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domingo, 11 de novembro de 2018

Queen - "A Night At The Opera" (1975)



"Disseram que ela era demasiado longa
e não iria funcionar.
Podemos pensar, 'Bem que poderíamos cortar ela,
mas ela não faria qualquer sentido', não faz muito sentido agora e teria ainda menos sentido naquele momento; você iria perder todos os humores diferentes da canção.
Por isso, dissemos que não."
Roger Taylor, 
baterista,
sobre "Bohemian Rhapsody"

"Ele [Freddie Mercury] sabia exatamente
o que estava fazendo…
nós só ajudamos ele dar vida a ela."
Brian May,
guitarrista,
também sobre "Bohemian Rhapsody"


Em 1976, ouvia eu a Rádio Continental quando meu querido amigo Beto Roncaferro rodou no seu programa "Death on Two Legs" do disco "A Night At The Opera", do Queen, uma banda da qual eu já andava ouvindo uma fita-cassete do disco "Queen II", que me fora emprestada pelo meu colega de aula João Eduardo Costa. Me apaixonei na hora
Um ano depois, o Queen estourava com "Somebody to Love", do disco "A Day At The Races", que eu e minha irmã Cristina de Andrade Moreira ouvíamos sem parar. Na dúvida sobre qual comprar, acabamos com os dois em altíssima rotação em casa. Daí, pra "You're my Best Friend", "Seaside Randezvous" e, é claro, "Bohemian Rhapsody" foi um passo. Chamava a atenção a variedade de estilos e o uso dos clichês de cada gênero dentro do som da banda. E Freddie Mercury era Freddie Mercury!!! Faz muito tempo que não ouço mas tenho certeza de que, se colocar a rodar, cantarei de cor TODAS as músicas.



por Paulo Moreira



"A Night at the Opera" é o quarto álbum de estúdio da banda britânica de hard rock Queen, lançado em 21 de novembro de 1975 na Europa e em 2 de dezembro de 1975 nos Estados Unidos.
Assim que foi lançado, o álbum estreou direto no topo da UK Albums Chart, do Reino Unido, e chegou ao quarto lugar na Billboard 200 dos Estados Unidos, sendo o disco que levou definitivamente o Queen à consagração mundial. O disco também foi um sucesso de crítica, frequentemente apontado como um dos melhores discos da música de todoso os tempos, tendo vendido mais de cinco milhões de cópias nos anos 70, uma número impressionante para os mercados da época.


fonte: Wikipedia


**************

FAIXAS:
 01 Death On Two Legs (Dedicated To....)
 02 Lazing On A Sunday Afternoon
 03 I'm In Love With My Car
 04 You're My Best Friend
 06 Sweet Lady
 07 Seaside Rendezvous
 08 The Prophet's Song
 09 Love Of My Life
 10 Good Company
 11 Bohemian Rhapsody
 12 God Save The Queen

*************
Ouça:




segunda-feira, 20 de abril de 2020

Discos para (e de) quarentena


A Queen, isolada numa
fazenda para gravar sua
obra-prima
Nesse período de isolamento em casa pela Covid-19, de todo lado surgem listas com indicações do que se ler, assistir e, bastantemente, ouvir. De playlists a discos, muitos recorrem à música pra aliviar a barra da clausura forçada. Eu mesmo colaborei com uma seleção recentemente para o site AmaJazz sobre os discos de jazz que 50 pessoas escolheram para escutar na quarentena – o meu, aliás, foi "The Real McCoy", de McCoy Tyner, a pouco resenhado por mim para a seção ÁLBUNS FUNDAMENTAIS aqui do blog.

Mas o que ainda não ouvi falarem são os discos não necessariamente próprios para este momento, mas os FEITOS em isolamento. Seja no estúdio improvisado na própria casa, num apartamento fechado, numa mansão isolada da civilização e até num hospício ou cadeia. Tem de tudo. Não é novidade que artistas em geral busquem essa condição de recolhimento para se concentrar, principalmente quando intentam um projeto novo. Porém, geralmente isso ocorre de maneira controlada e adaptada a um fluxo rotineiro. Aqui, não. Falamos de exemplos da discografia do rock, da MPB, da black music e do jazz concebidos ou gravados em condições extremas de afastamento de qualquer outra coisa que pudesse interferir além da própria criação musical. Tamanho foco não raro acarretou em trabalhos brilhantes, sendo alguns bastante recorrentes em listas de melhores em vários níveis.

Woodland, a casa que viu nascer
"Trout...", da Captain Beefheart
Mesmo que o motivo para se isolar destes discos não seja o de um perigo à saúde como hoje, cada um deles é, a seu modo e motivo, também fruto de um momento necessário de reflexão. Se seguirmos o termo pelo que diz o dicionário, "reflexão", do latim tardio, quer dizer "ato ou efeito de refletir algo que se projeta". Música, assim como toda arte, não é exatamente isso?

Aqui, então, uma listagem que serve como dicas para audição nestes dias com 15 discos cujo processo de isolamento lhes foi essencial para serem concebidos, mesmo que a própria sanidade mental de seus autores tenha sido, em certos casos, comprometida para que isso ocorresse (se é que já não estava). Se a nossa saúde física está em perigo atualmente, a discografia musical, diante dessa (aparente) contradição entre “liberdade” e “prisão”, é capaz de sanas nossas mentes.


