Eles não são franceses, mas manjam dos “mon amour”. A sonoridade do idioma francês enseja à musicalidade. E que músico que não gostaria de cantar uma canção em francês? Há os que se aventuraram com muito sucesso, a se ver por Cássia Eller com "Non, je ne regrette rien", Grace Jones com “Libertango” ou Caetano Veloso em "Dans mon Ile".
No entanto, cantar em francês é uma coisa. Agora, compor não sendo da terra de Piaf é, aí sim, tarefa para poucos.
Poucos e bons, é possível dizer. Em época de Olimpíadas de Paris, fizemos aqui uma pequena lista de músicos não-franceses e suas composições, originais, na língua de Hugo. E é cada preciosidade, que Aznavour diria, com toda a certeza: “Oh là là”!, elogio que até quem não é da França compreende.
Semelhante ao que fizemos há 3 anos quando das Olimpíadas de Tóquio, pinçamos só coisas interessantes, desde roqueiros a jazzistas, de músicos populares a eletrônicos. Só coisa boa, só "crème de la crème". Confiram aí!
PS: Pensaram que a gente ia puxar a Gretchen cantando "Melô Do Piripipi", hein!?
“La Renaissance Africaine”– Gilberto Gil
Certa vez, nos anos 90, assistia na TV5, canal de televisão estatal francês, a uma entrevista do craque Raí, cidadão francês e ídolo por lá. Até que, de repente, quem o apresentador chama para entrar no estúdio? Gilberto Gil. Com um francês em dia, o mestre teria uma lista só sua de composições francófonas. Uma delas, destacamos aqui, talvez a mais bela de todas, originalmente de 2008 e gravada de maneira gigante em "Concerto De Cordas & Máquinas De Ritmo". Numa Olimpíadas em que grande parte dos atletas da casa são descendentes diretos de africanos, esta música se torna cada vez mais pertinente e poética.
“Dis-mois Comment”– Chico Buarque
O cara tem casa em Paris, onde, aliás, passou o seu recente aniversário de 80 anos. É outro da MPB que domina o francês talvez tanto quanto o português pelo qual é multipremiado como escritor. Tanto que é capaz de escrever canções como “Joana Francesa”, feita para a voz de Jeanne Moreau para o filme homônimo de 1973 na qual brinca com a sonoridade de um idioma e outro. Mas esta aqui, em especial, é integralmente em francês. Trata-se de ser uma das 14 joias da parceria Chico Buarque e Tom Jobim, que nada mais é do que "Eu te Amo", que o autor gravou com a cantora Cecília Leite em 2005.
“Le Petit Chevalier”– Nico
Nico iniciou a carreira musical muito bem amparada por nomes como Bob Dylan, Jackson Browne, Lou Reed e John Cale. Porém, embora o inquestionável talento dessa turma, ela ficava sempre muito dependente e, pior, subjugada a homens e relegada apenas a uma intérprete. Foi então que, em 1971, ela mesma compôs faixa a faixa aquele que é seu melhor álbum: “Desertshore”, no qual consta esta bela canção de ninar cantada em francês pela voz do pequeno francesinho Ari Boulogne, filho da musicista e modelo com o ator Alain Delon, à época com 9 anos. Uma preciosidade, ou melhor, "un bijou".
“Orléans”– David Crosby
Neil Young é amado pelos fãs de rock, mas da turma do folk rock da Costa Oeste David Crosby talvez seja o mais lendário deles. Após encabeçar projetos célebres como a The Byrds, a Crosby, Stills, Nash & Young, ele lança, em 1971, seu primeiro disco solo. Afiado melodista assim como seus parceiros de estrada, ele traz no seu maravilhoso “If I Could Only Remember My Name” a linda “Orléans”. Tá certo: trata-se de um tema tradicional do folclore norte-americano, mas a roupagem dada pelo arranjo de Crosby justifica o crédito.
“Aéro Dynamik” – Kraftwerk
Por meio e através das máquinas, eles criaram sons universais. Nada mais natural, então, de criarem músicas não apenas no alemão, seu idioma original, mas em outros diversos como inglês, espanhol, português e até japonês. Para a língua da França, no entanto, a Kraftwerk guardou um trabalho especialmente dedicado, que é o belíssimo disco “Tour de France Soundtracks”, de 2003. Todas as músicas não instrumentais receberam letra em francês, como esta, que fala sobre um dos elementos essenciais para o ciclismo e outros esportes de velocidade: a aerodinâmica.
“La Pli Tombé” – Marku Ribas
Marku Ribas é daqueles craques da música brasileira que o Brasil não conhece. Talvez até por isso, ele seja mais bem entendido por quem fala francês. Tendo morado em Paris no final dos anos 60 (atuou neste período em filmes de Robert Bresson e Jean-Marc Tibeau, no qual interpreta o líder comunista brasileiro Luiz Carlos Prestes, inclusive), este mineiro incontrolável foi parar na Martinica, onde oficialmente fala-se francês, mas não-oficialmente o crioulo. Numa mistura dessas duas fontes, Marku escreveu algumas de suas canções, como esta, baseada em um folclore tradicional martinicano, que grava em seu excepcional disco “Marku”, de 1976.
“Bonjour, Monsieur Gendarme” – Chico César
Outro talentoso músico brasileiro também se aventurou pelo bom “français”. Chico César, em seu álbum “Vestido de Amor”, de 2022, gravado em Paris e que tem, além da produção do franco-belga Jean Lamoot, toques de músicos africanos, brasileiros e franceses. Primeira composição feita por Chico em francês, foi uma das iscas para atrair os ouvintes de lá para a edição estendida do álbum. Espertinho esse Chico César.
“Valse Au Beurre Blanc” – Ed Motta
O ouvido de Ed Motta capta e absorve tudo que é som do mundo. Da tão admirável Paris, não seria diferente. No seu “Dwitza”, de 2009, considerado por muitos seu melhor trabalho, ele manda ver nesta genial “chanson” – e com uma pronúncia daquelas de quem sabe o que está cantando. Mais do que isso: convida para os vocais um coro de barítono e sopranos e ao estilo Bel Canto elegantérrimo. Ah, detalhe: é ele, Ed, quem toca todos os instrumentos. “Va te faire foutre!”, é só o que posso dizer.
“Le Mali Chez la Carte Invisible” – Tiganá Santana
O primeiro álbum do compositor, cantor e instrumentista baiano Tiganá Santana, "Maçalê", lançado em 2010, é nada mais, nada menos, do que o primeiro álbum na história fonográfica do Brasil em que um autor apresenta canções próprias em línguas africanas. São línguas do tronco linguístico bantu, mas onde também entra bela canção em francês inspirada em reconstruções idiomáticas de várias pessoas que habitam o solo do continente africano.
“Purquá Mecê” – Os Mulheres Negras
A música saiu na gozação com o idioma francês, daquelas típicas da dupla Maurício Pereira e André Abujamra, principalmente, que faria várias dessas na sua banda Karnak anos depois com o russo, o espanhol, o esperanto e por aí vai. Além de ser um barato, a letra, que não diz coisa com coisa, explora a sonoridade do francês e tenta (sim, tenta) traduzir para o português. Clássico d'Os Mulheres Negras.
Acima, capa do vinil original de 1983; a outra, capa da versão em CD
"O médico de câmara da imperatriz Teresa – Frederico Knieps –
resolveu que seu filho também fosse médico,
mas o rapaz fazendo relações com a equilibrista Agnes,
com ela se casou, fundando a dinastia de circo Knieps
de que tanto se tem ocupado a imprensa."
