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domingo, 4 de dezembro de 2022

Fausto Fawcett e Os Robôs Efêmeros - "Fausto Fawcett e Os Robôs Efêmeros" (1987)



"Juliette é a filha bastarda
do Carrossel Holandês,
da Laranja Mecânica"
trecho de "Juliette"



A música brasileira tem uma tradição de contar histórias. Com sua enorme capacidade poético-literária, imaginação e uma musicalidade capaz de combinar esses elementos, artistas brasileiros vêm ao longo de praticamente todo o desenvolvimento da discografia nacional, narrando fatos, episódios, pequenos contos, historietas, acompanhando-as dos mais diversos tipos de melodias e arranjos.

Nos anos 80, em meio à explosão do Rock Brasil, um cara altamente criativo inventava histórias alucinantes, distópicas, surreais, improváveis, ambientadas normalmente num Rio de Janeiro futurista, mergulhado num estado de caos, abandono, desesperança, mas ao mesmo tempo avançado, luxuoso e desfrutando das mais altas tecnologias. Nesse cenário, desfilava "heroínas" singulares, personagens atípicas, damas fatais, meretrizes, mulheres que misturavam requinte com vulgaridade e levavam consigo, de certa forma, alguma dose de veneno.

Fausto Fawcett, um carioca boêmio, nativo típico de Copacabana, lançava em 1987 o disco que levava seu nome e da banda que o acompanhava, "Fausto Fawcett e os Robôs Efêmeros", repleto de todos esses elementos e com as histórias mais piradas que qualquer mente "normal" pudesse imaginar. Ele seguia a tradição brasileira de contar histórias, mas o fazia de uma forma completamente diferente e inusitada. Muito mais um escritor do que propriamente um cantor, Fausto, com uma pegada meio rap e toques disco-music, acompanhado de seu fiel escudeiro o guitarrista Carlos Laufer, praticamente declamava as letras, narrava as histórias com alguma entonação musical, e, no refrão, sim, normalmente, carregava no ritmo. Assim, em uma Copacabana suja e caótica, nos apresentava uma prostituta asiática dona de um furgão rosa-choque, habitante de um apê-kitinete onde aconteciam atividades suspeitas, na disco-oriental "Gueixa Vadia". Conhecíamos também uma grafiteira dos prédios de Copa, "Tânia Miriam", uma jovem loira de vestes extravagantes e hábitos peculiares. Éramos apresentados a uma nova droga vendida por camelôs turcos, o "Drops de Istambul", cujas sensações alucinógenas, a viagem, e as imagens fantásticas são descritas pelos jovens de Copacabana a um repórter para um noticiário local. No embalo do jornalismo, tema recorrente, também no trabalho do autor, "Rap de Anne Stark", imagina uma realidade na qual os telejornais passam a ser uma grande atração de entretenimento, tal qual filmes ou novelas, tendo até mesmo, para seus adeptos, locadoras especializadas, tal como a boutique Paulo Francis localizada no coração de Copacabana, com uma seção dedicada especialmente às mais belas locutoras do mundo inteiro, com fitas dessas musas do telejornalismo narrando notícias ininterruptas, se destacando entre elas, como estrela máxima, a loura Anne Stark.

"Kátia Flávia, A Godiva do Irajá", o grande hit da carreira do cantor, se diferenciava das demais por uma produção mais caprichada. A cargo do mestre brasileiro dos estúdios, Liminha, a faixa trazia um funk agressivo, uma guitarra suingada do parceiro Carlos Laufer e um trabalho vocal mais elaborado, tudo apoiado num refrão irresistivelmente transgressor ("Alô, polícia / Eu tô usando / Um Exocet / Calcinha"). O conto musical narrava a aventura de uma louvação irresistível do subúrbio, do bairro do Irajá, que ficara famosa por cavalgar nua num cavalo branco e que depois de matar o marido bicheiro, rouba uma viatura policial, ruma para Copacabana e ameaça detonar uma calcinha explosiva. Loucura total. Maravilhosamente louco! 

