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terça-feira, 14 de maio de 2024

"Tarde da Noite com o Diabo", de Cameron Cairnes e Colin Cairnes (2024)

 


"Late Night With Devil": Direção: Cameron Cairnes, Colin Cairnes, com David Dastmalchian, Laura Gordon, Ian Bliss
Recriação competente de programas de TV dos anos 70 com toda o figurino, penteados e comunicação visual características da época, num bom terror cuja tensão e intensidade dos acontecimentos é crescente.

Um decadente apresentador de programa de auditório, Jack Delroy (David Dastmalchian), cercado por diversas controvérsias em sua carreira e vida pessoal, vê num especial de Halloween a possibilidade de reerguer a popularidade e recuperar o prestígio do programa. Para isso pretende receber para entrevistas místicos, ocultistas, charlatães e entre esses convidados da noite, uma jovem que sobrevivera a uma tragédia de um grupo satanista. Empolgado com os índices de audiência, mesmo diante de fatos cada vez mais estranhos, ali no palco, não percebe que as coisas começam a fugir de seu controle e que a menina talvez estivesse mesmo possuída por um demônio. Quando ele, então, verdadeiramente, se revela aí temos algo muito além do que qualquer espectador podia esperar.

Apresentado num formato found-footage, falso documentário, "Tarde da Noite com o Diabo" entrega um produto bastante satisfatório de um modo geral com uma ótima direção de arte, efeitos especiais simples, nada rebuscados, mas que dão conta do recado, um argumento bastante aceitável, um roteiro bem estruturado, com um porém para a parte final que, inexplicavelmente, abandona o formato televisivo e de falso-documentário, sacrificando um pouco a proposta.

No fim das contas, "Tarde da noite com o Diabo" que chegou badalado, entre prós e contras, se justifica como um dos grandes terrores do ano e um dos bons dos últimos tempos.

Convidaram o diabo para um programa de TV... e ele foi.
A garota Lilly, única sobrevivente de um suicídio em massa
de um culto satânico é a convidada especial do especial de Halloween do Night Owls. 
Por que será que ela sobreviveu, hein?




Cly Reis

segunda-feira, 13 de maio de 2024

quarta-feira, 8 de maio de 2024

domingo, 5 de maio de 2024

Madonna - The Celebration Tour in Rio - Praia de Copacabana - Rio de Janeiro / RJ (05/05/2024)

 


Madonna em vários momentos do show que celebrou
seus 40 anos de carreira.
De tempos em tempos parece que Madonna tem que vir com alguma para lembrar ao mundo quem manda no pedaço. Não devie ter que precisar, mas precisa.
Surge fulana com turnê mirabolante, cicrana com recorde de acessos em tal plataforma, beltrana com lançamento mundial do videoclipe badalado, e o burburinho, a forçação da mídia, as redes sociais, faz muita gente acreditar que aquilo seja algo espetacular, incomum, extraordinário. Aí a verdadeira e única Rainha da Coisa Toda resolve, para coroar sua turnê e 40 anos de carreira, fazer um megashow num dos cartões-postais do mundo, para 1,5 milhões de pessoas, e não só apresenta um espetáculo inesquecível, como esfrega na cara de quem quiser ver, como chegou até o topo desse reinado.

Um espetáculo em que toda a carreira da artista é repassado, passado a limpo, dentro de uma concepção artística, estética, visual, musical, absolutamente mágica, hipnotizante, embasbacante.

Embora esteja entre aqueles que entendem que um show dessa natureza, de um artista pop, com a dinâmica de teatralidade, troca de figurinos, cenários, etc., permita playbacks, devo admitir que fiquei um pouco incomodado e desconfiado quando soube que a apresentação não contaria com uma banda ao vivo. No entanto, ali, assistindo ao show, mostrou-se totalmente justificável a opção. "The Celebration Tour in Rio", antes de ser um concerto musical é um espetáculo artístico que envolve uma série de elementos que, para funcionarem bem, com um resultado impactante para o espectador (seja no local ou na TV), exigia tal 'sacrifício'. As performances, a ocupação de palco, a mecânica, os números musicais, a iluminação, a concepção visual, tudo me convenceu que, nós, público, só ganhamos com essa ideia de show.

Abertura do show com trecho de "Nothing Really Matters"


Dito isso, vamos ao que interessa: QUE SHOW DA PORRA!!!

Repertório bem planejado, blocos de músicas e atos divididos em uma estrutura muito precisa, mixagens e transições sempre interessantes, ótimas coreografias, iluminação incrível, e, é claro, uma estrela ousada, destemido, provocativa e de um talento que transcende a música.

O que foi aquela "Like a Prayer"??? Em uma das melhores músicas da cantora, uma atmosfera eclesiástica ritual, repleta de cruzes, sacerdotes, corpos pendurados, punições, culpa, inquisição... A hipocrisia e a opressão do catolicismo, numa dramática performance de arrepiar. Se teve gente que perguntou por que não projetaram o nome de Madonna no Cristo Redentor, como aconteceu com Taylor Swift, isso bastaria para responder perfeitamente.

Festa à brasileira em "Music".
("Music makes the people come together...")

"Erotica", com uma performance de luta de boxe, foi outra que passou seu recado: um direto no queixo dos moralistas. "Bad Girl" com a filha da cantora, Mercy James, ao piano foi lindíssima, "Burning Up" punkzona foi simplesmente afudê, as homenagens a Prince e Michael Jackson foram especiais, "Hung Up" latinizada ficou bem interessante, "Music", surpreendentemente para mim que a adoro na versão original, ficou incrível naquela releitura batucada brasileira, com uma participação 'apimentada' de Pabblo Vittar, e a espetacular "Vogue" com um desfile de moda ímpar, inigualável, julgado com a participação de Anitta foi uma festa incrível, uma espécie de nova versão do antigo Gala Gay do Copacabana Palace, em versão século XXI.

Madonna fez história de novo!

O Brasil nunca esquecerá esse show.

O mundo sempre lembrará.