*****

1. “Os Afro-Sambas” – Baden Powell e Vinícius de Moraes (1966)
Local: Casa de Vinícius de Moraes, Parque Guinle, Laranjeiras, Rio de Janeiro, Brasil

Já resenhado aqui no blog, é o exemplo clássico na música brasileira de confinamento que deu certo. Mas não um isolamento para ficar limpo ou longe da família e das tentações. Os instrumentos de home office foram o poderoso violão de Baden, o papel e a caneta de Vinícius e um engradado de whisky 12 anos. “Eu fiquei tão entusiasmado que passamos uns três meses completamente enfurnados”, disse Vinícius sobre a temporada em que abrigou Baden em seu apartamento no Parque Guinle, no Rio de Janeiro, para comporem as mais de 50 canções que resultariam n”Os Afro-Sambas”. Depois da concepção, foi só lapidar em estúdio com as intensas percussões, os arranjos e regência do maestro César Guerra-Peixe e as participações vocais do Quarteto em Cy e de Dulce Nunes. Como Cly Reis bem colocou na resenha de 2013, “Os Afro-Sambas” é “uma perfeita mescla de técnica, poesia, brasilidade, africanidade, sincretismo, tradições, folclore e genialidade em um trabalho que leva ao limite a multiplicidade e as possibilidades dentro da linguagem do samba e das vertentes da música brasileira desde suas mais remotas origens”.

OUÇA O DISCO


2. “Music from Big Pink” – The Band (1968)
Local: "Big Pink", West Saugerties, Ulster, Nova York, EUA

Ia tudo bem com os canadenses Robbie Robertson, Rick Danko, Levon Helm, Garth Hudson e Richard Manuel em 1966. Eles formavam o grupo de apoio de Bob Dylan no clássico “Bringing It All Back Home” e revolucionavam o folk rock ao eletrificá-lo de forma inequívoca. Mas o perigo está sempre à espreita. Não demorou muito para que as reações contrárias viessem e as vibrações ruins dos conservadores da música norte-americana afetassem tanto Dylan, que o fizeram se acidentar de moto. Fim da linha? Não, pelo contrário: fase superprodutiva. Com músicas até sair pela orelha, os rapazes da The Band alugam uma casa de cor rosa em West Saugerties, uma pacata vila no Condado de Ulster, em Nova York, e concebem seu primeiro e histórico álbum, metalinguisticamente chamado de “música da grande casa rosa”. Resultado: “Music...”, cuja capa reproduz um óleo da autoria de Dylan, é classificado como 34º melhor disco pela Rolling Stone's entre os 500 maiores de todos os tempos. Não precisa dizer mais nada.


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3. “Trout Mask Replica” – Captain Beefheart & His Magic Band (1969)
Local: Woodland Hills, Ensenada Drive, Modesto, Califórnia, EUA

O blueser vanguardista Don Van Vliet já havia dado ao mundo do rock dois discos memoráveis com sua Captain Beefheart: Safe as Milk (1967) e Strictly Personal (1968). Mas um filho musical de Frank Zappa como ele jamais se contenta com o que já fizera. Movido por um desejo artístico superior, Vliet fez, então, “Trout...”. Reproduzo o parágrafo que abre a resenha que escrevi em 2013 sobre este disco aqui para o blog, pois vai na essência do que essa obra representa: “Um músico se trancafia em um casarão antigo, só ele e um piano. Ali, compõe 28 peças. Não, não estamos falando de algum pianista de jazz em abstinência de heroína nem de um concertista clássico precisando de isolamento e concentração para criar sua obra-prima. Estamos falando de um disco de rock, tocado com baixo, guitarra, bateria e, solando, clarinetes e saxofones. Tudo sem um acorde sequer de piano. (...) Talvez o trabalho que melhor tenha fundido rock, jazz, blues, folk e erudito, sustenta o status de uma verdadeira ‘obra de arte’, um dos 10 registros mais importantes da música contemporânea ao lado obras de Shostakovitch, Charles Mingus, Velvet Underground e Ligeti.”

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4. “Gilberto Gil” - Gilberto Gil (1969)
Local: Quartel da Vila Militar, Deodoro, Rio de Janeiro, e domicílio-prisão, Rua Rio Grande do Sul, Pituba, Salvador, Brasil

Antes de “Changin’ Time”, do norte-americano Ike White (que falaremos logo adiante), outro grande disco cunhado em regime de cárcere era produzido, infeliz ou felizmente, no Brasil. Foi em 1969, nos anos de ditadura militar. O que se tem a celebrar desse capítulo triste da história brasileira é que nem a repressão foi suficiente para impedir que a genialidade de Gilberto Gil produzisse um álbum grandioso tanto em qualidade quanto em simbologia e resistência. O supra-sumo do tropicalismo. E ainda num ínterim tenso e degradante. Em prisão domiciliar em Salvador após meses encarcerado no Rio de Janeiro e quatro meses antes de embarcar para o exílio em Londres, Gil lançou mão apenas de seu violão e de sua voz para gravar as bases de todas as músicas que comporiam seu novo álbum. Nove preciosidades que, quando foram parar nas mãos de Rogério Duprat para que este as produzisse e as vestisse com os outros instrumentos e orquestrações, seu autor já estava em pouso forçado no Velho Mundo. O antropólogo Hermano Vianna observa, abismado, que "Gilberto Gil" “é quase um milagre que tenha sido produzido e lançado”. Milagre maior é saber que desse disco há obras como “Aquele Abraço”, “Futurível”, “Cérebro Eletrônico” e “Volks Volkswagen Blues”.

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5. “Barrett” – Syd Barrett (1970)
Local: Fulbourn Hospital, vila de Fbridbourn, Cambridgeshire, Inglaterra

Syd Barrett é daqueles gênios que nunca bateram muito bem. A capa, desenho dele, denota esse ínterim entre a loucura e a mais graciosa sanidade. Ao mesmo tempo em que produzia coisas incríveis, como a marcante participação (e fundação!) na Pink Floyd, era capaz de cair num estado vegetativo indissolúvel. A esquizofrenia era ainda mais comprometida pelo uso de drogas pesadas. Tanto que, logo depois de “The Piper at the Gates ofDown”, de 1967, o de estreia da banda, Roger Waters e David Gilmour assumiram-lhe a frente. Mas não sem desatentarem do parceiro, que gravaria logo em seguida o também lendário “The Madcap Laughs”. Gilmour, aliás, amigo e admirador, fez o que poucos fariam para manter viva aquela chama: montou um estúdio em pleno manicômio, em que Barrett fora internado, em 1969, para que o “Crazy Diamond” registrasse sua obra mais bem acabada antes que sua mente se deteriorasse e o impedisse disso para sempre. Foi, aliás, exatamente o que aconteceu com Barrett, morto em 2006 totalmente recluso e sem ter nunca mais entrado num estúdio com regularidade. Antes, graças!, deu tempo de salvar “Barrett”, dos discos cinquentões de 2020.