Embora o hit da Godiva do Irajá tivesse sido a música de trabalho do álbum, minha preferida do disco é "Chinesa Videomaker", uma obra absolutamente singular que junta pornografia, fetichismo, multimídia, jornalismo, tecnologia, Escrava Isaura, Gabriela Sabatini e Madonna, tudo em uma só história. Em "Chinesa Videomaker", o autor nos apresenta uma empresária da noite, dona de uma boate, que tem o hobby de capturar homens na madrugada carioca, levá-los ao seu apartamento e exibir imagens de telejornais para o sequestrado enquanto pratica nele uma generosa sessão de sexo oral. O problema é que, depois de desovar o rapaz numa esquina qualquer, ela dá bobeira e é capturada por uma gangue fã de Madonna que leva a chinesa para o alto de um prédio e a joga de lá. Com certeza, a história mais bem construída e estruturada dentre os contos musicais só álbum.

"Estrelas Vigiadas", que a segue, pelo contrário, na minha opinião é a mais fraca, embora apresente um cenário interessantíssimo de uma Copacabana fantasma, suja e semiabandonada, que contrasta com o glamour do Copacabana Palace, sede uma avançadíssima exposição bélico-espacial.

Pra fechar, uma situação bizarra envolvendo um cargueiro de tequila e um iate com belíssimas passistas de escola de samba, nos faz conhecer a loirinha Juliette, uma jovem procurada pela polícia da qual não se tem maiores informações, a não ser o fato de que seria filha ilegítima de um dos jogadores da seleção holandesa de 1974. Num sambinha safado, cantado em parceria com Fernanda Abreu, Fausto enumera todos os jogadores da Laranja Mecânica como possibilidades da paternidade da loira Juliette que, no fim das contas, é perseguida pelo policial que a reconhece em meio aos curiosos pelo inusitado naufrágio, a executa brutalmente e a enterra na areia da praia de Copacabana.

Se não é nenhuma exuberância musical, melódica, "Fausto Fawcett e os Robôs Efêmeros" é um espetáculo literário de criatividade e de histórias fantásticas e improváveis. Em meio à sonoridade pós-punk e as letras engajadas de seus contemporâneos, a filosofia das letras dos Engenheiros, o minimalismo agressivo dos Titãs, da poesia cotidiana de Cazuza, o messianismo da Legião, Fausto Fawcett, à sua maneira também escrevia seu nome de forma significativa na geração rock dos anos 80 com sua sonoridade rap-disco-samba-oriental singular, e contando histórias, como muito já se fez na música brasileira, mas de uma maneira que, até hoje, só ele sabe fazer.

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FAIXAS:

1. "Gueixa Vadia" 6:16
2. "Tânia Míriam" 3:54
3. "Drops de Istambul" 3:57
4. "O Rap d'Anne Stark" 6:35
5. "Kátia Flávia, a Godiva do Irajá" 4:06
6. "A Chinesa Videomaker" 7:02
7. "Estrelas Vigiadas" 5:00
8. "Juliette" (part. Fernanda Abreu) 4:12


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Ouça:




por Cly Reis


quarta-feira, 4 de março de 2020

Música da Cabeça - Programa #152


Sabe o que realmente cura epidemia? Não é o óleo consagrado dos charlatões, mas ouvir o Música da Cabeça! Hoje, nossos fiéis ouvintes serão abençoados com o som de Fernanda Abreu, Vitor Ramil, Miles Davis, Talking Heads, Rita Lee, Nico e outros. Tem também "Sete-List" sobre compositores e as suas escolhidas. A profecia começa às 21h, na ungida Rádio Elétrica. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues. Porque a doença vai cair quando chegar em você! 


Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Música da Cabeça - Programa #161


Não só Marias, Clarices, Leonores ou Dagmares que choram a despedida de Aldir Blanc. Hoje, vamos homenagear no programa o autor de inúmeras preciosidades da música brasileira, que também vai ter The Beatles, Kraftwerk, Fernanda Abreu, THE 5.6.7.8´s, Francisco Alves com Mário Reis, Syd Barrett, e mais. Também tem "Cabeça dos Outros" no quadro móvel. Vamos servir uísque com guaraná no MDC hoje, às 21h, sob a luz grená filtrada do cabaré da Rádio Elétrica. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues. Tão servidos?



Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Música da Cabeça - Programa #194


Do jeito que a coisa anda, até Papai Noel tá querendo virar jacaré neste Natal. Mas enquanto a vacina não vem, a gente curte o MDC natalino com sons mais legais do que de sininhos. Isso porque tem Ride, RATOS DE PORÃO, Fernanda Abreu, Lou Reed & John Cale, Pequeno Cidadão e outros vão estar com a gente. Ainda tem quadro com os 250 anos de Beethoven e os fixos "Palavra, Lê" e "Música de Fato". Programa desta quarta é 21h, na crocodiliana Rádio Elétrica. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues. #feliznatal2020 #vemvacina e #ForaBolsonaroGenocida


quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Música da Cabeça - Programa #25



Feriado pra gauchada? Aqui a gente não faz feriado, pois nossas músicas não tiram folga. No Música da Cabeça de hoje, às 21h, na Rádio Elétrica, tem um montão delas e com a variedade de estilos e referências de sempre. Vamos ter Chico BuarqueBanda Black RioJorge BenjorLenny Kravitz e Fernanda Abreu por exemplo. Ainda, o 'Música de Fato', o 'Palavra, Lê' e um 'Sete-List' especial Rock in Rio. Não te micha pro feriado e escuta o programa de hoje, tchê! Produção, apresentação e pilcha: Daniel Rodrigues.


Ouça: Programa #25

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Plebe Rude - "O Concreto Já Rachou" (1985)



"O Concreto Já Rachou"
da letra de "Brasília"



Eles eram uma espécie de primo-pobre das bandas de Brasília. Uma espécie de patinho-feio. Enquanto a Legião Urbana arrebatava multidões de fiéis e o Capital Inicial , com um pop bem feito agradava em cheio ao grande público, a Plebe Rude com seu estilo mais cru, letras diretas e contundentes, até fazia seu sucesso também, mas nunca a ponto de alcançar a dimensão dos outros dois conterrâneos. Talvez por terem sido a menos concessiva no que diz respeito às suas raízes punk. Embora a Legião preservasse elementos de punk rock em seu repertório e o Capital s trabalhasse de maneira mais acessível no seu repertório, a Plebe Rude era que se mantinha mais fiel ao estilo e à atitude com um discurso mais enérgico e uma postura mais coerente.
Em seu EP de estreia, "O Concreto Já Rachou", de 1985, com apenas 7 músicas, a Plebe atacava as gravadoras, as autoridades, a TV, o sistema de uma maneira geral, com letras inteligentes, mas um tanto toscas, sem a brilhatura de um Renato Russo, por exemplo, o que fazia toda a diferença não só para a própria banda que o cantor integrava, como para o Capital Inicial que se impulsionou muito a partir de algumas delas como "Fátima" e "Música Urbana".
Mas a Plebe Rude não apenas se ressentia um elemento carismático, aglutinador, como ainda apresentava dois vocalistas (Philippe Seabra e Jander Bilafra) que se alternavam no microfone e, por vezes, como na excelente "Brasília", dividiam mesmo, simultaneamente a função principal. Nesta ótima faixa, sem cair na mesmice de falar de políticos, falcatruas, leis absurdas, etc., com sua letra dupla interpretada brilhantemente pelos dois, expunham toda a sujeira que a cidade estava (e está) mergulhada sob os olhos incapazes, conformados, perplexos e/ou covardes de seus habitantes e, mais amplamente, da população do país. A frase título do disco, presente na música sentenciava: o sonho da cidade ideal havia ruído e Brasília era um mar de lama. Punk direto e certeiro!
Mas dizer que a banda foi punk à risca em "O Concreto Já Rachou" seria um exagero. É lógico que, como a grande maioria dos artistas que assinou com gravadoras grandes naquela metade dos anos 80 teve que ceder um pouquinho aqui ou ali, mas parece que as cessões que a Plebe fez não foram o suficiente para subverter o cerne de seu som. É o caso de "Até Quando Esperar", por exemplo, que alcançou com bom destaque as paradas de sucesso, na qual até aceitam incluir o excepcional violoncelista Jaques Morelenbaum ao seu punk rock, à sua letra crítica e desesperançosa, sem contudo, com isso, perder a agressividade e a contundência do coração da canção, agregando ainda um certo acento solene proporcionado pelo grave do violoncelo. Ou também em "Sexo e Karatê", na qual mesmo com a participação de Fernanda Abreu suavizando o ritmo frenético, e com uma letra divertida de encontros e desencontros telefônicos, além de abordar a solidão, deixa transparecer ainda uma crítica à programação das emissoras, em especial à eterna inimiga pública, a Rede Globo de Televisão.
Mas se topavam estas pequenas 'adaptações' ao sistema, provavelmente sugeridas pelo produtor, Herbert Vianna, não por isso deixavam de criticar a indústria musical e todos seus meios para roubar a identidade dos artistas em nome do dinheiro, como na incisiva "Minha Renda", onde mencionam exatamente recursos como estas suavizações ("um lá menor aqui e um coralzinho de fundo / minha letra é muito forte? se eu quiser eu a mudo"); as imposições das gravadoras ("você é um músico não é um revolucionário / faça o que eu te digo que eu te faço um milionário"); respingando até mesmo no próprio produtor em trecho cantado pelo próprio vocalista dos Paralamas do Sucesso ("já sei o que fazer pra ganhar muita grana / vou mudar meu nome para Herbert Vianna").
"Proteção", outra das que teve boa execução nas rádios, talvez seja uma das mais fortes do disco, atacando em especial às autoridades, o exército, o fantasma da ditadura e o resto de censura que ainda perdurava com força naquela metade dos anos 80. Destaque para o vocal de Jander Bilafra, marcante, soturna e sinistra, repetindo quase o tempo todo, na segunda voz, o verso "para sua proteção", conferindo uma certa mecanicidade e uma espécie de sensação de presença vigiada sugerida pela letra.
Destaque ainda para a boa "Seu Jogo", sobre vidas vazias, com uns metaizinhos bem dispensáveis; e para "Johnny Vai à Guerra" sobre a inocência perdida por jovens em batalhas militares sem sentido.
 Um dos melhores álbuns daquela geração brazuca dos anos 80, e com certeza um dos pilares da santíssima trindade do rock brasiliense juntamente com o "Dois" do Legião Urbana e o álbum homônimo do Capital Inicial, "O Concreto Já Rachou" tem assegurado seu lugar de destaque na galeria dos grandes álbuns nacionais de todos os tempos. Depois daquilo os palácios , os ministérios, as obras de Niemeyer nunca mias teriam conserto. O estrago já estava feito. O concreto havia sido irremediavelmente danificado e a Plebe Rude havia colocado seu nome na história da música brasileira.

