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segunda-feira, 24 de abril de 2023

CLAQUETE ESPECIAL 15 ANOS DO CLYBLOG - Cinema Brasileiro: 110 anos, 110 filmes (parte 1)

 

Cena do inaugural "Os Óculos do Vovô", de 1913,
há 110 anos
Quando, em março de 1913, o cineasta e ator luso-brasileiro Francisco Santos levou pela primeira vez ao público de Pelotas, no extremo Sul do Brasil, “Os Óculos do Vovô”, é de se supor que soubesse estar marcando uma era. Aquilo que então chamavam de “atualidades” já trazia a semente de mais do que isso: era o nascer de uma indústria, a indústria do entretenimento. Mas mais do que este aspecto produtivo e mercadológico, aquilo era “arte”. Isso, talvez Santos supusesse com maior assertividade. Uma espécie nova, ainda em construção, experimental, mas instigante e visivelmente muito promissora de arte: o cinema. 

O que o pioneiro do cinema brasileiro talvez não suspeitasse era que aquilo que ele empreendera com muito custo através da Guarany Films, sua produtora, fosse se tornar tão longevo e, por que não dizer, exitoso. Pois uma coisa pode-se afirmar do cinema brasileiro: mesmo várias vezes acometido por crises econômicas, políticas, culturais e ideológicas em um país jovem historicamente falando, jamais lhe faltou criatividade e perseverança. As condições nem sempre favoráveis, quando não dribladas, foram inclusive combustível para a geração neo-realista ou a cinema-novistas e udigrudi, para citar três exemplos.

Glauber: genialidade marcante
para o cinema brasileiro
E se são raros os casos de abastamento, por outro lado nunca se deveu nada a outros polos, inclusive bem mais endinheirados como a Europa, o Japão e os Estados Unidos. De gênios, podemos entabular Glauber, Peixoto e Mauro. De documentaristas, o talvez maior de todos: Coutinho. De obras revolucionárias, “Limite”. De divisores-de-águas modernos: “Cidade de Deus”. De obras-primas, “O Pagador de Promessas” e “Eles não Usam Black Tie”. Isso sem falar na brasilidade exposta em diversos filmes, às vezes de forma absolutamente orgânica, algo impossível de ser copiado, reproduzido e, em certa medida, até explicado noutras paragens. Como legendar diálogos como os de “A Hora e a Vez de Augusto Matraga” ou “Amarelo Manga” sem perder consistência e poética?

Tem isso e mais um monte de coisas. Afinal, em 110 títulos cabe bastante diversidade. Longas de ficção, documentários de maior ou menor duração, filmes mudos, curtas-metragens ficcionais, fitas P&B e coloridas, audiovisuais feitos para TV, gêneros diversos, produções do início do século 20 e outras recentes. Tem, sim, um pouco de tudo. Como diz Caetano Veloso sobre o cinema brasileiro: “Visões das coisas grandes e pequenas que nos formaram e estão a nos formar”.

Dizem que montar listas é uma forma de, além de divertir-se dando classificações aos próprios gostos, apreender tudo aquilo que se vê. E é tanta coisa que já se viu!... Aqui, a tentativa lúdica é de resgatar preferências de forma a dar uma noção subjetiva do que é cinema brasileiro em minha visão. Porém, também contemplar o crítico, que pode ponderar a consideração a medalhões, mas entende suas relevâncias. Recai aqui aquela “justificativa” dos preteridos. Muita coisa fica de fora, infelizmente, a contragosto do próprio autor da classificação. Impossível não citar pelo menos 10 deles: “Di”, “Pacarrete”, “O Palhaço”, “Linha de Passe”, “Os Primeiros Soldados”, “Porto das Caixas”, “O Homem do Ano”, “Chuvas de Verão”, “Alma Corsária” e “Inocência”. E teriam mais.

Cena de "Os Primeiros...", um dos célebres não-incluídos na lista

Diferirá de outras listas semelhantes? Claro, e isso que é o bom. O exercício aqui é justamente este: louvar a produção nacional em sua diversidade e preservar a memória de um dos cinemas mais inspirados do mundo, mesmo sem nunca ter ganho um Oscar de Filme Internacional. Importante? Sim, mas não é tudo, pois há muito mais abundância do que reconhecimento. E se são 110 anos, então, que sejam 110 títulos, lançados em partes e em ordem inversa. De início, os últimos 20 colocados já mostram essa riqueza. Têm desde clássicos do Neo Realismo e do Cinema Novo, passando por filme da retomada e produções da Embrafilme a dignos representantes do cinema atual feito no País. Então, partiu ordenar filmes representativos desta história mais que centenária como parte das celebrações pelos 15 anos do Clyblog!.

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110. “O Grande Mentecapto”, Oswaldo Caldeira (1986)

Das melhores comédias do cinema nacional, filme mineiro que, na linha de “Verdes Anos”, direcionou a produção a outros Estados que não Rio e SP, e que sedimentou a geração TV Pirata (Diogo Vilella, LF Guimarães, Regina Casé) numa história de Fernando Sabino ao mesmo tempo deliciosa, cômica, poética e aventuresca. Um dos finais de filme mais bonitos do cinema brasileiro. Trilha do Wagner Tiso marcante. Melhor Filme pelo júri em Gramado e concorreu em Cuba, Canadá e EUA.






109. “Meu Nome não é Johnny”, Mauro Lima (2008)
108. “O Grande Momento”, Roberto Santos (1959)
107. “Canastra Suja”, Caio Sóh (2018)
106. “Marighella”, Wagner Moura (2021)
105. “Verdes Anos”, Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil (1984) 



101. “Dois Córregos - Verdades Submersas no Tempo”, de Carlos Reichembach (1999)
102. “Os Cafajestes”, Ruy Guerra (1962) 
103. “O Homem que Copiava”, Jorge Furtado (2003)
104. “A Hora da Estrela”, Suzana Amaral (1985) 


100. “O Auto da Compadecida”, de Guel Arraes (2000)

No início doa anos 2000, o cinema brasileiro fechava seu ciclo de maiores dificuldades estruturais com um sucesso de crítica e público (2 mi de expectadores). Guel, que havia construído uma carreira alternativa na dramaturgia através da televisão desde a TV Pirata e aperfeiçoando-a ao longo dos anos, chegou pronto ao seu primeiro longa, baseado na peça de Ariano Suassuna. Difícil ver uma trupe tão grande de ótimos atores/atuações juntos: Selton, Nachtergaele, Nanini, Denise, Diogo, Lima, Virgínia, Goulart... todos, todos impagáveis. João Grilo e Xicó formam uma das melhores duplas de personagens do cinema nacional. Comédia divertida – mas também dramática – com o pique de edição e cenografia de Guel. Um clássico imediato.