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6. “Led Zeppelin IV” – Led Zeppelin (1971)
Local: Headley Grance, East Hampshire, Inglaterra

Era comum a galera do rock dos anos 60 e 70 dar umas escapadas sabáticas para ver se conseguiam fugir um pouco burburinho de fãs e executivos e produzir algo que lhe satisfizesse. Acabou sendo o que aconteceu com a Led Zeppelin para a produção daquele que foi seu mais celebrado disco: o “IV” (ou "Four Symbols", ou "ZoSo" ou "o disco do velho”). Em dezembro de 1970, a banda se reuniu no recém-inaugurado Sarm West Studios, em Londres, para a pré-produção de seu até então novo álbum. Só que não. Outra banda, a Jethro Tull, havia chegado primeiro. O quarteto Page/Plant/Bonham/Jones decidiu, então, por sugestão dos integrantes de outra grande banda inglesa, a Fleetwood Mac, finalizar a produção no pequeno estúdio da Headley Grance, uma mansão de pedra de três andares em East Hampshire, no meio do nada, com fama de mal assombrada mas com uma acústica incrível. Prova do acerto na escolha do lugar para a gravação é o som da bateria de Bonham em "When the Leevee Breaks", gravada, com microfones-ambiente na base da escadaria da casa. O resultado é um som trovejante e uma das introduções de bateria mais marcantes de todos os tempos. Fora isso, o local viu nascerem alguns dos maiores clássicos do rock de todos os tempos, como "Black Dog", "Rock and Roll", "Stairway to Heaven" e "Four Sticks".

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7. “Exile on Main St.” – The Rolling Stones (1972)
Local: Mansão Nellcôte, Villefrance-sur-Mer, Costa Azul, França

Sabe tudo que se fala do caos que foi o set de filmagens de “Apocalypse Now”, do Coppola, com drogas, sexo, atrasos, grana desperdiçada, crises e, claro, o isolamento de toda a equipe  do filme numa floresta quente e úmida? Algo semelhante foram as gravações de Exile...”, dos Rolling Stones. Troca-se apenas a úmida floresta asiática pela da famosa Nellcôte, mansão localizada na mediterrânea Villefrance-sur-Mer, Sul da França, que presenciou, entre 10 de julho a 14 de outubro de 1971, um festival de sexo, drogas e muito, mas muito rock ‘n’ roll. Quase ninguém saía nem entrava, a não ser traficantes e groupies para animar as noites viradas. Os atrasos, como no filme, foram decorrência, o que, aliás, também fez gastar tempo e dinheiro. No que se refere à crise, foi uma financeira que fez a banda fugir da Inglaterra para aquele lugar longe de tudo – principalmente do fisco. Cenário perfeito para sair tudo errado, certo? Se o filme de Coppola venceu a Palma de Ouro e virou o maior filme de guerra de todos os tempos, “Exile...”, a seu tempo, se transformou no melhor disco dos Stones – o que é quase dizer que se trata do melhor disco de rock de todos os tempos.



8. “Rock Bottom” – Robert Wyatt (1974)
Local: Little Bedwyn, vila de Wiltshire, Inglaterra

O segundo disco solo do inglês Robert Wyatt, então baterista da Soft Machine, é outra experiência radical de isolamento forçado. Porém, esta se deu por um motivo limite: um grave acidente. Na noite de 1º de junho de 1973, em uma festa regada a Southern Comfort COM tequila (receita ensinada pelo parceiro de bebedeira Keith Moon), Wyatt, depois de incontáveis doses, não percebeu que saía a pé por uma janela, despencando sem escalas direito do quarto andar rumo ao chão. Ele acordou só no outro dia numa cama de hospital sem movimentar as pernas nunca mais a partir de então. Quando ele finalmente conseguiu se sentar em uma cadeira de rodas, um dos primeiros objetos que encontrou no hospital foi um velho piano na sala de visitas, onde começou a trabalhar no material de “Rock Bottom”, algo como “fundo do poço”. Após um período difícil de adaptação à sua nova condição, ele começou a gravar faixas no início de 1974 em uma fazenda em Little Bedwyn, numa pacata vila de Wiltshire, sudoeste da Inglaterra, alavancando a unidade de gravação móvel da Virgin Records, estacionada no campo do lado de fora da casa. Para o crítico musical e historiador italiano Piero Scaruffi, “Rock...”, cuja soturna arte da capa também é de autoria de Wyatt, é uma das 15 obras mais importantes da música moderna na segunda metade do século XX.



9. “A Night at the Opera” – Queen (1975)
Local: Rockfield Studios, Rockfield Farm, Monmouthshire, País de Gales

A história desse disco é tão legal, que virou uma das melhores sequências do premiado filme “Bohemian Rhapsody” - faixa, aliás, que exprime com grandeza a importância e qualidade ímpar do disco da Queen. Depois do sucesso dos primeiros álbuns com o grupo e recém contratados por uma grande gravadora, a banda sabia que tinha que trazer algo melhor e novo no álbum seguinte. Pois Freddie Mercury, em alta efervescência criativa, convence o restante do grupo a se instalar temporariamente na Rockfield Farm, uma pequena vila no sudeste do País de Gales, longe do burburinho dos fãs e, principalmente, de qualquer influência que o desviasse do objetivo de fazer, sem modéstia, uma obra-prima. Se a gravadora achou ousado demais e houve críticas à mistura de música clássica com rock, não importa. O fato é que “A Night...” logo estourou, entrou para a lista dos mais vendidos e saiu bem àquilo que Freddie intentava: uma obra-prima.