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FAIXAS:
1. Até Quando Esperar
2. Proteção
3. Johnny Vai à Guerra (Outra Vez)
4. Minha Renda
5. Sexo e Karatê
6. Seu Jogo
7. Brasília

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Ouvir:
Plebe Rude O Concreto Já Rachou




Cly Reis

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Música da Cabeça - Programa #96


Agora que Estados Unidos e Rússia inventaram de reaquecer a guerra que já foi fria, preparemos, nós, as nossas ogivas. Mas as ogivas sonoras, claro, aquelas carregadas de Ben Harper, Cartola, Os Replicantes, Brian Eno, Fernanda Abreu e muito mais. Isso e ainda nossos quadros “Música de Fato”, “Palavra, Lê” e “Cabeça dos Outros”. Mísseis audíveis a longas distâncias serão lançados no Música da Cabeça de hoje, direto da usina da Rádio Elétrica, às 21h. Produção, apresentação e bombardeios: Daniel Rodrigues.



Rádio Elétrica:
http://www.radioeletrica.com/

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Jorge Ben - "Solta o Pavão" (1975)



"Pavão Real, Pavão Dourado
Procedente da África e da Índia [...]
Sua cauda, de uma plumagem azul. verde e ouro
Formando um lindo e majestoso leque
Na Idade Média
O pavão, pela sua figura bonita e livre
Era visto como uma ave real e da sorte." 
Jorge "Sanctus" Ben,
do texto da contracapa original do disco 