Tenho medo de passar hoje por Copacabana e não encontrar o bairro lá  ou encontrá-lo em ruínas, porque, cara... Madonna colocou tudo abaixo. Tudo mesmo! Dúvidas, conceitos, preceitos, preconceitos, resistências, padrões, limites, barreiras... Enfim. ., Ave, Madonna! Estamos todos a teus pés, ó Rainha!

Uma multidão em Copacabana para ver de perto a Rainha do Pop.
(No meu caso, nem tão de perto)



Cly Reis 

sábado, 4 de maio de 2024

Madonna - "Like a Prayer" (1989)

 



“O tema ‘catolicismo’ corre desenfreado pelo meu disco.
“Aqui sou eu lutando com o mistério e a magia que o cerca.
Meu próprio catolicismo, aliás, está em constante convulsão.
Quando saí de casa aos 17 anos e fui para Nova York
– a cidade com mais pecadores –
renunciei ao significado tradicional do catolicismo
em termos de como viveria minha vida.
Mas nunca deixei de sentir a culpa e a vergonha que estão arraigadas em você,
se você foi criado como católico”
Madonna, na época do lançamento de "Like a Prayer"


Depois do desabrochar definitivo da maturidade musical e artística em "True Blue", Madonna estava pronta para coisas maiores. As expectativas em torno do que viria depois de um álbum bem concebido e repleto de hits eram grandes e não foram frustradas. "Like a Prayer", de 1989 era um trabalho ainda mais consistente no qual Madonna confirmava sua relevância e valor como artista pop. Ousada, criativa, atrevida, questionadora, incisiva, emotiva, Madonna apresentava um disco daqueles, definitivamente, de marcar época. Exagero? Quem não  lembra da provocativa faixa título que com seu apelo religioso-sexual, alavancado por um videoclipe escandaloso que trazia um santo negro que tomava vida, chorava e beijava Madonna, morena e super-sexy, em uma pequena capela interiorana? E as cruzes em chamas? E a propaganda da Pepsi? E o cancelamento da campanha publicitária? E a proibição do clipe em diversos países? Pronto. Na primeira música, o primeiro single, Madonna, literalmente, botou fogo na coisa toda. Mas era só o 'barulho', só o alvoroço que causou por causa de um videoclipe, uma bela campanha de marketing? Não! "Like a Prayer" era uma baita de uma música. Uma das melhores canções pop produzidas até hoje. Uma joia repleta de influências de música negra das ruas e das igrejas, com corais gospel guitarras e uma letra repleta de possíveis interpretações.

Madonna - "Like a Prayer"

vídeo oficial


"Express Yourself" que vem na sequência no álbum, e também o segundo single lançado, é outra que tem um lugar na história da música pop. Soul pop sofisticada, dançante, envolvente e cativante sobre empoderamento, com aquele tipo de chamada às armas que só Madonna sabe fazer.

Também com um pézinho no funk, na soul, na disco dos anos 70, a embalada "Keep It Together" foi mais uma a fazer sucesso e cair nas graças dos fãs. A adorável "Dear Jessie", gostosinha e quase infantil, e a comovente "Oh, Father", na minha opinião uma canção subestimada numa das melhores interpretações de Madonna, também frequentaram as paradas de sucesso, porém sem muita projeção. Já a graciosa "Cherish", de uma inocência romântica apaixonante, tocou bastante nas rádios e na MTV e foi bastante apreciada pelos fãs, tendo inclusive recebido uma homenagem de um ilustre fã brasileiro, Renato Russo, que viria a regravar a canção anos depois. 

Mas nem só de hits vive "Like a Prayer" e perdura como grande álbum. "Till Death Do Us apart" contrapõe a Madonna dos primórdios, com um pop eletrônico new wave bem primário, característico dos primeiros álbuns, com uma mulher madura pronta para romper definitivamente as amarras de um casamento fracassado (entenda-se Sean Penn); a parceria com Prince, "Love Song" é pouco lembrada e valorizada mas, em audições posteriores e apreciada com a devida atenção, pode-se notar que constitui-se num dos grandes momentos do disco, numa daquelas peças musicais que Prince sabia fazer como ninguém. Na belíssima "Spanish Eyes", Madonna retoma a latinidade de "La Isla Bonita", desta vez com numa canção romântica, intensa e apaixonada, na minha opinião uma das melhores baladas da cantora até hoje. "Promise to Try", embora interessante é, para falar a verdade, a mais fraca e dispensável do disco, mas "Act of Contriction", um trabalho bem experimental de estúdio, repleto de colagens, samples e mixagens enlouquecidas, retoma brilhantemente "Like a Prayer" para fechar a obra, "Pois é teu o Reino o Poder e a Glória..."

Não sei se digo que é blasfemo ou se é divino... Enfim: Amém, Madonna!


**************************

FAIXAS:

1. Like A Prayer
2. Express Yourself
3. Love Song
4. Till Death Do Us Part
5. Promise To Try
6. Cherish
7. Dear Jessie
8. Oh Father
9. Keep It Together
10. (Pray for) Spanish Eyes
11. Act Of Contrition


********************

Ouça:
Madonna - Like A Prayer


por Cly Reis


quinta-feira, 25 de abril de 2024

"Imaculada", de Michael Mohan (2024)


Muito estardalhaço pra.. nem tanta coisa assim. O filme não é ruim mas acho que por conta dessa barulheira toda de gente que abandonou a sessão, outros que desmaiaram, uns outros que vomitaram, fui com uma expectativa maior do que ele poderia me oferecer.

Em "Imaculada", uma jovem que sente-se devedora a Deus por ter sido salva de uma situação incontornável, praticamente de morte, na infância, decide devotar sua vida a Ele tornando-se freira. Cecília recebe então um convite de um convento italiano para residir lá e ruma dos Estados Unidos para esta congregação na zona rural da Itália. Lá, no entanto, o ambiente é estranho, misterioso, ela parece ter visões, alguns acontecimentos parecem delírios, sonhos e a jovem noviça fica confusa e cheia de dúvidas. Tudo toma uma dimensão ainda maior e mais impressionante quando, do nada, Cecília descobre-se grávida sem ter tido nenhuma relação com qualquer homem. Ela é elevada então a uma condição praticamente de santa pelos superiores da entidade mas esse zelo excessivo, aos poucos, começa a lhe cobrar um preço caro.