Versos de abertura do poema "O Grande Circo Místico", de Jorge de Lima, 1938
"Uma enciclopédia da música brasileira."
Antônio Carlos Miguel, jornalista e escritor
Não é incomum ouvir de admiradores da música brasileira que “O Grande Circo Místico” é o melhor disco já produzido no Brasil. Mesmo que nessa seara naturalmente venha à mente obras como “Elis & Tom”, “Acabou Chorare” ou “Getz-Gilberto”, não é descabida a consideração atribuída a esta obra. Afinal, em que projeto se reuniu para cantar boa parte do primeiro escalão da MPB, leia-se Gilberto Gil, Tim Maia, Gal Costa, Milton Nascimento, Simone, Jane Duboc e Zizi Possi? E quando que esse time de estrelas estaria junto para interpretar temas de uma peça infanto-juvenil feita para o curitibano Teatro Ballet Guaíra sobre um poema clássico da língua portuguesa? Mais: quando contariam com o reforço de músicos do calibre de Oberdan Magalhães, Jamil Joanes, Cristóvão Bastos, Marcio Montarroyos, Antonio Adolfo, Leo Gandelman, Hélio Delmiro, entre outros? E, mais ainda: em que ocasião tudo isso gravitou em torno de um repertório inédito e tão qualificado, que é o sumo de uma então recente parceria de dois gênios da música do século XX?
Pois este disco adorado pelos fãs e cheio de significados chega a 40 anos de lançamento no mesmo ano em que um de seus artífices, Edu Lobo, completa o dobro de idade. Na linha do que foi produzido nos anos 70 e 80 para o público infantil, ”O Grande...” traz o espírito de especiais clássicos como “Plunct Plact Zum”, “A Arca de Noé” e “Pirilimpimpim”, a começar pelo primor musical e estético que não subestima o bom gosto da criança. Porém, neste caso, tal atmosfera vem encapsulada por um diferencial: o encontro de Edu com seu melhor parceiro: Chico Buarque. A dupla cria 11 temas novinhos em folha com o mais alto nível não apenas para aquilo que pode ser classificado como “música infanto-juvenil”, mas em toda a história da música popular brasileira.
Se hoje esta dobradinha dourada se tornou uma das mais celebradas da MPB, muito se deve a ”O Grande...”. Até então, os caminhos de Edu e Chico haviam se cruzado apenas duas vezes: na orquestração que Edu fizera para a peça “Calabar”, de Chico e Ruy Guerra, em 1973, e numa única e frutífera composição, a música “Moto-Contínuo”, que o segundo gravara em seu disco “Almanaque”, de 1981. Pronto: estava dada a magia! Edu, que já havia produzido a excelente trilha para o balé Guaíra “Jogos de Dança”, sem letras e usando apenas as vozes dentro do arranjo instrumental, foi novamente convidado pelo cenógrafo, dramaturgo e figurinista Naum para um novo projeto da companhia. Porém, tratava-se de uma adaptação do singular poema surrealista de mesmo nome de 1938, de autoria do poeta modernista Jorge de Lima, composto de uma estrofe e 45 versos. O texto conta a trajetória de Knieps, que abandona a corte e a medicina, apaixonando-se pela equilibrista Agnes, começando a dinastia do Grande Circo Místico. Algo que Edu, desde os anos 60 envolvido com teatro, normalmente delegava a parceiros, como a Gianfrancesco Guarnieri em “Arena Canta Zumbi” (1965) e a Vinícius de Moraes em “Deus lhe Pague” (1975).
Edu e Chico no início dos anos 80: encontro que não os separaria jamais
Para aquela nova empreitada, a bola da vez era o mais recente parceiro. Afeito ao texto para palco, haja vista que já havia escrito, além de “Calabar”, ”Roda Viva”, em 1968, Chico também era mestre nas adaptações para teatro. Escreveu sozinho todas as composições sobre o poema de João Cabral de Melo Neto para “Morte e Vida Severina”, em 1966, adaptou, com Paulo Pontes, “Medeia” de Eurípides em “Gota D’Água” para a voz de Bibi Ferreira, em 1975, e trouxe Bertold Brecht e John Gay para a realidade brasileira noutro musical, “Ópera do Malandro”, de 1978. Porém, mais do que todos estes exemplos – que já seriam suficientes para justificar um convite –, Chico sabia lidar com o universo infantil. Além do livro “Chapeuzinho Amarelo”, que lançara em 1979, o pai de Sílvia, Luísa e Helena já tinha realizado, dois anos antes, a deliciosa peça musical “Os Saltimbancos”, inspirada no conto "Os Músicos de Bremen", dos irmãos Grimm, junto a Sergio Bardotti e Luis Bacalov, amigos italianos dos tempos de autoexílio na terra de Michelangelo. Ali se revelava mais uma faceta do Chico plural: afora o malandro, o militante político, o cronista, o amante, a voz feminina e vários outros, via-se agora o autor para os pequenos. Edu, que enfileirara parceiros da categoria de Joyce, Cacaso, Dori Caymmi, Ferreira Gullar, Paulo César Pinheiro e outros, sabia ter achado a pessoa ideal para letrar suas músicas.
O resultado é um desbunde capaz de encantar crianças e adultos há quatro décadas. Começando pela instrumental “Abertura do Circo”, com fantástico arranjo escrito por Edu e orquestração do maestro Chiquinho de Moraes, um tema circense tão marcante, que dá a impressão de se tratar daquelas melodias folclóricas antigas e de autor desconhecido. Mas tem autor, sim, e é Edu Lobo. Na sequência, uma pausa na rotação do planeta, pois é Milton Nascimento cantando a balada “Beatriz”. “Olha/ Será que ela é moça/ Será que ela é triste/ Será que é o contrário/ Será que é pintura/ O rosto da atriz...” Considerada por oito entre 10 uma das maiores canções da música brasileira de todos os tempos, este clássico não pode ser classificado de outra coisa, que não de perfeito. Em melodia, em arranjo, em letra e, principalmente, na interpretação de Milton. A voz do gênio de Três Pontas é de uma afinação tão precisa e atinge registros tão improváveis, que fica impossível imaginar outro ser capaz de cantá-la. Além, claro, da emoção transcendente que Milton transmite. Uma obra-prima, que apenas Zizi, numa permissão para o Songbook de Chico, ousou regravar. Também, pudera.
Seguindo adiante, Jane Duboc entra no picadeiro e usa de toda sua brandura e sentimento na linda “Valsa dos Clowns”, cuja letra fala da famosa dicotomia da tristeza do palhaço, escondida por detrás da figura sempre engraçada: “Em toda canção/ O palhaço é um charlatão/ Esparrama tanta gargalhada da boca pra fora/ Dizem que seu coração pintado/ Toda tarde de domingo chora”. Cantada em coro, na sequência, "Opereta do Casamento”, como uma breve e alegre história popularesca, antecede outra história: a de Lily Brown. Personagem criada no poema de Jorge de Lima, mas cuja saga é totalmente inventada pela mente de Chico. Ele dá vida à “deslocadora” Lily Brown, a que “tinha um santo tatuado no ventre”, atribuindo-lhe contornos de uma moça sonhadora, que acredita ter encontrado o “homem de seus sonhos”. Ao fim, entretanto, não concordando com sua vida mambembe, ele a abandona. Num estonteante jazz bluesy, a melodia e o primoroso arranjo de Edu acompanham os versos de Chico, que deita e rola na poética. Por exemplo: o raro uso de rimas “preciosas”, que combina a fonética de palavras de idiomas distintos, é largamente usada. Caso de “cheese” com “feliz”, “dancing” com “romance” e “azul” com “flou”. Outro elemento-chave para a canção é, novamente, a adequação da interpretação, que não poderia ser mais exata, pois toda a sensualidade que a música exige está devidamente contida na voz de Gal e seu timbre de cristal.
