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quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Edu Lobo & Chico Buarque - "O Grande Circo Místico” (1983)



 

Acima, capa do vinil original de 1983; a outra,
capa da versão em CD
"O médico de câmara da imperatriz Teresa – Frederico Knieps –
resolveu que seu filho também fosse médico,
mas o rapaz fazendo relações com a equilibrista Agnes,
com ela se casou, fundando a dinastia de circo Knieps
de que tanto se tem ocupado a imprensa."
Versos de abertura do poema "O Grande Circo Místico", de Jorge de Lima, 1938

"Uma enciclopédia da música brasileira."
Antônio Carlos Miguel, jornalista e escritor

Não é incomum ouvir de admiradores da música brasileira que “O Grande Circo Místico” é o melhor disco já produzido no Brasil. Mesmo que nessa seara naturalmente venha à mente obras como “Elis & Tom”, “Acabou Chorare” ou “Getz-Gilberto”, não é descabida a consideração atribuída a esta obra. Afinal, em que projeto se reuniu para cantar boa parte do primeiro escalão da MPB, leia-se Gilberto Gil, Tim Maia, Gal Costa, Milton Nascimento, Simone, Jane Duboc e Zizi Possi? E quando que esse time de estrelas estaria junto para interpretar temas de uma peça infanto-juvenil feita para o curitibano Teatro Ballet Guaíra sobre um poema clássico da língua portuguesa? Mais: quando contariam com o reforço de músicos do calibre de Oberdan Magalhães, Jamil Joanes, Cristóvão Bastos, Marcio Montarroyos, Antonio Adolfo, Leo Gandelman, Hélio Delmiro, entre outros? E, mais ainda: em que ocasião tudo isso gravitou em torno de um repertório inédito e tão qualificado, que é o sumo de uma então recente parceria de dois gênios da música do século XX?

Pois este disco adorado pelos fãs e cheio de significados chega a 40 anos de lançamento no mesmo ano em que um de seus artífices, Edu Lobo, completa o dobro de idade. Na linha do que foi produzido nos anos 70 e 80 para o público infantil, ”O Grande...” traz o espírito de especiais clássicos como “Plunct Plact Zum”, “A Arca de Noé” e “Pirilimpimpim”, a começar pelo primor musical e estético que não subestima o bom gosto da criança. Porém, neste caso, tal atmosfera vem encapsulada por um diferencial: o encontro de Edu com seu melhor parceiro: Chico Buarque. A dupla cria 11 temas novinhos em folha com o mais alto nível não apenas para aquilo que pode ser classificado como “música infanto-juvenil”, mas em toda a história da música popular brasileira. 

Se hoje esta dobradinha dourada se tornou uma das mais celebradas da MPB, muito se deve a ”O Grande...”. Até então, os caminhos de Edu e Chico haviam se cruzado apenas duas vezes: na orquestração que Edu fizera para a peça “Calabar”, de Chico e Ruy Guerra, em 1973, e numa única e frutífera composição, a música “Moto-Contínuo”, que o segundo gravara em seu disco “Almanaque”, de 1981. Pronto: estava dada a magia! Edu, que já havia produzido a excelente trilha para o balé Guaíra “Jogos de Dança”, sem letras e usando apenas as vozes dentro do arranjo instrumental, foi novamente convidado pelo cenógrafo, dramaturgo e figurinista Naum para um novo projeto da companhia. Porém, tratava-se de uma adaptação do singular poema surrealista de mesmo nome de 1938, de autoria do poeta modernista Jorge de Lima, composto de uma estrofe e 45 versos. O texto conta a trajetória de Knieps, que abandona a corte e a medicina, apaixonando-se pela equilibrista Agnes, começando a dinastia do Grande Circo Místico. Algo que Edu, desde os anos 60 envolvido com teatro, normalmente delegava a parceiros, como a Gianfrancesco Guarnieri em “Arena Canta Zumbi” (1965) e a Vinícius de Moraes em “Deus lhe Pague” (1975). 

Edu e Chico no início dos anos 80: encontro que não
os separaria jamais
Para aquela nova empreitada, a bola da vez era o mais recente parceiro. Afeito ao texto para palco, haja vista que já havia escrito, além de “Calabar”, ”Roda Viva”, em 1968, Chico também era mestre nas adaptações para teatro. Escreveu sozinho todas as composições sobre o poema de João Cabral de Melo Neto para “Morte e Vida Severina”, em 1966, adaptou, com Paulo Pontes, “Medeia” de Eurípides em “Gota D’Água” para a voz de Bibi Ferreira, em 1975, e trouxe Bertold Brecht e John Gay para a realidade brasileira noutro musical, “Ópera do Malandro”, de 1978. Porém, mais do que todos estes exemplos – que já seriam suficientes para justificar um convite –, Chico sabia lidar com o universo infantil. Além do livro “Chapeuzinho Amarelo”, que lançara em 1979, o pai de Sílvia, Luísa e Helena já tinha realizado, dois anos antes, a deliciosa peça musical “Os Saltimbancos”, inspirada no conto "Os Músicos de Bremen", dos irmãos Grimm, junto a Sergio Bardotti e Luis Bacalov, amigos italianos dos tempos de autoexílio na terra de Michelangelo. Ali se revelava mais uma faceta do Chico plural: afora o malandro, o militante político, o cronista, o amante, a voz feminina e vários outros, via-se agora o autor para os pequenos. Edu, que enfileirara parceiros da categoria de Joyce, Cacaso, Dori Caymmi, Ferreira Gullar, Paulo César Pinheiro e outros, sabia ter achado a pessoa ideal para letrar suas músicas.

O resultado é um desbunde capaz de encantar crianças e adultos há quatro décadas. Começando pela instrumental “Abertura do Circo”, com fantástico arranjo escrito por Edu e orquestração do maestro Chiquinho de Moraes, um tema circense tão marcante, que dá a impressão de se tratar daquelas melodias folclóricas antigas e de autor desconhecido. Mas tem autor, sim, e é Edu Lobo. Na sequência, uma pausa na rotação do planeta, pois é Milton Nascimento cantando a balada “Beatriz”. “Olha/ Será que ela é moça/ Será que ela é triste/ Será que é o contrário/ Será que é pintura/ O rosto da atriz...” Considerada por oito entre 10 uma das maiores canções da música brasileira de todos os tempos, este clássico não pode ser classificado de outra coisa, que não de perfeito. Em melodia, em arranjo, em letra e, principalmente, na interpretação de Milton. A voz do gênio de Três Pontas é de uma afinação tão precisa e atinge registros tão improváveis, que fica impossível imaginar outro ser capaz de cantá-la. Além, claro, da emoção transcendente que Milton transmite. Uma obra-prima, que apenas Zizi, numa permissão para o Songbook de Chico, ousou regravar. Também, pudera.

Seguindo adiante, Jane Duboc entra no picadeiro e usa de toda sua brandura e sentimento na linda “Valsa dos Clowns”, cuja letra fala da famosa dicotomia da tristeza do palhaço, escondida por detrás da figura sempre engraçada: “Em toda canção/ O palhaço é um charlatão/ Esparrama tanta gargalhada da boca pra fora/ Dizem que seu coração pintado/ Toda tarde de domingo chora”. Cantada em coro, na sequência, "Opereta do Casamento”, como uma breve e alegre história popularesca, antecede outra história: a de Lily Brown. Personagem criada no poema de Jorge de Lima, mas cuja saga é totalmente inventada pela mente de Chico. Ele dá vida à “deslocadora” Lily Brown, a que “tinha um santo tatuado no ventre”, atribuindo-lhe contornos de uma moça sonhadora, que acredita ter encontrado o “homem de seus sonhos”. Ao fim, entretanto, não concordando com sua vida mambembe, ele a abandona. Num estonteante jazz bluesy, a melodia e o primoroso arranjo de Edu acompanham os versos de Chico, que deita e rola na poética. Por exemplo: o raro uso de rimas “preciosas”, que combina a fonética de palavras de idiomas distintos, é largamente usada. Caso de “cheese” com “feliz”, “dancing” com “romance” e “azul” com “flou”. Outro elemento-chave para a canção é, novamente, a adequação da interpretação, que não poderia ser mais exata, pois toda a sensualidade que a música exige está devidamente contida na voz de Gal e seu timbre de cristal.

