa, na Ilha do Diabo, num presídio de segurança máxima. A direção de Schaeffner não deixa nada às escuras: as torturas, a fome, as punições, a desumanidade do presídio, está tudo ali. McQueen, impecável, assim como Dustin Hoffman (o amigo francês Dega). Incrivelmente, recebeu apenas indicações no Oscar e Globo de Ouro, mas não levou nada. Das injustiças históricas.




- “O Expresso da Meia-Noite”, de Alan Parker (“Midnight Express” - ING, 1978)
Dos mais impactantes e dramáticos filmes do gênero, passa-se, ao contrário das jaulas superequipadas dos Estados Unidos, numa insalubre e insana prisão da Turquia. O saudoso Brad Davis interpreta magistralmente Billy Hayes, um estudante norte-americano que é pego traficando drogas num aeroporto de Istambul. Não só vai parar numa prisão degradante, onde é torturado física e psicologicamente, como ainda recebe como exemplo uma pena mais rigorosa que o normal. Parker, em ótima fase, leva o espectador a entrar num mundo de introspecção e loucura, dando um sentido metafórico e simbólico ao título. Oscar de Melhor roteiro adaptado, de Oliver Stone, e de Melhor Trilha Sonora, com os marcantes temas synth-pop de Giorgio Moroder.




- “Alcatraz – Fuga Impossível”, de Don Siegel (“Escape from Alcatraz” - EUA, 1979)
Para muitos, o maior filme de penitenciária já realizado, o que não é nenhum absurdo. Ápice da parceria entre Siegel e Clint Eastwood, que interpreta Frank Morris, um condenado que tem várias tentativas de fugas em seu histórico e é enviado para a prisão de segurança máxima da Ilha de Alcatraz, conhecida por não deixar nenhum preso fugir ou sair vivo numa escapada. Porém, obstinado e calculista, Frank vê os pontos vulneráveis de Alcatraz e, com a ajuda de alguns outros internos, cria uma rota de fuga perigosa e improvável. Não tem como não torcer pelo bandido!




- “Furyo – Em Nome da Honra”, de Nagisa Oshima (“Merry Christmas, Mr. Lawrence” - JAP/ING/NZL, 1983)
Raro filme do sempre profundo Oshima, que reúne dois gênios da música como atores: David Bowie (em sua melhor atuação no cinema) e Ryuichi Sakamoto, que assina também a ótima trilha. Na Segunda Guerra, num campo de concentração na Ilha de Java, o prisioneiro inglês Jack Celliers (Bowie) provoca um conflito quando decide não obedecer às rígidas regras do capitão Yonoi (Sakamoto), insolência repudiada com violência. Porém, o oficial inglês se mantém irredutível, o que enfurece ainda mais o capitão. Interessante reflexão sobre orgulho, honra e os limites humanos tanto físicos quanto psicológicos.






Sônia Braga nos lances oníricos
do filme.
- “O Beijo da Mulher Aranha”, de Hector Babenco (BRA/EUA, 1984)
Um dos cineastas mais talentosos vivos, Babenco está nesta lista com dois filmes. Um deles é este até então raro acerto de coprodução brasileira com os EUA, uma vez que, quando se fazia, prevalecia o poderio yankee. Com equilíbrio, Babenco consegue fazer com que Milton Gonçalves e José Lewgoy ficassem no mesmo nível de William Hurt (Oscar de Melhor Ator pela atuação) e Raul Julia, sem falar, claro, na participação mais que especial de Sônia Braga. As sequências em que Hurt e Julia contracenam na cela são históricas em diálogos e afinação entre atores, pois, além de talentosos, nota-se que estão muito bem dirigidos.




- “Memórias do Cárcere”, de Nelson Pereira dos Santos (BRA, 1984)
Prêmio da crítica em Cannes e Melhor Filme em Moscou (quando o evento ainda era importante), este épico do cinema brasileiro é uma aula de construção narrativa, a qual dialoga metalinguisticamente o tempo todo com a obra de memórias escrita por Graciliano Ramos, quando este fora preso na vida real pelo governo Getúlio Vargas. Ainda, atuações impecáveis de Carlos Vereda, José Dumont, Tonico Pereira, os saudosos Jofre Soares e Wilson Grey e da jovem Glória Pires. Cenas memoráveis, como a “transmissão” da Rádio Libertadora dentro do quartel, o momento da deportação de Olga Benário e a ajuda dos presos a esconderem os escritos do  suposto livro, entre outras várias. 