Na metade dos anos 70, Jorge Ben, que ainda não tinha se tornado o Benjor que assumiria a guitarra elétrica no lugar do violão, já havia alcançado tudo que um artista popular podia. Estouro no disco de estreia, altas e baixas vendagens, idolatria e ostracismo, adesão a movimentos (sambalanço, soul, tropicalismo), participação e vitória em festivais, hits nas paradas, gravações internacionais e até briga judicial por plágio (vencida por ele sobre um Rod Stewart metido a esperto). Mas principalmente, desde que começara a carreira, o “Babulina” foi responsável pela talvez mais extensa e irreparável sequência de discos de um artista na indústria fonográfica no Brasil. Somente nos primeiros cinco anos daquela década, enfileirou os álbuns “Força Bruta”, “Negro é Lindo”, “Ben” e “10 Anos Depois”, isso sem falar dos registros ao vivo com o Trio Mocotó e dos clássicos absolutos “Gil & Jorge/Xangô Ogum” e “A Tábua de Esmeralda”. Com estes dois, principalmente o segundo, o autor de “Chove Chuva” atingia o ápice da criatividade e forjava uma linguagem totalmente peculiar, com melodias de alta inventividade, harmonias despojadas, estilo de cantar próprio e ritmo, muito ritmo. Seu samba-rock, carregado de referências ao esoterismo, à religião, à filosofia e a uma visão humanista do mundo, é igualmente sustentado na cultura popular da ginga, do país tropical, do amor, das moças bonitas e da cordialidade.

O que faltava, então, a um artista consagrado por crítica e público? Explodir. Isso que é “Solta o Pavão”: uma explosão de sonoridade, de balanço, de misticismo, de religiosidade, das paixões. Aquilo que Ben trouxera em “A Tábua...” se intensifica neste seu último disco antes da adoção de vez da guitarra, ocorrido um ano depois noutro disco emblemático, “África Brasil”. Está nele toda a bruta brasilidade de Ben, encharcada de matizes africanas e influenciada por elementos da cultura pop, do funk norte-americano ao gospel, da soul ao blues, do rock ao jazz. “Solta...”, assim, com seus riffs inspiradíssimos, sua percussão carregada e arranjos modernos, tem o despojamento e o peso de um disco de rock – sem dever nada em densidade a outros de roqueiros daquele ano, como “Fruto Proibido”, de Rita Lee, ou “Novo Aeon”, de Raul Seixas –, mas ainda com um pé no Jorge Ben do “Samba Esquema Novo”: o da batida percussiva no violão de nylon, malemolente, suingado, malandro, enraizado no morro.

A abertura dignifica todas essas qualidades: um riff de violão como um Neil Young acústico e a batida potente da percussão ao fundo. Prenúncio do arrasador samba que irá começar: “Zagueiro”, uma ode ao “anjo da guarda da defesa” no futebol. Quem sustenta a coesa cozinha, além da Admiral Jorge V Group (João “Van da Luz”, piano; Dadi “Aroul Flavi”, baixo; João “Zim” da Percussão, ritmo; e Gusta “Von” Schroeter, bateria) são os Cream Crackers, grupo formado por ninguém menos que o percussionista e arranjador Zé Roberto, o não à toa intitulado Mestre Marçal e um jovem pernambucano já muito afim com o samba chamado Bezerra da Silva. Todos comandados pela batuta de Jorge “Sanctus” Ben.

O pensamento sobre o ser humano ganhava suma importância na obra de Ben àquela época. Se o filosofia alquimista do Egito de 1.300 a.C. fora responsável pela letra de “Hermes Trismegisto Escreveu” em “A Tábua...”, agora Ben volta sua abundante musicalidade para dar cores aos densos escritos do filósofo oficial da Igreja da Idade Média: São Tomás de Aquino. Capaz de musicar até bula de remédio (e torná-la suingada!), Ben adapta trechos do complexo livro “Suma Teológica”, escrito no século XIII, e o transforma num samba cheio de molejo. Em “Assim Falou Santo Tomás de Aquino” ele consegue imprimir no hermético texto escolástico frases sonoramente cantaroláveis, como: “Senhor, que tens tido feito o nosso refúgio” ou “Estão enganados, puramente enganados/ Estão errados, puramente errados”.