10. “Changin' Times” – Ike White (1976)
Local: Tehachapi State Prison, Tehachapi, Califórnia, EUA

Se o assunto é disco produzido e gravado num ambiente fechado, “Changin’ Times”, de Ike White, vai ao extremo. Músico prodígio, hábil com vários instrumentos e de uma capacidade compositiva sem igual, ele poderia ter sido um dos grandes astros da black music norte-americanos, no nível de James Brown, Isaac Hayes ou Curtis Mayfield. Só que o destino cruel quis que aquele homem negro tão talentoso quanto pobre fosse sentenciado por um homicídio e passasse a maior parte da vida na cadeia. Mas foi dentro de uma, a penitenciária de Tehachapi, uma pequena cidade no interior da Califórnia, que White, em 1976, ajudado por Stevie Wonder e pelo produtor Jerry Goldstein, revelasse ao mundo aquele é um dos melhores discos da música soul de todos os tempos, o acertadamente intitulado “Tempos de Mudança”. Esses dados são adivinhados pelos agradecimentos na capa do álbum ao superintendente Jerry Emoto, do Departamento de Correções da Califórnia, e ao restante da equipe da prisão "sem cuja ajuda esse projeto não poderia ter sido realizado". E não há mais informações sobre Ike White. Nada. Ano passado, o documentário “The Changin' Times of Ike White”, de Daniel Vernon, revelou alguma coisa mais do pouco que se sabe sobre a lenda Ike White. Porém, ouvindo um disco tão maravilhoso quanto este talvez se conclua que seja isso mesmo tudo que se precise saber.



11. “Bedroom Album” – Jah Wabble (1983)
Local: Dellow House, Dellow Street, Wapping, East London, Inglaterra

Dellow House, sito ao logradouro de mesmo nome, área urbana da Grande Londres, código postal E1. Este é o endereço em que o lendário baixista britânico Jah Wabble gravaria um de seus discos mais influentes para a galera do pós-punk, entre eles, Renato Russo, que ovacionava este álbum. Porém, nem mesmo todas essas indicações geográficas são suficientes para apontar precisamente onde o disco fora concebido, produzido e gravado: o próprio quarto de Wabble. Aliás – assim como o já citado disco da The Band – o título, "Bedrom Album", mais claro, impossível. Depois de ter ajudado John Lydon e sua trupe da Public Image Ltd. a definir o som dos anos 80 e 90, Wabble, não dado por satisfeito e dono de uma carreira solo que passa desde a música eletrônica ao free funk, fusion, experimental e new-wave, faz seu o melhor trabalho até hoje. As linhas de baixo graves e mercadas ganham toda a relevância nos arranjos, que tem como aliada a guitarra do parceiro Animal (Dave Maltby). Os outros instrumentos, todos a cargo do dono do quarto. Semelhanças com a sonoridade da P.I.L., há, como na brilhante “City”, nas arábicas “Sense Of History”, “Concentration Camp” e “Invaders of the Heart”. Uma aula de como fazer um disco brilhante sem sair da cama.

OUÇA O DISCO


12. “Blood Sugar Sex Magik” – Red Hot Chili Peppers (1991)
Local: The Mansion, Laurel Canyon, Los Angeles, Califórnia, EUA

A The Mansion, antiga construção na montanhosa Laurel Canyon, em Los Angeles, era lendária e assombrada. Nas décadas de 1960 e 1970, muitos artistas famosos como Mick Jagger, David Bowie, Jimi Hendrix e The Beatles estiveram nela. Conta-se que, nos anos 20, seus donos a abandonaram depois que um homem morreu caindo de sua varanda. Há quem afirme que, quando esteve em seus corredores, as portas se abriam sozinhas. Era o cenário perfeito para que os malucões da Red Hot gravassem "BSSM", seu quinto e mais festejado álbum. Os 30 dias em que Anthony Kiedis, Flea, John Frusciante e Chad Smith se mudaram para a mansão pertencente ao produtor Rick Rubin foram essenciais para que criassem clássicos e hits do rock como "Give It Away", "Under The Bridge", "Suck My Kiss" e "Breaking the Girl". Funk, punk, heavy metal, indie, jazz fusion, pop. Tudo junto e misturado no disco que, junto de “Nevermind”, do Nirvana, fez o rock alternativo sair das cavernas e ir para as paradas.



13. “Wish” – The Cure (1992)
Local: The Manor Studio, Shipton Manor, Oxfordshire, Inglaterra

A The Cure também teve a sua vez de reclusão. Foi para a gravação de “Wish”, de 1991. O trabalho anterior, o celebrado “Disintegration”, foi um sucesso de crítica e público, mas bastante tempestuoso durante as gravações. Último disco com o então integrante formador Lawrence Tollhust, muito desse clima se deve à relação já bastante estremecida dele para com Robert Smith e outros integrantes da banda. Já sem ele, decidem, então, se enfurnar numa mansão em estilo Tudor em Oxfordshire, interior da Inglaterra, a chamada Shipton Manor. Um lugar espaçoso, cheio de espelhos enormes, tapetes persas, lareiras e um enorme mural no átrio. A ideia eram justamente, fugir um pouco de toda a polêmica e as complicações em torno do processo que o Tolhurst movia contra Robert Smith e o grupo. A safra foi frutífera, tanto que rendeu um álbum duplo, o último grande da banda, e com o hit “Friday I’m in Love”, que colocou “Wish” nas primeiras posições em várias paradas naquele ano.