- “Barrela: Escola de Crimes”, de Marco Antonio Cury (BRA, 1990)
Daqueles filmes que tem tudo para ser monótono, mas o roteiro, as atuações e a direção são tão bons que formam uma obra coesa. O texto teatral de Plínio Marcos se encaixa com densidade à adaptação cinematográfica, sustentada no jogo certo de distribuição das falas de cada personagem (todos MUITO nem construídos) e nas atuações intensas de cada um dos atores. São seis presos condenados a longas penas e confinados numa cela onde cada qual disputa seu espaço. A situação se torna mais angustiante quando junta-se a eles um jovem de classe média preso durante briga. Frustração, tristeza, humilhação, autoproteção. Plínio Marcos tece tudo isso numa teia em que coabitam o amor mais profundo e inalcançável ao abandono concreto e degradante.






- “Um Sonho de Liberdade”, de Frank Darabont (“The Shawshank Redemption” - EUA, 1994)
Junto com “Alcatraz”, disputa o posto de grande filme de prisão da história. Emocionante, toca em temas fortes como morte, amizade, religião, injustiça e desejos essenciais do ser humano. Em 1946, Andy Dufresne (Tim Robbins), um bem sucedido banqueiro, tem a sua vida radicalmente modificada ao ser condenado por um crime que nunca cometeu, o homicídio de sua esposa e do amante dela. É mandado para a Penitenciária Estadual de Shawshank, para cumprir pena perpétua. Lá, conhece muita gente, desde o corrupto e cruel agente penitenciário, o prisioneiro Ellis Boyd Redding (Morgan Freeman), com que faz amizade, e até Al Capone, que cumpria sua pena lá depois de ser pego por Elliot Ness. Figura na lista dos 100 melhores filmes de todos os tempos pelo AFI.



- “Carandiru”, de Hector Babenco (BRA, 2003)
Outro de Babenco, este ainda mais imerso na questão prisional. Ao contrário de “O Beijo...”, entretanto, faz o movimento narrativo inverso: parte do ambiente social para o da prisão, estabelecendo uma permanente comotivação entre os dois espaços – física e psicologicamente. De narrativa moderna, faz com estes paralelismos um dos melhores filmes nacionais da primeira década dos anos 2000, estabelecendo diversos atores que se tornariam astros nos anos seguintes, como Rodrigo Santoro, Lázaro Ramos, Wagner Moura e Caio Blat. A história, baseada no best seller do médico e escritor Dráuzio Varella, culmina no fatídico Massacre de 1992. Filmaço.






Os próprios presos constroem a
narrativa no documentário.
- “O Prisioneiro da Grade de Ferro”, de Paulo Sacramento (BRA, 2003)
Brilhante documentário de Sacramento em que ele coloca os próprios presos a construir com ele o filme, numa cocriação que reforça o realismo documental da proposta. Utilizando as técnicas aprendidas em um curso de filmagem ministrado dentro do presídio, os detentos encarcerados no maior centro de detenção da América Latina, o Carandiru, documentam seu cotidiano, registrando as condições precárias nas quais sobrevivem. Filmado 10 anos após o Massacre do Carandiru, que custou a vida de mais de uma centena de detentos, mostra o quanto uma tragédia como esta promovida pelo Estado não se apaga com facilidade, haja vista as marcas inapagáveis nas pessoas e na sociedade.



- “Leonera”, de Pablo Trapero (ARG – 2008)
Do grande cineasta argentino Pablo Trapero, um dos maiores da atualidade, tem a peculiaridade de contar a vida dentro de uma penitenciária feminina, no caso uma para mães e grávidas sentenciadas. No caso de Julia (a bela e talentosa Martina Gusman), acusada de um crime sem provas, o filme mostra sua adaptação à nova realidade social, o que a transforma intimamente. Porém, seu desejo de fugir dali nunca esmorece, e é isso que a move. Não é o melhor de Trapero, mas guarda várias qualidades de seu cinema.