“Todos discutem minha arte e fingem compreender, como se fosse necessário compreendê-la, quando é simplesmente necessário amar.”
Claude Monet
Nunca vi um Monet ao vivo. Como admirador de arte e visitador contumaz de exposições (à exceção desse período pandêmico que obriga ao distanciamento), costumo dividir com minha esposa e meu irmão, adoradores e visitadores tanto como eu, a alegria (e a expectativa) de ver alguma obra de um grande artista presencialmente. Já tive a emoção de ver à minha frente, a poucos centímetros, Picasso, Dali, Frida, Miró, Renoir, Yoko, Warhol, Bansky, Goya, Van Gogh, Weiwei, Mondrian, Basquiat... Mas Claude Monet, não. Um pouco desta vontade foi, no entanto, muito bem suprida com a exposição “Monet: Paisagens Impressionistas”, que está até 20 de fevereiro no Praia de Bela Shopping, em Porto Alegre. Na esteira do que vem se tornando prática no mundo expositivo de se tematizar artistas de forma mais tecnológica e imersiva, a exposição sobre o impressionista francês se sai muito bem.
Com um tratamento curatorial bem realizado, a cargo de Patrícia Engel Secco e Karina Israel, a mostra me lembrou, dadas as devidas proporções, visto que menor em tamanho, algumas que assisti no CCBB do Rio de Janeiro devido a seu formato, que faz o visitante percorrer corredores que destacam a obra e a história ligada a Monet por meio de plataformas variadas (som, imagens, texto, luz, cenários, vídeos) e ambientes temáticos personalizados, que vão de bojos de som e proposições olfativas a salas escuras.
São sete espaços temáticos, cada um destacando algum aspecto importante da longa trajetória artística e de vida de Monet. Um desses nichos é, por exemplo, logo no começo, o que traz um cenário que remete a Rue de Paris, com sua calçada típica e um poste iluminado diante de lojas parisienses da Belle Èpoque. É onde se conhece o lado caricaturista do artista ainda início da carreira. A proposta imersiva, no entanto, de fato se catalisa na seção que trata das paisagens impressionistas. São telões em uma sala escura que, apoiados por uma música bastante debussyana, mostram diversos vídeos com pinturas, filmagens, animações, fotografias e letterings que causam uma impressionante (ou seria "impressionista"?...) profusão de cores, traços e movimentos. Mesmo aqui reproduzidos em vídeo e fotos não passam a ideia da real sensação que se sente presenciando.
Tanto para quem conhece Monet e o impressionismo quanto para quem ainda possa se interessar, a exposição é bastante prazerosa. Para quem, como eu, prefere sempre ver um original ao invés de reproduções, a substituição se torna satisfatória, visto que bem realizada dentro de sua concepção. Não é igual a ver um Monet a olhos nus, certamente, mas que vale o programa, vale.
Fiquem com algumas imagens e vídeos da exposição:
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A recepção, que coloca o visitante no atelier de Monet
Seja bem-vindo à Rue de Paris!
Reprodução de algumas das caricaturas que o jovem Monet fazia no início da carreira artística para levantar uma grana
Áudio, espelhos e desenhos, tudo ambientando a Paris da Belle Èpoque
Uma das atrações da mostra: reprodução do quadro que deu nome ao movimento impressionista: "Impressões, Nascer do Sol", de 1872
Janela aberta para a catedral da Catedral de Rouen, vista que inspirou Monet em vários quadros
A famosa série de pinturas “Montes de Feno” reproduzida em sensações olfativas e visuais
Obra dos primeiros anos de Monet, ainda clássico mas já com alguns traços que soltos que lhe caracterizariam
Detalhe de outra obra impressionante em que Monet retratou a primeira esposa morta
O impressionante salão com telões, mais de 10 minutos de deleite
Que tal cruzar a ponte do jardim japonês de Giverny pra finalizar a visita ao mundo de Monet?
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exposição “Monet: Paisagens Impressionistas”
Quando:até 20 de fevereiro
Onde:Praia de Belas Shopping (2º Piso, Ala Sul, ao lado da Livraria Saraiva)
Horários de visitação:de segunda a sábado, das 10h às 22h, e domingos, das 11h às 21h.
“Lou e eu tivemos uma conversa, e se tornou muito mais importante expor o que nós dois tínhamos [de relação com Andy Warhol], criando um show com apenas duas pessoas no palco, para que todos vissem nossa história. Achei que era mais importante – quase mais importante do que a música”.
John Cale
“O que você experimenta por meio desse registro é o relacionamento entre nós e Andy. Não se trata apenas de Andy; não é apenas, ‘oh! ele fez isso, ele fez aquilo’. Quando você experimenta ‘Drella’, é sobre John e eu, é sobre mim e Andy, e é sobre John e Andy. Queremos que você conheça melhor Andy Warhol, que você o sinta como John e eu o sentimos, para que você possa vivenciar a presença dessa pessoa única e incrível e se aproximar dela.”
Lou Reed
Há quem contradiga o ditado de que “dois raios não caem no mesmo lugar”. Se for considerar a parceria entre Lou Reed e John Cale, essa máxima realmente não se aplica. Tanto pela raridade do fenômeno quanto por sua fugacidade, em todas as ocasiões em que os dois estiveram juntos ao longo de quase quatro décadas, o céu proporcionou um espetáculo irrefreável de belezas, mas também não demorou a se precipitar com violência. E isso, não apenas uma, mas duas, três vezes pelo menos. Tal como forças da natureza semelhantes e intensamente fortes, não suportam uma a outra pela tamanha atração que exercem entre si, repelindo-se mutuamente tão logo realizem seu feito.