"Imaculada" tem uma boa condução, mantém a dúvida no espectador do que realmente a jovem freira carrega em seu ventre, se é algo do bem ou do mal, se o mal está nela, se está no convento, nas freiras, nos padres, etc., mas pra assustador, aterrorizante, incômodo, nauseante, o longa não serve. De impactante mesmo tem algumas cabeças esmagadas, algumas mutilações, e especialmente, o segmento final que não vou entrar em detalhes pra não dar spoiler, mas que é forte mesmo, e muito bem dirigido, por sinal.

Um bom resgate daquele terror religioso de filmes como "Os Demônios" (1972), tem também elementos de terror gótico, e carrega semelhanças com o cinema de Dario Argento, mas, no geral, "Imaculada" não chega a ser nada muito impressionante.

Pensei que eu fosse desmaiar, vomitar, não conseguir assistir até o final mas, no fim das contas o que recebi foi somente um... bom terror.

Irmã Cecília passa a ter tratamento de Virgem Maria
dentro do convento, assim que é revelada sua gravidez.



por Cly Reis

domingo, 14 de abril de 2024

cotidianas #828 - XTRMSTa

 


- Vamos logo, Mari, o pessoal tá  esperando.

- Já vou, já vou.

Beto esperava impaciente, já  posicionado ao lado da porta.

- Vamos, Mari! - insistiu, diante da persistência da demora.

- Tô indo! Que pressa! - reclamou ela aparecendo no estreito corredor do apartamento, segurando algumas garrafas cheias de um líquido amarelado e com trapos enfiados nos bocais.

- O que que é isso? - interpelou Beto um tanto incrédulo do que estava vendo.

- Temos que estar prontos, Beto. - disse ainda com um pedaço de trapo na boca - O inimigo é implacável. Temos que estar prontos pra tudo.

- Mari, eu falei que é uma manifestação pacífica. PA-CÍ-FI-CA!

- Diz isso pra eles, diz. Vai lá e argumenta quando eles estiverem te descendo a borracha.

- Não vai ter borracha coisa nenhuma. Não vai ter essas tuas coisas também. A gente só vai lá, estica as faixas, os cartazes, marcha até  o local, grita aquelas palavras de ordem que a gente combinou e pronto.

Mari parou olhando fixamente para Beto com os braços caídos ao lado do corpo, em desânimo, com uma garrafa em cada mão.

- Agora larga isso aí e vamos.

Contrariada, deixou as garrafas no canto atrás da porta e saíram para a passeata.


**********

O povo bradava com os punhos cerrados e erguidos.

No meio da multidão, Beto parou com os gritos de guerra e olhou para o lado.

Mari não estava mais ali.

Vasculhou tudo apressadamente em volta, virando o pescoço para um lado e para o outro, quando finalmente a avistou lá na frente. Estava à frente da primeira fileira de manifestantes e a  apenas alguns passos da tropa de choque. Levava em uma das mãos um pequno bloco de paralelepípedo de granito.

Antes de avançar contra a barreira de escudos policiais, ela ainda olhou para trás e gritou, "Desculpa, Beto, mas a mudança não vai acontecer com palavras bonitas".

Arremessou a pedra...

- Viva la Revolución!


Cly Reis 

segunda-feira, 8 de abril de 2024

"Maluquinho por festas", "Maluquinho por Arte", "O Diário da Julieta" e "Coisas de Menina", de Ziraldo - ed. Globinho (edição de 2006)

 


Ziraldo, cartunista que nos deixou no último sábado, um dos maiores nomes da arte, jornalismo, letras da história deste país, de uma forma ou de outra, esteve presente em nossas vidas em algum momento. Para mim, embora sempre tivesse a admiração pelo traço e pelos personagens do artista que apareciam não somente em suas obras mas ilustrando revistas, capas de livros, propagandas, etc. campanhas publicitárias, etc., só vim a ter mesmo um contato mais próximo, mesmo, tardiamente, com minha filha.

Ainda não totalmente alfabetizada e tendo sido presenteada com uma pequena coleção de publicações temáticas do Menino Maluquinho e da Julieta, lia com ela, à noite, antes de dormir, as histórias daquela turminha e todas as suas confusões e trapalhadas. Travessuras, zoações, namoricos, fofocas, competições, brincadeiras, tudo estava presente de forma muito doce e emocional naqueles quadrinhos de Ziraldo. Repetíamos várias vezes a leitura de uma mesma história, poucos dias depois de a termos lido, de tão gostosas que eram as aventuras do Maluquinho e sua galerinha. 

Agora, com o falecimento de Ziraldo, perguntei à minha filha se ainda tinha as HQ's, ao que ela prontamente me respondeu que sim. Foram páginas que fizeram parte da infância dela e, por conta desses momentos únicos de proximidade e cumplicidade, da minha vida também.

Além de toda sua contribuição para a arte e cultura brasileira, obrigado por isso também, Ziraldo: por proporcionar esses momentos maravilhosos entre pais e filhos, que tenho certeza, não aconteceram só lá em casa, mas em muitos outros lares por aí também.


Vai em paz, Ziraldo!



Cly Reis

domingo, 31 de março de 2024

cotidianas #826 - 'SPQR: O Super-Soldado Romano'

 




- Mandou me chamar, Senhor?

O governador se ajeitou no trono e encarou o homem à sua frente com um olhar sentencioso.

- Chegou a meus ouvidos que teria sido ideia tua aplicar a tal poção bizantina em um dos condenados.

O centurião, um tanto embaraçado, hesitou um instante mas confirmou:

- Sim, meu senhor..., a sugestão foi minha.

Novamente acomodando-se no trono, desconfortável, incomodado, o governador da Judéia, claramente impaciente, lançou ao centurião:

- E não te passou pela cabeça, em nenhum momento que DANDO AQUELES PODERES A UM INDIVÍDUO QUE JÁ ERA ADORADO, IDOLATRADO, ELE PODERIA  FICAR AINDA MAIOR COM TUDO ISSO? - aumentando gradativamente a voz até terminar a frase praticamente num berro.

