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quinta-feira, 6 de abril de 2023

Aqueles 10 filmes argentinos imperdíveis

 

Darín, o grande astro do cinema argentino
contemporâneo e presente em várias obras
Este post vem cumprir uma promessa feita há alguns anos. Conversávamos eu e dois colegas de trabalho durante o almoço e, papo vai, papo vem, lá pelas tantas o assunto caiu – como não é incomum de acontecer comigo e amigos meus – em cinema. O tema: cinema argentino contemporâneo. Compartilhamos ali do mesmo gosto pelo cinema realizado pelos hermanos e começamos a falar sobre nossas preferências dentro desta cinematografia. Foi então que, percebendo-se que alguns dos títulos dos quais eu comentava ambos não tinham visto ainda, eles ficaram curiosos para conhecer e tratamos de que eu fizesse uma lista com os meus filmes argentinos preferidos.

A lista, como se vê, não saiu em seguida. Voltamos do almoço para nossos postos e as obrigações nos fizeram esquecer de qualquer ludicidade. Mas os anos se passaram e o cinema da Argentina segue muy bien, gracias. Vários filmes foram produzidos neste meio tempo, inclusive dignos de comporem uma lista como esta além dos que já haviam sido realizados até então quando daquela nossa conversa. A bem da verdade, desde o brilhante “A História Oficial”, o primeiro Oscar de Melhor Filme para um argentino, em 1985, isso já se anunciava. A meu ver, no entanto, não foi com o hoje cult “Nove Rainhas”, de 2000, o start, pois o ainda considero imaturo e artificial. Porém, o filme, mesmo com suas inconsistências, já era o sinal que o curso do Rio do Prata havia sido achado. A partir dali, só foi “golazo”.

O contundente "A História Oficial":
1º Oscar da Argentina
Pois a indicação ao Oscar de Melhor Filme Internacional de “Argentina, 1985”, certamente um dos novos entrantes deste rol, fez-me resgatar a ideia agora atualizada. Esta amostragem aqui, então, vem resgatar – mesmo com este atraso do tamanho do Obelisco – a tal promessa. As 10 indicações servem tanto para estes meus amigos (espero que esta postagem chegue a eles) como qualquer um que também admire o melhor cinema feito na América Latina nos últimos 30 anos. Sim, porque a Argentina certamente passou o Brasil neste quesito, o que se reflete inclusive nas conquistas e na simples comparação entre um cinema e outro durante este tempo. (e olha que o cinema brasileiro se tornou bastante pujante nas últimas duas décadas!)

Mas não tem comparação: é na terra de Gardel que se atingiu um nível muitas vezes de excelência (e de exigência) técnica que contamina uma grande parte da produção cinematográfica do país. Seja nos roteiros bem escritos, seja na técnica de nível “primeiro mundo”, seja na habilidade cênica, seja no carisma e competência de símbolos desse cinema, como o principal deles: Ricardo Darín. Mas não somente ele: Oscar Martínez, Martina Gusmán, Dario Grandinetti, Leonardo Sbaraglia, María Onetto e outros que brilham nas telas. Tudo está a serviço de um cinema eficiente, que sabe contar bem (e com criatividade) uma história. Um cinema que achou o tão almejado equilíbrio entre arte e entretenimento.

E como se trata de uma produção vultosa (inclusive aqueles que eu nem assisti), teve, claro, o que ficou de fora. Mas se quiserem incluir “Leonera” (Pablo Trapero, 2008), “A Odisseia dos Tontos” (Sebastián Borensztein e Eduardo Sacheri, 2019), “Koblic” (Borensztein, 2016), “Elefante Branco” (Trapero, 2012) e “Neve Negra” (Martín Hodara, 2017), sintam-se perfeitamente à vontade, que também merecem toda audiência.

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“O Segredo de Seus Olhos”, Juan José Campanella (2009)

Não se poderia falar em lista de melhores filmes argentinos sem incluir “O Segredo...”. Afinal, não se trata apenas de um dos melhores da história de seu país, mas, tranquilamente, da década de 2000 em todo o mundo, no mesmo patamar de "Match Point", "Cidade dos Sonhos", "Elefante" e "Onde os Fracos não Tem Vez". Muito teria para se falar do filme de Campanella: a atuação sublime de Ricardo Darín, o hipnotismo que a musa Soledad Villamil causa no espectador, do merecido Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, do impressionante plano-sequência do jogo de futebol, enfim. Mas o que pauta esta grande obra é, definitivamente, sua trama, tão envolvente quanto literária, visto que extraída com maestria por Campanella do livro de Eduardo Sacheri (que, aliás, colabora com o roteiro). Thriller, romance, comédia, policial, aventura, drama. Um pouco de tudo e tudo muito bem amarrado. (Amazon Prime)


“Abutres”, Pablo Trapero (2010)

Aqui, duas recorrências próprias do atual cinema da Argentina. A primeira delas, obviamente, é Ricardo Darín, que estrela vários filmes dessa lista e muitos outros dignos de estarem aqui mencionados também. A outra repetição é Trapero, o mais talentoso cineasta de sua geração na Argentina. Em ”Abutres”, ambos dão um show. Numa trama que, como é de costume aos argentinos, envolve drama, denúncia e história de amor, o filme trata de um advogado especializado em acidentes rodoviários, que descobre um esquema de corrupção e desvio de dinheiro às custas do sofrimento de pessoas simples. A cena final, sem dar spoiler, além de um surpreendente desfecho da história, tem o recurso de plano-sequência característico aos encerramentos dos filmes de Trapero. (Star Plus)


“Medianeiras – Buenos Aires na Era do Amor Virtual”, Gustavo Taretto (2011)

Comédia romântica, mas não como os enlatados de Hollywood, e sim com um olhar muito próprio da vida contemporânea na era que tudo impele a ser digital – inclusive as relações amorosas. Ganhador de melhor direção e melhor longa estrangeiro no Festival de Gramado, “Medianeiras” narra os encontros e desencontros de Martín e Mariana, os protagonistas-símbolo de uma geração emparedada pelas linhas simétricas das metrópoles. Solidão, neuroses, traumas, aflições, desilusões. Tudo sob o olhar da selva de concreto chamada Buenos Aires, que se revela como uma personagem onipresente. Para quem ama comédias românticas inteligentes como “Encontros e Desencontros”, “Bar Esperança”, e “(500) Dias com Ela”, pode por pra rodar “Medianeiras”, que o longa de Taretto é deste naipe. 