Outra linda balada: a sentimental “Meu Namorado”, interpretada por Simone, é das mais perfeitas do repertório. Os teclados de Cristóvão Bastos comandam o toque da arpa, da gaita e das cordas, fazendo cama para os versos potentes e líricos emitidos pela voz da baiana: “Meu namorado/ Minha morada é onde for morar você”. De arranjo bem mais enxuto, mas não menos brilhante, "Sobre Todas as Coisas” tem no violão de Gil a única do álbum apenas com um instrumento acompanhando o vocal. De fato, não precisa mais, pois a genialidade do autor de “Aquele Abraço” é tão inata, que desta rara interpretação de Gil a uma canção de Chico e Edu sai o tema mais contemplativo e filosófico do disco. Gil dá ares de um spiritual à canção, tal uma canção-prece dos trabalhadores negros escravizados dos Estados Unidos, clamando pelo entendimento da existência e de um amor não correspondido. “Ao Nosso Senhor/ Pergunte se Ele produziu nas trevas o esplendor/ Se tudo foi criado - o macho, a fêmea, o bicho, a flor/ Criado pra adorar o Criador”.Caetano Veloso bem captou tamanha profusão de significados ao mencionar na sua música “Pra Ninguém”, de 1997, em que enumera músicas de autores da MPB cantados por outros autores/cantores da música brasileira, justamente esta entre tantas que poderia escolher do vasto repertório de versões de Gil a outros compositores.
Contracapa do álbum com desenhos de Naum, que reproduzem a ideia da cenografia da pela
Congele-se o firmamento mais uma vez, pois é hora de Tim Maia soltar seu vozeirão para a incrível "A Bela e a Fera”. Jazz-soul surpreendente de Edu – ainda mais após um número tão melancólico como o anterior – com seu arrojado arranjo de metais a la Quincy Jones, a bateria suingada de Paulinho Braga e o baixo vivo e inconfundível do “Black Rio” Jamil Joanes. Toda esta qualidade a serviço do “Síndico” em uma de suas melhores performances. Tim escalando as notas para cantar versos como: “Ouve a declaração, ó bela/ De um sonhador titã/ Um que da nó em paralela/ E almoça rolimã” é simplesmente histórico! Chico, também em uma de suas melhores letras, repete a dose em uma nova rima “preciosa” ainda mais improvável: “rolimã” com “Superman”! Musicando a saga do bruto boxeur Rudolf, da história original, Chico recria o personagem sob a perspectiva da famosa fábula do século 16, produzindo versos de admirável beleza como: “Não brilharia a estrela, ó bela/ Sem noite por detrás/ Sua beleza de gazela/ Sobre o meu corpo é mais/ Uma centelha num graveto/ Queima canaviais/ Queima canaviais/ Quase que eu fiz um soneto”. Para terminar arrebatando e elevando a emoção, Tim promove um dos lances mais sublimes da música brasileira, aumentando cirurgicamente o registro vocal para dizer: “Abre o teu coração/ Ou eu arrombo a janela”. De arrombar o coração, sim. O de quem escuta!
Quebrando mais uma vez a sequência rítmica, aquela que certamente é a mais infantil de todo o repertório. Se “Opereta...” contava com coro adulto, "Ciranda da Bailarina” traz agora vozes de crianças sobre uma lúdica ciranda de tons medievais, ainda mais pela sonoridade marcante de cravo e flauta doce forjados no sintetizador. E quem são as crianças? Os filhos de Chico e Edu, mais a pequena Bebel Gilberto (desde sempre envolvida com a música) e outros dois meninos. A sessão com a criançada é tal como recentemente a turma experimentava na trilha sonora do filme “Os Saltimbancos Trapalhões”, que Chico versara de sua peça para o famoso quarteto humorístico um ano antes. E que versos! Semelhantemente aos “Saltimbancos”, a letra de “Ciranda...” era, ironicamente, a mais política de todo o disco. Mesmo se tratando da aparentemente mais ingênua faixa, “Ciranda...” foi a única afetada pela ainda ativa censura. A palavra “pentelho”, ridiculamente, foi cortada na execução, provocando um hiato bizarro na audição. Se nos Anos de Chumbo uma música como esta seria sumariamente vetada pelo simples fato do autor se chamar Chico Buarque, ao menos os ventos da Abertura Política não a subtraíram totalmente. E ainda bem que, anos depois, com a democracia conquistada e consolidada, foi possível regravá-la e reencená-la diversas vezes, incluindo as belas versõesde Adriana Partimpim, em 2009, e a do próprio Edu, em 2013.
Poster original do show no Teatro Guaíra, em Curitiba
Quase finalizando, Zizi vocaliza com brilhantismo o tema-título, o preferido do disco para o próprio Edu. Mas para finalizar mesmo, não havia de serem outros, que não os autores. Intercalando uníssonos e combinações vocais, "Na Carreira” é uma comovente marchinha circense de despedida, que deixa um sabor de pipoca e algodão-doce na boca ao final do espetáculo. Uma tradução poética da vida mambembe: “Hora de ir embora/ Quando o corpo quer ficar/ Toda alma de artista quer partir/ Arte de deixar algum lugar/ Quando não se tem pra onde ir”. A arte do palhaço presente em “Piruetas”, que Chico coescrevera para “Os Saltimbancos Trapalhões” (”Salta sobre a arquibancada/ E tomba de nariz/ Que a moçada/ Vai pedir bis”) empresta inspiração para “Na Carreira” quando esta diz: “Palmas pro artista confundir/ Pernas pro artista tropeçar”. Pode-se ler, aliás, como uma metáfora de artistas brasileiros como eles, saídos da Ditadura e vislumbrando um país livre e democrático com a então nascente campanha das Diretas Já!. Artistas estes que, igual ao que as duas músicas tratam, não desistem de apresentar sua arte, independentemente das condições. “O espetáculo não pode parar”, diz uma, e a outra: “Ir deixando a pele em cada palco/ E não olhar pra trás/ E nem jamais/ Jamais dizer/ Adeus”.
Desde então, Chico e Edu nunca mais se distanciaram. Vieram, na esteira de “O Grande...”, outras três trilhas para teatro da dupla: "O Corsário do Rei" (1985), "Contos da Meia-Lua" (1988) – também para o Guaíra – e "Cambaio" (2001), além da coletânea "Álbum de Teatro", de 1997. Desses, mais joias do cancioneiro nacional saíram, a exemplo de "Choro Bandido", "A Permuta dos Santos", "Bancarrota Blues" e "Ode aos Ratos". Mas nada se compara ao que realizaram naquele efetivo encontro no início dos anos 80 tanto na excelência das músicas quanto na coesão da obra, lindamente ilustrada por Naum. Revisitado várias vezes, seja nos palcos e até no cinema, "O Grande..." guarda qualidades incontestes, que o credenciam a ser considerado um marco na música brasileira. Quiçá, o maior. Se o próprio Edu a tem como uma das suas cinco melhores obras da assertiva, longa e nobre carreira, um indício bastante forte há nisso. O exigente Ed Motta, músico e colecionador, acha o mesmo. O tempo, sem dúvidas, ajudou a formar tal reputação. Fato é que, há 40 anos, esta trilha vem sendo notícia nos principais meios e consta não raro em listas de melhores discos da música no Brasil. “O Grande...” consolidou-se neste patamar e no imaginário do público. Um feito tão maravilhoso "de que tanto se tem ocupado a imprensa" há quatro décadas.