- Eu... eu considerei que deveríamos testar antes de dar aos nossos soldados e... pensei que fosse melhor dar a um condenado pacífico do que àqueles outros, bandidos, assassinos... se tivesse algum outro efeito, se ficasse violento, seria mais fácil de controlar e...

- ... E então ele resiste a mais castigo e torturas do que qualquer outro homem resistiria, revive dias depois e ainda assim pareceu uma boa ideia? - completou interpondo-se na frase do subordinado. 

O legionário não soube o que responder.

- Bem, - tentando acalmar-se - ao menos agora temos a certeza que a tal poção para o super-soldado romano funciona. Nossos homens ficam mais resistentes, suportam qualquer dor e, principalmente, não podem ser mortos. 

- Sim, meu senhor... Embora não tenhamos certeza de quanto tempo podem viver depois de retornarem da morte, creio que a experiência foi positiva. - argumentou o centurião, um pouco aliviado.

- Tragam aqui o alquimista bizantino, ou seja lá como chamam aquilo que ele faz. - ordenou o governador Pilatos a um dos soldados que guardava a porta.

O governador da judéia bebeu um gole de vinho e, enquanto aguardava o retorno do soldado trazendo o místico, voltou a dirigir-se ao centurião:

- Quero, então que dê a solução para todos os soldados. Mandem esse hierofante ou seja o que for preparar a fórmula. Dêem-lhe o que for preciso para produzir para todos nossos homens.

- Sim, meu senhor. - assentiu o militar.

- Quanto ao judeu, - prosseguiu com as ordens - localizem-no, dêem um fim nele e certifiquem-se de que todos que o viram vivo não possam confirmar o fato.

Neste momento, quase correndo entrou pela porta o soldado, com uma aparência pálida e olhos arregalados.

- O que foi? - quis saber o governador - Onde está o homem?

- Sumiu, meu senhor.

- Como assim sumiu? Alguém deixou que ele fugisse? Abriram sua cela, foi isso?

- Não, meu senhor... Sumiu! Evaporou...

- Como 'evaporou'? - duvidou o nobre - Isso é alguma espécie de brincadeira? Vou mandar te crucificar e ao responsável por essa troça!

- Eu juro, meu senhor, eu juro. Se desfez como fumaça, passou entre as grades, voou pela janela, se espalhou pelo ar...

- Centurião Flávio Augusto, leva este homem. Crucifiquem-no e a todos envolvidos nessa galhofa!

- Sim, meu senhor. Ave, Tibérius! - E saiu segurando o soldado pelo braço sem resistência alguma.

Novamente sozinho no salão, em seu trono, Pôncio Pilatos recostou-se reflexivo. O estrago já estava feito: eles endeusariam o tal nazareno, o seguiriam incondicionalmente. Sabia que os tempos, a partir daquele momento seriam diferentes para Roma e seu Imperador. O mundo acabara de recomeçar.




Cly Reis

 

terça-feira, 26 de março de 2024

cotidianas #825 - Novas Versões para Antigos Clássicos da Literatura - "Alice na Toca do Coelho"




Alice já estava cansada de ficar sentada no banco sem nada para fazer. Foi quando, de repente, um Coelho Branco de olhos cor-de-rosa passou correndo perto dela. Não havia nada de tão incrível nisso fora o fato do Coelho Branco repetir continuamente para si mesmo: — Ai, rapaz! Ai, rapaz! Vou me atrasar. Alice se alvoroçou mesmo foi quando o Coelho Branco sacou um relógio do bolso de seu colete, checou as horas e saiu apressado. Ela se deu conta de que nunca tinha visto um coelho com um relógio no bolso do colete. Ardendo de curiosidade, correu atrás dele a tempo de vê-lo se emburacar toca adentro no pé de uma cerca. 

No instante seguinte, era Alice quem se entocava ali. Decidiu perseguir o Coelho Branco sem refletir sobre como sairia daquele buraco. 

A toca tinha um trecho reto semelhante a um túnel. Depois, inclinava-se bruscamente para baixo, tão bruscamente que Alice não foi sequer capaz de pensar em frear. Simplesmente despencou em um poço de grande profundidade. 

Alice caía, caía, caía... Será que aquela queda não acabaria nunca? — Então, de repente: plunct! Aterrissou em um amontoado de gravetos e folhas secas. A queda havia chegado ao fim. 

Sem nenhum arranhão, ela se levantou em um instante. Olhou para cima, mas sobre sua cabeça tudo estava escuro. Atrás de Alice havia outra passagem longa, onde ainda se podia ver o Coelho Branco descendo bem depressa. Não dava para perder nem um segundo: lá foi a menina, veloz como o vento ainda a tempo de vê-lo fazer a curva. Alice estava perto dele ao fazer, mas o Coelho Branco já não podia mais ser visto. Sumira na escuridão de um salão comprido, baixo e mal iluminado. 

De repente, de um ponto qualquer na escuridão do fundo do salão, viu surgir o Coelho que avançou lentamente para uma faixa um pouco mais iluminada onde ela podia distingui-lo melhor. Ele estancou a encará-la e Alice, por sua vez, o olhou com curiosidade. 

De trás do Coelho Branco, também daquela treva, surgiram à luz algumas figuras no mínimo excêntricas: um tipo alto com uma cartola extravagante, um homenzinho baixo tão gordo que se assemelhava a um ovo, um par de gêmeos rechonchudos vestidos de forma rigorosamente igual, e um gato que a encarava com um sorriso sinistro na cara. 

O Coelho, girando a corrente do relógio de bolso, e agora parecendo ignorar a presença da menina, depois de um angustiante período de silêncio, finalmente abriu a boca e falou: - Eu não disse que ela ia me seguir? Tá aí ela, gente. Podem descer a porrada.