14. “Ê Batumaré” – Herbert Vianna (1992)
Local: Antiga residência dos Vianna, Estrada do Morgado, Vargem Grande, Rio de Janeiro, Brasil

Talvez um desavisado que conheça Herbert Vianna hoje, paraplégico por causa de um acidente sofrido em 2001, pense que “Ê Batumaré”, assim como o disco de Wyatt, seja caseiro por motivos de "força maior". Mas, não. À época, quase 20 anos antes daquele ocorrido trágico, o líder e principal compositor da Paralamas do Sucesso, dotado de todas as funções motoras, estava dando uma guinada sem volta na carreira pela influência da música brasileira em sua música (em especial, do Nordeste). Já se percebiam sinais em discos da banda, como “Bora Bora” (1988) e “Os Grãos” (1991), e se sentiria ainda mais no sucessor “Severino”. Gravado, tocado e cantado inteiramente pelo ele em uma garagem sem tratamento acústico e num equipamento semiprofissional (como está escrito no próprio encarte), ouve-se de Zé Ramalho a Win Wenders, de baião a eletroacústica, de rock a repente, além de instrumentos de diversas sonoridades e timbres e, claro, as ricas melodias que sempre foi capaz de criar. O álbum é o centro desta mudança de paradigma que Herbert trouxe à sua música, à de sua banda e ao rock nacional como um todo. Se à época a imprensa brasileira – sempre pronta para criticar os artistas de casa – recebeu o disco com frieza, considerado-o “experimental” (mentira: eles não entenderam!), nunca mais o rock brasileiro foi o mesmo depois de “Ê Batumaré”.



15. “The Downward Spiral” – Nine Inch Nails (1994)
Local: 10050 Cielo Drive, Benedict Canyon, Los Angeles, Califórnia, EUA

Nos anos 90, o avanço da tecnologia dos equipamentos sonoros dava condições para se montar estúdios portáteis onde quer que fosse. Foi então que o multi-instrumentista norte-americano Trent Reznor pensou: “por que não instalar um em plena 10050 Cielo Drive, a mansão nos arredores de Beverly Hills, Los Angeles, em que, na madrugada do dia 9 de agosto 1969, a família Manson assassinou cinco pessoas, entre elas, com requintes de crueldade, a atriz e modelo Sharon Tate, grávida do cineasta Roman Polanski?” O que para alguns daria arrepios, para o líder da Nine Inch Nails foi motivação. Ali ele compôs o conceitual “The Downward Spiral”, disco de maior sucesso da banda. Reznor, que se mudara para a casa, absorveu-lhe o clima macabro para criar uma ópera-rock cheia de ruídos, distorções e barulho em que o personagem principal passa por solidão, loucura, descrença religiosa e repulsa social. Até o estúdio improvisado ganhou nome em alusão àquele trágico acontecimento: Le Pig, uma referência a uma das mensagens deixadas escritas nas paredes da casa com o sangue dos mortos. Se por sadismo ou mau gosto à parte, o fato é que o disco virou um marco dos anos 90, considerado um dos melhores álbuns da década pouco após seu lançamento por revistas como Spin e Rolling Stone.


Daniel Rodrigues
Colaboração: Cly Reis

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

“Bohemian Rhapsody”, de Bryan Singer (2018)


Quem me conhece um pouco sabe que nunca gostei muito de Queen. O som da banda sempre me soou um tanto espetaculoso, exagerado, o que viria, inclusive, a influenciar aquela leva insuportável de bandas heavy poser dos anos 80. Embora não discuta as qualidades de Freddie Mercury e de toda a banda, Queen às vezes parece usar uma usina para acender uma lâmpada. A música “Bohemian Rhapsody” – “pomposa”, conforme parte da crítica na época a classificou – me é o melhor exemplo disso. Ora, para fundir música clássica com rock não precisa emular Caruso! Fora que não é nenhuma novidade essa fusão: Beatles, Velvet Underground, Pink Floyd, Frank Zappa e, pasmem, a própria Queen estão aí para provar que tal combinação de estilos ocorre naturalmente no processo de composição, sem forçar a barra.
Dito isso, prometo não dizer mais nada negativo sobre o Queen até o final desta resenha. Até porque a proposta é falar do filme-biografia “Bohemian Rhapsody”, de Bryan Singer (2018), sucesso de bilheteria em todo o mundo que assisti em sessão especial para convidados no GNC Cinemas do Praia de Belas Shopping, em Porto Alegre. E não à toa. Equilibrando um roteiro cuidadoso, direção criativa e atuações brilhantes, o longa é certamente uma das melhores biografias de astros de rock já feitas no cinema. À altura do que o mito de Freddie Mercury & Cia. merecem. Além, claro, da trilha sonora, que pontua a trajetória do grupo britânico no decorrer de sua discografia e sabe tirar o melhor proveito de emblemáticas canções da banda, como “Love of My Life”, “Radio Gaga”, ”Hammer To Fall” e, principalmente, da que dá título ao filme. Esta, em especial, é explorada em diferentes lances narrativos, seja em apresentação ao vivo, seja na cena da rescisão da banda com a gravadora EMI pelo impasse que a mesma motivou ou, principalmente, no seu revelador processo de composição e gravação para o clássico disco “A Night at the Opera”, de 1975.
Uso o termo “equilíbrio” para o roteiro pois, afora as críticas a algumas imprecisões factuais, além de fazer o registro biográfico do grupo – focalizando, principalmente, Freddie –, a narrativa escrita por Anthony McCarten busca trazer todos os principais momentos da Queen. Ao mesmo tempo, não se exime de tocar em temas delicados, como o homossexualidade do front band, suas atitudes arrogantes e a conturbada relação com o pai. Porém, faz com um tom de respeito que lineariza os acontecimentos. A tal festa barra-pesada que promovera em sua mansão regada a drogas e sexo ganha uma sequência no filme, porém sem apelar para a polêmica desnecessária, uma vez que a polêmica em si, a quebra de paradigmas que a figura de Freddie representou (afronta ao sistema, comportamento rebelde, causa LGBT, preconceito com imigrantes), já está contemplada.