99. “Tudo Bem”, Arnaldo Jabor (1978)
98. “O Lobo Atrás da Porta”, Fernando Coimbra (2013)
97. “Iracema, Uma Transa Amazônica”, Jorge Bodanzky e Orlando Senna (1976) 
96. “A Rainha Diaba”, Antonio Carlos da Fontoura (1974)
95. “Os Saltimbancos Trapalhões”, J. B. Tanko (1981)



94. “A Casa de Alice”, Chico Teixeira (2007)
93. “Macunaíma”, Joaquim Pedro de Andrade (1969)
92. “A Idade da Terra”, Glauber Rocha (1980) 
91. “O Anjo Nasceu”, Julio Bressane (1969) 


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 21 de julho de 2022

"A Família Bélier", de Eric Lartigau (2014) vs. "no Ritmo do Coração", de Siân Heder (2021)

 



Jogo difícil! Confronto equilibrado. Dois times muito competentes e muito parecidos. Um daqueles casos em que o remake é muito próximo ao original, não inventa muito, mas consegue ter sua identidade e seus pontos de diferenciação.
Tanto em "A Família Bélier" quanto em "No Ritmo do Coração", nossa protagonista, Paula, no original francês, e Ruby, no americano, é uma adolescente que, por ser a única sem deficiência auditiva em casa, serve como a comunicação dos pais e do irmão com o resto do mundo, para todas as finalidades, mas especialmente para os assuntos de trabalho. Aí vem uma diferença entre os dois filmes: na produção francesa de 2014, a família era uma pequena-produtora rural, enquanto que, na nova versão, faz parte de uma comunidade de pescadores. A questão toda é que, quase por acidente, mais para estar na turma de um garoto por quem está interessada, nossa heroína acaba descobrindo seu enorme talento para o canto e passa a ser estimulada pelo professor de música a mirar voos mais altos, incluindo o ingresso em uma renomada universidade de música na cidade grande. O problema é que, em ambos os filmes, quando o núcleo familiar se envolve de maneira mais efetiva nas questões administrativas e organizacionais do respectivo negócio (liderando os produtores, em um, e criando uma cooperativa de pescadores, na outra), a garota fica sobrecarregada e limitada de sua própria vida, não conseguindo dedicar o devido tempo para o canto, as aulas, os ensaios, e ao professor, uma vez que sua família, por mais amorosa que seja, não tem noção do significado daquilo para a filha e, por nunca terem podido ouvi-la, não tem dimensão do tamanho de seu talento.

"A Família Bélier" 
teste de Paula para a faculadade


"No Ritmo do Coração"
teste de Ruby para a faculdade


Salvo pequenas diferenças, os filmes correm muito parecidos e um consegue pequenas vantagens sobre o outro: prefiro Paula Bélier do que Ruby Rossi; no entanto, o pai, por mais competente que seja, no primeiro, nem se compara ao do remake, numa atuação brilhante do ator Troy Kotsur, premiada com o Oscar de ator coadjuvante. O irmão da protagonista, na refilmagem é mais interessante como personagem e mais significativo no enredo; em compensação, na minha opinião, o envolvimento da garota com o namoradinho da escola é mais bem explorado emocionalmente na primeira versão. A cena do exame, na audição da universidade, é mais emocionante, para mim, com a garota Paula, inclusive com uma canção mais adequada e tocante. Mas o professor de música da nova versão, Bernardo Villalobos , interpretado por Eugênio Derbez, é mais cativante e divertido. O remake levou um Oscar de roteiro, é verdade, mas é um roteiro adaptado, justamente, sobre o, já muito bom, enredo do original. Ou seja, ninguém leva vantagem nessa.
Ao que parece o jogo vai se encaminhando para um justo empate mas aí um detalhezinho faz diferença: aquela estatueta dourada desempatar o jogo. Muita reclamação por parte dos franceses que entendem que, no seu ano deveriam ter sido indicados a melhor filme estrangeiro, mas o juiz faz que nem ouve as reclamações e confirma o gol.
Um gol pra cada por todos os méritos e virtudes de cada um, elenco, roteiro, atuações, emoção; e o gol de ouro por conta do Oscar de melhor filme, que não é pra qualquer um.
No detalhe, por pouco, apertado... mas a vitória é norte-americana num confronto equilibradíssimo.
"No Ritmo do Coração" cala a torcida da Família Bélier.

Treinador paizão, família Scollari...
Mais do que times, famílias.
Dois times que mostram o quanto é importante a união do grupo.


Ruby Rossi comemora o gol da vitória passando na frente da torcida francesa, 
levando a mão à orelha, provocando, como quem pede para ouvir o grito deles agora.




Cly Reis

domingo, 27 de março de 2022

"Licorice Pizza", de Paul Thomas Anderson (2021)


“Licorice Pizza”
não irá ganhar o Oscar se Melhor Filme em 2022. Isso é certo. O mais cotado é, de fato, “Ataque dos Cães”, de Jane Campion, mesmo que “O Beco.do Pesadelo”, do já ganhador desta estatueta Guillermo Del Toro, em 2018, com “A Forma da Água”, pareça o mais talhado entre os 10 títulos concorrentes – e embora “Amor Sublime Amor” e “O Ritmo do Coração” corram por fora. O filme de Paul Thomas Anderson, portanto, não figura entre os favoritos. Aliás – e isso não é um demérito – o cineasta norte-americano talvez nunca venha a obter este êxito, visto que o seu cinema, definitivamente, não confere em conceito com a badalada premiação da indústria cinematográfica, e o seu novo longa é mais uma prova disso.

Mas não se enganem: “Licorice...” é, por mais que pareça uma contradição, quiçá o melhor entre os candidatos nesta categoria junto com “Drive my Car” (outro que também não deve levar o Oscar de Melhor Filme, uma vez que, ao que tudo indica, o de Melhor Filme Internacional esteja lhe esperando). O filme de Anderson (cujo estranho título faz uma referência a uma loja de discos que realmente existiu, mas que não aparece em nenhum momento), conta a história de Alana Kane (Alana Haim) e Gary Valentine (Cooper Hoffman), dois jovens que, embora a diferença de 10 anos dela para ele, vivem a adolescência no Vale de San Fernando, no Sul da Califórnia do início dos anos 70, engendrando vários negócios juntos e flertando um com outro, mas também se desencontrando.

Comédia romântica com ares de nouvelle vague e realismo poético, “Licorice...”, que também é escrito por PT Anderson, diferencia-se, por isso, muito do que a Academia costuma prestigiar. Desde seu primeiro longa, “Jogada de Risco", de 1996, passando pelo genial “Boogie Nights” (1997) e pelo retumbante “Magnolia”, Melhor Filme em 1999 (só que em Berlim...), fica claro que o estilo de seu "cinema de autor" carrega singularidades que lhe aproximam bastantemente da escola europeia. Neste sentido, ele é muito mais peculiar do que seus contemporâneos Tarantino, Rodriguez e Nolan, todos também autorais mas com um pé muito mais firme em Hollywood do que ele. Com o forte “Sangue Negro”, de 2007 – para muitos, sua melhor realização –, pode-se dizer que Anderson tenha se esforçado para arrebatar o prêmio máximo do cinema, mas sua mão “pesada” o fez dar tons muito mais trágicos à história que os jurados da Academia estão acostumados. 

trailer de "Licorice Pizza"de Paul Thomas Anderson


A última tentativa de Anderson de levar esse bendito Oscar de Melhor Filme parece ter sido há quatro anos com “Trama Fantasma”, seu até então último longa e no qual repete a parceria com o excelente ator irlandês Daniel Day-Lewis. Porém, mesmo recebendo seis indicações (inclusive a de Filme), novamente sem sucesso. “Licorice...”, assim, dá a impressão de ser saudavelmente aquele filme em que o diretor disse a si mesmo: “Quer saber? Foda-se! Aceitem-me como eu sou!”. E deu muito certo. Descompromissado, o cineasta fez uma obra carregada de sentimentos, daquelas que ao mesmo tempo fazem emocionar terna e alegremente. É de encher o peito em uma gargalhada, mas também de soltar risos surpresos durante o decorrer por conta de seus diálogos e roteiro inteligentes. 