Cly Reis
livremente inspirado em "Alice no País das Maravilhas",
de Lewis Carrol

sexta-feira, 22 de março de 2024

Gene Vincent - "I'm Back and I'm Proud" (1969)

 



"Consciente do fenômeno Elvis
de quem observava cada movimento (...),
Gene Vincent se situava
a meio caminho entre seu herói
e o lirismo romântico de Buddy Holly."
do livro "Raízes do Rock"
de Florent Mazzoleni




Conheci "Be-Bop-a-Lula" no filme "Coração Selvagem", um road-movie frenético e improvável do diretor David Lynch, vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 1990. A canção era uma espécie de música-tema da personagem Lula, ainda que não se repetisse diversas vezes ou a cada aparição dela, como costuma acontecer nesse tipo de identificação no cinema.
Desde então passei a gostar muito da excelente trilha sonora do filme e em especial, entre outras de "Be-Bop-a-Lula".
"Be-Bop-a-Lula", um delicioso rockabilly embalado, descontraído, cheio de alternativas vocais, "gagueiras", respirações e gritinhos, foi o primeiro grande sucesso de Gene Vincent, cantor e compositor que surgiu naquela leva de novos-Elvis dos anos 50, mas que mostrava uma série de predicados que o qualificaram como algo diferenciado em meio àquele monte de promessas comerciais.
Curiosamente, a música que impulsionou a carreira de Vincent só veio a sair em álbum de carreira, 13 anos depois de seu lançamento, em 1969, no disco "I'm back and I'm proud", que como o nome sugere, representava uma espécie de retomada numa carreira que, depois dos primeiros anos de grande sucesso, não conseguira manter o mesmo patamar. Assim, para tal retomada, nada melhor do que partir do que tinha de melhor, ou seja, seu maior hit e, desta forma, "Be-Bop-a-Lula" era a arma nada secreta de Vincet.
Mas "I'm back and I'm proud" não se limitava a um apelo a "Be-Bop-a-Lula" que aqui, exigência dos tempos, aparecia numa versão  levemente mais psicodélica que sua original, lá de 1956. Merecem destaque também o rock vigoroso e elegante "Rockin Robin" que abre o disco; a eletrizante "White Lightning" gravada também pelo The Fall, posteriormente; a incendiária "Sexy Ways"; as releituras poderosas para duas lendas do country, "Rainbow at Midnight" de Ernest Tubb, e "I Heard the lonesome whistle", de Hank Williams; a revisitação de duas de suas antigonas, "Lotta Lovin'" e "Ruby Baby", uma espécie de variação de "Be-Bop-a-Lula" reproduzindo alguns versos e vocalizações, e ainda uma versão melancólica do clássico de domínio público "Scarlet Ribbons".
A retomada não veio, ainda que Gene Vincent mostrasse com o bom "I'm Back and I'm Proud" que que ainda tinha gasolina no tanque e lenha pra queimar. No auge do psicodelismo, das bandas inglesas, d ascensão de novos estilos, pouca gente queria saber dos ícones topetudos dos anos 50, embora, particularmente, Vincent gozasse ainda de um bom prestígio na Europa. A tentativa de ressurreição artística durou pouco pois, dois anos depois, Gene Vincent viria a falecer em decorrência do álcool, deixando, por um lado a impressão que a geração rock'n roll raiz, cinquentista, havia dado o que tinha quedar, mas por outro, a sensação que com um disco tão interessante quanto àquela, ainda poderia ter algo a oferecer.

***********************

FAIXAS:

1 Rockin' Robin
2 In the Pines
3 Be Bop a Lula 69
4 Rainbow at Midnight
5 Black Letter
6 White Lightning
7 Sexy Ways
8 Ruby Baby
9 Lotta Lovin'
10 Circle Never Broken
11 I Heard That Lonesome Whistle
12 Scarlet Ribbons (For Her Hair)

***********************

Ouça:

Gene Vincent - I'm Back and I'm Proud"
https://www.youtube.com/watch?v=X_xURXbVhyA&list=OLAK5uy_ljNPj1atjQgPcahNjaugSGhO4XJfR3M5w



Cly Reis

quarta-feira, 20 de março de 2024

sábado, 16 de março de 2024

domingo, 10 de março de 2024

cotidianas #823 - A Volta do Anjo Exterminador

 



"Tá gravando?
...
Hm, hm...
Estamos aqui na casa onde foi rodado o filme "O Anjo Exterminador", em 1962.
No clássico de Luis Buñuel, um grupo de pessoas, convidadas para uma festa de aristocracia, depois de ingressar na casa onde acontece a recepção, não consegue sair dela. Nada os impede, não há portas trancadas, nada fechando-lhes a passagem, mas, simplesmente, não conseguem deixar a casa. É como se uma força invisível, algo inexplicável os mantivesse dentro. E é exatamente aqui que estamos hoje para vocês, no nosso "O Fabuloso Mundo de Amélia Bolaños", o canal dos cinéfilos loucos por relíquias, raridades e curiosidades do mundo do cinema.
Olha só..., vem aqui, vem comigo... Aqui é a sala onde ficavam os convidados, aqui, um pouco adiante é aquele cantinho onde alguns se acomodaram pra dormir, aqui é... O que que foi?
Por que parou de gravar?
Polícia?
Guarda tudo, guarda tudo. Desliga a câmera, guarda isso, vai.
Guarda logo, Julito.
Vamos sair logo daqui.
Por ali, por ali...
Ali, a porta, vai.
Anda, Julito, vai.
Como assim, acha melhor a gente ficar? Vão nos prender! Vai logo.
...
Anda, sai.
Ah, sai da frente, Julito, deixa que eu vou na frente.
...
Sei lá. Talvez seja melhor a gente esperar um pouco mais. Quem sabe a polícia nem percebe que a gente tá aqui e vai embora.
Ah, agora você quer sair?
Então por que não sai?
Como assim não consegue?
Sai logo, Julito. Sai logo.
Será que...?
Não é possível!!!
Ai, meu Deus!
Julito, faz alguma coisa.

Ali, ali, a polícia chegou. Graças a Deus.
Policial, policial, nos ajuda! Nos tira daqui.
...
É, é o que nós queremos, sair. Não conseguimos.
...
Eu já disse, a gente sairia se pudesse mas não conseguimos.
Não, não entra aqui. Não entra."


*************


"Central, câmbio...
Pode repetir, 65?
...
Um bando de jovens invadiu um imóvel abandonado?... É isso? Câmbio.