Foi assim com Reed e Cale desde sempre. Dois dos maiores talentos de sua geração de prodigiosos jovens artistas nascidos no pós-Guerra, são figuras essenciais para a cena da contracultura nova-iorquina, que mudou os rumos da vida social na segunda metade do século XX. Isso, contudo, não impediu que as desavenças se manifestassem. Pelo contrário, era-lhes como dar mais munição. Já na Velvet Underground, histórica banda que cofundaram com Moe Tucker e Sterling Morrison nos anos 60 e espinha dorsal do rock junto a Beatles, Bob Dylan e Rolling Stones, isso já acontecia. Mesmo com a alta sinergia artística que os unia e os colocava como o principal núcleo criativo do grupo – capaz de inventar algumas das mais elevadas obras da música contemporânea, como “Heroin”, “Venus in Furs” e “Sister Ray” –, as diferenças falavam mais alto do que as semelhanças. A Velvet continuou com Reed até este partir para sua própria carreira no início dos anos 70, mas Cale, incomodado com o parceiro, não suportou mais do que dois discos e saltou fora um ano após a estreia no clássico "Disco da Banana" para voos solo e na produção musical.
Já veteranos, os integrantes da banda promoveram uma nova aproximação somente 25 anos, em 1993, para o memorável show “Live MCMXCIII”. A turnê comemorativa, que vinha emocionando fãs por onde passava, entretanto, mal havia começado e teve de ser subitamente interrompida por causa de brigas entre os dois líderes. De novo os iluminados raios se chocavam e faziam fechar o tempo, transformando a situação festiva em um dilúvio de ferozes descargas elétricas.
A Velvet com Nico: apadrinhados por Andy
Somente um milagre da natureza para fazer com que tanto talento (e ego) pudesse permanecer minimamente em harmonia por algum tempo, mesmo que curto, sem que se provocasse imediatamente mau-tempo. Esse milagre tinha nome e lhes era um velho conhecido desde os tempos das performances multimídia da Exploding Plastic Inevitable, nos primeiros anos da Velvet. Chamava-se Andy Warhol. Fazia já três anos que o pai da pop art e padrinho artístico da turma havia dado adeus, deixando neles uma sensação de dívida para com a figura que, junto com eles – mas também abarcando-os –, havia transformado os cânones da cultura mundial para sempre com sua proposta artística ousada e conectada com a pós-modernidade. No entanto, ainda precisou que um segundo raio teimasse em se lançar no mesmo ponto: praticamente um ano depois, a cantora e modelo alemã Nico, parceira do histórico primeiro disco da Velvet e musa musical de Cale por vários anos, também morria. A despedida de Nico, que dera voz a alguns das principais composições da dupla, como “All Tomorrows Parties” e “Femme Fatalle”, deixou a Cale e Reed mais do que evidente que aquele 1990 lhes trazia um aviso do firmamento. Sim, precisavam unir-se. Foi então que, entre tempestades e quietações, nasceu “Songs for Drella”, o qual completa 30 anos de lançamento.
Precavidos do próprio histórico, a combinação foi a seguinte: por três meses, os dois – e somente os dois –, suportariam o confinamento e baixariam a cabeça para comporem conjuntamente um repertório inteiramente novo em memória a Andy. Três meses apenas. O que talvez seja muito pouco tempo para alguns, foi mais do que suficiente para que os conflituosos, mas não menos experientes e afinados companheiros, compusessem uma obra-prima única em vários aspectos. A começar pela ocasião em si, para a qual Reed e Cale conceberam também algo especial, uma vez que sabiam da responsabilidade que lhes cabia: somente eles podiam cumprir aquela tarefa. Embora a vastidão da influência de Andy para a arte, estabelecendo nesta um "antes" e um "depois" de si, eram Reed e Cale seus verdadeiros herdeiros na música. Por isso, entendiam que a homenagem a Andy pedia pompas. Afinal, somente um indivíduo ímpar na humanidade poderia juntar Drácula com Cinderella (daí, o apelido “Drella”). Com isso, “Songs” saiu não apenas um disco, mas uma ópera-rock, que respeita toda a estrutura clássica tal como o rock havia incorporado ao narrar uma história de apogeu e miséria e final necessariamente trágico. Outra excepcionalidade é ter apenas os dois no recinto tocando, cantando, gravando, mixando e produzindo a si próprios. O resultado é um disco de sonoridade minimalista mas altamente expressiva, em que não há percussão, sopros, orquestra ou outras vozes, apenas as cordas vocais dos dois falando pela de Andy e intercalando-se e a de seus instrumentos: guitarras, baixo, viola e piano/teclados.
Cale, Reed e Andy em 1976: relação antiga e muito cúmplice
Para narrar a trajetória de Andy, Cale e Reed determinam, então, 15 movimentos em que se ouvem a sofisticação do art rock, a fúria do punk, a ousadia da vanguarda, a tradição clássica europeia e o palpável da canção pop. Tudo que Andy lhes legou em ideias e conceitos, desde a Velvet até as suas carreiras solo, era revisado e revisitado de forma altamente madura e concisa, mas também emocional e devota. Num teor erudito, a provocativa “Smalltown” começa como uma espécie de minueto ternário em allegro em que a voz de Reed faz resgatar o desejo do jovem Andy antes de mudar-se para a cosmopolita Nova Yprk nos anos 50. Gay, estranho e totalmente deslocado em sua Pittsburgh natal, ele tinha uma única certeza: a de que queria sair dali. “De onde é que Picasso vem/ Não há Michelangelo vindo de Pittsburgh/ Se a arte é a ponta do iceberg/ Eu sou a parte mais ao fundo“.
A percepção de que o destino de Andy era mudar os padrões da sociedade começa a ser desenhada a partir do momento em que ele pisa na Big Apple, mais precisamente quando “abre a casa” na 81st Street, em Manhattan, para receber toda a fauna de artistas e doidões de uma Nova York em plena ebulição criativa. Era a Factory, seu lendário estúdio de onde a arte ocidental entrou de um jeito e saiu de outro para nunca mais ser a mesma. A dupla dá a este momento ares litúrgicos e ambientais, mas ao mesmo tempo recorre ao minimalismo nas três notas repetidas que formam o núcleo melódico de "Open House", o mesmo que usaram em "Waiting for the Man", outra sua do repertório da Velvet.