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clipe de"O Circo Místico", comZizi Possi, no programa Bar Academia (1983)
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FAIXAS:
1. "Abertura do Circo (Instrumental)" (Edu Lobo) - 2:30
2. "Beatriz” (Milton Nascimento) - 5:01
3. "Valsa dos Clowns” (Jane Duboc) - 3:39
4. "Opereta do Casamento” (Coro) - 3:55
5. "A História de Lily Braun” (Gal Costa) - 3:51
6. "Meu Namorado” (Simone) - 2:44
7. "Sobre Todas as Coisas” (Gilberto Gil) - 5:00
8. "A Bela e a Fera” (Tim Maia) - 2:55
9. "Ciranda da Bailarina” (Coro Infantil) - 2:22
10. "O Circo Místico” (Zizi Possi) - 3:41
11. "Na Carreira” (Chico Buarque & Edu Lobo) - 4:06
Faixas-bônus da versão em CD:
"Oremus - Coro (Instrumental)" (Edu Lobo) - 1:57
"O Tatuador (Instrumental)" (Edu Lobo) - 3:26
Todas as composições de autoria de Edu Lobo e Chico Buarque, exceto indicadas
O encanto e a graça de Bethânia no Teatro do SESI foto: Amanda Costa
Não sou um
expectador de shows tão rodado, bem como sei que já perdi muitos
deles que nunca mais assistirei, pois os artistas já se foram para
outro plano. Mas sei também que já vi muita coisa boa pelos palcos
da vida, e dificilmente algo se comparará ao megaespetáculo de Paul McCartney no Estádio Beira-Rio ou, noutra ponta, ao “concerto
caseiro” que Paulinho da Viola proporcionou aos porto-alegrenses
num belo domingo matinal na Redenção. Mas o que estou falando não
tem nada a ver com isso. Tem a ver com a talvez maior cantora, maior
performer, maior intérprete viva deste esférico e redundante
planeta: Maria Bethânia. E em se tratando de Bethânia não
há comparação.
O espetáculo
“Abraçar e Agradecer”, apresentado por ela no Teatro
do Sesi, em Porto Alegre, comemorando irrepreensíveis 50 anos de
sua carreira, deixa muito claro todas essas acepções: vê-se uma
artista plena no palco, ciente e aproveitadora de sua trajetória,
carregada pelo alto profissionalismo e por suas próprias
individualidade, apaixonada pelo o que faz. Como muitos gostam de
dizer – mas que a ela se atribui de fato –: uma diva. Foram cerca
de 1 hora e 45 minutos que percorrem vários momentos de sua
trajetória como uma das mais importantes artistas da história da
música brasileira.
Sob luzes intensas
de um cenário magnificamente montado por Bia Lessa apenas por estas,
Bethânia entra no palco. E é ai que tudo se ilumina de fato. A
abertura é tão grandiosa quanto autorreferencial: “Eterno em
Mim”, de autoria do mano Caetano Veloso, compositor preferido dela
(junto com Chico Buarque) e de maior presença no repertório do
show, com seis canções ao total. Tão lindo e completo que minha
sensação era de que, logo que terminou o primeiro número, a
apresentação poderia terminar ali. Exagero meu, pois tinha muito
mais. Mais uma, “Dona do Dom” (de Chico César, de quem também
Bethânia cantara outra marcante do show, o fado milongado
“Xavante”), e vem um belíssimo poema da própria Bethânia,
misto de agradecimento ao público, aos orixás, à natureza, aos
amigos, à vida e a si mesma. Tão bonito que não deixa em nada a
dever aos outros textos que, como de costume, ela entremeia às
canções nos seus shows. Neste espetáculo, obviamente, não poderia
ser diferente: tem Clarice Lispector (com três passagens), Waly Salomão, Carmen Oliveira e Fernando Pessoa.
Mas voltando às
músicas, o repertório celebra sua história na música brasileira,
mas, exceto o hit “Gostoso Demais” (Dominguinhos e Nando Cordel),
evita obviedades como “Fera Ferida”, “Reconvexo”, “Álibi”
ou “Um Índio”. Mas clássicos há, e vários deles. Tanto que
Bethânia arrasa numa versão vibrante e comovente de “Gita”, de Raul Seixas e Paulo Coelho. Todas as músicas se emendam umas nas
outras, o que faz com que intensifique ainda mais a montanha-russa
emocional que ela impõe ao público, pois além da carga gerada
pelas próprias músicas, ainda não dá tempo de respirar entre
estas. No caso, “Gita” se liga com outra de Caê: a
lírico-romântica “A Tua Presença Morena”, joia que o genial
irmão compôs-lhe para o álbum “A Tua Presença”, de 1971,
ainda no exílio em Londres. De arrebatar. Aí vem outra dele para
ela: “Nossos Momentos” (“Quem pode compartilhar dos meus
sentimentos/ Na hora que o refletor bater/ Momentos de luz e de nós/
Momentos de voz e de sonho/ Momentos de amor que nos fazem felizes/ E
às vezes nos fazem chorar”), num diálogo tanto com o que veio
antes quanto com o trecho de Lispector lido na sequência, que diz:
“Antes de julgar a minha vida, calce os meus sapatos, percorra o
caminho que percorri, viva as minhas tristezas, minhas dúvidas, viva
as minhas alegrias. Tropece aonde eu tropecei, e levante-se assim
como eu fiz.”
Gonzaguinha, outro
importante parceiro, amigo e compositor da carreira de Bethânia,
retoma a seção musical metalinguisticamente: “Começaria Tudo
Outra Vez”. No palco de LED em que Bethânia pisa se projetam de
diversas formas: flores, estrelas, letras, desenhos, geométricos. E
as luzes sobre ela ajudam a marcar a incrível performance de
uma artista que dança e interpreta com alegria e jovialidade, apesar
dos cabelos tomados de branco e os quase 70 anos. “Alegria”,
aliás, é o que ela traz em seguida no lindo samba de Arnaldo Antunes, que ganha batuques de axé. Logo após, “Voz de Mágoa”
(Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro), uma tocante interpretação do
clássico bossa-novista “Dindi” e uma ainda mais emocionante
execução de “Você Não Sabe”, de Roberto e Erasmo, compositores “incultos” para a dita intelligentsia que
Bethânia fora uma das primeiras a demonstrar a beleza de suas
construções melódicas. Quando se pensa que vai se respirar um
pouco, ela vem com “Tatuagem”, de Chico e Ruy Guerra, e aí os
olhos marejam inevitavelmente.
Depois de novo texto
de Lispector, Chico retorna noutra marcante na carreira de Bethânia:
a apoteótica “Rosa dos Ventos”, título do memorável show da
cantora de 1971 quando ela consolida este formato de apresentação
altamente íntima e com composições de diversas vertentes. Um
pout-pourri com a ótima banda comandada por Jorge Helder
preenche o interlúdio, quando Bethânia sai para trocar de figurino
e voltar para o segundo ato. “Tudo de Novo“, mais uma de Caetano,
faz a montanha-russa, que havia estacionado por alguns minutos,
voltar com toda a velocidade.