“O Clã”, Pablo Trapero (2015)

Trapero de novo. E aqui impecável. A assustadora história da família acima de qualquer suspeita, os Puccio, que sequestra pessoas ricas, cobra o resgate e assassina as vítimas assim que coloca a mão no dinheiro, guarda o aspecto de crítica político-social própria do cinema argentino. Baseado num caso real, mais do que apenas evidenciar fragilidades de seu país, “O Clã” revela perversidades obscuras sorrateiramente entranhadas na sociedade platina. Afinal, como duvidar que tamanha maldade aconteça numa sociedade que, em parte, acolheu uma das ditaduras mais sangrentas da América Latina? Memoráveis as cenas em que "Afternoon Tea", da Kinks, rola enquanto o circo de horrores acontece e, como de praxe quando se trata deste cineasta, o plano-sequência. Vencedor do Urso de Prata de Melhor Diretor em Veneza, Trapero faz seu melhor filme - e isso significa bastante considerando sua filmografia quase irretocável. (Star Plus)


“Relatos Selvagens”, Damián Szifron (2014)

A tradição dos filmes de episódios dos europeus e mesmo do Brasil nos anos 60 e 70 é inteligentemente recuperado, claro, pelos argentinos. E que filme! Potente, ferino, mordaz, grotesco. "Relatos Selvagens" reúne seis histórias distintas, que se complementam entre si por um fio condutor subjetivo mas evidente: o conflito entre barbárie e civilização. E pior: a primeira, fatalmente, sempre vence de algum jeito, seja nas vias de fato após, seja com uma bomba que exploda tudo. Darín, igualmente, não poderia estar de fora, estrelando o episódio em que um engenheiro de minas que se revolta contra o sistema e resolve se vingar com aquilo que ele melhor sabe fazer: explodir bombas. Embora não tenha levado, foi selecionado para os dois maiores prêmios do cinema mundial: a Palma de Ouro de Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro. (HBO Max e Amazon Prime)


"O Pântano”, Lucrécia Martel (2001)

Além do já mencionado Trapero, o cinema argentino conta com vários outros cineastas talentosos. Porém, nenhum deles possui um estilo tão pessoal como Lucrécia Martel. Dona de um cinema de linhagem moderna carregado e perspicaz, ela vale-se da dificultação do olhar e da fragmentação narrativa para expressar sentimentos e angústias da sociedade contemporânea, adentrando nas profundezas de seus personagens. Texturas, sensorialidades e densidade se homogeizam para expor tensões interpessoais, que se encaminham fatalmente para o pior. Uma reflexão visceral sobre classe, natureza, sexualidade e política, e uma das mais aclamadas estreias de realização contemporâneas. Prémio para Melhor Primeira Obra no Festival de Cinema de Berlim.


“Um Conto Chinês”, Sebastián Borensztein (2011)

O típico filme do novo cinema da Argentina: comédia dramática, com roteiro envolvente, referência a traumas nacionais (Guerra das Malvinas), um toque de romance e, claro, a estrela de Ricardo Darín. A trama é relativamente simples, mas convidativa: o ranzinza Roberto (Darín) trabalha numa loja de ferragens e vive de maneira metódica, mas sua rotina muda quando um chinês que não fala uma palavra de espanhol aparece em seu caminho, e ele decide ajudar o adorável forasteiro. Longe de se resumir a uma fórmula como no tradicional cinema comercial, “Um Conto...” faz uso desses elementos narrativos para compor um filme divertido e delicioso de se assistir, sem deixar de propor reflexão. Diversão com cérebro. Prêmio Goya de Melhor Filme Ibero-Americano. (Star Plus)


“Vermelho Sol”, Benjamín Naishtat (2019)

Esqueça o formato "diversão inteligente" de “Relatos...”, o toque romântico de “O Silêncio...” a comicidade de “Um Conto...”. “Vermelho Sol” é pura tensão e embrulho no estômago. Contando a história de um advogado arrogante, que vê sua vida perfeita desmoronar quando um detetive particular chega na sua pacata cidade para investigar um desaparecimento, o longa de Naishtat se assemelha a filmes marcantes do cinema que souberam narrar, com acuidade, o "começo do fim", como “A Fita Branca”, de Michael Haneke, para com a Primeira Guerra, ou “O Ovo da Serpente”, de Ingmar Bergman, que previa o que levou ao Holocausto. Duro, forte e absolutamente real. Afinal, por trás dos segredos dos personagens de “Vermelho...” havia uma ditadura militar se anunciando. Premiado em diversos festivais, como Toronto, Havana, San Sebastian, Rio de Janeiro e Recife.


“Nascido e Criado”, Pablo Trapero (2006)

Antes de “Leonera”, de “Abutres” e de “O Clã”, Trapero realizou está pequena obra-prima tocante e profunda sobre os limites da existência, confrontando o inato e a superfície, a natureza e a convenção social. Conta a história da família de Santiago, um jovem dedicado à decoração e à restauração de antigos objetos, que vive um repentino acidente na estrada, o qual desencadeia uma tragédia familiar e um violento giro em sua vida. Numa paisagem gelada do extremo-sul argentino, Santiago, irreconhecível, reaparece empregado num aeroporto perdido no fim de mundo. O cineasta volta sua lente para dois interiores: o humano e o das paisagens rústicas do pampa, para onde o personagem principal se refugia de si próprio. Na mesma medida, Trapero, dado a este olhar penetrante, atinge outro interior: o do espectador. (Prime Vídeo)


“Argentina, 1985”, Santiago Mitre (2022)

Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro (não levou o Oscar por pouco, pois merecia muito mais do que o badalado “Sem Novidades no Front”), "Argentina, 1985" narra a história verídica dos promotores públicos Julio Strassera e Luis Moreno Ocampo, que ousaram investigar e processar a ditadura militar mais sangrenta da Argentina. Sob forte pressão política, pública e militar, a dupla, amparada por uma jovem equipe de universitários engajados, encabeçou uma longa pesquisa antes de começar a julgar os cabeças do regime argentino naquele que é conhecido como Julgamento das Juntas. Não apenas Darín, que faz Strassera, mas Juan Pedro Lanzani, no papel de Ocampo, estão fenomenais. Igualmente, magnífica a cena da leitura da acusação no tribunal, um dos textos mais pungentes que o cinema latino-americano já viu. (Prime Video)




Daniel Rodrigues

quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

Debate 17ª Mostra Unisinos de Cinema - Cinemateca Capitólio - Porto Alegre/RS (19/12/2022)

 

Nada como terminar o ano de diversas atividades de crítica cinematográficas junto àqueles que estão iniciando a caminhada no meio do cinema: os alunos. 2022 foi novamente de bastante envolvimento meu para com o cinema e a crítica, o que pude exercitar em diferentes frentes. Depois de largar com o lançamento do livro da Accirs, “50 Olhares da Crítica Sobre o Cinema Gaúcho”, em março; de integrar a comissão curatorial da Mostra gaúcha do CineSesc, de março a maio; de presenciar pela primeira vez o Festival de Cinema de Gramado na histórica edição de n° 50, em agosto; de mediar um bate-papo sobre Sirmar Antunes numa live para o Museu do Festival de Cinema de Gramado, em novembro; e de estrear com artigo na igualmente histórica edição de 20 anos da revista Teorema, no último mês do ano; participei como convidado pelo professor da Unisinos, o cineasta Milton do Prado, a debater criticamente a 17ª Mostra Unisinos de Cinema, que apresenta os trabalhos de alunos feitos durante o ano.

Esta aproximação, aliás, já vinha sendo alentada desde o ano passado, quando Milton havia me convidado para uma sessão comentada sobre o clássico filme gaúcho “Um É Pouco, Dois É Bom” (1970), primeiro longa-metragem dirigido por um cineasta negro no Rio Grande do Sul, Odilon Lopez. Na ocasião, um conflito de agendas me impossibilitou de participar, mas desta vez não titubeei. Numa Cinemateca Capitólio lotada e com mediação da professora Jessica do Vale Luz, assistimos a cinco curtas, todos produzidos por alunos de Milton e do também professor e cineasta Vicente Moreno, coordenadores do curso de Realização Audiovisual da universidade.

Impossível não notar algumas inconsistências nos filmes, compreensíveis a trabalhos acadêmicos, pois geralmente os primeiros exercícios no audiovisual de seus realizadores. Os filmes, no entanto, guardam todos qualidades em narrativa e nos aspectos técnicos, como edição de som, fotografia e edição. Os roteiros, alguns menos trabalhados do que outros, foram os grandes responsáveis por balizar o maior ou menos sucesso das obras. O simpático “Confluência”, que narra os encontros e desencontros de uma juventude porto-alegrense, é um exemplo disso. O frescor das histórias de amor juvenis, tão presentes no cinema da Nouvelle Vague ou mesmo no moderno cinema gaúcho dos anos 80, funciona até o momento em que, por escolha da diretora, Valentina Ritter Hickmann, recentemente premiada em Gramado com o emocionante "Somente para Registro", doc subjetivo e pessoal, não consegue repetir a mesma coesão nesta nova realização. Muito por delegar (palavras da própria autora) a fruição da história aos atores e menos ao roteiro, base de toda obra audiovisual. Enfim, erros e acertos inerentes ao caminho. 

Interessante filme, mas que também requer maior trato de roteirização, é “Sufoco”. Dirigido pelo jovem negro Maicon F. Silva, aborda aspectos sociais importantes como preconceito, bullying, ancestralidade e identidade. Porém, as amarrações narrativas parecem um tanto soltas, fazendo com que elementos interessantes – como o colar capaz de encorajar o aflito protagonista – ressinta-se de maior coerência.

“Sem Cabeça”, de Beatriz Potenza, é daqueles casos em que tudo funciona de forma bastante eficiente. Contando a história de um casal de jovens em que a moça experimenta pela primeira vez maconha na casa do namorado, a diretora extrai de uma história pequena nuances bastante profundas. Olhares, diálogos bem alocados, tempo de ações e uma eficiente fotografia revelam uma questão social nem tão abordada como deveria, que é a relação heteroafetiva abusiva.

Também feliz a realização de "Fim de Festa", inclusive por tratar de outro tema tabu, mas igualmente essencial de ser exposto assim como racismo e a violência doméstica, que é a questão LGBTQIA+. Afora alguma inconsistência cênica, o curta de Luísa Zarth Carvalho traça, num engenhoso diálogo entre duas jovens que vai se de desenrolando pouco a pouco, perfis bem estruturados das personagens, a quem se descobre ter havido num passado algo velado entre ambas.

Dessa leva, no entanto, “Enquanto Irmãos”, de Leonardo Kotz, se destaca pela inteireza da realização. Filme que funciona do início ao fim, traz a história de dois pequenos amigos que se encontram na casa de um deles no dia em que o irmão do outro está nascendo. As delicadas falas, as sutilezas da relação de irmandade entre os amigos, bem como as preocupações existenciais das crianças, são conduzidas com absoluta assertividade. Tecnicamente também. Para quem formou sua cinefilia assistindo filmes protagonizados por crianças como “Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios”, “Minha Vida de Cachorro” e “Pelle, O Conquistador”, este curta foi uma grata surpresa.

Enfim, filmes que, mesmo desiguais, mostram que a difícil arte de se fazer cinema é objeto de paixão das novas gerações. Uma ótima maneira de terminar um 2022 repleto de cinema, mas desta vez, num encontro com a raiz. Como diz o policial Malone vivido por Sean Connery a Elliot Ness (Kevin Costner) em “Os Intocáveis”: “se você não quer pegar uma maçã podre, não vá ao cesto: tire-a da árvore”.