Enquanto Cale canta a busca de Andy por patrocínio junto aos mecenas endinheirados, a quem apresenta um portfólio com suas embalagens de Brillo e uma tal banda chamada Velvet Underground (“Style It Takes”), Reed, na sequência, sob um ruidoso e minimalista rock, traz o artista em atividade (“Work”) fazendo lembrar o som hipnótico e sequencial de contemporâneos de anos 60, mas estes, da cena avant-garde da Califórnia, Philip Glass e Steve Reich. Logo começam, entretanto, os problemas. “Trouble With Classicists”, numa melodia neo-renascentista quase declamada por Cale, traz as idiossincrasias entre a arte moderna e classicismo, bem como o embate com os críticos.
A efervescência nova-iorquina agora está nas veias de Andy. A intensa “Starlight”, com as guitarras distorcidas de Reed e o toque atonal do piano de Cale, fala da casa LGBT que abrigou seus pares: Ingrid, Viva, Little Joe, Baby Jane, Eddie S. “Starlight aberto/ Luz das estrelas abre sua porta/ Isso se chama Nova York/ Com filmes na rua/ Filmes com pessoas reais/ Que você recebe é o que você vê”. Desses personagens reais surgem as famosas fotografias e serigrafias como as que imortalizou de Marylin Monroe, Elvis Presley ou Truman Capote. O genial e inquieto rapaz do interior agora se encontra totalmente consigo mesmo. Criador e criaturas se homogeneízam. Para Andy, cantado no elegante timbre de Cale numa das mais brilhantes do disco, “rostos e nomes são tudo a mesma coisa”. Kitsch, celebridades, sexo, drogas, noite, ruas. Em "Faces and Names" a arte sai pelos poros, seja pela pintura, cinema, teatro ou música. São os “15 minutos de fama” e muito mais. Andy, no auge, prossegue formando novas figuras, como Reed canta noutra maravilha de “Songs”, “Images”. A viola ao estilo La Monte Young de Cale e a guitarra com efeitos de pedal de Reed formam um corpo dissonante só para registrar que, além do figurativo, o abstrato também integra o repertório pictórico do artista visual.
A dupla em 1990 na rara reunião para homenagear o pai da pop art
Tanta exposição resulta na primeira grande crise, fato presente nas cinco faixas seguintes, que é a tentativa de assassinato que Andy sofreu da feminista radical Valerie Solanas, a qual se sentira ofendida com ele em razão de um desacerto profissional. A melodiosa “Slip Away (A Warning)” fala justamente do conselho de amigos para que fizesse o movimento inverso do que vinha procedendo: ao invés de “open house”, fechar seu estúdio. Pressentimento do pior. A barra segue pesada com “It Wasn't Me”, em que Andy tenta convencer Solanas a não se suicidar e de que ele não tinha culpa. O tiro, literalmente, saiu pela culatra: em 3 de junho de 1968, ela invade a Factory armada e desfere três tiros contra Andy, o que lhe deixou sequelas físicas e emocionais para o resto da vida. “I Believe”, outra ótima, narra com detalhes e urgência a cena do atentado, da chegada dela ao local à agonia de Andy no hospital. Solanas, que passou três anos na prisão pelo ocorrido, morreria 14 meses depois de Andy (e dois antes de Nico) em abril de 1988.
O belo country “Nobody But You” versa ainda sobre o traumático episódio (“Eu realmente me importo muito/ Embora pareça que não/ Desde que eu fui baleado/ Não há ninguém além de você”), encaminhando o musical para um desfecho, como se sabe, melancólico como em todas as óperas. Na discursiva e etérea “A Dream”, Cale traz sua veia new age e neoclássica captada junto a outros parceiros, como Terry Riley, Brian Eno e Kevin Ayers. A letra é um fluxo de pensamento de Andy, cuja descrição de um sonho traça um panorama de vários momentos de sua biografia: os primeiros anos, a Velvet, pessoas de convivência, a amizade com Reed e Cale, o incidente na Factory e as feridas que a vida lhe trouxe. A indagação: “Puxa, não seria engraçado se eu morresse neste sonho antes que eu pudesse inventar outro?”, quase ao final da faixa, denota o pressentimento de que os últimos traços de um artista sublime estavam sendo dados.
A arquitetura narrativa de “Songs” - que mantém um exemplar equilíbrio entre densidade e leveza, tonalismo e dissonâncias, agitação e calmaria, classicismo e vanguarda, agressividade e lirismo - surpreende mais uma vez na virada da contemplativa e extensa “A Dream” para o blues ultramoderno “Forever Changed”, talvez a mais impactante de todo o álbum. Ciente da proximidade da morte, Andy compreende igualmente a sina de todo grande artista: a permanência do seu legado. “Eu fui”, mas tudo “mudou para sempre”. A consciência da eternidade. Se Cale emenda as duas anteriores, é Reed quem tem o privilégio de desfechar este réquiem. Isso porque, ao invés de prosseguirem a narrativa na terceira pessoa, como que falando pela voz de Andy, são as próprias palavras de Reed que compõem a letra de“Hello It's Me” numa emocionante carta de despedida. “Andy, sou eu, não te vejo há um tempo/ Eu gostaria de ter falado mais com você quando você estava vivo”, abre dizendo na singela balada, mais uma como “Femme Fatale” e “Sunday Morning” composta pelos dois em meio aos vários proto-punks raivosos e sinfonias ruidosas dos tempos de Velvet.