As referências aos
orixás, principalmente Iansã e Oxum, e aos elementos “água” e
“vento” aparecem do início ao fim, e bastantemente nesta segunda
parte. “Doce”, de Roque Ferreira (“A lagoa escura que a
Bahia tem/ Que a areia branca rodeou/ São as águas de Oxum que
Caymmi batizou...”), ”Oração de Mãe Menininha”, de Caymmi (“E a Oxum mais bonita, hein? Tá no Gantois...”),
“Eu e Água”, outra de Caetano (“O mar total e eu dentro do
eterno ventre/ E a voz de meu pai/ voz de muitas águas”)
dialogam entre si e mostram claramente isso. A música que dá título
ao show, de Gerônimo e Vevé Calazans (porém na ordem inversa:
“Agradecer e Abraçar”), mantém a mesma linha: “Abracei o
mar na lua cheia...”. Igualmente as três de Roque Ferreira que
vêm em sequência: “Vento de Lá” (“Foi o vento de lá, foi
de lá que chegou/ Foi o vento de Iansã dominador que dormia...”),
“Imbelezô Eu” (“Alecrim beira d'água/ Que me beijou
percebeu/ Alguma coisa em mim aconteceu/ A mão que me tocou imbelezô
eu...”) e a bela “Folia de Reis”.
Um samba antigo,
“Mãe Maria”, de Custódio Mesquita e David Nasser, precede outra
maravilhosa declamação de Bethânia – como talvez no Brasil ela seja a que melhor o saiba fazer –, agora com poesia do conterrâneo
Waly: “Cresci sob um teto sossegado, meu sonho era um pequenino
sonho meu. Na ciência dos cuidados fui treinado/ Agora, entre meu
ser e o ser alheio, a linha de fronteira se rompeu.”. Neste
momento, Bethânia, dona do repertório, faz um singular paralelo
entre a música rural (“Eu, a Viola e Deus”, “Criação”,
“Casa de Caboclo”, “Viver na Fazenda”) com a raiz indígena
brasileira (“Povos do Brasil”, o canto tupi “Maracanandé” e
a já citada “Xavante”) com o autorreconhecimento da voz (“Alguma
voz”, outra de PC Pinheiro e Dori, e “Motriz”, última de
Caetano no show), seleção de músicas cujo simbolismo, entremeada
pelo pungente e feminino texto “Candeeiro”, de Carmen Oliveira,
representa a sua própria existência como pessoa e cantora.
“Eu Te Desejo
Amor”, canção francesa de Charles Trenet e Léo Chauliac, de
1942, vertida para o português por Nelson Motta, arrebatou o
público, que a essas alturas já a aplaudia de pé. Ao final desta,
por sinal, dois minutos de aplausos diante de uma Bethânia
visivelmente emocionada que dizia: “Que plateia é essa?!”.
Mas o deslumbre não terminaria ali, pois, depois de ler um de seus
poetas preferidos, Pessoa, Bethânia inunda de emoção o teatro com
uma interpretação, esta em francês de fato, do clássico de Edith
Piaf “Non, Je ne Regrette Rien”, enquanto uma projeção no chão
de uma faixa de estrada parece cruzar-lhe o peito em alta velocidade.
“Silêncio”
fecha o show em versos que traduzem a despedida e a delicadeza
daquele momento tão especial, tanto para a artista quanto para o
público: “Silêncio, eu quero ouvir o que me diz a imensidão/
Saber se minha alma tem razão/ Quando acredita que essas coisas vão
durar”. A banda encerra ao som de outro marco da trajetória de
Bethânia: “Carcará”, de João do Vale. Sob um mar de aplausos
ela sai do palco, mas logo retorna para entoar dois sucessos: `Ӄ
o Amor”, de Zezé di Camargo e Luciano, que ela, em 1999, recolocou
num outro patamar interpretativo, e “O que é o que é”, o grande
sucesso de Gonzaguinha. É quando a plateia, já de pé e dançando,
entoou junto com ela os inesquecíveis versos: “Viver/ E não
ter a vergonha de ser feliz/ Cantar e cantar e cantar/ A beleza de
ser/ Um eterno aprendiz...”.
Pra mim, admirador
de sua obra e colecionador de vários de seus discos, a sensação
que saí foi, além do deslumbre, de que Bethânia, ainda por cima, é
ótima de estúdio. Pois a maior certeza que se tem é que ela é
inteiramente do palco. Como disse no início, dificilmente verei
apresentações melhores de algumas que já vi, pois estas estão
guardadas no coração do diletante. Mas como este show de Maria
Bethânia, a quem vi pela primeira vez, acho que nunca mais
presenciarei. Ao fim, as cortinas se cerram e não se vê mais
Bethânia, mas, como dizem os versos de Chico: “Sei que além
das cortinas/ São palcos azuis/ E infinitas cortinas/ Com palcos
atrás.” Bethânia está sempre lá, atrás das cortinas, além
das cortinhas. Ela é luz, ela é azul, ela é o palco.
Mais do que estar com a roupa sempre nova, aqui no Música da Cabeça a gente tá sempre com o repertório renovado. Confere só o nível da grife de hoje: Tim Maia, Nine Inch Nails, Metá Metá, Black Alien, Suicide, Caetano Veloso e outros. Ainda, um "Música de Fato" sobre os 75 anos da libertação de Auschwitz, um "Palavra, Lé" em homenagem a Chico César e um "Cabeça dos Outros" com os latinos da Perotá Chingó. É muita elegância sem precisar renovar o guarda-roupa. Típico do MDC, que vai ao ar às 21h, no magazine casual da Rádio Elétrica. Produção, apresentação e as mesmas vestes: Daniel Rodrigues.
"Eu tive duas motivações. Uma foi a afetiva: ele foi meu primeiro ídolo de infância. A outra, intelectual. Quando cheguei à faculdade e me interessei pelo estudo da música brasileira, constatei que não tinha nenhum livro que explicasse o fenómeno Roberto Carlos."
Paulo César Araújo, sobre o que o motivou a escrever a obra
Se você pretende saber quem ele é, eu posso lhe dizer: está tudo em "Roberto Carlos em Detalhes", livro de Paulo César Araújo lançado pela Editora Planeta em 2006, logo depois retirado de circulação e até hoje o mais completo perfil biográfico feito sobre um artista tão gigantesco quanto misterioso. Na internet, o livro pode ser encontrado pelo preço médio de 400 reais.
Resultado de 16 anos de pesquisas e entrevistas, "Roberto Carlos em Detalhes" começou a ser desenvolvido em 1990, quando Araújo - autor de "Eu Não Sou Cachorro, Não" - começou a coletar dados para um trabalho específico sobre a Jovem Guarda. Entre as quase duas centenas de entrevistas - incluindo aí nomes como Tom Jobim, Chico Buarque e João Gilberto - percebeu que um nome se destacava.
Assim, o bem detalhado "Detalhes" acompanha a trajetória do cantor desde a infância, do nascimento em Cachoeiro do Itapemirim, em abril de 1941, filho caçula do relojoeiro Robertino e da costureira Laura, e revela aspectos pouco conhecidos e/ou comentados, como quando Roberto Carlos, aos seis anos, foi atropelado por uma locomotiva e sua perna direita teve de ser amputada até pouco abaixo do joelho.
O autor também acompanha a chegada de Roberto Carlos ao Rio, em 1956, relatando o encontro do jovem com Wilson Simonal, Tim Maia, Erasmo Carlos e, principalmente, com o produtor musical Carlos Imperial, a quem Roberto chamava de "papai" e que foi responsável pela gravação de seu primeiro disco. Antes disso, Roberto Carlos, suburbano com influências roqueiras, tentou se inspirar em João Gilberto, mas nunca foi bem aceito pela turma da Zona Sul. Resolveu abandonar o ídolo e criar um caminho à parte. "Ele foi rechaçado pela classe média. Era chamado de 'João Gilberto dos pobres'", lembra Araújo.