O clima de devoção sambada continua na sequência numa das melhores do disco – e, por que não, da carreira de Ben. “Deus todo poderoso eterno pai da luz, da luz/ De onde provem todos bens e todos dons perfeitos/ Imploro vossa misericórdia infinita, infinita/ Deixai-me conhecer um pouco de vossa sabedoria eterna”. Esses versos dão a ideia da contrição contida na lindíssima "Velhos, Flores, Criancinhas e Cachorros", misto de prece franciscana e canto humanista. De ritmo vibrante e contagiante, passa longe de ser piegas. Pelo contrário, a música tem uma aura especial, tanto por causa da melodia quanto pelo coro alto e intenso, que traz o mesmo “Ôôô” de “Os Alquimistas Estão Chegando”, de “A Tábua...”, porém, usados em outro tom para dar uma atmosfera de canto litúrgico. Ben, como em todo o disco, está solto, tocando o violão com total desembaraço, brincando com vocalizes e melismas e inventando cantos na hora da execução.

Por falar em brincadeira, a divertida "Cuidado com o Bulldog" é, além disso, um show de musicalidade. Começa em um ritmo de rock com o band leader esmerilhando o violão e Dadi mandando ver numa base de baixo no melhor estilo Novos Baianos, ambos acompanhados por uma bateria que abusa dos rolos. Até que, de repente, um breque, e a música dá uma virada para se transformar num samba gingado daqueles de não deixar ninguém parado. A impressão é de farra, mas os músicos estão fazendo um samba-jazz do mais alto nível. Ben aproveita para se divertir com o tema, lançando grunhidos como se estivesse sendo mordido pelo cão (um desses, sampleado pela Nação Zumbi no início de “Cidadão do Mundo”, do disco “Afrociberdelia”, de 1996) e bolando frases engraçadas como: “Bulldog, mandíbulas de ouro” ou “Bulldog não perdoa, Bulldog morde”. Registro ao vivo no estúdio – assim como tudo dos álbuns dele à época –, lembra a naturalidade e a descontração das jam sessions com Gilberto Gil do então recente “Gil & Jorge”. Impagável.

"O rei chegou, viva o rei", com sua linha de metais tropicalista, segue o conceito letrístico de prosa medieva (“Então vierem os cavaleiros com seus uniformes brilhantes/ Garbosos e triunfantes/ Um abre-alas lindo de se ver/ E logo atrás/ Separado por lanceiros/ Vinha a guarda de honra, orgulhosa, polida, agressiva/ Porém bonita/ Anunciando e protegendo o rei”), estilo que serviria, entre outras semelhantes de Ben, de inspiração a Caetano Veloso para escrever “Alexandre”, do disco “Livro”, de 1997. Também prosada e tomada de suingue, "Luz Polarizada" (“Coloque o teu grisol sob a luz polarizada/ Ó meu filho/ Lava as escórias com a água tri-destilada/ Pois aquele que forja a falsa prata/ E o falso ouro/ Não merece a simpatia de ninguém”) lembra a psicodelia de “O Homem da Gravata Florida”, do disco anterior. Ben, totalmente à vontade com os companheiros no estúdio, chama-os para o “La, la, la, la, la, la” do refrão dizendo: “Quero ver o coral agora!”

Mas se tem algo que está no mesmo pé que a religiosidade e o esoterismo em “Solta...” são elas: as musas. Como um menestrel medieval apaixonado, Ben canta para várias delas: "Dumingaz", um samba “maravilha” e “sensual”, como classifica o próprio enquanto canta; “Luciana”, a “canção singela” feita pra lembrar-se do seu trovador quando se ouvir no rádio (clara homenagem a Gil por "Essa é pra Tocar no Rádio", que gravaram juntos em "Gil & Jorge" um ano antes); "Jesualda", samba-rock de riff puxado no assovio que conta a história da mulata saída da favela que ganhou a vida no exterior; e "Dorothy", outra irretocável, com destaque para o arranjo de flautas de Ugo Marotta.