A banda no estúdio gravando a clássica "Bohemian Rhapsody"
Para um fã de rock como eu, achei muito interessantes as cenas que mostram o grupo em estúdio e em processo de criação. É quando dá pra ver que, de fato, Freddie era um líder, não só em termos de representatividade, mas na concepção de arranjos e produção, mesmo com a batuta do guitarrista Brian May ao lado. Isso fica claro quando, por iniciativa dele, fazem uma vaquinha e vendem e van que tinham para financiar o primeiro disco, de 1970, o qual gravam durante uma madrugada no contraturno do funcionamento do estúdio para que saísse menos oneroso. Ou quando ele toma a frente das ações na fazenda em que se recolhem para conceber “A Night...”. Singer mostra-se um fã ponderado e que sabe admirar seus ídolos, desvendando tais meandros pouco conhecidos da maioria do público e que só dão a dimensão do encontro mágico que foi o dos integrantes da Queen nas quase três décadas que trilharam juntos.
A incrível sequência do Live Aid: show real dentro do filme
Afora isso, o diretor, provável candidato a Oscar nessa categoria, é muito feliz ao usar a favor da narrativa os vários momentos históricos que a Queen promoveu ao longo da carreira, como a primeira turnê nos Estados Unidos, o show no Rock ‘n’ Rio (o maior de todos os tempos em público) ou a gravação do censurado videoclipe de “I Want Brek Free”, culminando na catártica apresentação no Live Aid, em 1985, quando Freddie, já sabendo que contraíra HIV, motivou-se pela causa humanitária para voltar aos palcos e fazer um show emblemático.
Sequência esta, aliás, que merece um comentário à parte. Nunca tinha visto uma apresentação de palco tão bem reproduzida em cinema, tanto na atuação dos atores/músicos quanto da reação da plateia/figurantes. A vibração que a cena causa é comovente. Parece que se está dentro do show, talvez até mais do que na época do festival, quando as condições de transmissão não eram tão boas quanto o que a tecnologia hoje oferece para a recriação das cenas – com direito a, inclusive, efeitos especiais e lente teleobjetiva supermoderna. O próprio estádio de Wembley, refeito em 2003, aparece em seu formato original graças à competente direção de arte. E mais legal ainda: praticamente se reproduzem os 20 minutos originais da apresentação, dando ainda mais veracidade à trama. Um dos detalhes de grande responsabilidade nisso é o desenho de som – que merece um daqueles Oscar técnicos que ninguém entende a nomenclatura –, cuja captação se “adapta” a onde a câmera/espectador está, ou seja, soa mais destacado quando mais perto do público, de um instrumento ou do gogó de Freddie, por exemplo.
Rami Malek: interpretação digna de Oscar
Por último, destaco o outro trunfo de “Bohemian...”, que são as atuações. A começar por Gwilym Lee e Ben Hardy fazendo muito bem May e o baterista Roger Taylor, respectivamente. Mas, principalmente, Rami Malek na pele de Freddie Mercury. Daqueles papéis “espíritas”, que parece ser fruto de uma transformação. E é. Dificilmente esse Oscar não vá para ele tanto pela qualidade de seu trabalho quanto pela sabida disposição da Academia de premiar este tipo de interpretação.
“Você é um mito, Freddie”, dizem os companheiros de banda ao vocalista em certo momento. Ele, sem falsa humildade, concorda. O mesmo que eu faço agora humildemente. Queen é uma banda mitológica para a música pop inegavelmente. Goste-se do que eles produziram ou não. E isso o filme encerra com muita propriedade, humanizando os ídolos mas dando-lhes a devida dimensão. Ver a emoção dos espectadores fãs do grupo é tão comovente, que chegou a me dar certa inveja de não estar sabendo aproveitar o filme tanto quanto eles. Talvez esteja, sim, passando a admirar mais o Queen, e devo isso ao empolgante “Bohemian Rhapsody”.

****************

tralier de "Bohemina Rhapsody"


Daniel Rodrigues

domingo, 9 de outubro de 2016

John Lennon and Yoko Ono - "Double Fantasy" (1980)



"O disco é um diálogo,
e temos ressuscitado nós mesmos,
de certa forma, como John e Yoko.
Não como John ex-Beatle e Yoko ex-Plastic Ono Band.
É apenas nós dois,
e nossa posição foi a de que,
se o disco não vendesse,
isso significava que as pessoas
 não querem saber sobre John e Yoko.”
John Lennon,
na histórica última entrevista
à Rolling Stone em maio de 1980

Eu acho que John está aqui conosco hoje.
Ambos, John e eu, sempre nos sentimos muito orgulhosos
e felizes por fazermos parte da raça humana.
E ele fez uma boa música
para a Terra e para o universo.
Yoko Ono,
ao receber o Grammy de Álbum do Ano
por “Double Fantasy” em fevereiro de 1981



Nesta semana, eu não poderia colocar outro disco entre os meus favoritos de todos os tempos que não fosse esta maravilha de “Double Fantasy”, o último disco de John Lennon. Por todos os motivos do mundo. Inclusive por ser a semana do aniversário dele. E por ser um disco que fala de uma coisa muito em desuso hoje em dia: relacionamentos que dão certo, apesar de tudo. E não briguem comigo, pois acho que a Yoko tem tudo a ver com este disco e com sua proposta. Montado como uma crônica da vida de um casal normal – mais ou menos, né? Afinal, eles eram John e Yoko –, o disco passeia pelas várias fases legais e outras nem tanto do cotidiano. Coisa que muita gente não quer nem ver pintada.

Vamos começar com “(Just Like) Starting Over”, o primeiro grande sucesso do disco. John diz nela que, mesmo que se conheçam há tempos e já tenham atravessado poucas e boas, “É como se nós estivéssemos nos apaixonando de novo/ será como começar de novo”. Claro que no caso deles, um ex-Beatle e uma artista plástica de classe alta japonesa, as coisas ficam mais fáceis, mas a luta com o dia-a-dia é a mesma. Lá pelas tantas, John diz pra Yoko: “Por que não nos mandamos sozinhos/ Viajamos para algum lugar muito, muito longe/ Estaremos juntos por nós mesmos/ como fazíamos nos velhos tempos”. A velha tática de escapar da rotina. Só que, aqui, o lance é estar juntos.