Gary e Alana: feitos um para o outro (mas será que
eles próprios sabem disso?)
Estão preservados elementos clássicos do estilo de Anderson: trilha sonora escolhida com esmero e paixão; ritmo de montagem que intercala agilidade com planos bem demorados, tributo a um de seus mestres, Martin Scorsese; planos-sequência realizados com bastante habilidade; o olhar especial para as musas, as quais invariavelmente dedica belos enquadramentos como faz desta vez com Alana; direção de atores bem encontrada entre o drama e a comédia; aparição de tipos exóticos impagáveis (Bradley Cooper, em uma ponta, arrasa fazendo o tresloucado playboy Jon Peters); mas principalmente, personagens que fascinam o espectador. Por que isso? Porque são, como sensivelmente fizeram Renoir, Carné ou Clair, pais do realismo poético francês ao qual o cinema de Anderson faz tributo, são capazes de construir personagens que refletem o interior humano equilibrando beleza e naturalidade. Os medos, as angústias, as aflições, os desejos, os amores. Alana e Gary, protagonistas a quem se torce para que fiquem juntos e parem com a infantilidade de se brigarem para fugirem do medo de não serem aceitos, são a tradução disso: gentes. Mas, claro: com o “filtro” mágico do cinema: não só o filtro da câmera, mas o do olhar.

Se não é o melhor entre todos da safra 2021/22, “Licorice...”, ao menos, é o que melhor cumpre um dos requisitos dos grandes filmes: o encerramento marcante. O cineasta conduz o espectador até o último segundo para, com sutileza, deixá-lo suspirando na poltrona com um sorriso no rosto – ou uma lágrima. Sabe aquele sabor de terminar de assistir “Nós que nos Amávamos Tanto”, “Pierrot le Fou” ou “Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios”? É este o sentimento que fica com "Licorice...". Tudo bem: “Ataque...”, “O Beco...” e “Drive...” também terminam muito bem. Mas é tão mais impactante sentir uma ponta de "cinema de arte", assim, tão espontaneamente numa produção norte-americana, que o valor se duplica. Neste caso, o melhor que PT Anderson pode fazer é não ganhar prêmio nenhum mesmo. Será sinal de que continuará fazendo seu cinema tão original quanto encantador.


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 24 de março de 2022

"Duna", de David Lynch (1984) vs. "Duna", de Denis Villeneuve (2021)


Uma substância valiosa e a disputa pela administração e a exploração desse produto no planeta onde ele é extraído está  no centro das ações de ambas as versões de "Duna". O duque Atreides é incumbido pelo Imperador para a tarefa de chefiar o planeta Arrakis, mas o que parecia ser uma honra e benefício mostra-se, na verdade, uma armadilha tramada pelo Império com os perigosos Hakkonen para eliminar o duque e seu filho, o jovem Paul Atreides que, gerado da relação com uma bruxa, tem atributos um tanto especiais que se acentuam ainda mais quando o jovem chega a Arrakis. Seus talentos, sua sensitividade, seus poderes que ele própro não domina completamente, mostram-se fundamentais, especialmente depois que seu pai é traído e morto pelos Hakkonen, e o rapaz, fugitivo, é obrigado a se isolar no deserto com sua mãe, se aproximando a cada momento, a cada passo, de uma profecia que anuncia um "escolhido" que liderará o povo de Arrakis e acabará com a tirania do Império.
Não estou entre os tantos que deploram a adaptação de David Lynch, de 1984, para o romance de Frank Herbert. O filme tem bom elenco, com Jürgen Prochnow, de "O Barco", Sean Young, de "Blade Runner", Max Von Sydow, de "O Sétimo Selo", Patrick Stewart, que viria  estrelar a saga "Star Trek", o astro pop Sting, e Kyle McLachlan que estrelava seu primeiro longa mas que seria, a partir dali, um dos atores preferidos de David Lynch. Os figurinos são incríveis, a direção de arte é bem impressionante, os cenários muito interessantes, a fotografia, na maioria das vezes, é bem competente, e além de tudo isso, a trilha sonora ficava por conta de Toto e Brian Eno.
O grande problema do filme de Lynch foi a parte técnica. Os efeitos especiais, para um filme de ficção científica e com o bom orçamento que teve, são, no mínimo decepcionantes. Mesmo se levando em consideração a época, as limitações técnicas, a primariedade de alguns recursos, eles são, em determinados momentos, quase risíveis. A armadura, por exemplo, que envolve o corpo dos guerreiros de Atreides, uma espécie de campo de força, é simplesmente ridícula. Uma animação geométrica constrangedora. E não me venham dizer que era o que dava pra fazer em 1984 porque, àquelas alturas, já tinham sido feitos três "Star Wars" (1977, 1980, 1983), "Blade Runner" (1982), dois "Superman" (1978, 1980), só pra ficar em alguns, com efeitos visuais muito mais impressionantes e convincentes.
Mas se ficasse limitado a isso, dava pra dar um desconto. A narrativa é apressada, tem muito texto narrado, o que, ao invés de ajudar, atrapalha mais a compreensão, e a última meia hora é atropelada e confusa. Aí, o resto de boa vontade que podia-se ter com o filme de 1984, foi pro espaço.
O que podia ser um gol contra a nova versão de "Duna", que é o fato de não acabar a história (não estou dando spoiler pois todo mundo sabe que vão rodar uma sequência), acaba sendo positivo pelo fato de não correr com a trama pra resolver logo, como fez seu antecessor. O novo "Duna" usa mais tempo mas desenvolve bem a história, sem presa, com paciência, sem precisar recorrer a uma narração explicativa durante todo o filme, e ainda dá mais profundidade e destaque a alguns personagens subutilizados no primeiro, aproximando-os do espectador. Colabora para isso, também, o elenco, igualmente muito qualificado, como no original: Oscar Issac, de "Ex-Machina" e da nova saga "Star Wars", Rebecca Ferguson, de Doutor Sono" e da franquia "Missão Impossível", Jason Momoa ("Aquaman"l), a veterana Charlotte Rampling ("Coração Satânico", "Melancolia"), a carismática Zendaya, dos novos "Homem-Aranha", e, capitaneado o time, o grande queridinho do momento, Timothée Chalamet, de "Me Chame Pelo Seu Nome" e "Não Olhe Para Cima", ente outros, no papel do "messias" Paul Atreides.
A parte técnica, então, que era o ponto fraco do outro, é exatamente uma das maiores virtudes do novo, com efeitos visuais e som espetaculares, não à toa indicados ao Oscar, além da fotografia, com seu visual sombrio e suas locações no deserto simplesmente impressionantes.