Outra linda balada: a sentimental “Meu Namorado”, interpretada por Simone, é das mais perfeitas do repertório. Os teclados de Cristóvão Bastos comandam o toque da arpa, da gaita e das cordas, fazendo cama para os versos potentes e líricos emitidos pela voz da baiana: “Meu namorado/ Minha morada é onde for morar você”. De arranjo bem mais enxuto, mas não menos brilhante, "Sobre Todas as Coisas” tem no violão de Gil a única do álbum apenas com um instrumento acompanhando o vocal. De fato, não precisa mais, pois a genialidade do autor de “Aquele Abraço” é tão inata, que desta rara interpretação de Gil a uma canção de Chico e Edu sai o tema mais contemplativo e filosófico do disco. Gil dá ares de um spiritual à canção, tal uma canção-prece dos trabalhadores negros escravizados dos Estados Unidos, clamando pelo entendimento da existência e de um amor não correspondido. “Ao Nosso Senhor/ Pergunte se Ele produziu nas trevas o esplendor/ Se tudo foi criado - o macho, a fêmea, o bicho, a flor/ Criado pra adorar o Criador”. Caetano Veloso bem captou tamanha profusão de significados ao mencionar na sua música “Pra Ninguém”, de 1997, em que enumera músicas de autores da MPB cantados por outros autores/cantores da música brasileira, justamente esta entre tantas que poderia escolher do vasto repertório de versões de Gil a outros compositores. 

Contracapa do álbum com desenhos de Naum,
que reproduzem a ideia da cenografia da pela

Congele-se o firmamento mais uma vez, pois é hora de Tim Maia soltar seu vozeirão para a incrível "A Bela e a Fera”. Jazz-soul surpreendente de Edu – ainda mais após um número tão melancólico como o anterior – com seu arrojado arranjo de metais a la Quincy Jones, a bateria suingada de Paulinho Braga e o baixo vivo e inconfundível do “Black Rio” Jamil Joanes. Toda esta qualidade a serviço do “Síndico” em uma de suas melhores performances. Tim escalando as notas para cantar versos como: “Ouve a declaração, ó bela/ De um sonhador titã/ Um que da nó em paralela/ E almoça rolimã” é simplesmente histórico! Chico, também em uma de suas melhores letras, repete a dose em uma nova rima “preciosa” ainda mais improvável: “rolimã” com “Superman”! Musicando a saga do bruto boxeur Rudolf, da história original, Chico recria o personagem sob a perspectiva da famosa fábula do século 16, produzindo versos de admirável beleza como: “Não brilharia a estrela, ó bela/ Sem noite por detrás/ Sua beleza de gazela/ Sobre o meu corpo é mais/ Uma centelha num graveto/ Queima canaviais/ Queima canaviais/ Quase que eu fiz um soneto”. Para terminar arrebatando e elevando a emoção, Tim promove um dos lances mais sublimes da música brasileira, aumentando cirurgicamente o registro vocal para dizer: “Abre o teu coração/ Ou eu arrombo a janela”. De arrombar o coração, sim. O de quem escuta!

Quebrando mais uma vez a sequência rítmica, aquela que certamente é a mais infantil de todo o repertório. Se “Opereta...” contava com coro adulto, "Ciranda da Bailarina” traz agora vozes de crianças sobre uma lúdica ciranda de tons medievais, ainda mais pela sonoridade marcante de cravo e flauta doce forjados no sintetizador. E quem são as crianças? Os filhos de Chico e Edu, mais a pequena Bebel Gilberto (desde sempre envolvida com a música) e outros dois meninos. A sessão com a criançada é tal como recentemente a turma experimentava na trilha sonora do filme “Os Saltimbancos Trapalhões”, que Chico versara de sua peça para o famoso quarteto humorístico um ano antes. E que versos! Semelhantemente aos “Saltimbancos”, a letra de “Ciranda...” era, ironicamente, a mais política de todo o disco. Mesmo se tratando da aparentemente mais ingênua faixa, “Ciranda...” foi a única afetada pela ainda ativa censura. A palavra “pentelho”, ridiculamente, foi cortada na execução, provocando um hiato bizarro na audição. Se nos Anos de Chumbo uma música como esta seria sumariamente vetada pelo simples fato do autor se chamar Chico Buarque, ao menos os ventos da Abertura Política não a subtraíram totalmente. E ainda bem que, anos depois, com a democracia conquistada e consolidada, foi possível regravá-la e reencená-la diversas vezes, incluindo as belas versõesde Adriana Partimpim, em 2009, e a do próprio Edu, em 2013.

Poster original do show no Teatro Guaíra,
em Curitiba
Quase finalizando, Zizi vocaliza com brilhantismo o tema-título, o preferido do disco para o próprio Edu. Mas para finalizar mesmo, não havia de serem outros, que não os autores. Intercalando uníssonos e combinações vocais, "Na Carreira” é uma comovente marchinha circense de despedida, que deixa um sabor de pipoca e algodão-doce na boca ao final do espetáculo. Uma tradução poética da vida mambembe: “Hora de ir embora/ Quando o corpo quer ficar/ Toda alma de artista quer partir/ Arte de deixar algum lugar/ Quando não se tem pra onde ir”. A arte do palhaço presente em “Piruetas”, que Chico coescrevera para “Os Saltimbancos Trapalhões” (”Salta sobre a arquibancada/ E tomba de nariz/ Que a moçada/ Vai pedir bis”) empresta inspiração para “Na Carreira” quando esta diz: “Palmas pro artista confundir/ Pernas pro artista tropeçar”. Pode-se ler, aliás, como uma metáfora de artistas brasileiros como eles, saídos da Ditadura e vislumbrando um país livre e democrático com a então nascente campanha das Diretas Já!. Artistas estes que, igual ao que as duas músicas tratam, não desistem de apresentar sua arte, independentemente das condições. “O espetáculo não pode parar”, diz uma, e a outra: “Ir deixando a pele em cada palco/ E não olhar pra trás/ E nem jamais/ Jamais dizer/ Adeus”.

Desde então, Chico e Edu nunca mais se distanciaram. Vieram, na esteira de “O Grande...”, outras três trilhas para teatro da dupla: "O Corsário do Rei" (1985), "Contos da Meia-Lua" (1988) – também para o Guaíra – e "Cambaio" (2001), além da coletânea "Álbum de Teatro", de 1997. Desses, mais joias do cancioneiro nacional saíram, a exemplo de "Choro Bandido", "A Permuta dos Santos", "Bancarrota Blues" e "Ode aos Ratos". Mas nada se compara ao que realizaram naquele efetivo encontro no início dos anos 80 tanto na excelência das músicas quanto na coesão da obra, lindamente ilustrada por Naum. Revisitado várias vezes, seja nos palcos e até no cinema, "O Grande..." guarda qualidades incontestes, que o credenciam a ser considerado um marco na música brasileira. Quiçá, o maior. Se o próprio Edu a tem como uma das suas cinco melhores obras da assertiva, longa e nobre carreira, um indício bastante forte há nisso. O exigente Ed Motta, músico e colecionador, acha o mesmo. O tempo, sem dúvidas, ajudou a formar tal reputação. Fato é que, há 40 anos, esta trilha vem sendo notícia nos principais meios e consta não raro em listas de melhores discos da música no Brasil. “O Grande...” consolidou-se neste patamar e no imaginário do público. Um feito tão maravilhoso "de que tanto se tem ocupado a imprensa" há quatro décadas.