Terminada a gravação, também não durou muito a turnê de “Songs”. Após algumas apresentações, Cale e Reed separaram-se novamente, como raios excelsos que entram em choque depois de mal se aproximarem. A última ocasião, o reencontro da Velvet, três anos dali, foi sentenciada com a partida de Sterling Morrison dois mais tarde e a do próprio Reed, em 2013. Antes da tormenta, contudo, o tempo colaborou para que registrassem este impecável e sui generis disco, que evidencia o quanto figuras como Andy Warhol fazem falta sempre. E por quê? Porque, como um Michelangelo, um Mozart, um Picasso, um Shakespeare, ícones revolucionários invariavelmente deixam lacunas impreenchíveis, simplesmente. Ouvir “Songs” hoje, a três décadas de seu lançamento, dá a dimensão do que existências como as de Andy, Reed, Nico e Morrison significam depois que partem e da importância dos que ficam, como Cale e Moe. Raios muito raros que, incrivelmente, caíram no mesmo lugar. Justo por isso que o disco tenha se concluído com estes versos: “Bem, agora Andy, acho que temos que ir/ Espero de alguma forma que você goste deste pequeno show/ Eu sei que é tarde, mas é a única maneira que eu sei/ Olá, sou eu/ Boa noite, Andy”.
Show de"Songs for Drella", deLou Reed e John Cale (1990)
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FAIXAS:
1. “Smalltown” - 2:03
2. “Open House” - 4:16
3. “Style It Takes” - 2:54
4. “Work” - 2:36
5. “Trouble With Classicists” - 3:40
6. “Starlight” - 3:26
7. “Faces And Names” - 4:11
8. “Images” - 3:28
9. “Slip Away (A Warning)” - 3:04
10. “It Wasn't Me” - 3:29
11. “I Believe” - 3:17
12. “Nobody But You” - 3:44
13. “A Dream” - 6:33
14. “Forever Changed” - 4:49
15. “Hello It's Me” - 3:03
Todas as composições de autoria de Lou Reed e John Cale
"A primeira vez que ouvi o disco "The Velvet Underground and Nico
(...) simplesmente odiei o som.
Pensei: 'Como alguém pode fazer um disco que soe como essa merda?
Isso é nojento!(...)
Esse som é um lixo!"
Então uns seis meses depois ele me pegou de jeito:
"Meu Deus! NOSSA!
Esse disco é bom pra cacete!' "
Iggy Pop
"Noventa por cento dos quadros que são vistos hoje
como algo extraordinários foram encarados como,
'Ei, isso não é arte!',
na época em que foram exibidos pela primeira vez(...)
Bem, existiam pessoas que achavam que o Velvet Underground
era um desperdício do óxido de ferro da fita de gravação."
Norman Dolph,
co-produtor do álbum
Não sei se, realmente, cada livro que leio da coleção O Livro do Disco é melhor do que o anterior, ou se é apenas uma sensação por estar diante de uma leitura tão empolgante que faz com que a sensação se renove sempre com entusiasmo. "The Velvet Underground and Nico", de Jon Harvard, o último que li não foi diferente disso. Às primeiras páginas já exclamava para mim mesmo que aquele era o melhor livro da coleção. Talvez por não ser um jornalista e por não ter sido um fã imediato do Velvet Underground, tendo percebido aos poucos que a sonoridade da banda estava em tudo o que ouvia e gostava, o trabalho soe com uma sinceridade e uma admiração mais verdadeiras do que de costume em ensaios desta natureza. Joe Harvard, músico, produtor e um dos fundadores do famoso estúdio Forte Apache onde já gravaram nomes como Pixies, Radiohead e Hole, faz questão de em toda sua pesquisa, de dar a real dimensão do que o projeto do Velvet Underground com o artista multimídia Andy Warhol representou não somente para a música mas também para o comportamento e costumes a partir de seu lançamento. A sonoridade inovadora, o experimentalismo, as concepções musicais, as letras literárias e explícitas com suas temáticas incomuns e delicadas, todos são elementos que a banda, sob o estímulo de Warhol, um badalado artista em seu apogeu, que compartilhava de toda aquela profusão criativa, apresentava de forma inédita e ainda hoje, incrivelmente, permanecem impactantes. Quem iria imaginar que em 1967 um grupo de jovens patrocinados por um artista plástico pudesse falar de forma tão aberta (e lírica) sobre o uso de heroína, ou fosse descrever de maneira quase escandalosa sessões de sado-masoquismo? Pois eles o fizeram. E Harvard, o autor, faz questão de mostrar o tamanho disso, o quanto esses temas eram tabus, o quanto o grupo foi ousado na atitude e o quanto foi inovador na linguagem e na intenção artística ao propor estes temas. "Sim, o Velvet Underground escreveu canções sobre heroína, orgias, metanfetamina, servidão e punição, submissão física e emocional, violência, transgêneros, travestis, transexuais e marginais com violência nas ruas, envolvidos com um ou todos os ingredientes acima. Por que? Porque ninguém havia feito isso antes, e porque essa coisas são interessantes." afirma o autor. E continua, "Em 1966, quando ningué falava - e muito menos cantava - sobre tais assuntos proibidos, eles eram ainda mais interessantes, e inclui-los nas letras das músicas com o objetivo de serem consumidos não era mais um truque barato: era uma atitude corajosa e arriscada. E fácil escalar uma montanha depois que os verdadeiros pioneiros passaram 35 anos abrindo uma trilha até seu cume. Em 1966, era preciso ter colhões.". Pois é... E tudo isso, como se não bastasse, embalado por uma proposta sonora altamente original, pensada artisticamente música a música e com conceitos nada aleatórios. Ou seja, um disco como poucos.
O livro desfaz o mito de que a participação de Warhol na produção do disco tenha sido tão irrisória quanto se afirma, revelando que embora não tivesse atuação efetiva na parte técnica, contribuía decisivamente de forma artística na concepção do trabalho. Lou Reed, vocalista e um dos principais compositores, declarou certa vez: "Andy fez questão de garantir que em nosso primeiro álbum a linguagem permanecesse intacta: 'Não Mude as palavras só porque é um disco". Acho que Andy estava interessado em chocar, em dar um solavanco nas pessoas..." e mais, "Ele apenas tornou possível que fôssemos nós mesmos e seguíssemos adiante, ois ele era Andy Wahrol.".