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Panorâmica do palco com os realizadores e a professora Jessica


Começando o bate-papo

Falando aos alunos e público

Jessica fazendo minha apresentação


Dando as minhas primeiras considerações na noite de debates



texto: Daniel Rodrigues
fotos: Leocádia Costa e Vicente Moreno

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

"Barbosa", de Ana Luíza Azevedo e Jorge Furtado (1988)

 


O Medo do Goleiro Diante da Vida

por Daniel Rodrigues

"Eu já pensei naquela bola um milhão de vezes". 
Barbosa


Cult movie por excelência, o filme “O Medo do Goleiro Diante do Pênalti”, primeiro longa do genial cineasta alemão Wim Wenders (1972) tem como protagonista uma figura dificilmente destacada e, por isso, raramente observada: o arqueiro de futebol. Aquela máxima futebolística de que “goleiro só é lembrado quando acontece coisa ruim” serve de mote simbólico para a vaga trama escrita pelo jovem Wenders à época do nascente cinema novo de seu país. A invisibilidade do goleiro ante os outros 10 jogadores de seu próprio time, tão atletas quanto ele, pelo simples fato de jogar diferente e estar “lá atrás”, onde o olhar de ninguém está direcionado, funciona como uma metáfora para a saga do personagem Joseph Bloch (Arthur Brauss), um jovem alemão cético, narcisista e sem propósitos na vida. Era um reflexo de toda uma geração de artistas da terra de Goethe fruto do pós-II Guerra, que arrasou a Alemanha física e moralmente, e que vazou para todas as artes, inclusive cinema.

Claro que essa situação de angústia existencial e esvaziamento de nexos gera aquilo que o título do filme de Wenders evidencia: medo. Uma nação enganada pelo fascínio do nazismo como a alemã e que viu, após anos de destruição, suas bases morais e materiais ruírem, só poderia mesmo carregar consigo muita culpa e ilogicidade. Isso, na Alemanha, repleta de história, industrializada, rica e um dos berços da cultura ocidental. Agora imagine uma nação jovem, colonizada, pobre, fortemente rural e forjada sobre bases escravocratas como o Brasil da primeira metade do século 20! Dá para imaginar como um goleiro no futebol brasileiro era tratado. Só existem duas possibilidades: ou ele defende tudo e é um herói ou, se deixa escapar uma bola que seja, vira vilão. Caso de “Barbosa”, personagem do filme semidocumental de Ana Luíza Azevedo e Jorge Furtado (1988).

Assim foi a vida de Moacyr Barbosa Nascimento, goleiro mítico do Vasco da Gama desde 16 de julho de 1950: a de um vilão. O fatídico dia do Maracanaço, quando o Brasil perdeu a final da Copa do Mundo daquele ano para o Uruguai dentro de casa, em pleno Maracanã superlotado de todas as almas nacionais, é também o dia que se decretou a morte simbólica de um jovem de 29 anos até a sua partida material em 7 de abril de 2000. O medo do goleiro, abstrato na obra de Wenders, foi, no entanto, totalmente real para Barbosa. O medo da culpa. A responsabilidade da frustração de uma nação inteira recaiu sobre os ombros daquele jovem, não coincidentemente negro e de origem pobre.

O injustiçado Barbosa em cena do filme de Furtado

Refém de um povo imaturo e preconceituoso, Barbosa levou toda a responsabilidade pela tragédia. Haveriam de achar um “bode expiatório”, e melhor que esse fosse uma figura vulnerável: um jogador entre os 11, negro e “sem defesa” (como as palavras podem ser cruéis e certeiras em certas situações...). A opinião pública, frustrada pois pouco madura para administrar a própria expectativa, não teve nenhum preparo para absorver uma derrota que aconteceu dentro das quatro linhas. A “intelligentsia” brasileira, tão infantil quanto, não só se eximiu de ajudar como inflamou mais os ânimos. Nelson Rodrigues, em cima do lance, cunhou o termo do “complexo de vira-lata”: “entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. O brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a autoestima.”

No curta-metragem (Melhor edição no Festival de Gramado e Melhor filme de ficção no Festival de Havana), o próprio Barbosa, uma figura tristemente triste, queixa-se em entrevista do estigma que o imputaram e do qual nunca mais conseguiu se livrar. Motivado pelo trauma da infância, o personagem fictício vivido por Antônio Fagundes volta ao passado numa máquina do tempo para tentar promover uma correção histórica. Mas a história é mais implacável e dura do que a consciência do herói do futuro. De certa forma, denota-se que o Brasil de 1988, quando o filme foi filmado, ainda não havia compreendido maduramente o episódio da Copa de 50 e, consequentemente, elaborado a injustiça para com Barbosa. Por autocondenação, por “síndrome de vira-lata”, por egoísmo, por imaturidade. Por racismo. Se a ressaca que acometia Arthur do filme de Wenders era por algo que sua nação havia feito, a de Barbosa, muito menos subjetiva, era por algo que a nação não havia tido condições de fazer.

Fagundão voltando no Brasil dos
anos 50 pra tentar impedir o pior
Afora isso, para quem acompanha futebol e tenta compreender sua evolução tanto tática quanto física e até aerocinética dos corpos, é ainda mais exagerada a culpabilidade de Barbosa. Ele não pegou aquele chute do uruguaio Giggia por motivos plausíveis até hoje, mesmo transcorridas mais de sete décadas. A começar, a bola foi entre a trave e o seu corpo, o que dificulta um movimento curto lateral e para baixo. O atacante Bebeto, tetracampeão pela Seleção, valia-se deste "macete" contra os goleiros, de meter na menor distância, geralmente com sucesso. Segundo, porque a bola veio rente ao gramado, rápida e na diagonal, ou seja, menos de milésimos de segundo de visualização por parte do arqueiro. E terceiro: passou rente à trave. Para pegá-la, um goleiro provavelmente precisaria se estatelar na própria goleira e talvez nem assim resolvesse. Um lance como aquele renderia uma defesa difícil até hoje, mesmo com toda a evolução técnica e física dos goleiros. Para uma época ainda primária do esporte bretão, em que muitos gols saíam de jogadas absurdas, muitas vezes dos próprios goleiros, não dá para considerar aquela jogada do segundo gol do Uruguai como uma falta grave de Barbosa e muito menos um "frango". Impossível de pegar? Hoje, não. Talvez naquela época também não, mas com certeza é aceitável tanto antes quanto agora não receptá-la. Na verdade, ocorreu o que o brasileiro dificilmente admite: mérito do adversário, e não demérito seu.