“Kiss Kiss Kiss” traz Yoko pedindo pra John beijá-la, tocá-la, dar-lhe carinho num clima new wave (estilo musical de sucesso na época). Durante a canção, Yoko lhe pede atenção para que este amor não se perca. Como na vida real, os beijos e os carinhos levam até o orgasmo, que é explícito. Pelo menos, em japonês.

“Cleanup Time” já traz John contando suas vicissitudes caseiras. Naquele tempo, Yoko foi cuidar das finanças da família, enquanto John ficou responsável pelo filho Sean e pela casa. “A rainha está na casa da moeda/ contando o dinheiro/ o rei está em casa fazendo pão e mel/ sem amigos e até agora sem inimigos/ completamente livres/ Sem ratos a bordo do navio mágico de harmonia (perfeita)”. A perfeição da harmonia está entre parênteses porque nada é realmente perfeito. Enquanto “Starting Over” fazia a apologia da viagem para fugir da rotina, em “Cleanup Time”, John garante que “Não interessa quão longe viajemos/ Onde nós formos/ O centro do nosso círculo/ será sempre nosso lar”. O casal se entocou no seu apartamento no Edifício Dakota durante os anos em que John esteve fora do circuito.

Depois dessa lição caseira de felicidade, as coisas começam a pesar. Yoko vem com “Give me Something”. E as reclamações aparecem com tudo: “A comida está fria/ Seus olhos estão frios/ A janela é fria/ A cama é fria/ Me dê alguma coisa que não esteja fria, me dê”. É bom lembrar que Yoko fez parte daquelas famílias japonesas que criaram suas filhas para o casamento, mas que piraram no meio do caminho. Ela se envolveu com artes plásticas, teve uma filha e começou seu caso com John enquanto ele estava casado. O feminismo estava em seu DNA. No final, ela afirma: “Te dei minhas batidas do coração/ e um pouco de lágrimas e carne/ não é muito, mas enquanto estiver aí/ você pode pegar”. Tudo isso num cenário novamente new wave. É de se notar que, enquanto John é mais tradicional em suas escolhas musicais, Yoko sempre circulou pela vanguarda.

Depois desta reclamação, ele se dá conta de que as coisas não estão exatamente muito bem e diz: “Estou perdendo você” numa batida blues. A música, “I’m Losing You”, conta um pouco do que foi o famoso “Lost Weekend” de John em 1974, quando se separou de Yoko e tomou todas ao lado de bebuns juramentados como Ringo Starr, Harry Nilsson, Elton JohnKeith Moon, entre outros menos cotados. Pra começar, ele diz que: “Aqui em um quarto estranho/ no final da tarde/ O que estou fazendo aqui?/ Não tem dúvidas sobre isso/ Estou perdendo você/ De alguma maneira, as linhas se cruzaram/ A comunicação se perdeu/ Nem consigo falar contigo pelo telefone/ apenas tenho de gritar/ que estou perdendo você”. A dor de John é palpável, assim como as guitarras lancinantes de Hugh McCraken, Earl Slick e do próprio John. Ele tenta se defender, afirmando que “você diz que não está ganhando o suficiente/ Mas eu te lembro de todas as coisas ruins/ Então que diabo tenho de fazer?/ Botar um bandaid?/ E parar com o sangramento agora/ parar com o sangramento agora”. No final da canção, John tenta novamente se defender dizendo: “Sei que te magoei então/ mas isso foi muito tempo atrás/ E bem, você ainda tem de carregar esta cruz?/ Não quero ouvir sobre isso/ Estou perdendo você”.

O curioso é que, na mesma batida firme e no tempo de Andy Newmark, Yoko dá sua versão da história. Em “I’m Moving On”, ela mantém sua postura de confronto. “Guarde sua conversinha suave pra quando estiver paquerando/ Guarde seus beijos de segunda-feira para sua dama de vidro/ Quero a verdade e nada mais/ Estou indo embora, estou indo embora, você está ficando chato”. Ao contrário de todo o disco – e mantendo sua postura de sempre –, Yoko foge da vanguarda e da modernidade da new wave daquele momento e segue sua diatribe na batida do blues, mostrando que o sofrimento é dos dois.

Para aliviar a pressão, John faz sua homenagem ao filho Sean, então com cinco anos de idade. “Beautiful Boy” inicia com o pai dizendo ao filho para “Fechar os olhos/ não ter medo/ O monstro se foi/ está indo embora e seu pai está aqui”. Os steel drums de Robert Greenidge dão a medida da suavidade da canção. Mesmo assim, algo dizia a John que as coisas não estavam bem. Em diversos momentos do disco, tanto ele quanto Yoko, soltam pistas de que havia uma ameaça no ar. “No oceano, navegando pra longe/ mal posso esperar/ ver você crescer/ mas acho que ambos deveremos ser pacientes”. E a premonição se consuma quando afirma: “Antes de atravessar a rua/ pegue minha mão/a vida é o que acontece a você/ enquanto você está ocupado/ fazendo outros planos”. É bom lembrar que, na noite em que foi assassinado, John e Yoko voltavam do estúdio onde mixavam seu próximo disco, “Milk and Honey”, lançado postumamente.

“Watching the Wheels” é, provavelmente, a melhor música de todo o disco. Usando a metáfora de uma roda gigante como o movimento da vida, John faz um inventário da atitude das pessoas, fãs e jornalistas em relação ao seu sumiço. “As pessoas dizem que estou louco fazendo o que faço/ Bem, eles me dão todos os tipos de avisos pra me salvar a da ruína/ Quando digo que estou ok, eles me olham de um jeito estranho/ certamente você não está feliz, não está mais jogando”. No refrão, ele reforça sua postura: “Estou apenas sentado olhando a roda gigante girando e girando/ Eu realmente adoro vê-la rolar/ Não mais andando no carrossel/ eu apenas tive de deixar ir embora”. O oberheim de Ed Walsh percorre toda a música, enquanto John faz o tema ao piano. Outro destaque é para o baixo sempre presente de Tony Levin.