Das diversas fases do cantos - da Jovem Guarda ao romantismo dos motéis, dos rocks iniciais ao misticismo - tudo está contemplado. Araújo conta histórias sem descambar para a mera fofoca e esmiúça todos os fatos que já foram contados superficialmente em um ou outro lugar.
"Paulo Barnabé tem influência das técnicas de composição erudita contemporânea de onde surgem ritmos assimétricos, células atonais, séries dodecafônicas. Há também assumida influência de punk-rock, do jazz e ritmos brasileiros, o que torna a 'brincadeira' ainda mais interessante!"
descrição da banda
no site My Space
Clayton me convidou para participar desse blog o que me deixou muito envaidecido. Vão ler sobre meu gosto musical!
Mas, por outro lado, recebi uma tarefa ingrata: como escolher um grande álbum musical. Um só? Como não falar de "Master of Reality", do Sabbath, "Aracy canta Noel", ou o impecável diletantismo do grupo Rumo. Gente, "Estado de Poesia" do Chico César, "La Lhorona", da saudosa Lhasa de Sella...
Ok, só um mesmo!
Decidi pelo que considero o grande álbum do rock Brasil dos 80: "Corredor Polonês", da Patife Band, de 1987. Não bastasse a presença de compositores do nível de Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé, Fernando Pessoa, temos músicos preciosos acompanhando Paulo Barnabé, inquieto compositor e músico. "Corredor Polonês" foi produzido por ninguém menos que Liminha. O cara sabe do negócio. Ainda hoje o disco me soa de um frescor ímpar.
Porradaria estranha do começo ao fim. Flertes com o punk, noise rock e jazz fazem dessa obra uma preciosidade musical brasileira. E nem fico muito chateado pelo álbum não ter ficado tão conhecido pela mídia. Azar deles! Dá um gostinho de que é meio nosso também. Amo. Quem não ouviu, busque na Internet. Quem já conhece faça como eu, corre pra escutar novamente!
por R O N I V A L K
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FAIXAS:
1. Corredor polonês (4:00) 2. Pesadêlo (1:15) 3. Chapéu vermelho (3:40) 4. Tô tenso (3:15) 5. Poema em linha reta (2:08) 6. Teu bem (3:43) 7. Três por quatro (2:05) 8. Pregador maldito (2:23) 9. Vida de operário (3:30) 10. Maria Louca (2:51)
Roni Valk é professor, ator, diretor, cantor e compositor. Ama passarinhos. Roni é integrante e diretor artístico do grupo musical-teatral Roni e As Figurinhas
Pode parecer contraditório, mas, às vezes, dependendo da intensidade emotiva
que determinado show ao vivo tem para mim, é mais difícil escrever sobre ele.
Foi assim com o do Paul McCartney, em 2010, do Gilbert Gil e orquestra, em
2014, e o da Meredith Monk, ano passado. Todos muito bem sorvidos pelos ouvidos
e sentidos, mas que, na hora de transpor pro papel, parece que a emoção me
congela. Pois outro desta lista foi o do cantor, compositor e escritor Vitor Ramil, que assisti ao lado das hermanasLeocádia e Carolina Costa em
2013. Naquela feita, como nestes outros que citei, não consegui escrever a
respeito daquele que foi certamente um dos grandes shows que assisti. Música no
seu mais alto nível. Pois o tempo se encarregou de me dar uma nova chance,
igualmente acompanhado das duas e novamente tendo como cenário o majestoso e
familiar Theatro São Pedro. E com um adicional incontestável: Vitor tocando com
a Orquestra de Câmara do teatro. Ou seja, motivos de sobra para que, enfim,
esse momento tão especial fosse por mim registrado.
Minha obrigação atestou-se já de início. Ainda sem o protagonista no
palco, a orquestra, formada basicamente pelas cordas (cellos, violinos e
violas), estremece-nos com uma luxuosa execução do Prelúdio das “Bachianas nº
4”, de Heitor Villa-Lobos. Que começo! Quando sobe finalmente, o gracioso Vitor
brinca: “Quero ver se vocês vão querer me
ouvir agora depois do Villa-Lobos”. “Foi no mês que vem”, de poesia
romântico-lírica, numa brincadeira com o tempo cronológico e afetivo (“Vou fiquei/ No teu chegado e tu chegada ao
meu/ Penso, grande é Deus/ Um paraíso prum sujeito ateu...”) dá início ao refinado
e absolutamente musical espetáculo, tanto quanto o de dois anos atrás embora
diferente. Não somente pelos arranjos da orquestra, assinados por Vagner Cunha
e regidos pelo também bem-humorado maestro Antônio Borges-Cunha, os quais
cumpriram, com muita felicidade a função de realçar os traços das canções. Mas,
sim, pela obra maior de Vitor Ramil, um dos maiores músicos da atualidade no
Brasil.
A habilidade como violonista e cantor destacam ainda mais o lindo timbre
de voz, suave como uma pluma, e a capacidade criativa do compositor de criar
melodias lindamente improváveis. O professor de artes Celso Loureiro Chaves diz,
no texto do programa: “Há sempre uma
surpresa nessas melodias. Quando pensamos que elas vão para um lado, elas tomam
outro caminho e terminam como ninguém – a não ser Vitor – poderia ter pensado”.
Essa é a sensação que se tem na tensa e quase expressionista “Livro aberto” –
infelizmente prejudicada pelo pandeiro muito mal tocado por uma das integrantes
da orquestra, único resvalo de todo o espetáculo –, a qual vai ganhando ares
hipnóticos que as cordas ajudam a intensificar.
Para qualquer fã de Vitor, não precisa nem dizer que "Noite de São João", obra do célebre “Ramilonga”, de 1997, na qual ele musica uma poesia de
Fernando Pessoa, foi das mais emocionantes. A regência de Borges-Cunha lhe
empresta cores lúdicas, enquanto o músico entoa com absoluta delicadeza a
melancólica e rica melodia. Igualmente de embasbacar, “Milonga das 7 Cidades”
(mais uma de “Ramilonga”), a suplicante “Perdão” (“Perdoo o sol/ Que aquece meu corpo/ Perdoo o ar/ Que me alimenta/
Perdoo a dor/ Que desistiu de mim/ E a solidão/ Que não foi tanta como eu quis...”)
e “Vem”, onde, a capella, Vitor
arrasa no canto (a letra, fez sobre um prelúdio de Bach) enquanto o maestro
conduz um belíssimo arranjo, chamando atenção para a segunda parte, em que
todos abandonam os arcos para, delicada e ordenadamente, tangerem com os dedos as
cordas de seus instrumentos.
Original do disco “Délibáb”, de 2010, “Querência” traz a poesia pampeana
de João da Cunha Vargas, a quem muitos, incluindo a mim, passou a conhecer
através das músicas de Vitor. Dos dois é outra das mais incríveis que se ouviu,
esta apenas na voz e violão: “Deixando o Pago”, milonga capaz de transmitir ao
mesmo tempo bravura e fragilidade, tristeza e sensação de liberdade: “Cruzo a última cancela/ Do campo pro
corredor/ E sinto um perfume de flor/ Que brotou na primavera/ À noite, linda
que era/ Banhada pelo luar/ Tive ganas de chorar/ Ao ver meu rancho tapera”.
No final do show, executando "Astronauta Lírico".
Hit gravado por nomes como Gal Costa, Milton Nascimento, Chico César e Maria Rita, “Estrela Estrela”,
amada pelo público, é a que mais foi possível ouvir o coro da plateia, silenciosa
a maior parte do tempo, pois extremamente atenta a todos os acordes que se
pronunciavam. Esta ganha um arranjo suave, acompanhando sua aura lunar e
fugidia. Já em “Indo ao Pampa”, mais uma de “Ramilonga”, Loureiro Chaves
escreve um arranjo especial no qual explora a atmosfera indiana da original e
transpõe isso para a orquestra. Um show! Das melhores do set-list, a qual explode no refrão em ataques intensos das cordas.