É mais forte do que qualquer raciocínio ponderado, no entanto, a depreciação de uma nação pueril que acreditou, por falta histórica de ferramentas para um auto entendimento, na falácia darwinista do evolucionismo. Povo mestiço: então, necessariamente "inferior", "incapaz", "indolente", "imprestável". Era o que se ouvia das bocas (in)cultas de Gobineau, Monteiro Lobato, Oliveira Viana, Roquette-Pinto. Interessante perceber que o filme de Furtado e Ana Luiza se dá na época da “seca” do Brasil em Copas do Mundo (o que só seria “superado” dali quase a 10 anos, em 1994, com a conquista da Copa nos Estados Unidos) e que termos como os ditos antigamente voltavam à baila. Basta ver a música “Inútil”, da Ultraje a Rigor, de 1985, que, criticando o ser brasileiro, repete o adjetivo inclusive para associá-lo ao futebol: “A gente joga bola e não consegue ganhar”.

Acontece que as razões para a autodepreciação do brasileiro para consigo mesmo é muito mais profunda do que apenas derrotas ou vitórias dentro de campo. No máximo, esses resultados do esporte são reflexos, mas nunca derrocada ou muito menos solução. Nelson Rodrigues, ingenuamente, afirmava que a “síndrome de vira-lata” se dissipara quando, oito anos depois daquele fatídico jogo no Rio de Janeiro, a Seleção Brasileira vencera a Copa do Mundo na Suécia. Mera ilusão. A valorização como povo e, principalmente, o reconhecimento de suas capacidades como nação única e indivisível ainda está longe de ser alcançado no Brasil do séc. 21. A extrema polarização política que se deflagrou no País há menos de uma década dá motivos para se pensar assim. Em 1958, Pelé e Garrincha nos deram arte, mas não resolviam quase nada. Tanto que o Brasil seria lindamente tricampeão em 1970 sob a sombra do pior momento político-social da sua história, quando as liberdades e os direitos humanos eram barbaramente infligidos pela Ditadura Militar. Isso sim é degradação moral.

A reparação história a que Barbosa fora merecedor pelo massacre público a que foi objeto nada mais é, noutra escala, do que o sistema de cotas e as políticas para corrigir as discrepâncias e erros cometidos com negros excluídos da sociedade. Barbosa morreu sem presenciar o Mineiraço, os 7 x 1 da Seleção da Alemanha sobre a do Brasil na segunda Copa do Mundo no Brasil. Talvez ele pudesse perceber que hoje em dia, um pouco mais madura 64 anos depois, a responsabilidade não é atribuída a apenas uma pessoa. Talvez tivesse ficado um pouco confortado. Mas com certeza seu olhar sofrido e perspicaz teria notado também que o goleiro, tão pouco culpado quanto ele, era branco. E aí, é bem mais fácil de lidar.

filme "Barbosa", de Ana Luíza Azevedo e Jorge Furtado (1988)



domingo, 27 de novembro de 2022

Live Museu do Festival de Cinema de Gramado - Homenagem a Sirmar Antunes (24/11/2022)


Tive a honra de mediar, dias atrás, a convite do meu amigo e colega de profissão e de ACCIRS Matheus Pannebecker, uma live promovida pelo Museu do Festival de Cinema de Gramado em homenagem ao ator Sirmar Antunes. Na ocasião, durante a Semana da Consciência Negra, pude intermediar uma conversa muito proveitosa com a cineasta Mariani Ferreira e a educadora e integrante do Coletivo Sanfoka - Valorização da Diversidade Cultural Lis Reis. 

Com quase 50 anos de carreira no cinema e no teatro, Sirmar, falecido em agosto deste ano, dias antes da realização do 50º Festival de Cinema de Gramado, do qual ele tanto é uma referência quanto, igualmente, participaria como jurado, foi um dos mais queridos e competentes homens do audiovisual gaúcho. 

Na live, pelo Instagram do Museu, Mariani e Lis trouxeram seus olhares afetivos e conscientes tanto sobre Sirmar quanto a condição da pessoa negra nos seus meios e na sociedade como um todo. A própria existência e exemplo de Sirmar, aliás, deu este lastro para que o tema se aprofundasse. Chamou-me atenção, além das próprias falas das convidadas, a capacidade de enxergar a questão da negritude pela ótica da coletividade e da ancestralidade. 

Particularmente, tenho grande apreço pela figura de Sirmar tanto como ator preto quanto por sua importância referencial no cinema gaúcho que aprendi a gostar desde os anos 80. É ele quem interpreta o Sargento de “O Dia em que Dorival Encarou a Guarda”, de 1986 (Jorge Furtado e José Pedro Goulart), filme especial em minha trajetória como cinéfilo e crítico de cinema, tanto por ter me apresentado a ele quanto por ser um dos filmes mais pungentes sobre o racismo que já assisti. Esta obra, inclusive, me motivou a escrever, em 2020, uma resenha crítica após o episódio de racismo na live da Associação Profissional de Técnicos Cinematográficos do Rio Grande do Sul (APTC-RS) sobre o filme “Inverno”, e que envolveu, aliás (mas não coincidentemente, por mais triste que seja) a própria Mariani. Várias conexões.

Enfim, confiram o vídeo, que vale a pena.

SOBRE MARIANI FERREIRA
É roteirista, diretora e produtora. Começou sua carreira como trabalhadora doméstica, estudou jornalismo, foi crítica de cinema e redatora e diretora de publicidade. Atualmente trabalha como roteirista na TV Globo. Seu filme de estreia, o curta-metragem de ficção “Léo", foi exibido em diversos festivais pelo mundo. Mariani também é produtora executiva e roteirista do documentário “O Caso do Homem Errado”. Também é roteirista da sitcom “Necrópolis”, exibida pela Netflix, e diretora do curta-metragem "Rota", que ganhou Menção Honrosa do Júri do 49º Festival de Gramado e o Prêmio Canal Brasil de Curtas no Cabíria Festival de 2021. Em 2022, estreia duas séries das quais é criadora e roteirista, a animação "Os Pequenos Crononautas" e o drama histórico "Filhos da Liberdade".