"Duna" (1984) - trailer


"Duna" (2021) - trailer


Elenco por elenco, vamos deixar no empate; protagonista por protagonista, também não vejo grande vantagem para ninguém; no entanto, na caracterização e desenvolvimento dos personagens, o remake salta na frente no placar. E, a propósito de desenvolvimento, o andamento do filme e sua estrutura garantem mais um para a nova versão. Os cenários e a direção de arte, os figurinos do primeiro garantem um tento para o time de 1984, contudo, a fotografia, magistral, do novo filme acabam com a alegria do antigo "Duna" que tem que buscar mais uma no fundo das redes. De um modo geral, os efeitos especiais do filme de Villeneuve são muito melhores, mais espetaculares e, sem dúvida representam um golaço para o time de 2022, embora tenhamos que fazer justiça para com os vermes do primeiro filme que também era muito impressionantes, mesmo para as limitações da época. Em compensação, o que os habitantes subterrâneos do deserto de Arrakis acrescentam de positivo, a tal armadura que envolve o corpo dos guerreiros, tira. Quase um gol contra.
Quanto aos caras da casamata, ou seja, os diretores, são dois maestros competentíssimos e, apesar de ser fã de David Lynch, tenho que reconhecer que, mesmo com um bom material humano, com um bom investimento, ele comete alguns erros que comprometem o desempenho final de seu time, ao passo que Denis Villeneuve conduz seu time com precisão, usa um esquema mais adequado para a situação de jogo e, assim, extrai o melhor de cada um de seus atletas.
Duna '84 foi indicado ao Oscar de melhor som mas sua refilmagem atual, além de ser indicada na mesma categoria, ainda recebeu nomeações para outras nove, incluindo melhor filme. Por aí já dá pra ter um pouco da ideia da diferença entre os dois filmes. Duna '21 está muitos anos-luz à frente.

Alguns pontos de comparação entre os dois filmes:
No alto, a Reverenda Madre da ordem das Bene Gasserit nas duas versões.
 original, à esquerda, mais requintada e exótica, e à direita, a nova, mais sobria.
Na segunda linha, o barão Hakkonen, o original típico das bizarrices de David Lynch,
o outro, mais sério, sinistro é mais fiel ao livro.
Em seguida, os vermes do deserto, a esquerda o antigo e à direita, o novo.
Apesar das deficiências dos efeitos visuais do primeiro filme, os vermes de David Lynch se salvam 
e até se destacam como uma das coisas boas do filme.
Em compensação o escudo virtual do primeiro filme, à esquerda, na quarta faixa, é lamentável,
enquanto o outro, da nova versão. é meramente discreto, mas funciona melhor visualmente.
E para finalizar, os dois Paul Atreides.
Kyle McLaclan, do primeiro filme, não decepciona e vai bem no papel e a derrota não passa por ele,
 bem como o queridinho do momento, Timothée Chalamet, que se não é brilhante , não compromete também. 






Cly Reis 

terça-feira, 8 de março de 2022

"Mães Paralelas", de Pedro Almodóvar (2021)

 

Já houve a quem surpreendi com essa afirmação: Pedro Almodóvar não me é uma unanimidade. Pelo menos, por certo tempo em sua filmografia, seu cinema, mesmo inequivocamente admirável, desagradava-me em algum grau, como se algo oculto, mas grave, estivesse fora do lugar. Desde sempre sei claramente de sua excelência nos vários aspectos fílmicos: roteiro, enquadramento, fotografia, direção cênica, arte, sensibilidade musical. Sei de tudo isso, mas era como se algo me incomodasse que eu não soubesse exatamente como explicar. Recapitulando melhor: minha relação com os filmes do cineasta espanhol vem desde praticamente o início de sua carreira, mais precisamente a partir de “Matador”, de 1986. Claro que me assombrei com aquele cinema potente, repleto de erotismo, crítica social e política, sarcasmo e lirismo, o que se confirmou nos seguintes “A Lei do Desejo” (1987) e “Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos” (1988). Porém, já a partir de “Ata-me!” (1989), seguindo de “De Salto Alto” (1991), “Kika” (1994) e “Carne Trêmula” (1997) esse desconforto passou a aparecer. O que seria?

Assistindo a seu novo filme, no entanto, o candidato a Oscar de Melhor Filme Internacional “Mães Paralelas”, foi que finalmente compreendi o que me perturbava em Almodóvar. Mas vamos ao filme primeiro: na história, duas mulheres, Janis (Penélope Cruz) e Ana (Milena Smit), dão a luz no mesmo dia e no mesmo hospital. Janis, de meia idade, teve a gravidez planejada e já se sente preparada e eufórica para ser mãe. Ana, adolescente, engravidou por acidente e sente medo do que está por vir, além de estar assustada, arrependida e traumatizada. As duas enfrentam essa jornada como mães solos e estreitam o vínculo entre si. Porém, o destino lhes guarda acontecimentos inesperados, que vão mudar profundamente suas vidas e remexer em questões originárias de ambas.

A abordagem realista de “Mães…” trouxe-me à luz que minha antiga questão com Almodóvar era nada estética e totalmente filosófica. Já nos primeiros minutos do filme o cineasta deixa claro que a trama encadeia com a mesma força os espectros existencial e sociopolítico ao evidenciar a situação das duas mães e da sua desafiadora condição feminina e, paralelamente, do resgate da memória de perseguidos políticos pela ditadura de Franco e cujos laços familiares são essenciais ao autorreconhecimento das personagens. Essa visão bastante autobiográfica, seja íntima ou coletivamente, não poderia ser abordada de outra forma que não a realista, contrariamente ao que por muito tempo prevaleceu como discurso nos filmes de Almodóvar, que era uma visagem reiteradamente excêntrica, quando não bizarra ou surreal. Essa linha de raciocínio transmitiu a mim por muito tempo que não havia outra visão de mundo para o diretor que não o decadentismo. Não que um autor, assim como muitos o fazem desde que a arte pensa o mundo, não possa – ou deva – expressar seu pessimismo. Não fosse assim, desconsideraria, por exemplo, o cinema de Angelopolus, Von Trier ou Bergman, quase sempre amargos. Mas a impressão que dava na filmografia de Almodóvar, mais precisamente até “Tudo Sobre Minha Mãe” (1999), marco desta quebra para uma incursão mais realista e biográfica, resultava em algo um tanto simplista, como se tudo se resolvesse pelo bizarro. Desde pequenos detalhes do roteiro até “soluções” ou comportamentos inesperados dos personagens, havia como que uma inquietação que não permitia que as verdades se despissem: careciam sempre estarem vestidas de ironia, choque, de arroubos. 

trailer de "Mães Paralelas"

Seria simplista, aí sim, de minha parte, no entanto, atribuir isso à homossexualidade, sempre tão presente em suas temáticas, embora propositadamente geradora de perturbação, um possível indicativo. Mas não era só isso. Havia no ar – assim como a sensação de suspensão obtida pela câmera de Resnais ou a de sonho que Buñuel magicamente atribuía a seus filmes surrealistas – um sentimento de deslocamento constante, uma revolta inquietante.  Tudo, claro, com o invólucro extremamente bem acabado, que lhe é marca registrada, o que me confundia até certo ponto – além, claro, da própria qualidade de filmes como “Ata-me!” e “Kika”, por exemplo. Porém, tudo formava, por fim, algo inevitavelmente um tanto repetitivo, para mim insuficiente a um autor tão capaz de vislumbrar um paradigma mais amplo. O bastantemente autobiográfico “Dor e Glória” (2019), seu longa imediatamente anterior a “Mães…”, parece com este último mostrar um Almodóvar maduro, por mais estranho que essa afirmação possa parecer quando se refere a um dos mais talentosos cineastas da atualidade. Nada de rompantes dos personagens, falas chocantes, ações excêntricas como se a alma do ser ibérico fosse necessariamente sempre assim. Até mesmo o thriller “A Pele que Habito” (2011), filme que marcou uma recente virada de prestígio na carreira de Almodóvar, o elemento bizarro funciona a favor da narrativa fantástica por natureza.