Numa trabalho bastante rico e bem embasado com relatos antigos dos integrantes da banda, matérias da época em jornais e revistas, e entrevistas com pessoas ligadas à banda, o autor destaca ainda a resistência, especialmente de Reed, em aceitar a modelo e cantora alemã Nico, sugerida por Warhol, no projeto, e "prova" que o cantor estava errado nesta relutância; revela que "Sunday Morning" fora escrita originalmente para Nico mas que, mesquinho, egoísta e vaidoso, Reed a reivindicou e não abriu mão de colocar seus vocais na canção; que a marcante caixa de música na mesma música fora uma sacada casual e genial de John Cale, a outra cabeça pensante do grupo; descreve a sintonia de Reed e Cale nas composições e em suas afinações inusitadas; traz à tona novamente a acusação, na época, de que "Heroin" estimulava o uso de drogas; e ajuda a entender por que "Venus In Furs" garantiu a eles a imagem de depravados.
Um disco que não recebeu o devido reconhecimento em sua época e, mesmo depois, demorou para que sua verdadeira dimensão fosse percebida, mas que mesmo assim chega aos dias de hoje (acredito que agora sim) entendido como um dos mais importantes e influentes de todos os tempos e ao qual um livro como este, muito bem escrito e organizado, faz plena justiça e a devida homenagem. Curiosamente, como o próprio autor salienta, "Uma coisa é certa: poucas bandas - se é que alguma - deixaram um legado tão duradouro com uma ajuda tão inexpressiva da indústria.". Talvez, no fim das contas, por linhas tortas, tenha sido melhor assim.
- Não tenho mais munição. - anunciou aterrorizado o Dezenove.
Os demais soldados, como que alertados para a possibilidade terrível, verificaram apressadamente suas armas, bolsos e pentes sobressalentes.
- Eu também!
- Eu também estou sem nada.
- Eu também...
Não tinham nada. Bem,.. quase nada
Um deles, depois de examinadas a Mini Uzi, a automática, os pentes reservas, descobriu uma bala no .22 cano curto que levava sempre de reserva.
- Eu tenho uma bala.
Entreolharam-se todos evidentemente desesperançosos.
O soldado Vinte e Nove quebrou então aquele silêncio funesto:
- Bom, imagino que todos concordam que com só uma bala não temos a menor chance contra essas coisas.
Os outros anuíram silenciosamente.
O dono da arma, a única com a escassa munição, o Trinta e Um, manifestou-se então:
- Sendo assim, meus caros, creio que farei uso dela. Prefiro morrer assim do que ver meu corpo sendo devorado por aqueles selvagens. - e levando o revolver à cabeça e encostando-o à têmpora direita, declarou - Foi um privilégio ter servido com vocês.
O dedo já pressionava tensamente o gatilho quando, no momento em que ia consumar o ato, foi interrompido.
- Ei, espere! Você não é o único que prefere uma bala na cabeça aos dentes daquelas coisas. Eu, na condição de seu superior, reivindico para mim o direito de utilizar esta arma. Se alguém aqui vai usar essa bala, serei eu.
Embaraçado, o soldado baixou a arma e hesitante e contrariado foi, sem ver alternativa, entregando-a ao seu superior. No entanto, quando o revólver já ia sendo passado às mãos do sargento, o soldado Vinte e Nove se interpôs:
- Com todo o respeito, senhor, mas creio que numa situação dessas uma patente não deva lhe garantir privilégio. Todos vamos morrer de qualquer forma, seja pelos caras famintos lá fora ou por essa maldita bala. Acho que deveríamos chegar a um acordo, decidir de outra maneira...
- Decidir na sorte. - completou o Vinte e Oito.
Constrangido pela inoportuna tentativa de imposição de autoridade o sargento, um tanto envergonhado, largou bruscamente a arma sobre uma velho balcão. A intensidade do ato fez com que o .22 cromado girasse lateralmente por um breve instante sobre a superfície.
- É isso! - exclamou o Vinte e Oito observando o movimento no balcão.
- O que?
- Veja: - explicou - estamos em seis aqui. Colocamos a bala no tambor, giramos e quem tiver a sorte de disparar não vai ter que morrer devorado daqueles malditos comedores de tripas lá fora.
Os demais, inclusive o sargento, se olharam parecendo concordar com a sugestão.
O Quarenta e Seis, no entanto, mostrou-se um tanto reticente.
- Sorte? Você chama de sorte "ganhar" uma bala na cabeça? Eu não sei, não. Talvez fosse melhor tentarmos alguma coisa, sairmos correndo, tentar chegar à Base 2...
- Ficou louco? - reagiu o Trinta e Um - Tem centenas, milhares daquelas coisas lá fora. Eles estão por toda parte! Eu ouvi que se espalham como uma praga. É no mundo inteiro, cara. Não é só aqui. E além do mais, você acha mesmo que tem alguém vivo na Base 2? Eles não respondem o rádio há dias. Estão todos mortos.
O Quarenta e Seis teve que render-se aos argumentos. Parecia improvável que houvesse qualquer possibilidade de vida lá fora. Vida normal, vida humana. Não aquela vida inexplicável... Eram realmente só eles seis e aquela única bala.
- E então quem começa? - perguntou o Vinte e Oito apressando a situação.
- Eu começo, afinal a arma com a bala é minha. Deixem-me pelo menos ter a prerrogativa de tentar primeiro.
Nenhum dos outros discordou.
- Um tenta, se não disparar passa adiante a arma para o da sua direita, ok? - orientou o Trinta e Um antes de levar o cano à boca e puxar o gatilho,
O clique seco anunciava que seu destino seria mesmo ser devorado por algum daqueles comedores de miolos.
Maldição!
Desapontado, passou a arma para o Quatro Meia que vinha imediatamente à sua direita.
Limpou a saliva do candidato anterior, levantou o Vinte e Dois à parte lateral da cabeça e antes de fazer sua tentativa ainda argumentou mais uma vez:
- Não sei, não. Continuo achando que esse não é o melhor...
BOOM!
Não completou a frase. O disparo fez o sangue respingar nos homens próximos a ele.