“Yes, I’m your Angel” traz Yoko brincando de jazz da década de 30, meio Billie Holiday, meio Bessie Smith (sem, é claro, o poder vocal destas duas cantoras). Até parece uma daquelas paródias jazzísticas que o grupo Queen fazia em seus discos dos anos 70, “A Night at the Opera” e “A Day at the Races”. A letra fala de um amor de conto de fadas que Yoko usa para dar um relax neste disco, onde o relacionamento entre homem e mulher, às vezes, chega a momentos muito difíceis.

“Woman” é simplesmente a maior declaração de amor que um cantor e compositor já fez para sua amada perpetrada em disco. Não somente porque tem um clima romântico, mas porque John admite suas falhas na condução do sucesso e da fama e porque dá o crédito a Yoko por tê-lo colocado no caminho certo. “Mulher, sei que você entende/ a criança dentro do homem/ por favor, lembre que minha vida está em suas mãos”. Depois de dizer isso, sobra muito pouco para John entregar. E ele consegue: “Mulher, deixe-me explicar/ Nunca pretendi te causar sofrimento ou dor/ então deixe-me dizer de novo, de novo, de novo/ Te amo agora e pra sempre”. Ao ouvir com fones, vocês vão notar os Benny Cummings Singers, um coral de igreja que participa sutilmente.

O disco até poderia terminar aqui tamanha a carga emocional que esta canção carrega. Mas Yoko ainda fala de seus “meninos” John e Sean em “Beautiful Boys”. Do filho, ela diz que “você é um menino bonito/ com todos os teus pequenos brinquedos/ teus olhos tem visto o mundo/ apesar de ter apenas quatro anos de idade... Por favor, nunca tenha medo de chorar”. Já a respeito de John, Yoko afirma que “sua mente mudou o mundo/ e agora você tem quarenta anos de idade/ você tem tudo o que conseguir carregar/ e ainda assim se sentir vazio/ Nunca tenha medo de voar”. O violão clássico de McCracken se mistura ao baixo fretless de Levin e aos teclados de Walsh dando um clima soturno à canção.

Na última participação de John no disco, a pop music beatelesca volta com “Dear Yoko”, outra declaração de amor, embalada numa faixa dançante e onde John retoma a harmônica dos velhos tempos, mesclada com as guitarras de Slick e McCracken, dois mestres dos estúdios. A canção chega a ser bobinha em alguns momentos como “mesmo quando eu vejo TV/ Tem um buraco onde você deveria estar/ Não tem ninguém deitado perto de mim, Yoko”. “Double Fantasy” também é um disco interessante porque alterna estes momentos mais “pesados”, de dificuldade no relacionamento de um casal, com climas mais animados, pra cima.

A influência da cultura japonesa na vida Yoko se faz presente em “Every Man Has a Woman Who Loves Him”, uma afirmação que eu realmente gostaria que existisse. Os teclados e as guitarras tecem uma teia de informação musical nipônica, enquanto as batidas de Newmark e o baixo de Levin marcam o ritmo. “Todo homem tem uma mulher que lhe ama/ na chuva ou no sol, na vida ou na morte/ se ele a encontrar em sua vida/ ele saberá ao colocar o ouvido em seu seio”. Depois, ela troca a perspectiva, falando da mulher: “Toda mulher tem um homem que a ama/ ao levantar ou cair na sua vida ou na morte/ e se ela o encontrar em sua vida/ Ela vai saber ao olhar em seus olhos”. No refrão, ela é quem faz o mea culpa: “Por que fico circulando quando sei que tu és a pessoa/ Por que eu corro quando tenho vontade de te abraçar?”.

O impressionante é que, ao chegar o final de “Double Fantasy”, Yoko tenha feito um exercício de premonição absoluto, sem imaginar o que iria acontecer. “Hard Times Are Over” ou “Os Tempos Difíceis Terminaram”. Num tom celebratório, Yoko começa dizendo que “tem sido muito difícil/ mas está ficando mais fácil agora/ Os tempos difíceis terminaram, terminaram por um tempo”. Mal sabia ela que, dois meses depois do disco ter sido lançado, Mark David Chapman faria todo aquele estrago na vida da gente em dezembro daquele mesmo ano. Com solo de sax de David Tofani, a canção usa os backing vocals para dar aquele astral de fim de disco. No relançamento do CD, ainda constam uma música que John estava terminando, “Help Me to Help Myself”, e a criticada “Walking on Thin Ice”, cuja mixagem encerrou no dia da morte de John e que Yoko lançou em fevereiro de 1981.

Além deste tom “cinema verité” de todo o disco, quando nem John nem Yoko escondem seus problemas e suas dificuldades, “Double Fantasy” tem a seu favor uma divisão bem clara de sonoridades: John mais clássico, tanto rock quanto pop, e Yoko trafegando com desenvoltura pela vanguarda e pelo new wave, muito em moda na época e cujos praticantes – especialmente The B-52’s – citavam nominalmente Yoko como grande influência.
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FAIXAS:
1. (Just Like) Starting Over - 3:56            
2. Kiss Kiss Kiss - 2:41   
3. Cleanup Time - 2:58 
4. Give Me Something - 1:34     
5. I'm Losing You - 3:57
6. I'm Moving On - 2:21
7. Beautiful Boy (Darling Boy) - 4:05     
8. Watching the Wheels - 3:59 
9. Yes, I'm Your Angel - 3:09      
10. Woman - 3:32           
11. Beautiful Boys - 2:55             
12. Dear Yoko - 2:34      
13. Every Man Has a Woman Who Loves Him - 4:03       
14. Hard Times Are Over - 3:19

Faixas inclusas na versão em CD, de 2000:
15. Help Me to Help Myself - 2:37
16. Walking on Thin Ice - 6:00
todas as faixas compostas por John Lennon e Yoko Ono

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por Paulo Moreira