...

A orientação é para que os retire do imóvel e retorne para a Central. Câmbio.

Não conseguem sair? Você também não consegue? Câmbio.

Eles estão lhe impedindo de alguma maneira, 65? Estão armados? Obstruíram os acessos, as aberturas? Câmbio.

...

Qual a sua localização, 65?

...

Rua da Providência..., sim, sei.
Ok. Aguarde reforços. Estamos enviando uma unidade para o local. Câmbio e desligo."


*************

Dez horas já haviam se passado desde que a unidade de reforço chegara. Agora já eram sete pessoas dentro da casa.
Os sinos da catedral da Cidade do México badalavam para a missa das seis.




conto de Cly Reis
inspirado no filme "O Anjo Extermandor"
de Luis Buñuel

sexta-feira, 8 de março de 2024

"Vivos", de Frank Marshall (1993) vs. "A Sociedade da Neve", de J.A. Bayona (2023)

 



Enfrentamento dificílimo!

Dois grandes times!

Duas equipes de muita garra, muita coragem e determinação.

Por mais que "Sociedade da Neve" seja o time do momento, o mais conhecido, mais badalado, indicado ao Oscar, "Vivos", o esquadrão mais antigo que muita gente nem sabia existir, também tem muitas qualidades e chega para causar tantas dificuldades ao adversário quanto as montanhas dos Andes causaram aos passageiros daquele voo.

Ambos os filmes contam a história da queda de um avião, com uma equipe estudantil de rugby uruguaia, na Cordilheira dos Andes, da qual, após mais de setenta dias de sofrimento, frio, privações, fome, 14 tripulantes conseguiram sobreviver depois de terem que consumir carne humana de companheiros mortos, de modo a manterem-se suficientemente nutridos e enfrentarem as dificuldades daquele ambiente inóspito.

Com pequenas diferenças, uma omissão aqui, uma adaptação ali, uma liberdade criativa acolá, o enredo é basicamente o mesmo, o que não significa que os roteiros sejam iguais. A nova versão se fixa um pouco mais no passar dos dias, aumentando a expectativa e a dramaticamente do ocorrido, e ainda coloca para o espectador, a cada nova morte, o nome e a idade do falecido, amplificando a comoção e a ansiedade pelo fim daquela agonia. 1x0 para o time de 2023.

A construção dos personagens também é mais completa e bem elaborada no filme atual. A história é narrada por um dos tripulantes, o dedicado Numa o que aproxima o espectador daquela realidade. O espectador quase se sente próximo daqueles garotos, tão jovens, tão cheios de sonhos, de planos, tão cheios de vida pela frente. A gente sente a juventude. Só que sente também aquelas vidas, tão breves, indo embora. 2x0 para a Sociedade.

Por outro lado, senti falta de um comportamento um pouco mais "humano" dos sobreviventes, no filme atual. E quando digo "humano" não  me refiro a humanismo, boa vontade, compaixão, não! Isso tem de sobra. Sei que se tratava de um time, cujo grande mérito para conseguirem a sobrevivência do maior número possível de pessoas fora o trabalho em equipe, mas acho impossível que em mais de dois meses afundados entre as montanhas, atolados na neve, desesperados, não tenham tido altercações, desentendimentos, indisposição, brigas, egoísmos, coisas típicas do comportamento humano, especialmente em situações de desespero. Pois é, isso praticamente não aparecem no filme de 2023. Pelo contrário: a cada discordância, até mesmo na questão mais importante, que de certa forma salvou suas vidas, que era comer ou não a carne dos colegas, a solução era... rezar. Sei que a ênfase do filme era no companheirismo, na união, no trabalho de grupo, na amizade, mas, nesse sentido, o original é um pouco mais realista com uma serie de desentendimentos, rusgas e discussões de pessoas que, no fim das contas, eram apenas seres humanos. Vivos aproveita a falha do adversário e marca o primeiro: 1x2 no placar.

"Vivos" (1993) - trailer



"A Sociedade da Neve" (2023) - trailer


No entanto, tal 'suavização', creio que deve ter sido uma opção do diretor J.A. Bayona, muito competente, por sinal, de modo a enfatizar o lado positivo do grupo, uma vez que, em matéria de credibilidade, "Sociedade da Neve" é bastante mais fiel que "Vivos". Baseado no livro de um jornalista uruguaio, Pablo Vierci, que quando adolescente, acompanhou a tragédia, tinha amigos no voo e chegara até mesmo a cogitar, na época em fazer parte da delegação, "SDN" certamente se aproxima mais dos fatos ocorridos do que seu antecessor que, baseado nas pesquisas de um romancista inglês, Piers Paul Read, se dá a liberdade de mudar alguns nomes, criar alguns elementos ficcionais, e até, como Hollywood gosta, adicionar alguns momentos de ação. Mais um para SDN: 3x1.

Embora o bom Frank Marshall tenha caprichado em seu filme, lá em 1989, com uma parte técnica bastante competente e nada comprometedora, o novo é bem superior nesse sentido. Efeitos visuais, maquiagem, som, montagem, proporcionam sequências absolutamente impressionantes como a do momento do impacto da aeronave com o solo e as consequências com os passageiros (um voando pelo buraco na cauda do avião, pernas fraturadas entre os assentos, etc.), e a da primeira avalanche, que é   simplesmente apavorante. Filme que tira vantagem da tecnologia e dos recursos de sua época pra marcar mais um. 4x1. Sociedade da Neve parece uma avalanche sobre Vivos.

Mas Vivos ainda diminui. Se ambos não são totalmente fiéis quanto à parte do resgate e das repercussões, ou no mínimo incompletos, talvez para não se estenderem mais ainda, o filme dos anos 90 tem um elemento mágico que lhe garante mais um gol. O sapatinho vermelho! "Vivos" utiliza o elemento do sapatinho de bebê que o jovem Nando levaria para seu sobrinho no Chile e que, impedido de cumprir sua meta, divide o par com o amigo Carlitos como uma promessa de que voltaria, unindo novamente os dois pés do calçado quando retornasse da expedição final. Ao que ambos exibem exultantes quando resgatados, cada um com o seu, como símbolo de uma vitória. A vitória no confronto não veio, mas Vivos guarda seu segundo. Gol com um pezinho pequeno, de chuteira vermelha, mas que valeu a comemoração.