Limitaram-se, todos, desapontados, a ficarem olhando para o corpo no chão.
O Vinte e Oito ainda exclamou:
- E ele que sempre se achou um azarado...
O barulho do tiro alertara as criaturas. O portão começava a ser forçado com mais intensidade. Não resistiria por muito tempo.
“Quando terminamos as bases e os
vocais para aquela leva de músicas, começamos a ensaiar um material que poderia
render ainda mais um disco, mas que eu havia composto para o filme. Quando
‘Little Creatures’ saiu, eu já estava no Texas para filmar ‘True Stories’. Levei as fitas de multicanal com as nossas faixas-base para as músicas do filme
até o set de filmagens em Dallas e adicionei um pouco do tempero texano”.
David
Byrne,
em seu livro
“Como funciona a música”.
O ano de 1986 é especial para quem pegou o rock dos anos 80. Talvez junto
apenas com o ano anterior (que viu nascerem "Meat is Murder", dos Smiths, "The Head on The Door", do The Cure, e "Psycho Candy", da The Jesus and Mary Chain),
tanto no Brasil quanto fora houve discos essenciais de bem dizer todas as
grandes bandas e artistas da cena pop da época. No cenário internacional, em
especial, muitos se superariam no sexto ano da chamada “década perdida”. Siouxsie and the Banshees poria na praça o sucesso “Tinderbox”, a P.I.L; de John Lydon chegaria ao auge com "Album" e Smiths e New Order estourariam nas
rádios com “The Queen is Dead” e "Brotherhood" respectivamente, para ficar em apenas quatro exemplos. Embora de sonoridades distintas, mesmo que afim em certos
aspectos, o ponto que os unia era o fato de que, já trilhados alguns anos e
discos lançados, todos chegavam naquele momento mais maduros e donos de sua música.
Assim, 1986 trouxe uma culminância de grandes álbuns não por coincidência, mas
por que representou o desenvolvimento artístico da geração vinda do punk.
Essa onda atingiu outra grande banda do final dos 70/início dos 80: o Talking Heads. Liderados pelo talentoso
esquisitão David Byrne, os Heads, surgidos na cena punk nova-iorquina, haviam largado
com o referencial "77", daquele ano, passado pela brilhante trilogia com Brian Eno (“More Songs about Bouildings and Food”/"Fear of Music"/"Remain in Light")
e pelo bom “Sepeaking in Tongues”, além de mais três registros ao vivo. Nesse
transcorrer, atravessaram a virada dos anos 70 para os 80 avançando em estilo e
personalidade. Se no começo, comandados pelo produtor Toni Bongiovi, foi o
proto-punk e, logo em seguida, Eno os tenha empurrado para o experimentalismo
pós-punk e para a world-music, em
“Speaking...”, de 1982, passam a produzir a si próprios e mostram uma intenção
pop-rock mais refinada. Afinal, a criatividade de Byrne, seu principal
compositor, nunca correspondeu exatamente à tosqueira do punk-rock genuíno dos
colegas de CBGB Ramones e Richard Hell. Veio, então, outra joia da safra 1985:
“Little Creatures”, para muitos o melhor trabalho da banda e um dos ápices do
pop-rock dos Estados Unidos. De admirável musicalidade, trazia pelo menos dois hits
marcantes: “Lady Don’t Mind” e “And She Was”. Seriam Byrne & cia. capazes
de superar aquele feito? A resposta veio um ano depois, no fatídico 1986, não
apenas em um disco, mas num até então incomum projeto multimídia: o
disco-filme-livro “True Stories”,
que está completando 30 anos em 2016.
Para a época, o que hoje é comum no showbizz,
em que um artista grava o CD, DVD, videoclipe e um documentário num mesmo
espetáculo sem precisar gastar uma fortuna, foi bem impressionante a ousadia de
Byrne, o verdadeiro “head” do projeto.
Não se via uma proposta naquele formato até então, no máximo os abastados
clipes-filmes de Michael Jackson. Neste, entretanto, de feições quase intimistas,
Byrne, dentro de um mesmo tema, dirigiu um filme, atuou nele, lançou um livro
de fotos e textos e ainda criou de cabo a rabo um disco, componto-o e
produzido-o por inteiro. E mais: tudo de altíssima qualidade! Da turma que
aprendeu com Andy Warhol a transformar produto em arte, Byrne e seus habilidosos companheiros de grupo – a ótima baixista Tina Weymouth, o
competente baterista Chris Frantz e o versátil guitarrista e tecladista Jerry
Harrison – traziam três “produtos culturais” interligados mas independentes
entre si. Pode-se ver o filme e não comprar o disco ou ler o livro e por aí vão
as combinações. Há quem teve o primeiro contato com a obra, por exemplo,
através dos clipes da MTV (de certa forma, um quarto tipo de produto cultural)
e depois ouviu o disco ou assistiu ao filme.
Para se falar sobre as músicas, no entanto, é fundamental que se comece
abordando sobre o filme. Em "Histórias Reais" (tradução nos cinemas no Brasil),
um narrador, encarnado pelo próprio Byrne, percorre como um repórter a pequena
Virgil, no estado do Texas, em plena comemoração dos 600 anos da cidade, onde
encontra diversos personagens hilários e típicos. Conforme as situações vão se
apresentando, as músicas da trilha vão surgindo. Byrne, escocês radicado nos
EUA, cria um filme no qual engendra com delicadeza e humor uma crônica cotidiana
da vida norte-americana, tudo permeado por um olhar aparentemente infantil mas
carregado de perspicácia e ligado à relação emocional do autor com o seu lugar.
Lindamente poético, algo entre o documental e a fantasia, o longa
sintetiza as belezas e as fragilidades do povo do país mais poderoso do mundo.