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clipe de "O Circo Místico", com Zizi Possi, no programa Bar Academia (1983)


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FAIXAS:
1. "Abertura do Circo (Instrumental)" (Edu Lobo) - 2:30
2. "Beatriz” (Milton Nascimento) - 5:01
3. "Valsa dos Clowns” (Jane Duboc) - 3:39
4. "Opereta do Casamento” (Coro) - 3:55
5. "A História de Lily Braun” (Gal Costa) - 3:51
6. "Meu Namorado” (Simone) - 2:44
7. "Sobre Todas as Coisas” (Gilberto Gil) - 5:00
8. "A Bela e a Fera” (Tim Maia) - 2:55 
9. "Ciranda da Bailarina” (Coro Infantil) - 2:22
10. "O Circo Místico” (Zizi Possi) - 3:41
11. "Na Carreira” (Chico Buarque & Edu Lobo) - 4:06
Faixas-bônus da versão em CD:
"Oremus - Coro (Instrumental)" (Edu Lobo) - 1:57
"O Tatuador (Instrumental)" (Edu Lobo) - 3:26
Todas as composições de autoria de Edu Lobo e Chico Buarque, exceto indicadas

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OUÇA O DISCO:


Daniel Rodrigues

terça-feira, 21 de abril de 2015

Maria Bethânia – Show “Abraçar e Agradecer” – Teatro do SESI – Porto Alegre/RS (16/04/2015)



O encanto e a graça de Bethânia no Teatro do SESI
foto: Amanda Costa
Não sou um expectador de shows tão rodado, bem como sei que já perdi muitos deles que nunca mais assistirei, pois os artistas já se foram para outro plano. Mas sei também que já vi muita coisa boa pelos palcos da vida, e dificilmente algo se comparará ao megaespetáculo de Paul McCartney no Estádio Beira-Rio ou, noutra ponta, ao “concerto caseiro” que Paulinho da Viola proporcionou aos porto-alegrenses num belo domingo matinal na Redenção. Mas o que estou falando não tem nada a ver com isso. Tem a ver com a talvez maior cantora, maior performer, maior intérprete viva deste esférico e redundante planeta: Maria Bethânia. E em se tratando de Bethânia não há comparação.
O espetáculo “Abraçar e Agradecer”, apresentado por ela no Teatro do Sesi, em Porto Alegre, comemorando irrepreensíveis 50 anos de sua carreira, deixa muito claro todas essas acepções: vê-se uma artista plena no palco, ciente e aproveitadora de sua trajetória, carregada pelo alto profissionalismo e por suas próprias individualidade, apaixonada pelo o que faz. Como muitos gostam de dizer – mas que a ela se atribui de fato –: uma diva. Foram cerca de 1 hora e 45 minutos que percorrem vários momentos de sua trajetória como uma das mais importantes artistas da história da música brasileira.
Sob luzes intensas de um cenário magnificamente montado por Bia Lessa apenas por estas, Bethânia entra no palco. E é ai que tudo se ilumina de fato. A abertura é tão grandiosa quanto autorreferencial: “Eterno em Mim”, de autoria do mano Caetano Veloso, compositor preferido dela (junto com Chico Buarque) e de maior presença no repertório do show, com seis canções ao total. Tão lindo e completo que minha sensação era de que, logo que terminou o primeiro número, a apresentação poderia terminar ali. Exagero meu, pois tinha muito mais. Mais uma, “Dona do Dom” (de Chico César, de quem também Bethânia cantara outra marcante do show, o fado milongado “Xavante”), e vem um belíssimo poema da própria Bethânia, misto de agradecimento ao público, aos orixás, à natureza, aos amigos, à vida e a si mesma. Tão bonito que não deixa em nada a dever aos outros textos que, como de costume, ela entremeia às canções nos seus shows. Neste espetáculo, obviamente, não poderia ser diferente: tem Clarice Lispector (com três passagens), Waly Salomão, Carmen Oliveira e Fernando Pessoa.
Mas voltando às músicas, o repertório celebra sua história na música brasileira, mas, exceto o hit “Gostoso Demais” (Dominguinhos e Nando Cordel), evita obviedades como “Fera Ferida”, “Reconvexo”, “Álibi” ou “Um Índio”. Mas clássicos há, e vários deles. Tanto que Bethânia arrasa numa versão vibrante e comovente de “Gita”, de Raul Seixas e Paulo Coelho. Todas as músicas se emendam umas nas outras, o que faz com que intensifique ainda mais a montanha-russa emocional que ela impõe ao público, pois além da carga gerada pelas próprias músicas, ainda não dá tempo de respirar entre estas. No caso, “Gita” se liga com outra de Caê: a lírico-romântica “A Tua Presença Morena”, joia que o genial irmão compôs-lhe para o álbum “A Tua Presença”, de 1971, ainda no exílio em Londres. De arrebatar. Aí vem outra dele para ela: “Nossos Momentos” (“Quem pode compartilhar dos meus sentimentos/ Na hora que o refletor bater/ Momentos de luz e de nós/ Momentos de voz e de sonho/ Momentos de amor que nos fazem felizes/ E às vezes nos fazem chorar”), num diálogo tanto com o que veio antes quanto com o trecho de Lispector lido na sequência, que diz: “Antes de julgar a minha vida, calce os meus sapatos, percorra o caminho que percorri, viva as minhas tristezas, minhas dúvidas, viva as minhas alegrias. Tropece aonde eu tropecei, e levante-se assim como eu fiz.”
Gonzaguinha, outro importante parceiro, amigo e compositor da carreira de Bethânia, retoma a seção musical metalinguisticamente: “Começaria Tudo Outra Vez”. No palco de LED em que Bethânia pisa se projetam de diversas formas: flores, estrelas, letras, desenhos, geométricos. E as luzes sobre ela ajudam a marcar a incrível performance de uma artista que dança e interpreta com alegria e jovialidade, apesar dos cabelos tomados de branco e os quase 70 anos. “Alegria”, aliás, é o que ela traz em seguida no lindo samba de Arnaldo Antunes, que ganha batuques de axé. Logo após, “Voz de Mágoa” (Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro), uma tocante interpretação do clássico bossa-novista “Dindi” e uma ainda mais emocionante execução de “Você Não Sabe”, de Roberto e Erasmo, compositores “incultos” para a dita intelligentsia que Bethânia fora uma das primeiras a demonstrar a beleza de suas construções melódicas. Quando se pensa que vai se respirar um pouco, ela vem com “Tatuagem”, de Chico e Ruy Guerra, e aí os olhos marejam inevitavelmente.
Depois de novo texto de Lispector, Chico retorna noutra marcante na carreira de Bethânia: a apoteótica “Rosa dos Ventos”, título do memorável show da cantora de 1971 quando ela consolida este formato de apresentação altamente íntima e com composições de diversas vertentes. Um pout-pourri com a ótima banda comandada por Jorge Helder preenche o interlúdio, quando Bethânia sai para trocar de figurino e voltar para o segundo ato. “Tudo de Novo“, mais uma de Caetano, faz a montanha-russa, que havia estacionado por alguns minutos, voltar com toda a velocidade.
As referências aos orixás, principalmente Iansã e Oxum, e aos elementos “água” e “vento” aparecem do início ao fim, e bastantemente nesta segunda parte. “Doce”, de Roque Ferreira (“A lagoa escura que a Bahia tem/ Que a areia branca rodeou/ São as águas de Oxum que Caymmi batizou...”), ”Oração de Mãe Menininha”, de Caymmi (“E a Oxum mais bonita, hein? Tá no Gantois...”), “Eu e Água”, outra de Caetano (“O mar total e eu dentro do eterno ventre/ E a voz de meu pai/ voz de muitas águas”) dialogam entre si e mostram claramente isso. A música que dá título ao show, de Gerônimo e Vevé Calazans (porém na ordem inversa: “Agradecer e Abraçar”), mantém a mesma linha: “Abracei o mar na lua cheia...”. Igualmente as três de Roque Ferreira que vêm em sequência: “Vento de Lá” (“Foi o vento de lá, foi de lá que chegou/ Foi o vento de Iansã dominador que dormia...”), “Imbelezô Eu” (“Alecrim beira d'água/ Que me beijou percebeu/ Alguma coisa em mim aconteceu/ A mão que me tocou imbelezô eu...”) e a bela “Folia de Reis”.
Um samba antigo, “Mãe Maria”, de Custódio Mesquita e David Nasser, precede outra maravilhosa declamação de Bethânia – como talvez no Brasil ela seja a que melhor o saiba fazer –, agora com poesia do conterrâneo Waly: “Cresci sob um teto sossegado, meu sonho era um pequenino sonho meu. Na ciência dos cuidados fui treinado/ Agora, entre meu ser e o ser alheio, a linha de fronteira se rompeu.”. Neste momento, Bethânia, dona do repertório, faz um singular paralelo entre a música rural (“Eu, a Viola e Deus”, “Criação”, “Casa de Caboclo”, “Viver na Fazenda”) com a raiz indígena brasileira (“Povos do Brasil”, o canto tupi “Maracanandé” e a já citada “Xavante”) com o autorreconhecimento da voz (“Alguma voz”, outra de PC Pinheiro e Dori, e “Motriz”, última de Caetano no show), seleção de músicas cujo simbolismo, entremeada pelo pungente e feminino texto “Candeeiro”, de Carmen Oliveira, representa a sua própria existência como pessoa e cantora.
“Eu Te Desejo Amor”, canção francesa de Charles Trenet e Léo Chauliac, de 1942, vertida para o português por Nelson Motta, arrebatou o público, que a essas alturas já a aplaudia de pé. Ao final desta, por sinal, dois minutos de aplausos diante de uma Bethânia visivelmente emocionada que dizia: “Que plateia é essa?!”. Mas o deslumbre não terminaria ali, pois, depois de ler um de seus poetas preferidos, Pessoa, Bethânia inunda de emoção o teatro com uma interpretação, esta em francês de fato, do clássico de Edith Piaf “Non, Je ne Regrette Rien”, enquanto uma projeção no chão de uma faixa de estrada parece cruzar-lhe o peito em alta velocidade.
“Silêncio” fecha o show em versos que traduzem a despedida e a delicadeza daquele momento tão especial, tanto para a artista quanto para o público: “Silêncio, eu quero ouvir o que me diz a imensidão/ Saber se minha alma tem razão/ Quando acredita que essas coisas vão durar”. A banda encerra ao som de outro marco da trajetória de Bethânia: “Carcará”, de João do Vale. Sob um mar de aplausos ela sai do palco, mas logo retorna para entoar dois sucessos: `”É o Amor”, de Zezé di Camargo e Luciano, que ela, em 1999, recolocou num outro patamar interpretativo, e “O que é o que é”, o grande sucesso de Gonzaguinha. É quando a plateia, já de pé e dançando, entoou junto com ela os inesquecíveis versos: “Viver/ E não ter a vergonha de ser feliz/ Cantar e cantar e cantar/ A beleza de ser/ Um eterno aprendiz...”.
Pra mim, admirador de sua obra e colecionador de vários de seus discos, a sensação que saí foi, além do deslumbre, de que Bethânia, ainda por cima, é ótima de estúdio. Pois a maior certeza que se tem é que ela é inteiramente do palco. Como disse no início, dificilmente verei apresentações melhores de algumas que já vi, pois estas estão guardadas no coração do diletante. Mas como este show de Maria Bethânia, a quem vi pela primeira vez, acho que nunca mais presenciarei. Ao fim, as cortinas se cerram e não se vê mais Bethânia, mas, como dizem os versos de Chico: “Sei que além das cortinas/ São palcos azuis/ E infinitas cortinas/ Com palcos atrás.” Bethânia está sempre lá, atrás das cortinas, além das cortinhas. Ela é luz, ela é azul, ela é o palco.



quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Música da Cabeça - Programa #147


Mais do que estar com a roupa sempre nova, aqui no Música da Cabeça a gente tá sempre com o repertório renovado. Confere só o nível da grife de hoje: Tim Maia, Nine Inch Nails, Metá Metá, Black Alien, Suicide, Caetano Veloso e outros. Ainda, um "Música de Fato" sobre os 75 anos da libertação de Auschwitz, um "Palavra, Lé" em homenagem a Chico César e um "Cabeça dos Outros" com os latinos da Perotá Chingó. É muita elegância sem precisar renovar o guarda-roupa. Típico do MDC, que vai ao ar às 21h, no magazine casual da Rádio Elétrica. Produção, apresentação e as mesmas vestes: Daniel Rodrigues.



Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

"Roberto Carlos em Detalhes", de Paulo César Araújo - ed. Planeta (2006)

 

por Márcio Pinheiro


"Eu tive duas motivações. Uma foi a afetiva: ele foi meu primeiro ídolo de infância. A outra, inte­lectual. Quando cheguei à faculdade e me interes­sei pelo estudo da música brasileira, constatei que não tinha nenhum livro que explicasse o fenóme­no Roberto Carlos."
Paulo César Araújo, sobre o que o motivou a escrever a obra


Se você pretende saber quem ele é, eu posso lhe dizer: está tudo em "Roberto Carlos em Detalhes", livro de Paulo César Araújo lançado pela Editora Planeta em 2006, logo depois retirado de circulação e até hoje o mais completo perfil biográfico feito sobre um artista tão gigantesco quanto misterioso. Na internet, o livro pode ser encontrado pelo preço médio de 400 reais.

Resultado de 16 anos de pesquisas e entrevistas, "Roberto Carlos em Detalhes" começou a ser desenvolvido em 1990, quando Araújo - autor de "Eu Não Sou Cachorro, Não" - começou a coletar dados para um trabalho específico sobre a Jovem Guarda. Entre as quase duas centenas de entrevistas - incluindo aí nomes como Tom Jobim, Chico Buarque e João Gilberto - percebeu que um nome se destacava.

Assim, o bem detalhado "Detalhes" acompanha a trajetória do cantor desde a infância, do nascimento em Cachoeiro do Itapemirim, em abril de 1941, filho caçula do relojoeiro Robertino e da costureira Laura, e revela aspectos pouco conhecidos e/ou comentados, como quando Roberto Carlos, aos seis anos, foi atropelado por uma locomotiva e sua perna direita teve de ser amputada até pouco abaixo do joelho.