Penélope noutra ótima atuação
com Almodóvar, concorre ao
Oscar de Melhor Atriz 
Este pisar no chão de Almodóvar em “Dor...” e agora em “Mães...” acaba por repercutir principalmente no roteiro, precioso no entendimento das complexidades humanas e, consequentemente, na direção de atores – o que põe Penélope, vencedora do Oscar de Atriz Coadjuvante em 2009 por "Vicky, Cristina, Barcelona" a concorrer pela segunda vez na carreira ao de Melhor Atriz (a outra, também com Almodóvar, por "Volver", em 2007). Afinal, quer algo mais inesperado do que as reações do ser humano diante do medo? Não precisa de exagero para expressar isso com contundência.

O resultado é um filme preciso, em que Almodóvar deixa aquela sensação que somente os grandes conseguem, que é a de ter se superado. E isso é ainda mais louvável considerando que, assim como Allen, o espanhol é daqueles cineastas que sempre produziram muito e há muito tempo, o que, naturalmente, leva a maior probabilidade de erros e acertos. Decerto, o Oscar de Filme Internacional fique com o acachapante “Drive My Car”, o qual, assim como “Roma” em 2018, e “Parasita”, em 2020, concorre também ao de Melhor Filme, mas que dificilmente repetirá o feito deste último ao arrebatar as duas estatuetas. Independentemente de premiação ou não, como obra “Mães...” vem com pertinência discutir questões femininas com tamanha sensibilidade, ineditismo, beleza e verdade. Um filme que diz, a rigor, tudo sobre todas as mães do mundo.


Daniel Rodrigues

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

“Summer Of Soul (...ou, Quando a Revolução Não Pôde Ser Televisionada)”, de Ahmir "Questlove" Thompson (2021)

 

Não parece aceitável que seja apenas o aperfeiçoamento dos recursos técnicos, capazes de recuperar com tecnologia digital filmes antigos, o motivo que explique porque estejam vindo somente agora a público certos registros do passado cujos espinhosos temas são necessários e urgentes para se entender a sociedade do hoje. O racismo, seja estrutural, velado ou institucionalizado, de alguma forma colabora para essa justificativa. Por que, então, não fosse por isso, somente após 60 anos de carreira, Tina Turner sentira-se à vontade para divulgar questões até então sujeitas à crítica de sua vida pessoal no documentário “Tina”? Igualmente, por que apenas dos últimos anos para cá tenham fervilhado docs  abordando abertamente este tema como "Os Panteras Negras: Vanguardas da Revolução" (2015), "What Happened, Miss Simone?" (2015), "Eu Não Sou Seu Negro" (2016), "A 13ª Emenda" (2016) e "Libertem Angela Davis" (2012)?

Esse esquecimento perverso quase fez o mundo perder de conhecer uma história praticamente apagada das mentes, mas que, salva pelas mãos do cineasta Ahmir "Questlove" Thompson, foi resgatada para a eternidade. “Summer Of Soul (...ou, Quando a Revolução Não Pôde Ser Televisionada)”, o magnífico e arrebatador documentário que concorre, com todo merecimento, ao Oscar nesta categoria, explora o Harlem Cultural Festival de 1969, evento que reuniu multidões de pessoas negras pela primeira vez em um acontecimento público e ao ar livre nos Estados Unidos e grandes nomes da música negra para celebrar a cultura afro-americana. Apesar da magnitude do festival, as imagens recuperadas pelo filme ficaram guardadas por décadas – acredite-se – numa cave. A referência no título à música de Gil Scott-Heron, escrita originalmente naquele mesmo explosivo ano de 1969, deixa claro o tom de denúncia que choca e encanta ao mesmo tempo. Como essa história tão rica nunca havia sido contada?

Wonder dando adeus ao sufixo "Little"
e ganhando maturidade
no Harlem Cultural Festival


Montado com sensibilidade e perspicácia, “Summer...” une em sua narrativa didática jornalística com arqueologia urbana. Focado nos vários números musicais que se apresentaram no palco montado em pleno Mount Morris Park, as apresentações são entrecortadas por breves mas extremamente precisas informações documentais sobre aspectos sociais, políticos e biográficos que sustentam o objeto do filme, fazendo com que não seja apenas um amontoado de músicas seguidas umas das outras (o que, neste caso, já seria interessante). Minitelejornais sobre determinado artista, imagens de fatos sociais recentes como manifestações contra o racismo, ou contextualizações históricas necessárias, como a coincidência do festival com o dia da chegada do homem à Lua, 20 de julho, dão ainda mais peso àquelas performances que se veem no palco, agigantando-as de significado e importância.

Afora isso, a variedade de estilos (R&B, funk, gospel, blues, jazz) e o nível de qualidade do cast é de encantar qualquer admirador da música feita nos últimos 60 anos. B.B. King, Nina Simone, Mahalia Jackson, Stevie Wonder, Sly & Family Stone, Gladys Knight & the Pips, The 5th Dimension, Max Roach e outros desfilam à frente dos olhos dos espectadores, dando a impressão de quase não se acreditar que aquilo um dia aconteceu. Mas está ali, vivo novamente. Afortunados que estavam na plateia e alguns daqueles artistas, como Marilyn McCoo e Ronald Townson, da The 5th Dimension, juntam-se aos espectadores comuns nesse assombro. Noutro grande mérito do filme de Thompson, pessoas que presenciaram o festival, seja assistindo ou se apresentando, são convidadas a reverem as imagens até então perdidas. Profundamente tocados, pois a revivência lhes retraz alegrias e dores, é impressionante perceber o quanto todos demonstram surpresa com o que veem, não só por somente agora terem a oportunidade disso, mas porque, não fosse a força intrínseca da imagem, do mistério divino que o cinema guarda, as memórias tendem a irem se apagando até, um dia, desaparecerem por completo. É o cinema documental exercendo suas duas primordiais funções: revelar e eternizar.

trailer de "Summer of Soul"

Além de um retrato do momento sociocultural de final dos conturbados anos 60, o filme serve também para se entender o próprio estágio em que se encontravam àquela época os artistas participantes, visto que, para alguns, o festival foi crucial para a carreira. Wonder, então com 19 anos, por exemplo, sobe ao palco do Harlem Cultural Festival exatamente no ínterim entre sua tutela artística pela Motown, iniciada quando ainda era uma criança, e o começo da maturidade criativa, que o levaria a se tornar um dos mais consagrados artistas de todos os tempos a partir de então. A Sly & Family Stone, igualmente. É impressionante perceber que “Stand!”, revolucionário disco de estreia da banda que mesclava o funk negro ao psicodelismo do rock com o grito contra as desigualdades, havia sido lançado apenas um mês antes da realização do festival e, mesmo assim, já era uma febre junto ao público. E o que dizer da apresentação explosiva de Nina?! Ou da homenagem a Martin Luther King, protagonizada por Mavis Staples e Mahalia!? De arrepiar. Se o assassinato do pastor e líder político ainda hoje não é totalmente assimilado pela comunidade negra, imagine-se à época, pouco mais de um ano anos após o trágico ocorrido e em que as feridas estavam abertas.