SOBRE LIS REIS
Educadora da rede de Gramado, trabalha com consciência vocal desde 2009. Participa como cantora em espetáculos da região desde 2004. Atuando como  oficineira em pontos de cultura e de grupos teatrais nas cidades de Canela e Gramado. Integrante do coletivo Sankofa.

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Assista: https://www.instagram.com/p/ClXH8zPh_XB/ 


Daniel Rodrigues

sábado, 5 de novembro de 2022

Drops lançamento do livro “50 Olhares da Crítica Sobre o Cinema Gaúcho”, da ACCIRS, na Feira do Livro de Porto Alegre - 05/11/2022





E lá vamos nós para mais uma etapa do lançamento do “50 Olhares da Crítica Sobre o Cinema Gaúcho”! E desta vez onde não poderíamos deixar de estar: na estimada Feira do Livro de Porto Alegre! Depois do lançamento oficial, lá em março, no Araújo Vianna, em Porto Alegre, e do Festival de Cinema de Gramado, em agosto, agora é a vez de celebrarmos este projeto naquele que é o evento cultural-literário mais antigo (e provavelmente, o mais querido) da cidade.

O livro, editado pela Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (ACCIRS), da qual orgulhosamente faço parte como membro fundador e, hoje, secretário, traz uma coletânea de 50 brilhantes artigos sobre 50 filmes gaúchos lançados entre as décadas de 1950 e 2020 no Rio Grande do Sul. Olha: é só texto bom!

Estaremos lá nós membros da ACCIRS em mais de 20, e a previsão do tempo, tão instável nesta época do ano, promete ser boazinha conosco.

Então, quem tiver por POA, aparece lá, que a pena e a tinta já estão aguardando os autógrafos. Depois a gente volta aqui com registros desta tarde, que promete ser ensolarada de sol e de gente bonita.

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lançamento do livro “50 Olhares da Crítica sobre o Cinema Gaúcho”
da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (ACCIRS)  
onde: 68ª Feira do Livro de Porto Alegre (Praça da Alfândega, s/ nº, Centro Histórico - Porto Alegre).
quando: dia 05/11 (sábado) - 15h
organizadores: Daniel Feix, Fatimarlei Lunardelli, Ivonete Pinto, Mônica Kanitz e Rafael Valles
Valor do livro: R$ 50,00*

*Os exemplares poderão ser adquiridos na Feira do Livro ou pelo site da ACCIRS e locais parceiros: accirs.com.br


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

50º Festival de Cinema de Gramado - Bastidores e Premiados

 

Muito se fala sobre cinema e arte cinematográfica em razão do Festival de Cinema de Granado. Por óbvio. Porém, após ter participado como jurado na edição de 2021, realizada ainda de forma online em virtude da pandemia da Covid-19, motivei-me a, finalmente, fazer algo que nunca tinha conseguido: estar presencialmente no festival. Motivos pra isso, não faltavam: este ano, realizou-se a histórica 50ª edição do festival mais longevo ininterruptamente do Brasil e por ter me tornado este ano secretário da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (ACCIRS), apoiadora institucional do festival e responsável por algumas das curadorias, juris e premiações. Outra motivação não menos substancial era o lançamento do livro “50 Olhares da Crítica Sobre o Cinema Gaúcho”, ao qual participo como um dos autores e que era importante marcarmos esse momento dentro do principal festival de cinema do nosso Estado. Afora isso, queria saber como era a emoção de viver o Festival de Gramado, ainda mais assim, no auge do inverno, em que tanta gente visita a cidade, que é a mais procurada pelos turistas no Brasil esta época.

Nós da ACCIRS, no espaço
Elizabeth Rosenfeld, lançando
o livro em Gramado

Com o socorro do amigo José Carlos Sousa, o querido Zeca, que nos ofereceu transporte de ida e um ótimo pouso, fomos Leocádia e eu. Cheios de incertezas de como seriam as movimentações por lá, partimos, na cara e na coragem, para conferir o primeiro final de semana do festival. Mesmo não sendo possível assistir à maioria dos filmes, principalmente os longas-metragens brasileiros e internacionais que rodariam diariamente até a semana seguinte, os pouco mais de dois dias a que nos programamos nos oportunizaria ver pelo menos duas das estreias de longas brasileiros, curtas-metragens nacionais e os curtas-metragens gaúchos, que passam na seção vespertina no segundo e terceiros dias. Igualmente, podemos pegar também a tão badalada abertura do festival, o que, convenhamos, embora menos apoteótico, é quase tão emocionante quanto estar no encerramento.



A emoção de pisar pela primeira vez no 
tapete vermelho do
Festival de Gramado

Se coube a nós apenas o começo do festival, no entanto, nosso batismo foi com a devida graça dos deuses do cinema. Na sala de imprensa, logo após termos tirado nossas credenciais para podermos pisar o tão famoso “tapete vermelho” que dá acesso ao Palácio dos Festivais – ou seja, logo que conseguimos confirmar que poderíamos, sim, participar efetivamente do festival, o que haviam nos dito que talvez não fosse possível por ainda não termos credenciais até então – conversávamos com o colega de ACCIRS Paulo Casanova e somos surpreendidos pela atriz Marcélia Cartaxo, que veio em nossa direção como se nos conhecesse. “Será que ela se enganou?”, pensamos. Mas acho que não. Ao que disseram, é muito o modo de ela ser, assim, despachada e extrovertida, e prefiro acreditar que aquela foi uma bênção de Macabea ou de Pacarrete que recebemos por estarmos estreando no festival. Após o choque de ter sido procurado por Marcélia (que, aliás, ganhou mais uma vez o Kikito de Melhor Atriz, como já o havia feito por "Pacarrete", em 2018) para ganhar um abraço, atentado por Leocádia, fui atrás dela novamente para fazermos um registro daquele momento – afinal, todo mundo deve ter uma foto de seu batizado. Ao lhe abordar, agradeci por sua existência em nossos corações como personagens tão memoráveis. Ela retribuiu, generosamente, agradecendo também.