O autor também acompanha a chegada de Roberto Carlos ao Rio, em 1956, relatando o encontro do jovem com Wilson Simonal, Tim Maia, Erasmo Carlos e, principalmente, com o produtor musical Carlos Imperial, a quem Roberto chamava de "papai" e que foi responsável pela gravação de seu primeiro disco. Antes disso, Roberto Carlos, suburbano com influências roqueiras, tentou se inspirar em João Gilberto, mas nunca foi bem aceito pela turma da Zona Sul. Resolveu abandonar o ídolo e criar um caminho à parte. "Ele foi rechaçado pela classe média. Era chamado de 'João Gilberto dos pobres'", lembra Araújo.

Das diversas fases do cantos - da Jovem Guarda ao romantismo dos motéis, dos rocks iniciais ao misticismo - tudo está contemplado. Araújo conta histórias sem descambar para a mera fofoca e esmiúça todos os fatos que já foram contados superficialmente em um ou outro lugar.


quinta-feira, 25 de maio de 2023

ÁLBUNS FUNDAMENTAIS Especial de 15 anos do Clyblog - Patife Band - "Corredor Polonês" (1987)

 





"Paulo Barnabé tem influência das técnicas de composição erudita contemporânea de onde surgem ritmos assimétricos, células atonais, séries dodecafônicas. Há também assumida influência de punk-rock, do jazz e ritmos brasileiros, o que torna a 'brincadeira' ainda mais interessante!"
descrição da banda
no site My Space



Clayton me convidou para participar desse blog o que me deixou muito envaidecido. Vão ler sobre meu gosto musical! 

Mas, por outro lado, recebi uma tarefa ingrata: como escolher um grande álbum musical. Um só? Como não falar de "Master of Reality", do Sabbath"Aracy canta Noel", ou o impecável diletantismo do grupo Rumo. Gente, "Estado de Poesia" do Chico César, "La Lhorona", da saudosa Lhasa de Sella... 

Ok, só um mesmo!

Decidi pelo que considero o grande álbum do rock Brasil dos 80: "Corredor Polonês", da Patife Band, de 1987. Não bastasse a presença de compositores do nível de Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé, Fernando Pessoa, temos músicos preciosos acompanhando Paulo Barnabé, inquieto compositor e músico. "Corredor Polonês" foi produzido por ninguém menos que Liminha. O cara sabe do negócio. Ainda hoje o disco me soa de um frescor ímpar. 

Porradaria estranha do começo ao fim. Flertes com o punk, noise rock e jazz fazem dessa obra uma preciosidade musical brasileira. E nem fico muito chateado pelo álbum não ter ficado tão conhecido pela mídia. Azar deles! Dá um gostinho de que é  meio nosso também.  Amo. Quem não ouviu, busque na Internet. Quem já conhece faça como eu, corre pra escutar novamente!



por  R O N I  V A L K


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FAIXAS:

1. Corredor polonês (4:00)
2. Pesadêlo (1:15)
3. Chapéu vermelho (3:40)
4. Tô tenso (3:15)
5. Poema em linha reta (2:08)
6. Teu bem (3:43)
7. Três por quatro (2:05)
8. Pregador maldito (2:23)
9. Vida de operário (3:30)
10. Maria Louca (2:51)

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Ouça:




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Roni Valk é professor, ator, diretor, cantor e compositor. Ama passarinhos.
Roni é integrante e diretor artístico do grupo musical-teatral Roni e As Figurinhas

        

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Vitor Ramil & Orquestra de Câmara do Theatro São Pedro – Theatro São Pedro - Porto Alegre/RS (22/10/2016)



Visão geral do palco do Theatro São Pedro
com Vitor e a orquestra.
“Ares de milonga sobre Porto Alegre/
Nada mais, nada mais”.
da letra de
Ramilonga



Pode parecer contraditório, mas, às vezes, dependendo da intensidade emotiva que determinado show ao vivo tem para mim, é mais difícil escrever sobre ele. Foi assim com o do Paul McCartney, em 2010, do Gilbert Gil e orquestra, em 2014, e o da Meredith Monk, ano passado. Todos muito bem sorvidos pelos ouvidos e sentidos, mas que, na hora de transpor pro papel, parece que a emoção me congela. Pois outro desta lista foi o do cantor, compositor e escritor Vitor Ramil, que assisti ao lado das hermanas Leocádia e Carolina Costa em 2013. Naquela feita, como nestes outros que citei, não consegui escrever a respeito daquele que foi certamente um dos grandes shows que assisti. Música no seu mais alto nível. Pois o tempo se encarregou de me dar uma nova chance, igualmente acompanhado das duas e novamente tendo como cenário o majestoso e familiar Theatro São Pedro. E com um adicional incontestável: Vitor tocando com a Orquestra de Câmara do teatro. Ou seja, motivos de sobra para que, enfim, esse momento tão especial fosse por mim registrado.
Minha obrigação atestou-se já de início. Ainda sem o protagonista no palco, a orquestra, formada basicamente pelas cordas (cellos, violinos e violas), estremece-nos com uma luxuosa execução do Prelúdio das “Bachianas nº 4”, de Heitor Villa-Lobos. Que começo! Quando sobe finalmente, o gracioso Vitor brinca: “Quero ver se vocês vão querer me ouvir agora depois do Villa-Lobos”. “Foi no mês que vem”, de poesia romântico-lírica, numa brincadeira com o tempo cronológico e afetivo (“Vou fiquei/ No teu chegado e tu chegada ao meu/ Penso, grande é Deus/ Um paraíso prum sujeito ateu...”) dá início ao refinado e absolutamente musical espetáculo, tanto quanto o de dois anos atrás embora diferente. Não somente pelos arranjos da orquestra, assinados por Vagner Cunha e regidos pelo também bem-humorado maestro Antônio Borges-Cunha, os quais cumpriram, com muita felicidade a função de realçar os traços das canções. Mas, sim, pela obra maior de Vitor Ramil, um dos maiores músicos da atualidade no Brasil.
A habilidade como violonista e cantor destacam ainda mais o lindo timbre de voz, suave como uma pluma, e a capacidade criativa do compositor de criar melodias lindamente improváveis. O professor de artes Celso Loureiro Chaves diz, no texto do programa: “Há sempre uma surpresa nessas melodias. Quando pensamos que elas vão para um lado, elas tomam outro caminho e terminam como ninguém – a não ser Vitor – poderia ter pensado”. Essa é a sensação que se tem na tensa e quase expressionista “Livro aberto” – infelizmente prejudicada pelo pandeiro muito mal tocado por uma das integrantes da orquestra, único resvalo de todo o espetáculo –, a qual vai ganhando ares hipnóticos que as cordas ajudam a intensificar.
Para qualquer fã de Vitor, não precisa nem dizer que "Noite de São João", obra do célebre “Ramilonga”, de 1997, na qual ele musica uma poesia de Fernando Pessoa, foi das mais emocionantes. A regência de Borges-Cunha lhe empresta cores lúdicas, enquanto o músico entoa com absoluta delicadeza a melancólica e rica melodia. Igualmente de embasbacar, “Milonga das 7 Cidades” (mais uma de “Ramilonga”), a suplicante “Perdão” (“Perdoo o sol/ Que aquece meu corpo/ Perdoo o ar/ Que me alimenta/ Perdoo a dor/ Que desistiu de mim/ E a solidão/ Que não foi tanta como eu quis...”) e “Vem”, onde, a capella, Vitor arrasa no canto (a letra, fez sobre um prelúdio de Bach) enquanto o maestro conduz um belíssimo arranjo, chamando atenção para a segunda parte, em que todos abandonam os arcos para, delicada e ordenadamente, tangerem com os dedos as cordas de seus instrumentos.
Original do disco “Délibáb”, de 2010, “Querência” traz a poesia pampeana de João da Cunha Vargas, a quem muitos, incluindo a mim, passou a conhecer através das músicas de Vitor. Dos dois é outra das mais incríveis que se ouviu, esta apenas na voz e violão: “Deixando o Pago”, milonga capaz de transmitir ao mesmo tempo bravura e fragilidade, tristeza e sensação de liberdade: “Cruzo a última cancela/ Do campo pro corredor/ E sinto um perfume de flor/ Que brotou na primavera/ À noite, linda que era/ Banhada pelo luar/ Tive ganas de chorar/ Ao ver meu rancho tapera”.
No final do show, executando "Astronauta Lírico".
Hit gravado por nomes como Gal CostaMilton Nascimento, Chico César e Maria Rita, “Estrela Estrela”, amada pelo público, é a que mais foi possível ouvir o coro da plateia, silenciosa a maior parte do tempo, pois extremamente atenta a todos os acordes que se pronunciavam. Esta ganha um arranjo suave, acompanhando sua aura lunar e fugidia. Já em “Indo ao Pampa”, mais uma de “Ramilonga”, Loureiro Chaves escreve um arranjo especial no qual explora a atmosfera indiana da original e transpõe isso para a orquestra. Um show! Das melhores do set-list, a qual explode no refrão em ataques intensos das cordas. Especial também é o canto de Vitor, que avança impressionantemente de um tom médio para o agudo sem desafinar jamais. Que cantor!
 Outra das incríveis de seu repertório, igualmente adorada pelo público, “Astronauta Lírico”, levou-nos às lágrimas. Delicadeza resume bem essa canção, onde se nota novamente a esfíngica forma de Vitor compor. Valendo-se praticamente de “lugares comuns” da poesia, os versos, escritos com tamanha sensibilidade e destreza, são de uma poesia sem igual: “Quero perder o medo da poesia/ Encontrar a métrica e a lágrima/ Onde os caminhos se bifurcam/ Flanando na miragem de um jardim...”. E o refrão, em que ele consegue quebrar em três tempos uma pequena palavra como “terra”!? (sem que isso fique esquisito, aliás, pelo contrário: harmonizando lindamente palavra e som.)
 O primeiro bis é a própria “Ramilonga”, de lindo arranjo das cordas que veste a música num crescendo nesta que é a mais perfeita tradução da melancólica mas poética Porto Alegre, cidade cujos versos “nunca mais/nunca mais” se encaixam assustadoramente bem. O desfecho foi com a milonga “Mango”, talvez não a melhor escolha para um último número, haja vista a extensa lista de sucessos que fariam o público ir para casa embora levitando (“Loucos de cara”, “Joquim”, "Satolep"
, “Não é céu”), mas nada que desagradasse - pelo contrário, pois foi suficiente para, junto com o restante, fazer-nos ir para casa suspensos sim.
 Se ficou muita coisa de fora, é compreensível, pois é realmente difícil sintetizar cerca de 40 anos de música em um projeto complexo em formato e que envolve tantas mãos como este. Porém, certamente o que vimos manteve intacta a sublime obra deste gaúcho de Pelotas que tanto representa, com profundidade artística e até semiológica, a arte e o modo de ser do pampa. Vitor nos prova o quanto se é capaz de ser regional e universal ao mesmo tempo. Vitor nos mostra que existe outro Brasil que não só de Carnaval e Nordestes pasteurizados. Vitor nos evidencia que há uma beleza nessa combalida e vulgarizara imagem do ser gaúcho. Em Vitor nos identificamos e ele em nós.
 E sim, Vitor: não deixas nada a desejar diante do mestre Villa-Lobos, podes ter certeza.