"Sociedade da Neve" vence o confronto de Libertadores, no frio, na altitude, ambiente hostil mas, na verdade, nesse confronto todos os sobreviventes são vencedores. 

No alto, à esquerda o grupo de "Vivos" e à direita o de "Sociedade da Neve",
amontoados dentro do que sobrou do avião.
Abaixo, à esquerda, um momento de ânimos alterados em "Vivos" e, em "Sociedade da Neve",
uma noção da aproximação que o diretor estabelece do espectador com os personagens,
aqui só pela expressão do ator.



"Vivos até tinha melhor elenco, com o medalhão Ethan Hawke, 
mas "Sociedade da Neve" veio com uma garotada e um time bem montado
e levou a Batalha dos Andes.

(Jogo daqueles disputado com bola colorida pra poder enxergar na neve)





por Cly Reis

quarta-feira, 6 de março de 2024

Joaninha Sangrenta

 







Joaninha-Vermelha (Cycloneda Sanguinea)
foto: Cly Reis



Joaninha-Vermelha
(Cycloneda Sanguinea)
foto: Cly Reis

terça-feira, 5 de março de 2024

sábado, 2 de março de 2024

"Anatomia de Uma Queda", de Justine Triet (2023)

 


INDICADO A
MELHOR FILME
MELHOR DIREÇÃO (JUSTINE TRIET)
MELHOR ATRIZ (SANDRA HÜLLER)
MELHOR ROTEIRO ORIGINAL
MELHOR MONTAGEM


Uma queda...

Pouco menos de oito minutos são o suficiente para que sejamos empurrados para o mistério. A queda foi acidental, foi provocada, foi suicídio...? Depois de uma breve tentativa de entrevista com uma renomada escritora, interrompida, inconvenientemente, pelo barulho proposital do marido no andar de cima, no retorno do filho do casal, após um passeio pelo bosque, próximo à casa, com seu cão, o corpo do pai, Samuel, é encontrado pelo garoto, na neve, com evidentes sinais de queda dos andares superiores da casa. A polícia especula acidente, uma vez que Samuel fazia reformas no andar de cima, especula que outra pessoa pudesse ter entrado na casa, especula suicídio, mas diante de uma série de contradições, omissões e pequenos indícios, passa a suspeitar da esposa, Sandra, e tratar o caso como possível homicídio.

Mais do que apenas um filme de mistério tradicional, no qual há todo um quebra-cabeças para encontrar o culpado, "Anatomia de Uma Queda", utiliza-se do ocorrido para remontar situações externas que teriam sido determinantes para aquele destino e todos os aspectos emocionais que levaram até ele. A relação desgastada do casal, a frustração profissional de Samuel e seu estado emocional instável, sua incapacidade de reagir aos problemas, a personalidade manipuladora de Sandra, a suposta apropriação da produção literária do marido, o problema de visão do filho e a versão de cada um para a dedicação dada a ele, tudo vai sendo destrinchado, vai aparecendo aos poucos, em evidências da polícia, em depoimentos no tribunal, nas contradições de Sandra, e em novas provas que surgem e são apresentadas.

Durante boa parte de sua duração, "Anatomia de Uma Queda" é um filme de tribunal, "gênero" que muita gente têm uma certa resistência, mas neste caso específico, o longa é de uma riqueza retórica e argumentativa, que passa longe de ser "chato". As coisas todas vão se encaixando e se desencaixando de acordo com cada nova testemunha, cada dia do julgamento, cada novidade... A anatomia da queda vai sendo montada pedacinho por pedacinho mas a diretora Justine Triet, com uma condução brilhante, faz questão que não tenhamos certeza alguma durante o tempo todo, de modo que levemos em consideração todas as possibilidades e, bem como o júri, façamos nossos juízos a respeito do caso. 

Um dos melhores filmes da temporada! Não à toa vencedor da última Palma de Ouro em Cannes e candidato ao Oscar de Melhor Filme, podendo repetir o arrebatador "Parasita", em 2020, com as conquistas dos dois prêmios mais significativos da indústria do cinema. Na minha opinião, não seria nenhum absurdo.

Quatro momentos do filme: em cima, Daniel, o filho, encontrando o corpo; e Sandra em conversa com seu advogado.
Em baixo, o promotor incisivo e implacável contra Sandra; e, à direita, a ré, diante do júri.



Cly Reis

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Sinéad O'Connor - "Am I Not Your Girl?" (1992)

 



"São as músicas
que cresci ouvindo
e me fizeram querer
ser cantora."
Sinéad O'Connor



Sabe aqueles discos que a gente acha que ninguém mais gosta além de você? Pois é, "Am I Not Your Girl?", de Sinéad O'Connor era assim pra mim. Já era fã da cantora de seus trabalhos de carreira, mas aí na compilação "Red Hot + Blue" coletânea com vários artistas em homenagem a Cole Porter, descobri a veia jazz da irlandesa. No projeto da organização Red Hot, em benefício às vitimas da AIDS, Sinéad interpretava, de forma magnífica, a lindíssima "You do something to me" e aquilo me arrebatou. Mas acredito que a experiência tenha sido importante para ela também, uma vez que a cantora lançaria dois anos depois, um álbum só de standarts do jazz.

Sinéad canta com elegância, com precisão, confere a emoção exata para cada canção.

A faixa de abertura já justificaria todos os elogios à obra: "Why don't you do right?", canção originalmente do filme "As noivas do Tio Sam", mas imortalizada na voz da sensual personagem de desenho Jessica Rabbit, ganha carne e osso na boca de Sinéad O'Connor numa interpretação provocativa, insinuante, venenosa, digna da femme-fatale do desenho animado.