Como se vê, no filme está a razão do trabalho musical, pois este funciona
como uma trilha sonora que veste a narrativa da história filmada ao mesmo tempo
em que é “apenas” mais um disco de carreira do Talking Heads, seu sétimo de
estúdio. Na seara de avanço de seu próprio estilo, eles repetem acertos do
passado, principalmente de seu trabalho antecessor “Little Creatures”. A
começar, assim como o disco anterior, um pouco por coincidência “True Stories”
também tem dois hits marcantes. O primeiro deles é “Love for Sale”, que o abre.
A letra já denota com humor e distanciamento crítico o caráter pueril e
materialista do ser norte-americano, que põe tudo à venda, até – e
principalmente – o amor. “O amor está
aqui/ Venha e experimente/ Eu tenho amor pra vender”, canta, enquanto, no
clipe, imagens de publicidade pulam na tela em cores vibrantes e kitch. Divertido, o clipe é a própria
cena extraída do filme, numa total interação entre as obras. E que grande
música! A batida lembra a de “Stay up Late”, de “Little...”, só que mais
acelerada, e o riff, memorável, é
daqueles que se reproduz o som com a boca. Pode-se colocá-la na classificação
de perfect pop, músicas de estrutura
perfeita e próprias para tocar no rádio mas que guardam qualidades genuínas de
estilo e composição.
Com uma pegada bastante Brian Eno pela base no órgão, “Puzzlin'
Evidence“ – no filme, a cena de um culto religioso em que se projeta um vídeo
com as maravilhas da tecnologia e do poderio bélico e financeiro yankee – tem o vigor do gospel,
principalmente no refrão, com o coro cantando com Byrne: “Puzzling Evidence/ Done hardened in your heart/ Hardened in your
heart”. Em seu livro “Como Funciona a Música”, de 2012, ele comenta que
compôs as faixas de “Little...” e “True...” praticamente ao mesmo tempo, por
isso as semelhanças entre um e outro. No caso do segundo, o que já se
diferenciava em sua cabeça era a aplicação: seriam músicas para o filme que ainda
pretendia rodar. Assim, já no Texas para inteirar-se das locações, levou
consigo as demos ainda por finalizar e lá teve a ideia de inserir os elementos
mais peculiares do folk
norte-americano, como o acordeom Norteño, a steelguitar e o coral de igreja
protestante de “Puzzlin'...”.
Durante todo o disco, a bateria de Chris é especialmente amplificada,
ótimo ensinamento pescado da faixa “Television Man”, de “Little...” – resgatada,
porém, de antes, pois já nota-se isso em “Electric Guitar”, de “Fear of Music”,
de 1979. Pois a caribenha “Hey Now” é marcada com essa batida forte,
acompanhada de bongôs e de uma guitarrinha ukelele,
a mesma que faz um solo totalmente no espírito ula-ula. Por conta de seu ritmo e melodia quase lúdicos, no filme,
Byrne a arranjou diferentemente: são crianças, todas com instrumentos
improvisados como pedaços de pau e latas, quem, numa das passagens mais bonitas,
entoam os versos: “I wanna vídeo/ I wanna
rock and roll/ Take me to the shopping mall/ Buy me a rubber ball now”.
“Papa Legba”, das melhores de “True...”, é outra que mostra como a
banda aprendeu consigo própria. A programação eletrônica faz intensificar o
ritmo sincopado da música africana, que começa com percussões típicas do
brasileiro Paulinho da Costa, um craque, e um canto quase tribal extraído por
Byrne. Visível influência dos trabalhos com Eno, principalmente do world-music “Remain in Light”. O tema em
si é lindo: um canto ritualístico do vuduhaitiano (“Papa Legba” significa aquele que serve como intermediário entre
a loa – mundo dos espíritos – e o
homem) que é usado no filme quando o personagem de John Goodman, um homem em
busca de uma carreira como cantor, recorre a esta espécie de pai-de-santo –
vivido pelo cantor Pops Staple, que a canta lindamente. No disco, é Byrne quem
está nos microfones, esbaldando-se em seu vocal rasgado e emotivo.
O segundo lado no formato LP abre com outro hit e outro perfect pop: a sacolejante "Wild
Wild Life", marco dos anos 80 e da música pop internacional. Impossível
ficar parado se estiver tocando numa pista. Além da letra ácida, a canção, bem
como seu clipe, também extraído do filme, é superdivertida, num convite a se assumir
o “lado selvagem”. Várias pessoas, os integrantes da banda e atores, sobem num
palco em um programa de tevê fazendo playback
e interpretando as figuras mais exóticas. O refrão, de versos móveis, é daqueles inesquecíveis de tão naturalmente
cantaroláveis: “Here on this moutain-top/
Oh oh/ I got some wild wild life/ I got some news to tell ya/ Oh oh/ About some
wild wild life...”.
Alegre e ritmada, "Radio Head" lembra a levada das bandinhas
folclóricas europeias (as que migraram para os EUA em várias localidades),
ainda mais pelo uso da gaita-ponto. Mas, claro, com o toque todo dos Heads,
desde a forte batida de Chris, as percussões de Paulinho da Costa –
contribuinte costumaz da banda –, e o vocal aberto de Byrne, perito em criar
refrãos pegajosos, como o desta: “Transmitter!/
Oh! Picking up something good/ Hey, radio head!/ The sound... of a brand-new
world”, “Radio Head” guarda uma curiosidade: é a música em que Byrne se
inspirou num verso de Chico Buarque – de “O último blues”, da trilha do filme
“Ópera do Malandro” – e que, por consequência, inspirou o nome da banda inglesa, que juntou as duas palavras.