por Daniel Rodrigues

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Edu Lobo e Antonio Carlos Jobim - “Edu & Tom/Tom & Edu” (1981)




“Edu sabe música, orquestra,
arranja, escreve, rege,
 canta e toca violão e piano.
O Edu é um compositor fabuloso, formidável.”
Tom Jobim, sobre Edu Lobo


“Mais do que a alegria e o prazer deste trabalho,
 fica o orgulho de dividir alguns momentos da música
com o Brasileiro Antonio das águas de março,
do matita, do porto das caixas, do amparo, das luísas,
da sinfonia de Brasília, das saudades do Brasil.
O maior compositor da música popular
de todos os países.”
Edu Lobo, sobre Tom Jobim



Há momentos em que uma obra-prima surge do acaso. Não foi assim com o sonho em comum tido por Salvador Dali e Luís Buñuel na mesma noite e que os motivou a filmar “Um Cão Andaluz”? Ou o processo intuitivo de Jackson Pollock, que formava seus quadros com tintas de pura aleatoriedade? Pois em música acasos como estes também acontecem. Em 1981, Edu Lobo, cantor, compositor e arranjador, um dos mais criativos e respeitados artistas da música brasileira pós-Bossa Nova, estava de saída de sua então gravadora, a PolyGram. Como era de praxe, haveria de realizar um disco com a participação de vários artistas, como uma despedida festiva pelos anos de casa. Em cumplicidade com o produtor Aloysio de Oliveira, o primeiro a ser convidado sem pestanejarem foi Tom Jobim.

Num clima de admiração mútua, auxiliados pela direção não menos afetuosa e sábia de Aloysio, chamaram Tom para tocar piano em “Pra dizer adeus”, faixa de um dos primeiros discos de Edu, logo após esse ser descoberto por Vinícius de Moraes, no início dos anos 60. Tom o fez, mas não sem lançar contracantos, cantar alguns versos e ainda adicionar-lhe acordes, os quais passariam a partir dali a integrar a partitura da canção. Ou seja: chegou para uma participação e mudou a música para sempre. Ao final da gravação, visto que todos estavam felizes com o resultado e com a egrégora formada no estúdio, Tom pergunta: “Era só isso?”. Aloysio propôs, então, de modo a não desapontar o maestro, que se gravasse outra de Edu, desta vez, uma parceria com aquele que representava o elo entre os dois: Vinicius. Edu, claro, gostou da ideia.

Mandaram ver, então, “Canção do Amanhecer”, esta, do primeiro álbum de Edu, de 1965, dando à precoce parceria daquele jovem músico de 22 anos com o tarimbado e mítico poetinha uma versão amadurecida. A presença de Vinicius, como ele gostava de fazer com os amigos, mesmo que imaterial nesta ocasião só vinha a reforçar a afinidade entre Edu e Tom. Como no primeiro take, o resultado foi incrível novamente: sintonia pura, descontração e musicalidade aflorando. Quando termina, Tom capciosamente solta de novo a pergunta: “Era só isso?”. Aloysio, que conhecia bem o parceiro desde os anos 50 – época em que já compunham juntos clássicos como “Dindi” e “Inútil Paisagem” –, entendeu o recado e ligou para o executivo da gravadora. Estava claro que o “canto do cisne” de Edu Lobo na PolyGram não teria vários músicos convidados, mas apenas um: Antonio Carlos Jobim. O maior deles.

Com trabalhos solo recentemente lançados, ambos tinham poucas novidades em suas pautas. Uma das inéditas, entretanto, abre o lado A do LP: a graciosa “Ai quem me dera”, composição antiga de Tom em parceria com Marino Pinto até então guardada para uma ocasião especial. A ocasião surgiu. Sente-se o sabor dos primeiros temas da Bossa Nova, aquele mais carioca e gingado, com Tom e Edu cantando em uníssono com perfeição. É nítida a afinidade entre os dois. Outra de ânimo florescente é “Chovendo na Roseira”, composição instrumental de 1970 regravada por Elis Regina quatro anos depois com a participação de Tom e já com a letra lírico-ecológica do próprio autor. Aqui, esta valsa de cores tipicamente debussyanas (“Olha, que chuva boa, prazenteira/ Que vem molhar minha roseira/ Chuva boa, criadeira/ Que molha a terra, que enche o rio, que lava o céu/ Que traz o azul!”) recebe um tratamento harmônico de alto requinte. A voz de Edu se apropria de tal forma que parece um tema coescrito por ele.