"Bewitched, Botched and Bewildered" que a segue, conjuga magicamente melancolia, delicadeza e graça, com a cantora colocando uma doçura tal, uma fragilidade na voz... que chega a ser algo realmente tocante. "Secret Love", originalmente cantada por Doris Day, nos anos 50, tem um arranjo mais aberto, mais luminoso, mas Sinéad canta num ar quase confidente ao revelar, "Once I had a secret love" e logo abre o peito para revelar que não  tem segredos para mais ninguém, "My secret love is no secret anymore". E "Black Coffee", gravada anteriormente por nomes como Sarah Vaughn e Ella Fitzgerald, e trilha do filme "Algemas Partidas" em 1960, confirma perfeitamente aquela atmosfera misteriosa de filme noir.

No entanto é em "Success has made a failure of our home" que a irlandesa despeja sua maior carga emocional em uma das canções do disco. Apoiada por um arranjo jazz-rock intenso, Sinéad numa interpretação dramática, encarna uma mulher desesperada, quase indo às  lágrimas, se desfazendo, se desintegrando diante de seu homem, implorando para que ele simplesmente diga que ela ainda é sua garota.

Outro ponto alto do disco é a ótima "I want to be loved by you", do filme "Quanto mais quente melhor", na qual Sinéad conserva a discontração e a leveza da original, interpretada por Marilyn Monroe, com direito até a um "Boop-boop-a-doop!", que, se não tem a mesma sensualidade da loira, tem graça e doçura.

A sombria canção do compositor húngaro Rezső Seress, letrada por László Jávor, "Gloomy Sunday", associada frequentemente a suicídios, traduzida para o inglês e cuja interpretação mais famosa é de Billie Holiday, ganha uma verão não menos emocional, intensa e cheia de possíveis "leituras" e "interpretações" na voz da irlandesa que, sabe-se bem, embora tenha morrido de causas naturais, tentara o suicídio diversas vezes durante a vida.

"Love Letters", clássico que já esteve nas trilhas de diversos filmes e peças, com os mais variados andamentos e ênfases, neste disco ganha uma sonoridade imponente de metais com uma poderosa introdução de uma orquestra de jazz, enquanto Sinéad, se comparada a outras grandes vozes como Nat King Cole e Elvis Presley que já interpretaram a canção, opta por uma interpretação sóbria, comedida, que lhe confere um aspecto ainda mais fragilizado.

Em uma leitura extremamente melancólica e dramática do clássico da bossa-nova, "Insensatez", de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, a irlandesa demonstra toda a importância e a influência da música brasileira em sua formação. "Scarlett Ribbons", canção de Natal na sua origem, aqui adquire uma carga quase fúnebre. Muito se dá pelo formato: a voz acompanhada apenas por uma flauta, e o tom cru do estúdio, com o ouvinte podendo captar todas as respirações, as pausas, os vazios...

"Don't cry for me, Argentina", do musical Evita, aparece em duas versões, uma cantada, que se não é nada excepcional, no mínimo é, inegavelmente, melhor do que a da Madonna, e uma instrumental, num jazz descontraído e acelerado, que, praticamente fecha o disco, que ainda tem uma mensagem pessoal da cantora sobre a dor (o que também fez ainda mais sentido depois das circunstâncias de sua morte).

Na época que soube do projeto da irlandesa, tratei de dar um jeito de dar um jeito de conseguir aquele seu novo álbum, só que duro como era na época (e ainda sou), o jeito foi gravar e ter em K7. Muito ouvi aquela fita. Gastei os cabeçotes do walkman com ela. Até evoluí depois, embora ainda sem grana, para o CD gravado, mas nunca havia tido uma mídia original. Até que numa dessas feiras de vinil, encontrei por um preço bem razoável o "Am I Not Your Girl?" em LP. O vendedor, um senhorzinho muito simpático que me contou ter sido DJ em festas disco dos anos 70, se derreteu pelo álbum. Disse ser aquele, na sua opinião, um grande disco, trabalho que muita gente não valoriza mas que para ele era o melhor da cantora, interpretações  incríveis e tudo mais... Se eu tivesse alguma dúvida, as teria abandonado naquele momento com uma manifestação tão  entusiástica como aquela. Mas a admiração pelo disco não parou nele: tenho o hábito de compartilhar nas redes sociais minhas trilhas sonoras do dia e num dia desses qualquer, ouvindo o álbum, lancei lá no Facebook, no Instagram, no Twitter, um "Ouvindo agora, "Am I Not Your Girl?", de Sinéad O'Connor". Ah, foi uma enxurrada de likes e comentários. "Grande disco", "Esse disco é muito bom", "Dos meus preferidos", e etc. Aí  que eu descobri que não sou só eu que adoro esse disco. E, cá entre nós, um disco com tantos clássicos, canções eternizadas pelo cinema, músicas já interpretadas por nomes imortais, admirado desta maneira, e com essa importância na vida de tanta gente, não pode ser considerado menos que um ÁLBUM FUNDAMENTAL

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FAIXAS:
1. "Why Don't You Do Right?" - Joe McCoy (2:30)
2. "Bewitched, Bothered and Bewildered" - Lorenz Hart, Richard Rodgers (6:15)
3. "Secret Love" - Sammy Fain, Paul Francis Webster (2:56)
4. "Black Coffee" - Sonny Burke, Paul Francis Webster (3:21)
5. "Success Has Made a Failure of Our Home" - Johnny Mullins (4:29)
6. "Don't Cry for Me Argentina" - Andrew Lloyd Webber, Tim Rice (5:39)
7. "I Want to Be Loved by You" - Bert Kalmar, Harry Ruby, Herbert Stothart (2:45)
8. "Gloomy Sunday" - László Jávor, Sam L. Lewis, Rezső Seress (3:56)
9. "Love Letters" Edward Heyman, Victor Young 3:07
10. "How Insensitive" - Vinicius de Moraes, Norman Gimbel, Antônio Carlos Jobim (3:28)
11. "Scarlet Ribbons" - Evelyn Danzig, Jack Segal (4:14)
12. "Don't Cry for Me Argentina" (Instrumental) - Andrew Lloyd Webber, Tim Rice (5:10)
13. "Personal message about pain (Jesus and the Money Changers)" (Hidden track) - O'Connor (2:00)

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Ouça:



por Cly Reis