Leocádia e eu recebendo a bênção do festival de Gramado da divina Marcélia

O talentoso Palmeira recebendo
uma das principais honrarias do
cinema brasileiro, o Oscarito
Após o batismo inicial, assistimos filmes, conhecemos outros artistas, vimos Marcos Palmeira receber o Troféu Oscarito – e passar por nós, a questão de metro, e olhar-nos no olho em agradecimento às palmas. Os filmes que mais conseguimos ver foram os curtas gaúchos, com coisas bem boas, como o tenso e tecnicamente perfeito “O Abraço”, prenunciando um dos próximos realizadores de longas no Rio Grande do Sul como recentemente alçaram nomes como Davi Pretto e Felipe Matzembacher; o curto mas tocante “A Diferença entre Mongóis e Mongoloides”, de Jonatas Rubert, documentário pessoal de animação sobre a relação do diretor com seu irmão e seu tio, ambos portadores de TEA (transtorno do espectro autista); e o grande premiado do Prêmio Assembleia Legislativa — Mostra Gaúcha de Curtas: “Sinal de Alerta: Lory F”, de Fredericco Restori, que conta a meteórica vida da artista que lhe dá título, uma lenda do rock gaúcho. Mais uma das magias que Gramado nos proporcionou: na fila para entrar para a seção do primeiro dia de curtas gaúchos, conversávamos com dois jovens atrás de nós que logo revelaram serem os responsáveis pelo filme. Leocádia, sagaz, providenciou de que eu tirasse uma foto com eles, uma vez que tanto ela quanto eu temos relação com personagens do filme: o filho de Lory, meu ex-colega e amigo Ricardo, e o ex-marido dela, Ricky Bols, artista visual já falecido com quem Leocádia trabalhou e também nutria amizade. E não é que justo eles ganhariam, no dia seguinte, o principal prêmio entre os curtas gaúchos?

Ao lado de Natália Pimentel e Restori, de "Lory F..." - antes de ganharem o prêmio!

Sem se estender muito, cabe comentar que os dois longas brasileiros, que passam na programação noturna, agradaram. O triste e revoltante “A Mãe”, de Cristiano Burlan, que traz Marcélia como uma mãe em busca do filho desaparecido na periferia de São Paulo; e o cômico “O Clube dos Anjos”, de Angelo Defanti, adaptação e Luis Fernando Verissimo. A difícil tarefa de adaptar o autor do Analista de Bagé foi bem executada pelo diretor, embora o filme perca um pouco do ritmo do meio para o fim, mas consiga terminar bem. O grande trunfo de “O Clube...” é, porém, seu elenco. Nada mais nada menos que Otávio Muller, Matheus Nachtergaele, Paulo Miklos, Marco Ricca, Augusto Madeira, César Melo, Ângelo Antônio, Samuel de Assis, António Capelo e André Abujamra

Este último, aliás, merece um aparte, pois tornou-se um novo amigo. Ao ver Abujamra no tapete vermelho (aliás, corrijo: Leocádia que o avistou e me avisou) abordei-o e, fã, quis entrevistá-lo para meu programa, Música da Cabeça. Fizemos ali mesmo, em meio à algazarra do público, mas deu tudo certo e a entrevista foi curta mas ótima. Justifiquei a Abujamra que se eu já tinha entrevistado Maurício Pereira e Pena Schmidt, os outros dois responsáveis pela lendária Os Mulheres Negras, não poderia perder a oportunidade de fazer o mesmo com ele.

Abu e eu: sintonia e entrevista em pleno tapete vermelho

Tudo isso para confirmar o que disse no início: muito se fala em cinema no Festival de Gramado, mas estar lá, poder conviver ao menos um pouco com artistas, realizadores, colegas críticos, jornalistas, organizadores do evento e toda aquela turba de pessoas que lotam a cidade nesta época, caminhar pelas ruas, observar as reações, frequentar o comércio em alto movimento; prova que o festival é muito mais do que as sessões de cinema. É, sim, essa atmosfera, essa egrégora misto de encanto, excitação, surpresa, expectativa – e até certa afetação, confesse-se. O que tiro é que a experiência foi linda, a ponto de nos programamos para, em próximas edições, talvez voltarmos não só para a abertura, mas esticar um pouco mais e até cobrir todos os sete dias de evento. 

O Kikitão e eu em pleno tapete vermelho

O consagrado "Noites...",
o grande vencedor 

A solenidade de premiação ocorreu no dia 20 e pude assistir pela televisão. O grande vencedor foi o amazonense “Noites Alienígenas”, de Sérgio de Carvalho, que não pudemos ver mas fiquei curiosíssimo desde que soube da existência. Outra produção que também se destacou dos longas foi “Marte Um”, de Gabriel Martins (MG), que se mostrou muito querido do público por, assim como o lindo “O Novelo”, que concorreu no ano passado na mesma categoria, traz a vida de uma família de negros, mas sem recorrer aos chavões de submundo, pobreza, violência, etc. Também não vi, mas o bom é que este estreia em circuito nacional esta semana. Louco pra ver.

Por ora, segue aqui a lista de premiados com os Kikitos desta histórica edição de meio século de Festival de Gramado. Quem sabe, ano que vem não esteja lá mandando just in time essa lista?

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LONGA-METRAGEM BRASILEIRO

Melhor Filme – “Noites Alienígenas”, de Sérgio de Carvalho
Melhor Direção – Cristiano Burlan, por “A Mãe”
Melhor Ator – Gabriel Knoxx, de “Noites Alienígenas”
Melhor Atriz – Marcélia Cartaxo, de “A Mãe”
Melhor Roteiro – Gabriel Martins, de “Marte Um”
Melhor Fotografia -Rui Poças, de “Tinnitus”
Melhor Montagem – Eduardo Serrano, de “Tinnitus”
Melhor Trilha Musical – Daniel Simitan, de “Marte Um”
Melhor Direção de Arte – Carol Ozzi, de “Tinnitus”
Melhor Atriz Coadjuvante – Joana Gatis, de “Noites Alienígenas”
Melhor Ator Coadjuvante – Chico Diaz, de “Noites Alienígenas”
Melhor Desenho de Som – Ricardo Zollmer, de “A Mãe”
Júri da Crítica – “Noites Alienígenas”, de Sérgio de Carvalho
Júri Popular – “Marte Um”, de Gabriel Martins
Prêmio Especial do Júri – “Marte Um”, de Gabriel Martins, que nos trouxe o afeto para a tela.
Menção Honrosa a Adanilo, por “Noites Alienígenas”, pela excelência da construção da linha do personagem e interpretação.