Equilibrando as autorias – ora de um ora de outro com ou sem parceiros –, escolheram-se mais duas em que Tom assina letra e melodia. Uma delas é “Ângela”, das obras-primas do compositor. Tema da segunda fase da Bossa Nova presente no clássico disco “Matita Perê” (1973), a romântica e melancólica “Ângela” guarda traços da complexidade harmônica da música de Chopin. Ivan Lins, um dos ilustres aprendizes do “maestro soberano”, contou certa vez que esta é canção que ele gostaria de ter escrito – precisa dizer mais? A outra, igualmente lírica e impressionista, é “Luíza”, a segunda e última inédita do disco, das mais queridas do cancioneiro jobiniano e que abre o lado B do vinil. Composta recentemente por Tom para o tema de uma novela da Globo, de tão vigorosa, saiu neste álbum e ainda na trilha sonora da novela, ficando meses nos ouvidos dos brasileiros todos os dias sem que jamais tenha se desgastado. E que letra! “Rua/ Espada nua/ Boia no céu imensa e amarela/ Tão redonda a lua/ Como flutua/ Vem navegando o azul do firmamento/ E no silêncio lento/ Um trovador, cheio de estrelas/ Escuta agora a canção que eu fiz/ Pra te esquecer, Luiza...”.

Os parceiros de Tom e de Edu são de extrema importância no repertório afetivo escolhido pela dupla para este projeto quase acidental. É o caso de Chico Buarque. Assim como Vinicius, o autor de “Olhos nos Olhos” é outro que os liga musical e afetuosamente. Parceiro de Tom desde os anos 60, tivera a mão de Edu nos arranjos da trilha de sua peça/disco “Calabar/ChicoCanta”, em 1973. Mas, por incrível que pareça, toda a grande obra da parceria Chico-Edu, que hoje faz parte do inconsciente coletivo da música brasileira, veio somente depois de “Moto-contínuo”, esta, sim, a primeira dos dois, escrita naquele ano e lançada praticamente junto com a versão do álbum “Almanaque”, de Chico. Já na estreia da parceria, Chico se esmerava na letra, uma de suas melhores. Ao expressar em hipérboles a admiração intrínseca do homem pela figura feminina, lança, através de anáforas e epíforas (“Um homem pode...” e “se for por você”), versos da mais alta beleza poética: “Juntar o suco dos sonhos e encher um açude/ se for por você (...) Homem constrói sete usinas usando a energia/ que vem de você”. Ainda, Tom faz-se presente categoricamente, introduzindo neste samba cadenciado e denso ricos contracantos de seu piano e a voz em uníssono com Edu – com timbres muito parecidos, aliás.

Outros dois sambas melancólicos: “É Preciso Dizer Adeus”, de Tom e Vinicius (“É inútil fingir/ Não te quero enganar/ É preciso dizer adeus/ É melhor esquecer/ Sei que devo partir/ Só nos resta dizer adeus”), representando a reverência à parceria gênese de toda a geração da qual Edu pertence; e “Canto Triste”, mais uma dele com Vinicius, esta imortalizada, assim como “Chovendo...”, por Elis (“E nada existe mais em minha vida/ Como um carinho teu/ Como um silêncio teu/ Lembro um sorriso teu/ Tão triste”), fechando o disco de forma altamente melodiosa: só ao violão e a voz de seu autor.

Não sem antes, entretanto, registrarem a talvez melhor do disco: “Vento Bravo”. Faixa do obscuro e hoje cult “Missa Breve”, gravado por Edu em 1972, trata-se de uma composição feita com outro parceiro e amigo em comum com Tom: Paulo César Pinheiro. Em entrevista para o programa O Som do Vinil, do Canal Brasil, Edu comenta que não entendera bem porque Tom, que pedira para incluí-la no set-list, gostava tanto desta música. Parece, porém, evidente. A letra, com marcas da literatura regionalista – remetendo à prosa de Guimarães Rosa de “Sagarana” e a de Monteiro Lobato de “Urupês” –, confere estilisticamente com o que o próprio Pinheiro escrevera para Tom anos antes para a música "Matita Perê". As leis dos homens e da natureza, com emboscadas e perseguições, bem como a implacável ação do tempo, são marcas de ambas as obras. “Vento virador no clarão do mar/ Vem sem raça e cor, quem viver verá/ Vindo a viração vai se anunciar/ Na sua voragem, quem vai ficar/ Quando a palma verde se avermelhar/ É o vento bravo/ O vento bravo”, diz a letra, que narra a fuga de um escravo mata adentro. O refrão, melodicamente intrincado e encantador, ainda diz: “Como um sangue novo/ Como um grito no ar/ Correnteza de rio/ Que não vai se acalmar...”. Ao contrário da sinfônica peça de Tom, porém, traz uma melodia intensa baseada no som dos violeiros folclóricos do sertão. Remete ainda, no trítono do piano que lhe faz base, às trilhas de filmes e séries policiais norte-americanas dos anos 50/60, as quais Edu sempre soube adicionar à sua música com brilhantismo.

E como conjugar tanto talento, tanta sabedoria musical e sensibilidade artística e de tão vastos cancioneiros? Por incrível que pareça, nem sempre juntar isso resulta em boa coisa, pois se pode pecar para mais ou para menos. Em “Tom & Edu”, primeiro, a opção foi por uma estética limpa, enxuta. Nada de grandes bandas ou orquestra. Pretendeu-se, já que “só tinha de ser com você”, reproduzir o clima de admiração mútua. A ausência das cordas, que chegou a ser motivo de crítica à época do lançamento na “vira-latas” imprensa brasileira – que achava um desperdício dois regentes dispensarem a orquestração – é de um acerto categórico. Basicamente, ouve-se o piano de Tom e/ou de Edu, o violão de Paulo Jobim e Luiz Cláudio Ramos, o baixo dividido por Sérgio Barroso e Luiz Alves e apenas a bateria como percussão, tocada por Paulo Braga. Quando muito, o flugehorn impecável de Marcio Motarroyos, como em “Chovendo...” e “Vento...”. E, claro, o canto dos dois experientes artistas. A essência clássica de ambos, cujas musicalidades não à toa são parecidas, retraz naturalmente harmonias ao estilo de DebussyRavel, Bach e Villa-Lobos. Menos, para quem tem conteúdo, é sempre mais.

O segundo motivo de acerto do projeto é a presença de Aloysio como produtor. Parceiro dos dois de longa data, o ex-dono do selo mítico selo Elenco (pelo qual gravara e lançara inúmeros artistas fundamentais à MPB nos anos 60, entre os quais o próprio Edu Lobo) tinha a mão apurada nas mesas de som, conhecia com profundidade harmonia e composição, compartilhava-lhes do mesmo carinho e, principalmente, tinha maturidade para saber influir apenas no que devia. Afinal, quem ousaria mandar em Edu Lobo e Tom Jobim dentro de um estúdio? Tendo recentemente coordenado dois projetos de Tom semelhantes àquele (os discos com Miúcha de 1977 e 1981), Aloysio soube dar a arquitetura sonora certa às faixas.