A melódica “Dream Operator” – que no filme transcorre numa engraçada
sequência de um desfile, mais bizarro e brega impossível – tem uma bela letra,
a qual versa sobre o eterno estado de sonho em que vivem os norte-americanos: “Todo sonho tem um nome/ E nomes contam a
sua história/ Essa música é o seu sonho/ Você é o operador de sonho”. Algo
nem bom nem ruim: apenas verdadeiro. Outra clássica do álbum, “People Like Us”,
tema-chave do filme, é, assim como “Creatures of Love”, de Little...”, um
típico country-rock, com direito a
guitarra com pedal steele de Tomy
Morrell. Uma verdadeira declaração de amor do estrangeiro Byrne para os EUA,
reverenciando a cultura daquele país e ao mesmo tempo totalmente integrado
nela. Os versos iniciais dizem tudo: “Quando
nasci, em 1950/ Papai não podia comprar muita coisa para nós/ Ele disse:
‘Orgulhe-se do que você é’/ Há algo de especial em pessoas como nós”. E o
refrão, dentro da mesma ideia de “Creatures...”, não deixa por menos,
impelindo-nos a enxergar a alma norte-americana com um olhar mais humano: “Não queremos liberdade/ Não queremos
justiça/ Só queremos alguém para amar”.
De ritmo parecido a outra faixa de “Little...”, “Walk it down”, bem
como a outras daquele álbum no refrão de coro em tom entoado, como “Perfect
World” e “Road to Nowhere” (a ideia vem desde o primeiro trabalho com Eno, em
“The Good Thing”, de 1978), “City of Dreams” desfecha a obra com puro lirismo.
A letra fala da perda de identidade provocada pelas aculturações e dizimações,
algo muito presente na formação de sociedades modernas como a norte-americana: “Os índios tinham uma lenda/ Os espanhóis
viviam para o ouro/ O homem branco veio e os matou/ Mas eles não sabem quem realmente
foram”. Porém, artista sensível como é, Byrne joga luzes otimistas sobre o
futuro daquela nação e suas gentes, tendo como metáfora a pequena Virgil: “Vivemos na cidade dos sonhos/ Nós dirigimos
na estrada de fogo/ Devemos despertar/ E encontrá-la por fim/Lembre-se disso,
nossa cidade favorita”.
Se “True...” deve muito a “Little...”, que lhe serviu de espelho em
vários aspectos, também é fato que o disco de 1986 supera seu antecessor em
completude conceitual, uma vez que conversa o tempo todo com a obra filmada e,
consequentemente, com o trabalho fotográfico posto em páginas. Além do mais, o
sucesso alcançado por “True...”, seja motivado pela mídia televisiva e
radiofônica ou pelas telas do cinema, foi consideravelmente maior de tudo o que
já jamais conseguiriam, tendo em vista que “Wild Wild Life” ficou por 72
semanas no 25º posto da Billbord, melhor posição de uma música da banda nesta
parada. Comparações afora, o fato é que ambos os discos revelam um grupo no auge
de sua capacidade criativa, produzindo música pop sem descuidar das próprias
intenções e aspirações.
Tudo isso está ligado bastantemente à iniciativa de David Byrne que,
com o passar do tempo, foi se tornando cada vez mais o principal compositor e criador
da banda, a ponto de passar a ser o único. Assim, se “True...” é o ápice dos
Heads, também é o começo de seu declínio. A redução paulatina mas permanente da
participação de Chris, Tina e Jerry enfraqueceu-os enquanto conjunto, sufocando
os companheiros de Byrne. O fim estava próximo. Ainda tentaram um sopro de
comunhão, “Naked”, de 1988, mas o mais fraco álbum deles só serviria para
denotar que não tinha mais saída que não a separação de uma das grandes bandas do
pop-rock mundial. Os discos, porém, estão aí até hoje, longe de se datarem e
donos de alguns dos melhores momentos do que se produziu nos anos 80, a tal
“década perdida” – que, aliás, de “perdida” não teve nada em termos de rock.
Basta uma audição de “True Stories” para se certificar de que essa história,
por mais onírica que tenha sido, é real e muito especial.
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O filme “Histórias Reais” tem, aliás, uma trilha sonora própria, a qual
traz temas incidentais. Apenas “Dream Operator”, em versão instrumental
arranjada por Philip Glass (“Glass Operator”), se repete, além da faixa “City
of Steel”, que é, na verdade, a melodia de “People Like Us”, também só com
instrumentos. As outras são de artistas variados, como “Road Song”, da genial
Meredith Monk, “Festa para um Rei Negro” (“Olê
lê/ Olá lá? Pega no ganzê/ Pega no ganzá...”), com a banda brasileira
Eclipse, e a mexicana “Soy de Tejas”, de Steve Jordan, além de seis composições
do próprio Byrne que só se encontram em “Sounds From True Stories”.
E fui dar aquela olhada na mini-exposição de Andy Warhol aqui no Rio. Conforme já havia comentado aqui no blog, a mostra, encerrada no último sábado no Shopping Leblo, apresentava poucas obras, porém contando com algumas das mais conhecidas e significativas da produção do mais pop dos artistas pop. A massificação, a idolatria, o consumismo, a impessoalidade de personalidades, a popularização de líderes, a crítica ao capitalismo, a estética, enfim, todos os elementos do conceito warholiano estavam contemplados e condensados naquelas 16 obras. Confira, abaixo, algumas imagens da exposição.
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Todas as cores do dinheiro
As latas de Campbell's, símbolos da massificação
A estética e a técnica de Warhol representada em sua 'natureza morta'.
O Mao de Warhol, uma das imagens 'criadas' pelo artista
que ajudam a explicar expressões como "O Papa é Pop"
E outra boa notícia pras artes aqui no Rio de Janeiro: Fui surpreendido ao saber que o Shopping Leblon recebe, em seu Lounge, uma pequena porém não pouco interessante exposição do mestre da pop-art, Any Warhol, desde o último dia 18 de junho. A mostra "Andy Warhol – Ícones POP", traz apenas 16 obras do artista americano apresentando entre elas, algumas de suas mais conhecidas e importantes como asserigrafias de Marilyn Monroe, Mao Tsé e a conhecidíssima lata de sopa Campbell.
Vale uma vita.
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mostraAndy Warhol – Ícones POP de18 de junhoa12 de julho local:Shopping Leblon - Lounge – 3º piso endereço:Avenida Afrânio de Melo Franco, 290 – Leblon, Rio de Janeiro desegundaa sábado, das10h às 22hedomingos,das13h às 21h