CURTA-METRAGEM BRASILEIRO

Melhor Filme – “Fantasma Neon”, de Leonardo Martinelli
Melhor Direção – Leonardo Martinelli, por “Fantasma Neon”
Melhor Ator – Dennis Pinheiro, de “Fantasma Neon”
Melhor Atriz – Jéssica Ellen, de “Último Domingo”
Melhor Roteiro – Fernando Domingos, de “O Pato”
Melhor Fotografia – Fernando Macedo, de “Último Domingo”
Melhor Montagem – Danilo Arenas e Luiz Maudonnet, de “O Elemento Tinta”
Melhor Trilha Musical – “Nhanderekoa Ka´aguy Porã” Coral Araí Ovy e Conjunto Musical La Digna Rabia, por “Um Tempo pra Mim”
Melhor Direção de Arte – Joana Claude, de “Último Domingo”
Melhor Desenho de Som – Alexandre Rogoski, de “O Fim da Imagem”
Júri da Crítica – “Fantasma Neon”, de Leonardo Martinelli
Júri Popular – “O Elemento Tinta”, de Luiz Maudonnet e Iuri Salles.
Menção Honrosa – “Imã de Geladeira”, de Carolen Meneses e Sidjonathas Araújo, por catapultar a urgente discussão sobre o racismo estrutural através do horror cósmico
Prêmio Especial do Júri – “Serrão”, de Marcelo Lin. Pelo frescor da narrativa a partir de um olhar ressignificado, emergente e com o coração no lugar certo
Prêmio Canal Brasil de Curtas – “Fantasma Neon” Leonardo Martinelli

LONGA-METRAGEM ESTRANGEIRO 

Melhor Filme – “9”, de Martín Barrenechea e Nicolás Branca
Melhor Direção – Néstor Mazzini, de “Cuando Oscurece”
Melhor Ator – Enzo Vogrincinc, de “9”
Melhor Atriz – Anajosé Aldrete, de “El Camino de Sol”
Melhor Roteiro – Agustin Toscano, Moisés Sepúlveda e Nicolás Postiglione, de “Inmersión”
Melhor Fotografia -Sergio Asmstrong, de “Inmersión”
Júri da Crítica – “9”, de Martín Barrenechea e Nicolás Branca
Júri Popular – “La Pampa”, de Dorian Fernández Moris
Prêmio Especial do Júri a Direção de Arte de Jeff Calmet, de “La Pampa”

LONGA-METRAGEM GAÚCHO

Melhor Filme – “5 Casas”, de Bruno Gularte Barreto
Melhor Direção – Bruno Gularte Barreto, por “5 Casas”
Melhor Ator – Hugo Noguera, de “Casa Vazia”
Melhor Atriz – Anaís Grala Wegner, de “Despedida”
Melhor Roteiro – Giovani Borba, de “Casa Vazia”
Melhor Fotografia – Ivo Lopes Araújo, de “Casa Vazia”
Melhor Direção de Arte – Gabriela Burk, de “Despedida”
Melhor Montagem – Vicente Moreno, de “5 Casas”
Melhor Desenho de Som – Marcos Lopes e Tiago Bello, de “Casa Vazia”
Melhor Trilha Musical – Renan Franzen, de “Casa Vazia”
Júri Popular – “5 Casas”, de Bruno Gularte Barreto
Menção Honrosa – Clemente Vizcaíno, por “Despedida”, pela presença destacada no filme e por sua importância na história do cinema gaúcho
Menção Honrosa – “Campo Grande é o Céu”, de Bruna Giuliatti, Jhonatan Gomes e Sérgio Guidoux, pelo resgate da tradição de cantorias e da importância das comunidades quilombolas daquela região do Rio Grande do Sul

CURTA-METRAGEM GAÚCHO - PRÊMIO ASSEMBLEIA LEGISLATIVA — MOSTRA GAÚCHA DE CURTAS

Melhor filme: "Sinal de Alerta Lory F"
Melhor direção: Jonatas Rubert - "Diferença entre Mongóis e Mongoloides"
Melhor ator: Victor Di Marco - "Possa Poder"
Melhor atriz: Valéria Barcellos - "Possa Poder"
Melhor roteiro: Jonatas Rubert, - "Diferença entre Mongóis e Mongoloides"
Melhor fotografia: Flora Fecske - "O Abraço"
Melhor montagem: Frederico Restori - "Sinal de Alerta Lory F"
Melhor direção de arte: Gabriela Burck - "Diferença entre Mongóis e Mongoloides"
Melhor trilha sonora: Gutcha Ramil, Andressa Ferreira e Ian Gonçalves Kuaray - "Mby Á Nhendu - O Som do Espírito Guarani"
Melhor desenho de som: Andrez Machado - "Fagulha"
Melhor produção executiva: Henrique Lahude - "Drapo A" 
Menção honrosa: "Drapo A" 
Prêmio da crítica (ACCIRS): "Apenas para Registro"

LONGA-METRAGEM DOCUMENTAL

Melhor Filme – “Um Par Pra Chamar de Meu”, de Kelly Cristina Spinelli.                 
Menção Honrosa – “Elton Medeiros – O Sol Nascerá”, de Pedro Murad, pela valorização do compositor, parceiro dos grandes nomes da música popular brasileira, e também pelo rigor formal e criativo na recriação visual da vida e das grandes composições de Elton Medeiros, que faleceu em 2019. Parabéns ao diretor Pedro Murad e equipe.



texto: Daniel Rodrigues
fotos: Daniel Rodrigues, Leocádia Costa e ACCIRS