Já mais satisfeito ao final das 10 gravações que acabava de ajudar a deixar para a história, Tom enaltece o pupilo: “Eu vos saúdo em nome de Heitor Villa-Lobos, teu avô e meu pai”. Edu, por sua vez, contou em entrevista que tem a felicidade de ter dito em vida a Tom de que este era o maior nome da música brasileira de todos os tempos, palavras que, segundo ele, emocionaram Tom. “De todos os arquitetos da música da música que conheço, Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim é, sem dúvida, o de traço mais amplo e perfeito”, pontuou o seguidor inconteste do maestro. Tanta identificação, tanta confluência entre os artistas, que somente o próprio Aloysio de Oliveira, no alto de sua sapiência, para saber definir: “Edu e Tom, Tom e Edu. E até, se você quiser, Tu e Edom”. Definitivamente, não foi por acidente que eles se juntaram para esse encontro, pois eram almas irmãs.

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FAIXAS:
1. Ai Quem Me Dera (Tom Jobim/Marino Pinto) - 2:13
2. Prá Dizer Adeus (Edu Lobo/Torquato Neto) - 4:41
3. Chovendo Na Roseira (Tom) - 3:24
4. Moto-contínuo (Chico Buarque/Edu) - 3:30
5. Ângela (Tom) - 3:10
6. Luíza (Tom) - 2:59
7. Canção Do Amanhecer (Edu/Vinicius De Moraes) - 3:30
8. Vento Bravo (Edu/Paulo César Pinheiro) - 4:16
9. É Preciso Dizer Adeus (Tom/Vinicius) - 4:18
10. Canto Triste (Edu/Vinicius) - 3:44

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OUÇA O DISCO





quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Toquinho & Maria Creuza – Teatro Bourbon Country – Porto Alegre/RS (20/08/2015)



A dupla homenageando Vinícius de Moraes
foto: Dulce Helfer
Como venho ressaltado aqui no blog, a temporada de show está ótima. Mais um destes belos espetáculos, que vi ao lado de Leocádia Costa e de minha querida Martha Becker, ocorreu no Teatro Bourbon Country, quando o cantor, compositor e violonista Toquinho e a cantora Maria Creuza se reuniram para homenagear Vinícius de Moraes. A ocasião – comemorativa aos 15 anos do escritório jurídico TozziniFreire de Porto Alegre, que patrocinou o show – foi especial. Isso porque a dupla havia se apresentado junto apenas em um espetáculo, justo no histórico show de 1970 que os reuniu com Vinicius e que deu origem a um dos mais celebrados discos ao vivo da MPB, “Vinicius de Moraes en La Fusa”, gravado em Buenos Aires. Depois, nunca mais pisaram num palco juntos.
Porém, felizmente, ambos estão ativos para poderem repetir o feito. O show, na verdade, não se restringia apenas ao repertório de Vinicius de Moraes, pois é mesmo comandado por Toquinho, este virtuose do seu instrumento que, como João Bosco e seu mestre Baden Powell, aprendeu não apenas a tocar mas também a cantar e, principalmente, compor (alinhando-se a uma seleta estirpe de compositores que vai de Liszt e Rachmaninoff a Jimi Hendrix e Louis Armstrong). Assim, “Toco” – como é carinhosamente chamado por Maria Creuza –, teve a “sorte”, segundo o próprio, de cocriar com outros grandes mestres da música brasileira, como Chico BuarquePaulo César PinheiroJorge Ben e o próprio Baden, autores que também aparecem no set-list.
 Maria Creuza, ainda com seu belo timbre mas de voz já um pouco cansada, faz boas participações no meio e no final. Foi ela quem comandou clássicos como “Você abusou”, “Se Todos no Mundo Fossem Iguais a Você” e “Eu Sei que Vou te Amar”, este, seu melhor momento. Juntos, cantaram outras pérolas: “A Felicidade”, “Tomara” e “Samba em Prelúdio”, de Baden (que promove na segunda parte um lindo contracanto com as vozes de ambos), autor este do qual Toquinho ainda tocou uma impressionante versão de “Berimbau”, do memorável "Os Afro-Sambas" (1966), em que o violão, de tão bem tocado, parecia realmente soar como o típico instrumento afro.
Toquinho, um mestre com seu violão
foto: Dulce Helfer
De resto, o show é todo de Toquinho. Simpático e conversador, ele contou histórias e comentou praticamente todos os números, fosse antes ou depois. Afinal, histórias dele, dos tempos de bossa nova e, principalmente, do “vivido” amigo Vinicius, não faltam. Uma destas foi a que deu origem a um de seus maiores sucessos, “Tarde em Itapuã”. Ele, na época adolescente, vira o poeta escrevê-la em sua casa em Salvador e se encantara com os versos. Só que a mesma estava prometida para outro gênio da música brasileira musicar: Dorival Caymmi. No entanto, Toquinho, ousado, roubou o papel e aproveito que voltava uns dias para São Paulo para criar a melodia. Na volta a Bahia, encontrou Vinicius desesperado atrás do seu escrito e, para aplacar sua fúria quando soube que tal havia sido surrupiado, Toquinho tocou-a ao violão para o mestre. Meia hora depois, mais calmo, Vinicius aceitou não repassá-la a Caymmi e assim nasceu um dos maiores clássicos da MPB.
 O show teve ainda momentos de bastante emoção, como nas interpretações de “A Casa” e “O Pum”, do infantil "A Arca de Noé", último projeto de Vinicius com Toquinho antes de morrer, em 1980, obra que permeia a infância de muita gente que estava ali – a começar pela minha e de Leocádia, que, inclusive, já escreveu sobre sua ligação com “A Arca...” aqui no blog. Na mesma linha, as tocantes “O Caderno” (preferida do próprio Toquinho, dele com Mutinho) e “Aquarela”, com sua letra lúdica e realista (“Nessa estrada não nos cabe conhecer ou ver o que virá/ O fim dela ninguém sabe bem ao certo onde vai dar/ Vamos todos numa linda passarela/ De uma aquarela que um dia enfim/ Descolorirá.”), foram de levar às lágrimas. Como ele mesmo disse, o desafio de fazer música para os pequenos é se despir das complexidades harmônicas do adulto e se comunicar com as crianças sem subestimá-las.
 No seu tributo ao “poetínha” couberam ainda “Samba pra Vinicius” (“Poeta, poetinha vagabundo/ Quem dera todo mundo fosse assim feito você/ Que a vida não gosta de esperar/ A vida é pra valer/ A vida é pra levar/ Vinícius, velho, sarava”), dele e de Chico, “Chega de Saudade”, marco inicial da bossa nova em que deram vivas a João Gilberto, e, claro, as tão famosas parcerias com Vinicius: “Cotidianas n° 2”, "Como Dizia o Poeta” e a atualíssima “A Tonga da Mironga do Kabuletê”: “Você que lê e não sabe/ Você que reza e não crê/ Você que entra e não cabe/ Você vai ter que viver...”. Nem parece ter sido escrita nos anos 70... Pra terminar, “Regra três”, bis que fechou a noite.
 É muito bonito ver na ativa um verdadeiro representante de um período tão fértil da música brasileira, um cara que faz com propriedade a ligação entre os compositores dos anos 50 (Tom Jobim, Antonio Maria, Dolores Duran, Carlos Lyra, entre outros) com o período pós-bossa nova dos anos 60 e 70 (Chico, Baden, Elis Regina, festivais, tropicalistas) e, ainda assim, resgata a tradição dos violeiros e do choro, um dos estilos seminais do samba moderno. E mais digno ainda assistir eles homenageando Vinicius de Moraes, que revelou Maria Creuza e que, com Toquinho, principalmente, escreveu nada menos do que cerca de 130 canções, hoje eternizadas geração após geração. Toquinho teve sorte? Sim, mas, muita competência. Parafraseando o poeta: que nos desculpem os inaptos, mas talento é fundamental. E Toquinho tem de sobra.