“Solta...” ainda tem a gostosa "Se Segura Malandro", tema do filme homônimo de Hugo Carvana (na linha de “O Namorado da Viúva”, de “A Tábua...”) e um dos mais inspirados temas da história da música brasileira: “Jorge da Capadócia”. Um hino da MPB, regravado por Caetano, Fernanda Abreu e Racionais MC’s, que virou um símbolo do próprio autor, xará do Santo Guerreiro e filho de Ogum, o correspondente ao santo católico no Candomblé pelo sincretismo. Musicando a oração de São Jorge, Ben atinge um clímax como apenas em especiais momentos de sua carreira conseguira – talvez, parecidas, só “5 Minutos” e “Zumbi”, faixas que cumprem o fechamento dos discos “A Tábua...” e “África Brasil”. Isso porque, ao evocar as preces ao Jorge dos Céus, o Jorge da Terra o faça com tamanha potência que a música acaba ganhando uma dimensão mais profunda, etérea e espiritual. O Coral do Kojac entoa o título da canção repetidas vezes num samba marcado e intenso sob um riff de guitarra (sim, de guitarra!). Porém, a exaltação se arrefeça para, aí sim, serem declamados os emocionados versos: “Eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge/ Para que meus inimigos tenham pés e não me alcancem/ Para que meus inimigos tenham mãos e não me toquem/ Para que meus inimigos tenham olhos e não me vejam/ E nem mesmo um pensamento eles possam ter para me fazerem mal”. Ben, com sua voz oscilante, funde canto de escravos à dicção do morro. Um teclado entra para fazer a base, enquanto o violão sola e a percussão, estilo jazz-fusion, desenha um compasso arrastado e assimétrico. Para terminar, retorna a melodia da abertura, porém ainda mais enérgica, mais volumosa, mais expressiva. Um desbunde.

Guardadas as devidas proporções, “Solta...” é o “Magical Mystery Tour” de Jorge Ben: ao mesmo tempo em que é a continuidade natural de uma obra-prima revolucionária (“Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band”, no caso dos Beatles, “A Tábua...”, para o músico brasileiro), também a consolida, redimensionando-lhe as ideias e conceitos originais. Assim, tanto este quanto o da banda inglesa passam longe de serem meros “volumes 2” das obras-irmãs, haja vista que são tão únicos quanto estas e até mais ousados. “Solta...” é, sim, um feliz acontecimento da música brasileira de um momento em que Ben, figura única no panteão da MPB, está com toda vitalidade e alegria. Um artista pleno, que concebeu, na linha evolutiva de sua própria obra, o mais livre e completo trabalho. Majestoso e colorido como a cauda de um pavão.

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FAIXAS:
1. "Zagueiro" - 3:05
2. "Assim Falou Santo Tomaz de Aquino" - 3:04
3. "Velhos, Flores, Criancinhas e Cachorros" - 3:16
4. "Dorothy" - 3:58
5. "Cuidado com o Bulldog"  - 2:53
6. "Para Ouvir no Rádio (Luciana)" - 4:20
7. "O rei chegou, viva o rei" - 3:03
8. Jorge de Capadócia"  - 3:53
9. "Se Segura Malandro" - 2:53
10. "Dumingaz" - 3:30
11. "Luz Polarizada"  - 2:20
12. "Jesualda" - 4:06
todas as composições de autoria de Jorge Ben

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OUÇA O DISCO:
Jorge Ben - "Solta o Pavão"


Daniel Rodrigues

domingo, 18 de abril de 2021

14º Cine Esquema Novo - Debates com realizadores da Mostra Competiviva Brasil



Exercer o papel de crítico de cinema, definitivamente, nem sempre é apenas escrever ou comentar a respeito de filmes. Aliás, ficar somente nisso é até limitado em termos de crítica. Por isso, com satisfação mediei três debates para os quais fui convidado como membro da Associação de Críticos do Rio Grande do Sul (ACCIRS) no 24° Cine Esquema Novo - Arte Audiovisual Brasileira, uma realização da ACENDI - Associação Cine Esquema Novo de Desenvolvimento de Imagem com recursos da Lei 14.017/2020. 