Mavis e Mahalia protagonizando
um dos momentos mais
emocionantes do filme
O paralelismo com fatos históricos daquele efervescente período está presente a cada minuto do longa, como a onipresença dos Black Panthers (responsáveis pela segurança do evento), a presença de figuras emblemáticas para a causa negra como o ativista Jesse Jackson e o protagonismo de Tony Lawrence, agitador cultural e organizador do festival. Somente assistindo-se o filme se entende com mais clareza, por exemplo, o porquê das críticas que sempre pairaram em relação à política de financiamento da corrida especial, intensificada pelos Estudos Unidos naquela década de 60 de Guerra Fria e disputa de poder com a União Soviética. Num dos momentos do filme, mostram-se reportagens da época com pessoas sendo entrevistadas durante o festival dizendo ser um absurdo o governo gastar bilhões de dólares para ir à Lua enquanto a população, ali, pobre e em sua maioria negra, passa por tanta dificuldade. Noutro ponto, mais um aspecto elucidativo de “Summer...”: o festival foi realizado, curiosamente, durante o mesmo verão que outro megaevento, o de Woodstock, o qual levantava não a perigosa bandeira da luta contra o racismo e dos direitos civis, mas a utópica máxima hippie de “paz e amor”. Não é difícil de saber qual festival entrou para a história e qual foi esquecido num porão...

“Summer...” não é só provavelmente o melhor documentário deste ano e forte candidato à estatueta da Academia, como um dos mais brilhantes sobre música da história do cinema, tranquilamente equiparável a clássicos do gênero como “O Último Concerto de Rock”, “Gimme Shelter” e “Amazing Grace”. Sua narrativa, que casa metalinguística e documentação histórica, é tão eficiente que lhe potencializa o caráter de espetáculo e de denúncia social num só tempo. A realização milagrosa de “Summer...” é, por si, reveladora, visto que funciona como uma metáfora da vida da América escravagista: preso num calabouço, o negro, até então fadado ao apagamento social, sai da condição subumana para forjar, com talento ímpar e força interior ainda mais admirável, toda a arte musical moderna como se conhece hoje.


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

"Ataque dos Cães" , de Jane Campion (2021)

 

Deu pra ti, John Wayne
por Daniel Rodrigues

Jane Campion é uma cineasta que, mais do que somente pela qualidade de seus filmes, é por si só uma figura marcante para a história do cinema. Além de ser a segunda entre cinco mulheres nomeadas para o Oscar de Melhor Direção, foi a primeira cineasta feminina da história a receber a Palma de Ouro do Festival de Cinema de Cannes por seu marcante “O Piano”, em 1993. Mas é fato também que, guardada sua importância representativa, a talentosa diretora neozelandesa acumula bons feitos e outros nem tanto. Porém, invariavelmente voltados à visão da mulher no cinema. Desde seu primeiro e referencial “Um Anjo em Minha Mesa” (1990), que retrata a sofrida vida real da escritora Janet Frame, passando pelo inconsistente “Em Carne Viva” (2003) ou em seu celebrado “O Piano”, um dos melhores filmes dos anos 90, a figura feminina é sempre desafiada a situações as quais só mesmo uma mulher para expressar. Em “Ataque dos Cães”, seu novo filme, curiosamente, no entanto, este “lugar de fala” se desloca, visto que não é a personagem feminina quem o protagoniza. Aliás, não há um único protagonista, e isso talvez seja justamente o grande trunfo da produção, que põe Campion novamente na mira do Oscar com o filme com mais indicações em 2022, doze. Mas o longa a leva a se destacar mais uma vez, porém agora por um outro mérito, que é o de inscrever a obra numa importante ressignificação do tão simbólico - e questionável - gênero faroeste.

“Ataque...” se passa numa rústica Montana dos anos 20 em que os irmãos Phil (Benedict Cumberbatch) e George (Jesse Plemons) possuem uma das maiores fazendas da região. Quando George se casa em segredo com a viúva Rose (Kirsten Dunst), dona de uma pequena pensão em que vive com o sensível filho Peter (Kodi Smit-McPhee), a cumplicidade familiar entra em jogo. Phil, de postura rígida e sedutora, faz o possível para atrapalhar a vida de Rose e de Peter, a quem ele cria certa obsessão. Apoiado pelos vaqueiros em suas zombarias, ele não pretende parar até criar conflitos maiores. No entanto, a investida do caubói leva a rumos inesperados – principalmente, para ele próprio.

A trama, construída em capítulos – o que dá ao filme um caráter autoral a exemplo do que fizeram com propriedade Kubrick, Godard e Tarantino – vale-se dos conceitos não só da feminilidade, mas também de masculinidade e da homossexualidade para dissolver mitologias e criticar estereótipos. Em uma sociedade bruta como a do Velho Oeste dos Estados Unidos, em que os instintos se sobrepõem, principalmente a tudo que for de natureza sensível e “feminina”, Campion põe em xeque a macheza do famoso homem “durão”, bem como subjetiva a fraqueza do homossexual e, realista, não inventa nenhuma falsa imagem de uma mulher forte e corajosa diante de uma condição social irrespirável. Tempos antigos, inspirações atuais.

trailer de "Ataque dos Cães"

O longa, embora não seja genial, é muito bem engendrado, uma vez que sabe dispor os elementos narrativos econômica e gradativamente, o que mantém a atenção do espectador que venceu os primeiros 20 minutos de história e diálogos naturalmente (e propositalmente) ainda vagos. Alguns méritos são evidentes. Faroeste sem um disparo de pistola sequer, o filme consegue manter a sensação de tensão quase permanentemente – seja pelo temperamento explosivo de Phil, pela iminência da doença dos animais ou pelo mistério que as montanhas do extremo Norte dos Estados Unidos guardam. O elemento sonoro-musical é outro ponto bem tratado, quase uma chave que liga dois mundos, o selvagem e o desenvolvido, isso tanto na trilha sonora invariavelmente dissonante, assinada pelo Radiohead Jonny Greenwood, quanto nas músicas incidentais. 

Fica claro que não é por acaso que Jane escolheu o faroeste como metáfora para refletir ideologicamente a sociedade atual. Embora não seja novidade a tentativa de Hollywood de mostrar que os brutos também amam, é inegável que o gênero mais yankee do cinema representa em boa medida a ideologia que os Estados Unidos vendem ao mundo, arraigado em boa parte em concepções machistas e patriarcais. Isso explica porque o western, enquanto símbolo cultural e hipérbole dessa ideologia, tenha perdido o passo ao galopar paralela e anacronicamente com o desenvolvimento sociocultural de sua nação. Neste processo, sofreu um considerável desgaste ao longo das décadas até quase sumir das telas nos anos 80-90, salvo por um clássico temporão, "Os Imperdoáveis", de Clint Eastwood (1992) . Hoje, sua revitalização só poderia vir em forma de crítica. O protagonismo de um caubói negro na refilmagem de "Sete Homens e Um Destino" (Fuqua, 2016), a descrença na natureza humana de “A Balada de Buster Scruggs” (irmãos Coen, 2018) e a feminização do herói valentão de “Cry Macho” (Eastwood, 2021) juntam-se a “Ataque...” nessa tendência de um olhar racional e reflexivo sobre a sociedade e seus padrões. O rei está nu e não se fazem mais John Wayne como antigamente. Ainda bem.