Especial também é o canto de Vitor, que avança impressionantemente de um tom
médio para o agudo sem desafinar jamais. Que cantor!
Outra das incríveis de seu repertório, igualmente adorada pelo público,
“Astronauta Lírico”, levou-nos às lágrimas. Delicadeza resume bem essa canção,
onde se nota novamente a esfíngica forma de Vitor compor. Valendo-se
praticamente de “lugares comuns” da poesia, os versos, escritos com tamanha
sensibilidade e destreza, são de uma poesia sem igual: “Quero perder o medo da poesia/ Encontrar a métrica e a lágrima/ Onde
os caminhos se bifurcam/ Flanando na miragem de um jardim...”. E o refrão,
em que ele consegue quebrar em três tempos uma pequena palavra como “terra”!?
(sem que isso fique esquisito, aliás, pelo contrário: harmonizando lindamente
palavra e som.)
O primeiro bis é a própria “Ramilonga”, de lindo arranjo das cordas que
veste a música num crescendo nesta que é a mais perfeita tradução da
melancólica mas poética Porto Alegre, cidade cujos versos “nunca mais/nunca mais” se encaixam assustadoramente bem. O
desfecho foi com a milonga “Mango”, talvez não a melhor escolha para um último
número, haja vista a extensa lista de sucessos que fariam o público ir para
casa embora levitando (“Loucos de cara”, “Joquim”, "Satolep"
, “Não é céu”), mas
nada que desagradasse - pelo contrário, pois foi suficiente para, junto com o
restante, fazer-nos ir para casa suspensos sim.
Se ficou muita coisa de fora, é compreensível, pois é realmente difícil
sintetizar cerca de 40 anos de música em um projeto complexo em formato e que
envolve tantas mãos como este. Porém, certamente o que vimos manteve intacta a
sublime obra deste gaúcho de Pelotas que tanto representa, com profundidade
artística e até semiológica, a arte e o modo de ser do pampa. Vitor nos prova o
quanto se é capaz de ser regional e universal ao mesmo tempo. Vitor nos mostra
que existe outro Brasil que não só de Carnaval e Nordestes pasteurizados. Vitor
nos evidencia que há uma beleza nessa combalida e vulgarizara imagem do ser
gaúcho. Em Vitor nos identificamos e ele em nós.
E sim, Vitor: não deixas nada a desejar diante do mestre Villa-Lobos,
podes ter certeza.
fica o orgulho de dividir alguns momentos da música
com o
Brasileiro Antonio das águas de março,
do matita, do porto das caixas, do
amparo, das luísas,
da sinfonia de Brasília, das saudades do Brasil.
O maior
compositor da música popular
de todos os países.”
Edu Lobo, sobre Tom Jobim
Há momentos em que uma obra-prima surge do acaso. Não foi assim com o
sonho em comum tido por Salvador Dali e Luís Buñuel na mesma noite e que os
motivou a filmar “Um Cão Andaluz”? Ou o processo intuitivo de Jackson Pollock,
que formava seus quadros com tintas de pura aleatoriedade? Pois em música
acasos como estes também acontecem. Em 1981, Edu Lobo, cantor, compositor e arranjador, um dos mais criativos e
respeitados artistas da música brasileira pós-Bossa Nova, estava de saída de
sua então gravadora, a PolyGram. Como era de praxe, haveria de realizar um
disco com a participação de vários artistas, como uma despedida festiva pelos
anos de casa. Em cumplicidade com o produtor Aloysio de Oliveira, o primeiro a
ser convidado sem pestanejarem foi Tom Jobim.
Num clima de admiração mútua, auxiliados pela direção não menos afetuosa
e sábia de Aloysio, chamaram Tom para tocar piano em “Pra dizer adeus”, faixa
de um dos primeiros discos de Edu, logo após esse ser descoberto por Vinícius de Moraes, no início dos anos 60. Tom o fez, mas não sem lançar contracantos, cantar
alguns versos e ainda adicionar-lhe acordes, os quais passariam a partir dali a
integrar a partitura da canção. Ou seja: chegou para uma participação e mudou a
música para sempre. Ao final da gravação, visto que todos estavam felizes com o
resultado e com a egrégora formada no estúdio, Tom pergunta: “Era só isso?”. Aloysio propôs, então,
de modo a não desapontar o maestro, que se gravasse outra de Edu, desta vez,
uma parceria com aquele que representava o elo entre os dois: Vinicius. Edu,
claro, gostou da ideia.
Mandaram ver, então, “Canção do Amanhecer”, esta, do primeiro álbum de
Edu, de 1965, dando à precoce parceria daquele jovem músico de 22 anos com o
tarimbado e mítico poetinha uma versão amadurecida. A presença de Vinicius,
como ele gostava de fazer com os amigos, mesmo que imaterial nesta ocasião só vinha
a reforçar a afinidade entre Edu e Tom. Como no primeiro take, o resultado foi incrível novamente: sintonia pura,
descontração e musicalidade aflorando. Quando termina, Tom capciosamente solta
de novo a pergunta: “Era só isso?”.
Aloysio, que conhecia bem o parceiro desde os anos 50 – época em que já
compunham juntos clássicos como “Dindi” e “Inútil Paisagem” –, entendeu o
recado e ligou para o executivo da gravadora. Estava claro que o “canto do
cisne” de Edu Lobo na PolyGram não teria vários músicos convidados, mas apenas
um: Antonio Carlos Jobim. O maior deles.
Com trabalhos solo recentemente lançados, ambos tinham poucas novidades
em suas pautas. Uma das inéditas, entretanto, abre o lado A do LP: a graciosa
“Ai quem me dera”, composição antiga de Tom em parceria com Marino Pinto até
então guardada para uma ocasião especial. A ocasião surgiu. Sente-se o sabor
dos primeiros temas da Bossa Nova, aquele mais carioca e gingado, com Tom e Edu
cantando em uníssono com perfeição. É nítida a afinidade entre os dois. Outra
de ânimo florescente é “Chovendo na Roseira”, composição instrumental de 1970 regravada
por Elis Regina quatro anos depois com a participação de Tom e já com a letra lírico-ecológica
do próprio autor. Aqui, esta valsa de cores tipicamente debussyanas (“Olha, que chuva boa, prazenteira/ Que vem
molhar minha roseira/ Chuva boa, criadeira/ Que molha a terra, que enche o rio,
que lava o céu/ Que traz o azul!”) recebe um tratamento harmônico de alto
requinte. A voz de Edu se apropria de tal forma que parece um tema coescrito
por ele.
Equilibrando as autorias – ora de um ora de outro com ou sem parceiros
–, escolheram-se mais duas em que Tom assina letra e melodia. Uma delas é
“Ângela”, das obras-primas do compositor. Tema da segunda fase da Bossa Nova
presente no clássico disco “Matita Perê” (1973), a romântica e melancólica
“Ângela” guarda traços da complexidade harmônica da música de Chopin. Ivan
Lins, um dos ilustres aprendizes do “maestro soberano”, contou certa vez que
esta é canção que ele gostaria de ter escrito – precisa dizer mais? A outra,
igualmente lírica e impressionista, é “Luíza”, a segunda e última inédita do
disco, das mais queridas do cancioneiro jobiniano e que abre o lado B do vinil.