Fora as atividades das quais participei, o festival teve uma impressionante quantidade de outras programações, como filmes, seminário, oficinas, ações e outros vários debates sobre os 31 filmes em disputa. Ao final, foram escolhidos pelo júri – composto por Fernanda Brenner, Flavia Guerra, Graciela Guarani e Linn da Quebrada – pare receber o Grande Prêmio 14º Cine Esquema Novo “Os Últimos Românticos do Mundo”, de Henrique Arruda (PE), e “Célio’s Circle”, de Diego Lisboa (BA/SP). Além destes, levaram reconhecimentos de destaque ”Perifericu”, de Nay Mendl, Rosa Caldeira, Stheffany Fernanda e Vita Pereira (SP, Prêmio Perspectiva); “Ser Feliz no Vão”, de Lucas H. Rossi dos Santos (RJ, Prêmio Requadro); “Entre Nós e o Mundo”, de Fabio Rodrigo (SP, Prêmio Contra-Plano); “Caminhos Encobertos”, de Beatriz Macruz e Maria Clara Guiral (SP, Prêmio Quebra de Eixo); e “Atordoado, Eu Permaneço Atento”, de Henrique Amud & Lucas H. Rossi dos Santos (RJ/SP, Prêmio Ficção).

No meu caso, suscitado a dialogar sobre diversos temas, não raro delicados e polêmicos, mas sempre urgentes e necessários de serem abordados como racismo, política, violência, gênero e comportamento social. Foram, ao todo, nove títulos sobre os quais me debrucei, três em cada encontro, cujos temas e aspectos depreendidos eram ligados e debatidos à luz do fazer cinematográfico e de seus contextos sociopolíticos e culturais.

Telas preenchidas com debatedores convidados nos três encontros em que participei no CEN 2021

O desafio foi interessante para alguém que até então havia participado como jurado e debatedor mas ainda não como mediador. No primeiro, dia 10/4, temas como preconceito de raça e gênero, violência urbana e identidade circundaram os filmes “As Vezes Que Não Estou Lá”, de Dandara de Morais (PE), “Fazemos da Memória Nossas Roupas”, de Maria Bogado (RJ), e o já citado “Entre nós e o Mundo”, com a presença de seu diretor. 

No segundo, dois dias depois, os questionamentos penderam para as verdades obscurecidas pela sociedade e pela história e as dimensões oníricas da vida (e da arte). Porém, não menos instigantes. Isso, através do aprofundamento dos filmes “Vento Seco” (GO), “Deserto Estrangeiro” (RS) e “A Chuva Acalanta a Dor” (CE/Portugal), que contou com a participação de seus realizadores: Daniel Nolasco, Davi Pretto e Leonardo Mouramateus, na ordem por obra.

Por fim, no dia 14, estive na interlocução daquele que talvez tenha sido ainda mais pulsante dos debates. Reunindo Lia Letícia, pelo filme “Per Capita” (PE), Victor Abreu, por seu “Milton Freire, um grito além da história” (RJ), e a dupla Rubens Rewald e Jean-Claude Bernadet – este último, lendário crítico/roteirista/cineasta/professor, uma referência para o pensamento do cinema brasileiro –, que competiam no CEN com o fervente “#eagoeraoque?” (SP). A situação política do Brasil foi propositadamente provocada não apenas em razão deste título, mas também no desassossegador curta de Lia e no forte filme de Victor, que aborda a violência aplicada aos doentes mentais.

Para entender melhor essas poucas e superficiais observações, recomendo altamente que se assistam os vídeos dos debates, que o CEN disponibiliza em suas redes. Aliás, estes e os vários outros debates e vídeos das diversas atividades, que trazem um conteúdo rico para quem preocupa-se em questionar assuntos prementes da nossa sociedade. Como disse o ilustre convidado Bernadet não nesta, mas numa outra ocasião, o fazer da crítica de cinema não pode se resumir a apenas avaliar filmes, mas, sim, exercer um papel ativo na interação com a produção e a criação da obra fílmica. Ao menos, tentei.

Confira os vídeos com os debates:

Debate 1 (10/4): 
As Vezes Que Não Estou Lá - Dandara de Morais, direção e roteiro
Entre nós e o Mundo - Fabio Rodrigo, direção e roteiro
Fazemos da memória nossas roupas - Maria Bogado, direção e produção



Debate 2 (12/4):
Vento Seco - Daniel Nolasco, direção
Deserto Estrangeiro - Davi Pretto, direção
A chuva acalanta a dor - Leonardo Mouramateus, direção



Debate 3 (14/4): 
#eagoraoque - Jean-Claude Bernardet e Rubens Rewald, direção
Per Capita - Lia Leticia, diretora e roteiro
Milton Freire, um grito além da história - Victor Abreu, direção e roteiro


Daniel Rodrigues