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Cão que ladra forte
por Cly Reis

Tenho que admitir que tinha um certo preconceito quanto a filmes dirigidos por mulheres. Jane Campion era uma exceção. Desde o primeiro momento, com seu brilhante "O Piano", vencedor da Palma de Ouro em Cannes, em 1995, a diretora neozelandesa conquistou meu respeito e admiração. Agora, quando soube que seu novo filme, "Ataque dos Cães" era um faroeste fiquei bastante intrigado sobre como funcionaria um gênero tão rústico e pesado nas tão delicadas e talentosas mãos desta diretora. Certamente não poderia se tratar de um western convencional. E, efetivamente, não o é. Além de não ser exatamente um faroeste dentro dos moldes tradicionais, nem a época é exatamente a dos conflitos mais brutais e ignóbeis do oeste americano como duelos, assaltos a diligências ou corrida por ouro. "Ataque dos Cães" se passa no final dessa era sem lei, é o início da "civilização", onde há vaqueiros, há revolveres, há cavalos, mas também há  homens de terno que administram as fazendas, a caneta muitas vezes resolve mais do que a bala e o automóvel começa a dividir espaço  com as montarias, sinalizando um novo tempo.

Essa situação histórica não é em vão, não é por acaso. O faroeste de Jane Campion, adaptado do romance do escritor Tomas Savage, é estrategicamente situado nesse recorte histórico de modo a sinalizar para um novo momento no qual não há mais espaço para homens que resolvem tudo na bala. Um novo homem aparece. Na verdade sempre esteve lá, mas agora quer sair. Esse é o conflito que se estabelece em um dos protagonistas, Phil Burbank (Benedict Cumberbatch), um típico vaqueiro, rústico de maus modos e pose de machão, que, além de desaprovar a civilidade do irmão, George, homem do campo como ele, porém mais adaptado aos novos tempos e administrador dos negócio da família, briga contra si mesmo por sentimentos íntimos que, contra sua vontade, o tornam frágil, vulnerável e fazem aflorar coisas que reluta em assumir. O conflito interior se acentua quando Phil tem contato com Peter
Cumberbatch e Smth-McPhee: faroeste com requintes
de um drama sensível e perspicaz
(Kodi Smth-McPhee), filho de uma estalajadeira, Rose (Kirsten Dunst), que, para seu desgosto, cai nas graças do irmão que a pede em casamento. O jovem é sensível, talentoso, emotivo e a percepção dessas qualidades por parte do cowboy fazem com que, incapaz de lidar com sua sexualidade, nutra pelo rapaz uma séria antipatia. Por extensão à repulsa pelo garoto, e também por "roubar" seu irmão e pelo fato de, na sua visão, enfraquecer os valores de homem do campo, Phil rejeita a nova cunhada destratando-a, a fazendo sentir-se uma estranha mesmo dentro da própria casa. O filho, o jovem Peter, que não havia ido morar com o casal, num primeiro momento, aproveita o recesso das aulas para passar uma temporada em companhia da mãe em seu novo lar, dando a ela um pouco de conforto naquele território hostil. No entanto, o que era para ser algo positivo acaba sendo mais uma dor de cabeça  para Rose quando o cunhado, seu desafeto, por incrível  que pareça, acaba se aproximando de seu filho, em parte por implicância, por provocação, mas em parte, também, por ver no rapaz algo parecido consigo e, nessa proximidade, a possibilidade de se libertar e de, minimamente, ser quem desejaria ser. E é nesse quadrilátero que a diretora desenvolve seu filme com engenhosidade e sabedoria para captar e transmitir o perfil psicológico e emocional de cada um de seus personagens principais, com rara sutileza e sensibilidade.

O título em português, embora justificável, de certa maneira, é um tanto infeliz e acaba insinuando uma violência que o filme não possui, o que acaba mais repelindo do que conquistando potenciais espectadores. Sei de gente que não quis ver ainda por conta da sugestão de atrocidade que o nome carrega. Mas não precisa ter medo dos cães. O filme passa longe de ser um bang-bang, um faroeste spaghetti e muito menos um desfile de atrocidades. "Ataque dos Cães" é, na verdade, um drama familiar de quatro pontas, um exame sobre a masculinidade que, no fim das contas, acaba por nos revelar que nem sempre o cão que late mais alto é o mais perigoso. 


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Ataque psicológico
por Vagner Rodrigues


Uma certa lentidão, uma narrativa arrastada, tudo isso é muito bem compensado com um terceiro ato magnífico. Que filme, senhoras e senhores!
"Ataque dos Cães" acompanha os irmãos Phil (Benedict Cumberbatch) e George (Jesse Plemons), que são ricos proprietários da maior fazenda de Montana. Enquanto o primeiro é brilhante, mas cruel, o segundo é a gentileza em pessoa. Quando George secretamente se casa com a viúva local Rose (Kirsten Dunst), o invejoso Phil faz tudo para atrapalhá-los.
O fato do andamento ser mais arrastado e parado foi proposital, mas entendo aqueles que aproveitaram o filme em streaming para dar uma pausa, ir ao banheiro, fazer um lanche, pois realmente fica um pouco cansativo. Um dos aspectos que me tirava um pouco do filme era o modo como o personagem de Jesse Plemons foi utilizado, entrando e sando da história a todo instante. Seus momentos de interação são ótimos, mas ele acaba aparecendo bem pouco, e fiquei com a impressão de que poderia ter sido melhor aproveitado.
Já que estamos falando dos personagens, é simplesmente impossível falar do filme e não citar as grandes atuações. O elenco como um todo está inspirado. Começando pelo próprio, já citado Jesse Plemons (George) que, se por um lado é o que tem menos tempo de tela, por outro, quando aparece é cirúrgico. Poucas falas, mas muito é dito com seu olhar. Kirsten Dunst (Rose) fazia tempo que não via atuar tão bem. A dor, a confusão mental que essa mulher passa, você sente tudo. Kodi Smit-McPhee (Peter), é o segundo personagem mais importante da trama e a forma como ele muda o filme e também como cria os elos das pessoas é o que nos leva às surpresas finais. E ele, Benedict Cumberbatch, tem uma das melhores atuações de sua vida, (se bem que, para mim, ele esta sempre bem). A forma intensa que ele atua, como ela passa aquele ar do cowboy bruto, sujo, quieto, tudo muito natural em um personagem com uma presença enorme, interpretado em uma atuação magnifica.
A construção narrativa feita pelo longa é espetacular, desde como os personagens são apresentados passando por como eles vão interagindo entre eles, sendo essas interações repletas de detalhes muito bem colocados.
A fotografia exuberante de "Ataque dos Cães"