Composta recentemente por Tom para o tema de uma novela da Globo, de tão
vigorosa, saiu neste álbum e ainda na trilha sonora da novela, ficando meses
nos ouvidos dos brasileiros todos os dias sem que jamais tenha se desgastado. E
que letra! “Rua/ Espada nua/ Boia no céu
imensa e amarela/ Tão redonda a lua/ Como flutua/ Vem navegando o azul do
firmamento/ E no silêncio lento/ Um trovador, cheio de estrelas/ Escuta agora a
canção que eu fiz/ Pra te esquecer, Luiza...”.
Os parceiros de Tom e de Edu são de extrema importância no repertório
afetivo escolhido pela dupla para este projeto quase acidental. É o caso de Chico Buarque. Assim como Vinicius, o autor de “Olhos nos Olhos” é outro que os
liga musical e afetuosamente. Parceiro de Tom desde os anos 60, tivera a mão de
Edu nos arranjos da trilha de sua peça/disco “Calabar/ChicoCanta”, em 1973.
Mas, por incrível que pareça, toda a grande obra da parceria Chico-Edu, que
hoje faz parte do inconsciente coletivo da música brasileira, veio somente depois
de “Moto-contínuo”, esta, sim, a primeira dos dois, escrita naquele ano e
lançada praticamente junto com a versão do álbum “Almanaque”, de Chico. Já na
estreia da parceria, Chico se esmerava na letra, uma de suas melhores. Ao
expressar em hipérboles a admiração intrínseca do homem pela figura feminina,
lança, através de anáforas e epíforas (“Um
homem pode...” e “se for por você”),
versos da mais alta beleza poética: “Juntar
o suco dos sonhos e encher um açude/ se for por você (...) Homem constrói sete
usinas usando a energia/ que vem de você”. Ainda, Tom faz-se presente
categoricamente, introduzindo neste samba cadenciado e denso ricos contracantos
de seu piano e a voz em uníssono com Edu – com timbres muito parecidos, aliás.
Outros dois sambas melancólicos: “É Preciso Dizer Adeus”, de Tom e
Vinicius (“É inútil fingir/ Não te quero
enganar/ É preciso dizer adeus/ É melhor esquecer/ Sei que devo partir/ Só nos resta
dizer adeus”), representando a reverência à parceria gênese de toda a
geração da qual Edu pertence; e “Canto Triste”, mais uma dele com Vinicius,
esta imortalizada, assim como “Chovendo...”, por Elis (“E nada existe mais em minha vida/ Como um carinho teu/ Como um silêncio
teu/ Lembro um sorriso teu/ Tão triste”), fechando o disco de forma
altamente melodiosa: só ao violão e a voz de seu autor.
Não sem antes, entretanto, registrarem a talvez melhor do disco: “Vento
Bravo”. Faixa do obscuro e hoje cult
“Missa Breve”, gravado por Edu em 1972, trata-se de uma composição feita com
outro parceiro e amigo em comum com Tom: Paulo César Pinheiro. Em entrevista
para o programa O Som do Vinil, do Canal Brasil, Edu comenta que não entendera
bem porque Tom, que pedira para incluí-la no set-list, gostava tanto desta música. Parece, porém, evidente. A
letra, com marcas da literatura regionalista – remetendo à prosa de Guimarães Rosa de “Sagarana” e a de Monteiro Lobato de “Urupês” –, confere estilisticamente com o que o próprio Pinheiro escrevera para Tom anos antes
para a música "Matita Perê". As leis dos homens e da natureza, com emboscadas e
perseguições, bem como a implacável ação do tempo, são marcas de ambas as
obras. “Vento virador no clarão do mar/
Vem sem raça e cor, quem viver verá/ Vindo a viração vai se anunciar/ Na sua
voragem, quem vai ficar/ Quando a palma verde se avermelhar/ É o vento bravo/ O
vento bravo”, diz a letra, que narra a fuga de um escravo mata adentro. O
refrão, melodicamente intrincado e encantador, ainda diz: “Como um sangue novo/ Como um grito no ar/ Correnteza de rio/ Que não
vai se acalmar...”. Ao contrário da sinfônica peça de Tom, porém, traz uma
melodia intensa baseada no som dos violeiros folclóricos do sertão. Remete ainda,
no trítono do piano que lhe faz base, às trilhas de filmes e séries policiais norte-americanas
dos anos 50/60, as quais Edu sempre soube adicionar à sua música com
brilhantismo.
E como conjugar tanto talento, tanta sabedoria musical e sensibilidade
artística e de tão vastos cancioneiros? Por incrível que pareça, nem sempre juntar
isso resulta em boa coisa, pois se pode pecar para mais ou para menos. Em “Tom
& Edu”, primeiro, a opção foi por uma estética limpa, enxuta. Nada de grandes
bandas ou orquestra. Pretendeu-se, já que “só tinha de ser com você”,
reproduzir o clima de admiração mútua. A ausência das cordas, que chegou a ser
motivo de crítica à época do lançamento na “vira-latas” imprensa brasileira –
que achava um desperdício dois regentes dispensarem a orquestração – é de um
acerto categórico. Basicamente, ouve-se o piano de Tom e/ou de Edu, o violão de
Paulo Jobim e Luiz Cláudio Ramos, o baixo dividido por Sérgio Barroso e Luiz
Alves e apenas a bateria como percussão, tocada por Paulo Braga. Quando muito,
o flugehorn impecável de Marcio
Motarroyos, como em “Chovendo...” e “Vento...”. E, claro, o canto dos dois experientes
artistas. A essência clássica de ambos, cujas musicalidades não à toa são
parecidas, retraz naturalmente harmonias ao estilo de Debussy, Ravel, Bach e
Villa-Lobos. Menos, para quem tem conteúdo, é sempre mais.
O segundo motivo de acerto do projeto é a presença de Aloysio como
produtor. Parceiro dos dois de longa data, o ex-dono do selo mítico selo Elenco
(pelo qual gravara e lançara inúmeros artistas fundamentais à MPB nos anos 60,
entre os quais o próprio Edu Lobo) tinha a mão apurada nas mesas de som,
conhecia com profundidade harmonia e composição, compartilhava-lhes do mesmo
carinho e, principalmente, tinha maturidade para saber influir apenas no que
devia. Afinal, quem ousaria mandar em Edu Lobo e Tom Jobim dentro de um
estúdio? Tendo recentemente coordenado dois projetos de Tom semelhantes àquele
(os discos com Miúcha de 1977 e 1981), Aloysio soube dar a arquitetura sonora
certa às faixas.
Já mais satisfeito ao final das 10 gravações que acabava de ajudar a deixar
para a história, Tom enaltece o pupilo: “Eu
vos saúdo em nome de Heitor Villa-Lobos, teu avô e meu pai”. Edu, por sua
vez, contou em entrevista que tem a felicidade de ter dito em vida a Tom de que
este era o maior nome da música brasileira de todos os tempos, palavras que,
segundo ele, emocionaram Tom. “De todos
os arquitetos da música da música que conheço, Antonio Carlos Brasileiro de
Almeida Jobim é, sem dúvida, o de traço mais amplo e perfeito”, pontuou o
seguidor inconteste do maestro. Tanta identificação, tanta confluência entre os
artistas, que somente o próprio Aloysio de Oliveira, no alto de sua sapiência,
para saber definir: “Edu e Tom, Tom e
Edu. E até, se você quiser, Tu e Edom”. Definitivamente, não foi por acidente que eles se juntaram para esse encontro, pois eram almas irmãs.
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FAIXAS:
1. Ai Quem Me Dera (Tom Jobim/Marino Pinto) - 2:13