E a fotografia, se não for a melhor do ano, certamente é uma das melhores! O jeito como o cenário é construído, os enquadramentos em planos abertos, os detalhes nas composições de cena... Um esplendor.
Temos um bom trabalho na construção e desconstrução do cowboy, a forma como longa brinca com nossas expectativas nos induzindo a pensamentos, conduzindo nossa mente para um lado para o outro. Na sequência em que Phill e Peter terminam juntos de construir uma corda de laçar, por exemplo, Jane Campion cria toda uma situação cheia simbolismos e possíveis interpretações (eu tive a minha, depois me conta a sua) que nos prendem  a ela de uma maneira incrível, tal qual a tensão criada por um filme de terror psicológico.
“Ataque dos Cães” não brinca somente com o psicológico dos personagens porque, sim temos ataques psicológicos fortes no longa que são muito mais agressivos que os físicos. Não vá pensando em ver um “bang-bang”. "Ataque dos Cães" é um filme que não mexe apenas com o psicológico dos personagens, mas com o seu também.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

"Não Olhe para Cima", de Adam McKay (2021)


 

Tem filmes que se transformam “da moda” e geram tanta discussão – nem sempre merecidamente – que é quase “chover no molhado” falar-lhes a respeito. É o caso de “Não Olhe para Cima”, que estreou no Netflix e em alguns cinemas pelo mundo – claro, com intenções de Oscar, visto que somente o streaming lhe impede de concorrer ao prêmio. Porém, a comédia sarcástica com lances de suspense de Adam McKay (“A Grande Aposta”, “Vice”) tem, sim, merecimento em ser tão comentado, ainda mais porque a celeuma a qual gerou é mundial e não restrita apenas ao país no qual foi produzido. A enxurrada de comentários nas redes sociais que correlacionam aspectos do filme à realidade brasileira, no entanto, não é à toa, visto que os terríveis tempos de bolsonarismo parecem-lhe estar retratados fielmente. Só por isso, mesmo que esteja sendo repetitivo, já merece se tecerem algumas observações.

Seja norte-americana, brasileira ou de qualquer lugar que o valha, “Não Olhe...” é um retrato tristemente muito bem traçado dos tempos de pós-verdade no qual vivemos. O longa conta a história de dois cientistas (os astrônomos Randall Mindy, vivido por Leonardo DiCaprio, e Kate Dibiasky, Jennifer Lawrence) que descobrem um corpo espacial sólido gigante que está vindo em direção à Terra e tentam alertar autoridades e imprensa para que providências sejam tomadas antes que as consequências sejam fatais. Porém, são envolvidos em um jogo político de interesses em que a ciência não é lavada a sério (alguma semelhança com políticos e pessoas que negam a vacina ou à própria existência do Coronavírus?). Pior: suas figuras e discurso são distorcidos e transformadas em produto ao bel prazer da mídia. A dupla de pesquisadores tenta encampar uma peregrinação na imprensa e acaba na Casa Branca, mas nada parece ser suficiente para que as pessoas “olhem para cima” de forma racional e despida de interesses próprios.

“Não Olhe...” expõe a máxima contradição dos tempos atuais: a de que não é a vida que imita a arte, e, sim, o contrário. O negacionismo, o ódio ao conhecimento, a polarização de ideias, a exaltação da ignorância, o interesse político-econômico e a intransigência ideológica estão todos evidentes. A semelhança – e a bizarrice –é tanta, que os mesmos famigerados memes que o filme mostra se produzirem sem controle se aplicam perfeitamente à realidade fora da ficção, como no paralelo de personagens do filme e figuras públicas brasileiras que corre pelas redes sociais: a presidente Orlean (Meryl Streep) comparada a Jair Bolsonaro; o filho da presidente Jason (Jonah Hill) com o deputado federal Carlos Bolsonaro; Randall com o microbiologista Átila Iamarino; e Kate com a bióloga Natália Pasternak– que, aliás, ela mesma identificou-se com a personagem.

Afora a edição ágil de Hank Corwin e a direção bem conduzida por McKay, que faz o longo filme não ter “barriga”, tamanho é o proveito do roteiro, as atuações são um destaque à parte. Maryl, deusa, está tragicamente magnífica no papel da patética presidente; DiCaprio, o maior de sua geração, mais uma vez dando o tamanho certo para o personagem; Jennifer, igualmente bem; e especialmente Mark Rylance, que vive o egoico magnata Peter Isherwell, cuja figura amorfa e andrógena denotam o quão perigosos são estes novos donos do mundo como Musk e Bezos.

No entanto, o que se destaca antes de tudo em “Não Olhe...” é seu roteiro, digno de Oscar. Escrito pelo próprio McKay (que levou a estatueta de Roteiro Adaptado em 2016 por "A Grande Aposta"), traz um retrato sem perdão da sociedade contemporânea em seus tempos líquidos de conexões digitais e desconexões humanas. A história é um compêndio de percepções muito acertadas de um mundo de radicalismos político, ideológico e, num entendimento mais profundo, religioso. É o império do absurdo, que só pode nos levar a um desastre irreparável. O longa guarda também uma metáfora de alerta para a questão climática no planeta: nesse ritmo de descontrole do ecossistema, o resultado será a destruição da vida como a conhecemos.

Atuações de gala abrilhantam o perspicaz "Não Olhe..."

Neste turbilhão de opiniões que o filme suscita, é interessante, contudo, perceber o mesmo comportamento autodestrutivo que este critica em relação à sociedade atual. Ou seja, a mentalidade está tão incrustrada que aqueles que deveriam ter mais condições de avaliar a obra como uma oportunidade de reflexão (independentemente se a consideram boa ou não, isso é irrelevante), são, justamente, os que tentam “lacrar”, mostrando-se os verdadeiros cegos. Uma crítica especializada, por exemplo, apontou que “Não Olhe...” é fadado a ser esquecido pela história por ser “um filme confuso, sem foco, pouco engraçado e, pior de tudo, que já nasce velho”. Ora, primeiramente, que não é incomum nos depararmos com filmes que, mesmo discutíveis em qualidade, marcam, sim, uma época, haja vista “A Primeira Noite de um Homem”, não necessariamente brilhante mas marcante para a geração baby boomer, ou o celebrado “Forrest Gump”, que justifica a barbárie social norte-americana de uma forma um tanto leviana. Entretanto, a questão vai além disso, pois não cabe a um ou outro dizer se a obra vai ou não perdurar: é um conjunto de fatores históricos, sociais e culturais que determinam, independente dos gostos pessoais. Avaliações como estas só reforçam, mascarada ou ignorantemente, o monstrengo autoritário e superpoderoso da sociedade digital-capitalista.

Dada a pertinência de “Não Olhe...” na leitura de nossos tempos – importante lembrar os detratores, aliás, que o filme foi escrito antes da pandemia, aumentando seu mérito – é muito difícil imaginar que seja esquecido no futuro. O que me deixa, inclusive, minimamente reconfortado considerando que a história não se baseia no exemplo brasileiro. Ou seja: esta onda de ultradireita e neofascismo não pertence somente a nós, brasileiros, o que significa que mais nações podem estar passando por isso e percebendo seus malefícios. Mas espero, sim, que o filme seja lembrado daqui a algum tempo como a antítese de um mundo para o qual caminhávamos em épocas passadas, mas que, a certa altura, percebendo o erro que cometíamos, tenhamos conseguido retomar a rota do bom senso e do humanismo. Quem sabe, assim, findar essa era atual para iniciar uma outra.

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trailer de "Não Olhe para Cima"


Daniel Rodrigues